México: A maré da indignação numa sociedade caótica

Miguel Urbano Rodrigues

8 de junho de 2002


Fonte: https://www.resistir.info/mur/mexico_jun02.html

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Estive no México em Março. Voltei em Maio para participar numa conferencia internacional. Tudo parecia ter entrado em ebulição.

Uma noite fui despertado por tremenda algazarra. A varanda do meu quarto, no hotel, abria para o Zócalo. Em baixo, sob as arcadas do Palacio de la Gobernación do Distrito Federal, uma pequena multidão assistia a um comício. O orador despejava criticas duríssimas sobre o governo. Os discursos seguintes foram ainda mais inflamados.

Eram cinco da madrugada. A gigantesca praça, cenário ao longo de cinco séculos de acontecimentos de significado antagónico, uns revolucionários outros contra-revolucionários, mantém inalterável o seu fascinio; continua a ser um lugar encantatório.

O meu companheiro de quarto, um diplomata da Republica do Congo, ao escutar os apelos vibrantes à luta que a instalação sonora transmitia, perguntou, emocionado:

— Será isto o começo da revolução?

Cortei-lhe a esperança:

— Não, companheiro. É apenas um protesto integrado no Dia do Professor. Eles estão em greve. Mas nada vai acontecer no México de importante nos próximos dias.

O espanto do diplomata africano era, porem, legítimo. Ao forasteiro desconhecedor da sua história e sem intimidade com a sua cultura, o México transmite quase permanentemente imagens de uma sociedade em vésperas de revolução.

As estridência do discurso de oposição enganam. O sistema de poder está solidamente implantado. A dominação imperialista nunca foi tão ostensiva.

A DUPLICIDADE DE FOX

Em artigo recente chamei a atenção para o significado da eleição de Vicente Fox.

Com ele a direita tradicional voltou à Presidência da qual havia sido afastada ha mais de 90 anos. O apodrecimento do Partido Revolucionário Institucional (PRI), que se degradou no exercício ininterrupto do Poder, facilitou-lhe enormemente a vitória.

O novo Presidente definiu logo de inicio a estratégia da sua Administração numa frase que foi muito saudada em Washington: este será «o governo de um empresário para empresários!»

A síntese define o homem e o político.

A arrogância da direita adquiriu aspectos tão ostensivos que o grande patronato, ingerindo-se na área da Educação, não hesita já em exigir a introdução do ensino religioso nas escolas públicas. Isto num pais de tradição anticlerical onde durante décadas as procissões não podiam sair à rua, devido a uma proibição legal.

Fox é um populista de direita menos original do que parece. A rápida perda de prestigio reflecte a desilusão nascida das promessas faraónicas não cumpridas. Como candidato anunciara uma luta sem quartel contra a corrupção, a insegurança e o desemprêgo. Entretanto, a corrupção alastra, tal como a violência, e no seu primeiro ano de governo foram suprimidos 800 mil postos de trabalho.

As relações do presidente com o Congresso tornaram-se tensas porque ignora com frequência a rejeição de decretos seus que, posteriormente são declarados inconstitucionais pela Suprema Corte.

Dos seus múltiplos conflitos com o Legislativo o mais grave situa-se na área da política energética.

É oportuno recordar que para a esmagadora maioria dos mexicanos a nacionalização do petróleo foi encarada como conquista irreversível do povo. O prestigio de Lázaro Cardenas – que permanece inalterável – é inseparável da firmeza com que o presidente – símbolo – da Revolução resistiu a todas as pressões do imperialismo e das transnacionais petrolíferas, defendendo a Pemex.

Ora Fox ataca o tabu: quer privatizar a electricidade e a petroquimica.

Na área da política externa, o conflito criado com Cuba foi apenas um dos aspectos da ruptura com o principio – constante da Constituição – de não intervenção nos assuntos internos de outros estados. Através da gravação da sua conversa telefónica com Fidel Castro, divulgada pelo presidente de Cuba, o povo mexicano soube que Fox lhe mentira ao negar pressões exercidas sobre o líder revolucionário antes da Conferencia de Monterrey, promovida pela ONU. Fox agiu no episódio como um autentico vassalo de George Bush.

A política foxiana de dois discursos e duas caras voltou a ficar transparente durante a Cimeira União Europeia-América Latina, em Madrid. Fox, recebido por Aznar com demonstrações de apreço excepcionais, falou muito de assuntos de política interna do seu pais nos discursos pronunciados na capital espanhola e em entrevistas à imprensa e á televisão. Abordando duas questões fundamentais produziu afirmações que logo desencadearam no México uma tempestade de protestos.

No tocante às relações com o PRI, retomou acusações antigas sobre o uso ilegítimo de fundos públicos na campanha eleitoral de Labastida, candidato daquele partido à Presidência. Omitiu que acusações não muito diferentes, ligadas a subsídios privados, igualmente ilegais, envolvem a sua própria campanha. O ataque surpreendeu porque, dias antes, Fox estabelecera no México quase um pacto de cooperação com o actual presidente do PRI, Roberto Madrazo.

Para espanto dos dirigentes militantes dos partidos da oposição, e do próprio PAN governista, Fox, durante um pequeno almoço com Madrazo, lançara um apelo à concórdia, sintetizado numa frase que correu pelo pais: «Governemos juntos a transição, unamos vontades para avançar!»

La Jornada, o grande diário da esquerda, qualificou de dramático o pedido de colaboração dirigido ao adversário: «ajudem-me a governar porque sozinho não posso».

Mais: Fox elogiou então o papel desempenhado pelo PRI na historia do país: «O México actual não poderia ser entendido – afirmou – sem nos remetermos ao papel que o partido (o PRI) desempenhou ao longo do seculo XX na preservação da estabilidade e na construção das instituições» (...)

Entretanto, transcorridos dias, os elogios cederam lugar a críticas e insinuações ofensivas, formuladas em terra estrangeira.

Mais ampla e indignada foi, contudo, a reacção dos opositores ao tomarem conhecimento das declarações de Fox sobre a questão energética. Dirigindo-se a chefes de estados e de governos europeus, informou que o Congresso na sua próxima sessão extraordinária aprovará as propostas de privatização do sector energético.

A afirmaçao, categórica, choca pela leviandade.

O projecto de desmantelamento da Pemex foi inspirado pelo Banco Mundial, isto é por Washington. Como salientou o economista John Saxe Fernandez, professor da Universidade Nacional do México, uma tal operação exigiria, porem, submeter previamente a Constituição a uma «grande cirurgia».

Esta parece inviável, porque a oposição, que rejeita as privatizações propostas pelo presidente, é amplamente majoritária tanto na Câmara como no Senado.

Segundo Fox, a actual carta magna mexicana não responde já «às novas circunstancias democráticas», nem «à nova agenda internacional do país». E, sob os aplausos de Aznar, achou útil acrescentar que a «ordem internacional deve ir alem do conceito de soberania».

Procedeu obviamente, como complemento, à apologia da ALCA e do Plano Puebla-Panamá.

Omitiu, porem, uma informação de suma importância. Não esclareceu que três semanas antes, a Suprema Corte de Justiça do México tinha desfechado um golpe demolidor na sua agenda privatizadora. Um acórdão declarou inconstitucionais vários artigos do projecto de privatização do sector energético.

Fox não informou também que a Pemex é forçada pelo seu governo a pagar ao Estado, sob a forma de impostos, 95% dos lucros obtidos, o que impede a grande empresa de realizar os investimentos indispensáveis para manter a sua competitividade.

A Fundação Heritage, conhecida pelas suas posições de extrema-direita, avaliou recentemente em 150 mil milhões de dólares o valor da Pemex para efeitos de privatização, admitindo que a Exxon, a Shell, a Amoco e a Dupont, entre outras transnacionais, estariam interessadas na partilha do bolo. Por si só essa quantia abre uma janela para o jogo de interesses geoestratégicos e empresariais que o presidente Fox contrapõe ao respeito pela Constituição.

UM GIGANTE DOENTE

O México, com um Produto Interno Bruto que rondará este ano os 950 mil milhões de dólares é a segunda economia da América Latina e a décima primeira do mundo. Pelos seus recursos naturais – petróleo, prata, gás natural, grande variedade e quantidade de mineiros estratégicos, uma industria pesada e ligeira avançadas e um sector agro-pecuário com grandes potencialidades – reúne condições favoráveis a um desenvolvimento acelerado e harmonioso capaz de proporcionar bem estar e prosperidade aos seus 103 milhões de habitantes. Mas o gigante é um grande doente crónico. Presentemente, nenhum dos grandes países latino-americanos se encontra submetido a um processo de rapina tão complexo, sistemático e profundo como o México. As suas riquezas são drenadas para os EUA num saque gigantesco.

A NAFTA – sobre cujo modelo Washington pretende construir a ALCA – contribuiu nos últimos anos para o agravamento de uma dependência que assume facetas cada vez mais preocupantes.

A máscara do falso milagre posterior à crise que levou o pais à beira da bancarrota – evitada com a entrada maciça de mais de quatro dezenas de milhares de milhões de dólares – desfez-se em pedaços. A imagem que o México projecta não é mais a de um pais ficcional, disfarçado de desenvolvido, mas a de uma sociedade cada dia mais dependente, onde a riqueza se concentra enquanto alastram a pobreza e a fome.

A crise é aprofundada pela política de Fox, dócil instrumento da estratégia neoliberal ideada em Washington, isto é das mesmas velhas receitas, com verniz novo, do FMI e do Banco Mundial.

Manipulando estatísticas, os epígonos do governo bem se esforçam por inverter a realidade.

O saldo positivo das exportações para os EUA no primeiro trimestre do ano foi utilizado como arma de propaganda: atingiu 8 mil e 449 milhões de dólares, crescendo 30% comparativamente ao ano anterior. As trocas comerciais entre os dois países excederam em Março 26 mil e 785 milhões de dólares, com um saldo amplamente favorável ao México. O facto de este ter ultrapassado largamente o Japão como segundo parceiro comercial dos EUA, figurando logo após o Canadá, também é tema de comentários que distorcem a realidade.(1)

Esses números confundem se não forem interpretados à luz da função de dependência que a economia mexicana cumpre perante os EUA.

Uma percentagem cada vez maior das exportações de bens e serviços do México – 164 mil milhões de dólares em 2000 – é constituída por produtos manufacturados pelas filiais de transnacionais norte-americanas instaladas no pais, principalmente próximo da fronteira. Por si só as montadoras de automóveis são responsáveis pela parte do leão.

Que parcela dessa riqueza exportada fica no México? Uma parte ínfima, porque o grosso dos componentes dos veículos made in México vem dos EUA. As transnacionais utilizam sobretudo a força de trabalho mexicana, remunerada com salários baixíssimos. As maquiladoras agem da mesma maneira na industria ligeira, nomeadamente na têxtil e na química.

UMA CENTENA DE CANAIS DE TV E 26 JORNAIS DIÁRIOS NA CAPITAL

O discurso foxista não consegue ocultar a profundidade da crise. Esta atinge sectores muito diversificados e manifesta-se na queda de 2% do PIB no primeiro trimestre do ano corrente. No turismo, a área mais dinâmica da economia, a quebra foi de 5%, e de 4,4% no conjunto da industria, superando 7,6% no mês de Março.

Tive a oportunidade de verificar que de Março a Maio os preços de alguns artigo de primeira necessidade subiram.

Naturalmente, a carestia provocava um descontentamento indisfarçável. As criticas ao governo assumiam uma intensidade crescente. O Congresso negou-se a ouvir o secretario (ministro) do Estrangeiros. Não o reconheceu como interlocutor ético e exigiu a sua demissão após o papelão que desempenhou nas manobras contra a Revolução Cubana e na tentativa para impedir a presença de Fidel Castro na Conferencia de Monterrey. A tradicional independência da política externa mexicana foi substituída por uma linha de submissão aos EUA.

Mas a contradição entre o volume e a amplitude das criticas ao governo Fox e o seu efeito na pratica da vida é desconcertante.

Pelas manchetes dos jornais e da televisão, o forasteiro pouco familiarizado com a complexa realidade mexicana poderia admitir que assistia ao prólogo de uma crise de grandes proporções, com desdobramentos alarmantes.

Pura ilusão.

Somente na área do Grande México – quase 20 milhões de pessoas – existem 26 jornais diários e funcionam uns 100 canais de televisão e um numero incontável de rádios. Os grandes jornais adoptam quase todos uma linha de oposição. A qualidade dos principais diários – sobretudo de La Jornada – é muito superior à da imprensa portuguesa, mas o peso político dos mass media na sociedade mexicana, como formadores de opinião, é muito pequeno.

Fox, não obstante o clamor dos protestos que a sua política levanta hoje em todo o pais, vai continuar a desenvolver, sob a supervisão de Washington, a estratégia neoliberal condensada no lema «governo de um empresário para empresários». A tarefa a que se propõe tende, entretanto, a esbarrar com oposição crescente. Esta não provem apenas do Congresso, que desempenha na crise um papel importante. Dezenas de movimentos progressistas procuram articular as suas iniciativas de combate ao sistema. Entre eles destacam-se o Paz y Democracia, liderado pelo sociólogo Pablo Gonzalez Casanova, ex-reitor da Universidade Nacional Autónoma do México (uma instituição com aproximadamente 400 mil alunos e professores), e, sobretudo, pela sua firmeza, o Congresso Nacional Indígena, que representa as aspirações de 10 milhões de índios que constituem uma impressionante e combativa massa de excluídos. O significado da intervenção política desse Congresso como porta voz das organizações indígenas é hoje mais importante do que o combate do Exercito Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). Uma década após o seu aparecimento na selva lacandona, o movimento de Chiapas perdeu no pais muito do prestigio inicial. O mutismo do subcomandante Marcos nos últimos meses expressa de alguma maneira a frustração do EZLN, consciente de que o novo código indígena, aprovado pelo Congresso após a marcha dos comandantes chiapanecas sobre o México é ainda pior do que o anterior.

No sector sindical, tradicionalmente manipulado pelo Poder através de um feixe de centrais e federações, emergem também novas formas de luta. É o caso dos professores, dos trabalhadores do transporte e das comunicações.

O que falta para que a caudalosa vaga de descontentamento popular possa abalar as estruturas da engrenagem de poder que desenvolve a política de direita comandada de Washington? Falta o mais importante, o mais difícil. Que as forças democráticas e progressistas, maioritárias, mas dispersas e divididas, encontrem no dialogo o caminho que possa levar à constituição de uma Frente Única contra o neoliberalismo foxista, isto é contra o imperialismo.


Notas de rodapé:

(1) As citações deste artigo foram extraídas dos diários mexicanos «La Jornada», «El Universal » e «Excelsior». O autor recorreu também, no tocante às estatísticas, ao anuário «L'Etat du Monde», edição do ano 2002, Ed. «La Découverte», Paris. (retornar ao texto)

Inclusão: 01/08/2021