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Nos detemos no momento em que Marx abandonou sua carreira de jornalista na Alemanha para ir ao estrangeiro. Resumiremos agora o que foi dito anteriormente. Nos propusemos a tarefa de estudar a vida de Marx e de Engels aplicando o método de investigação criado por eles.
Vimos que, apesar de toda sua genialidade, Marx e Engels foram homens de uma época determinada. Hão de recordar de como chegaram à vida consciente, ou seja, como saíram do período infantil, durante o qual as principais impressões provêm da família; como caíram sob a influência de uma época histórica, cujo caráter foi determinado principalmente pela Revolução de Julho na Alemanha, pelo desenvolvimento da ciência e da filosofia, pelo desenvolvimento do movimento operário e pelo avanço revolucionário. Indicamos igualmente que Marx e Engels não somente são produto da época histórica, com também, por sua origem, foram homens de um lugar determinado. A Renânia, era então a província mais industrializada e mais internacional da Alemanha, e também a mais fortemente influenciada pela Revolução Francesa. Demonstramos que nos primeiros anos de vida, Marx esteve sujeito a outras influências que não as que cercavam Engels e que foi grande em sua família o efeito oriundo da filosofia francesa. Ao contrário, Engels esteve submetido a influência da religião em uma família rígida. Assim, as questões relacionadas à religião foram sempre mais angustiantes para Engels do que para Marx. Por fim, ambos, por diferentes caminhos, mais facilmente um, com mais dificuldades outro, chegaram a conclusões idênticas.
Havia parado no momento em que chegaram a ser os representantes mais radicais do pensamento político e da filosofia do seu tempo; o momento em que Marx se mudou para Paris para formular o seu novo ponto de vista. Para saber o que Marx, aos 25 anos, expôs de verdadeiramente novo, falaremos brevemente o que encontro de domínio da filosofia.
Deborin expôs(1) a questão da consciência, da inteligência, da matéria do ser, etc., e citou provavelmente o nome de alguns filósofos. Para referir a elas citarei as palavras de Engels no prefácio do seu folheto O Desenvolvimento do Socialismo Científico.
"Nós, os socialistas alemães — escreve Engels — nos orgulhamos de descender não somente de Saint-Simon, Fourier e Owen, como também de Kant, Fichte e Hegel".
Engels não mencionou a um quarto filósofo alemão, Feuerbach, ao que dedicou mais tarde uma obra específica. Exporemos agora a origem filosófica do socialismo científico. Não somos, como Deborin, especialistas em filosofia; somente nos ocupamos em adquirir uma ideia das questões fundamentais, como fizeram todos aqueles que se interessam pela evolução humana.
A questão fundamental, como formula Engels, é saber se existiu um princípio criador que precede o mundo; ou em outras palavras, se há, como aprendemos em nossa infância, um Deus. Este criador todo poderoso, pode se revestir de diferentes formas segundo as religiões. Pode manifestar-se na forma de um monarca celestial de poder infinito, com inúmeras legiões de anjos sob suas ordens. Pode transmitir seus poderes a um papa, a bispos, a sacerdotes; pode, em fim, um rei bom e esclarecido, estabelecer de uma vez para sempre uma constituição, leis fundamentais que governam a humanidade inteira e, em sua infinita sabedoria, se satisfaz com o amor e respeito aos seus filhos sem intrometer-se jamais na administração dos seus assuntos. Pode, em uma palavra, manifestar-se nas formas mais diversas, porém no momento em que se reconhece a existência deste deus, se admite que há um ser que existiu em todos os tempos e que, um dia, disse "Que o mundo seja" e cuja palavra se transformou em realidade de imediato.
Desta maneira, pois, o pensamento, o desejo, a intenção de criar este mundo, existia em alguma parte, fora do próprio mundo; onde, não se sabe exatamente. Este segredo não foi descoberto por nenhum filósofo, nem ainda por nossos novos filósofos de Petrogrado.
Este ser eterno criou todo o existente. Sendo assim, a consciência, o pensamento, determinam tudo o que existe. A ideia cria a matéria, por conseguinte, a consciência determina o ser. No fundo, apesar de todo o verniz filosófico, esta nova forma de manifestação do "princípio primeiro", não é outra coisa que a velha concepção teológica do mundo.
Trata-se, definitivamente, de saber se, no universo em que nos movemos, no que existe, pode acontecer algo sem a intervenção de um ser desconhecido, situado para além dos limites do universo, de um ser fora da nossa percepção, que seja Jeová, o Pai, o Filho, o Espírito Santo, ou ainda a Razão. Se pode designá-lo também, como o Evangelho de São João, o Verbo. "No princípio era o verbo". Este Verbo criou a existência; criou o mundo.
A ideia do Verbo princípio de tudo, havia sido combatida no século XVIII pelos materialistas, pelos representantes da nova filosofia e da nova classe, a burguesia revolucionária, na medida em que atacavam a antiga ordem social, o feudalismo. A antiga concepção de mundo era insuficiente para explicar a origem dos novos acontecimentos, que distinguiam sua época das precedentes.
A consciência, a ideia, a razão, consideradas como unas e imutáveis, tinham, a seus olhos, um defeito capital. A observação lhes indicava que todo o terreno se modificava, que o ser se reveste das mais diversas formas. A experiência os ensinava (sem falar das viagens e dos descobrimentos que forneciam a cada dia novos materiais de estudo) que existiam diferentes pessoas, diferentes Estados e diferentes ideias. Tratava-se de conhecer a procedência de toda essa diversidade, de saber como surgem as diferenças que existem entre os homens e as coisas.
Quanto mais os filósofos se aprofundavam no estudo do passado, maior era o número de povos diferentes que encontravam, alguns desaparecidos, outros que sobreviveram à história. Os ingleses atravessaram distintas épocas, o mesmo com os franceses. De onde vem essa diferença no tempo e no espaço se a causa de tudo residia em um princípio único, em um Deus, por exemplo? Só faltavam supor que esse deus, sem que se possa compreender o porquê, decidia que hoje houvesse uma Inglaterra, amanhã uma Alemanha, e uma França depois disso. Um deus que tivera o capricho de fazer reinar um dia na Inglaterra os Stuart, para logo em seguida cortar a cabeça de Carlos I e entregar o poder a Cromwell.
A partir do século XVIII, e um pouco ainda do XVII, à medida em que a existência, a humanidade e as relações entre os homens se modificam notavelmente sob a influência dos próprios homens, a existência da divindade, origem de tudo, suscitou maiores dúvidas. Com efeito, o que explica tudo em sua diversidade, no tempo e no espaço, não explica nada a partir da diferença dos acontecimentos e do que esses têm em comum, se explica pelo fato de que surgiram em condições diferentes, sob a influência de causas distintas. Cada uma dessas diferenças deveria ser explicada pelas causas particulares, pelas influências específicas que a produziram.
Os filósofos ingleses, que viviam sob um capitalismo em rápida transformação e que acumulavam a experiência de duas revoluções, se perguntaram se existia de fato uma força que independente da vontade dos homens provia e fazia tudo. Suscitavam dúvidas o problema de saber se todas essas diferentes ideias, que se haviam manifestado e combatido entre si na época da Revolução Inglesa, eram ideias inatas. Apesar de todos os esforços para conciliá-las com os ensinamentos da Bíblia, era evidente que essas ideias levavam o selo da novidade.
Os materialistas franceses, dos quais já falamos, colocavam a questão com mais clareza. Para eles a suposta força que se encontra fora de nosso mundo, essa força divina que se ocupa sem cessar da nova Europa, que pensa em tudo e contribui com tudo, não existe. Todo fenômeno, todo fato histórico é resultado da ação dos próprios homens.
Os materialistas franceses não conheciam o que determina os atos dos homens, mas sabiam que não era Deus, que não era nenhuma força exterior que faz a história, mas que são os próprios homens que dirigem os acontecimentos. Porém, caiam em uma contradição. Sabiam que os homens agiam diferentemente porque tem opiniões e interesses diferentes, mas não conheciam o que concretamente gera essas divergências de interesses, como tampouco conheciam a influência que as condições materiais exerciam sobre os homens. Ao contrário, acreditavam que a formação dos próprios homens está determinada por esse ou aquele legislador que, da maneira de um deus, dispõe deles e fixa seus atos.
Alguns materialistas franceses haviam colocado claramente outra questão. Certo — replicavam seus adversários — Deus não é um ser idêntico ao terrível Jeová dos judeus, nem ao Pai, Filho e Espírito Santo da religião cristã, porém existe um princípio espiritual que introduziu na matéria a possibilidade do pensamento; que precede a natureza. Respondiam os materialistas que para isso não há necessidade alguma de uma força exterior qualquer, porque o estímulo procede da própria matéria.
Ainda que na época na qual os materialistas franceses elaboraram sua filosofia, a ciência em geral e as ciências naturais, em particular, haviam alcançado um desenvolvimento ainda escasso, eles estabeleceram essa ideia fundamental. Todos os que se intitulam materialistas negam que a consciência, o pensamento, no sentido que nós damos a estas palavras, precedam a matéria, a natureza. Durante milhões de anos não existiu na Terra nenhum ser vivo, organizado; em consequência, não existia o que se chama pensamento, nem o que se denomina consciência. Ou seja: o ser, a natureza, a matéria, precederam a consciência, o pensamento, o espírito.
Não se deve imaginar que a matéria seja necessariamente algo grosseiro, pesado, sujo, e a ideia, delicada, ligeira, pura. Materialistas vulgares, às vezes jovens materialistas, no calor da discussão ou para zombar dos fariseus do idealismo que não param de falar do grande e do belo enquanto se acomodam perfeitamente com a vilania e a infâmia da sociedade burguesa, sublinham, às vezes intencionalmente, que a matéria é uma coisa pesada e grosseira. Pelo contrário, quando se segue o desenvolvimento das ciências físicas se comprova que durante os últimos cinquenta anos a matéria se transformou em algo incrivelmente etéreo e extremamente móvel. Desde que a Revolução Industrial cambiou as bases da velha economia natural, tudo se pôs em movimento. Quando dormia, despertou e tudo o que estava imóvel se colocou em movimento. Na matéria compacta, aparentemente fixa, foi descoberto novas forças e novas formas de movimento.
O fato a seguir nos mostrará os quão insuficientes eram os conhecimentos dos materialistas franceses. Quando Holbach, um dos mais lógicos, escreveu seu livro O Sistema da Natureza, ignora o que agora sabe todo bom aluno de 12 anos. Para ele o ar era indivisível e um dos elementos principais que constituíam a natureza; por outra parte, não sabia sobre o ar mais do que sabiam os gregos dois mil anos atrás. Alguns anos depois da publicação do livro de Holbach, a química, desenvolvida sobretudo por Lavoisier, mostrou que o ar se compõe de nitrogênio e oxigênio, aos quais estão mesclados em quantidade ínfima certo número de elementos. E um século mais tarde, no final do século XIX, a química descobre no nitrogênio e no oxigênio, gases como o argônio e o hélio, que são matéria, porém extremamente sutil.
Outro exemplo: na Rússia soviética é muito usada a radiotelegrafia, pois nos prestou serviços imensos durante o bloqueio e a guerra civil. Sem ela, teríamos vagado, por assim dizer, na escuridão. A radiotelegrafia somente existe há 30 anos, pois em 1897 ou 1898 foi quando descobriram na matéria grosseira e inanimada, substâncias tão imateriais que, para designá-las, foi preciso buscar denominações na antiga teologia da Índia. A radiotelegrafia transmite os sons. Pode-se aqui, em Moscou, ouvir um concerto executado a várias centenas de quilômetros de distância. E não somente isso; ultimamente descobrirmos que se pode enviar um telegrama que além da caligrafia do remetente reproduz seu retrato, e que para isso basta a adaptação de um aparelho inventado pelo técnico francês Belin. E tudo isso se efetua não com a ajuda do "espírito", mas com a ação de uma matéria extremamente sutil e delicada, medida e dirigida por nós.
Esta história foi contada para demonstrar quão atrasadas são as concepções habituais sobre a materialidade e a imaterialidade; eram ainda mais no século XVIII. Se os materialistas desta época tivessem considerado todos os novos fatos existentes, seriam menos "grosseiros" e as pessoas "delicadas" não teriam se separados deles.
Os filósofos alemães contemporâneos de Kant adotaram o ponto de vista ortodoxo. Rechaçaram a doutrina materialista como ímpia e imoral; mas Kant não ficou satisfeito com uma conclusão tão simples. Compreendeu perfeitamente toda a inconsistência das velhas ideias religiosas, porém não possuía nem a audácia psicológica nem a lógica necessária para romper com essas ideias categoricamente.
Em 1781, Kant publicou sua principal obra, Crítica da Razão Pura, em que sustenta que não há prova alguma da existência de Deus, da imortalidade da alma, das ideias eternas, e que nossa ciência é baseada na experiência. Segundo ele, não podemos conhecer as coisas em si mesmas, sua essência, mas somente as formas sob as quais se manifestam e causam impressões aos nossos sentidos. A essência das coisas, dissimulada no fenômeno, nunca nos será acessível. Desta forma, Kant estabelece uma espécie de ponte entre o materialismo e o idealismo, entre a ciência e a religião. Não nega os progressos da ciência nem que ela ajude a compreender as coisas, porém, ao mesmo tempo, deixa uma porta aberta à teologia, permitindo batizar com o nome de Deus a essência das coisas. Em sua contabilidade de duplo caráter, em seu desejo de ficar bem com a ciência e com a fé, Kant vai ainda mais longe. Escreve outra obra, Crítica da Razão Prática, em que demonstra que se na teoria pode prescindir de Deus, da imortalidade da alma, etc., na prática há que se reconhecer todos esses princípios, uma vez que sem eles a própria ação careceria de base moral.
O já citado poeta alemão Heine, que foi um grande amigo de Marx, e sobre o qual este teve algum tempo de considerável influência, narrou de uma maneira muito interessante os motivos dessa atitude kantiana. Kant tinha um velho criado, Lampe, que estava com ele há 40 anos e que o rodeava com a mais afetuosa solicitude. Para Kant, Lampe personificava o homem comum que não pode viver sem fé. E Heine, depois de expor brilhantemente o alcance revolucionário da Crítica da Razão Pura na luta contra a teologia, e ainda contra a fé como princípio divino, explica porque Kant teve necessidade da Crítica da Razão Prática, na qual reconstrói tudo o que acabara de destruir. Eis o que disse Heine:
"A tragédia sucede a farsa. Immanuel Kant cumpriu até aqui o papel do filósofo intransigente. Se lançou ao céu, venceu a guarnição e abateu suas armas; ficou rendido e banhado em sangue o amo do mundo; não há misericórdia, não há providência paternal, não há recompensa em outro mundo para as virtudes deste; a imortalidade agoniza; aqui, estertores, lá gemidos. Mas o velho Lampe está lá, guarda-chuva embaixo do braço, espectador aflito, com o rosto coberto com um suor frio e banhado em lágrimas. A piedade penetra então o coração de Kant e demonstra que não é só um grande filósofo, mas também bom homem. Depois de refletir um instante, diz, com um tom benévolo e irônico: 'O velho Lampe tem a necessidade de um deus, senão não será feliz. Bem, o homem deve ser feliz na Terra. Assim fala a razão prática. E, bom, que assim seja!; a razão prática é a responsável pela existência de Deus'".
Kant desempenhou um papel importante na história da ciência. Demonstrou, como fez o astrônomo francês Laplace, que a terra não foi criada por Deus em alguns dias, como nos contam na Sagrada Escritura, mas que é resultado de uma longa evolução e que, como todos os corpos celestes, se formou pela condensação de uma matéria informe e rarefeita.
No fundo, Kant foi um conciliador da antiga e da nova filosofia, e assim atuou em todos os aspectos da vida prática. Mas ainda que não tenha rompido de forma resoluta com o passado, avançou, de forma considerável, e seus discípulos mais consequentes, como Heine, compreenderam a verdadeira razão de sua contabilidade, rechaçaram a Crítica da Razão Prática e extraíram da Crítica da Razão Pura as deduções extremas que ela contém.
Não me deterei longamente em Fichte, que Engels menciona. Fichte teve uma influência muito maior sobre Lassalle do que sobre Marx. Sua filosofia encerra um elemento que não foi completamente desenvolvido no sistema de Kant e que influenciou consideravelmente sobre os intelectuais revolucionários da Alemanha. Se Kant foi um filósofo tranquilo que durante décadas não saiu de sua amada Konigsberg, Fichte não foi somente um filósofo, mas um homem de ação, elemento ativo que introduz na sua filosofia. Ao antigo conceito de uma força especial que domina os homens, opõe um novo que faz da personalidade humana e da ação a fonte principal de toda teoria e de toda prática.
A filosofia que mais influência teve sobre Marx e Engels foi a de Hegel, cujo sistema total se baseia em princípios divergentes dos de Kant e Fichte. Entusiasmado em sua juventude pela Revolução Francesa, em 1831, ano de sua morte, Hegel era um professor e funcionário prussiano cuja filosofia contava com a aprovação do Estado.
Como a filosofia de Hegel tornou-se a fonte na qual Marx, Engels e Lassalle saciaram a sede de conhecimentos? O que havia nesta que atraiu irresistivelmente o mais capacitado do pensamento revolucionário e social?
A filosofia de Kant, em suas linhas fundamentais, foi elaborada antes da grande Revolução Francesa. Ao eclodir esta, Kant tinha 75 anos, e ainda que seja verdade que sentiu sua influência, não tirou dela conclusões radicais. Portanto, no que concerne à natureza, a história do planeta, se assimila a ideia de evolução, porém seu sistema se reduz a explicação do mundo tal qual é.
O contrário acontecia com Hegel. Havia atravessado a época dos transtornos econômicos dos fins do século XVIII e começo do XIX e se empenhou em explicar o mundo tal qual tornou-se. Nada permanece imóvel. Sua ideia absoluta, sua razão, somente vive e se manifesta em um processo contínuo. Tudo flui, tudo muda, tudo desaparece. O perpétuo movimento, o desenvolvimento contínuo da ideia absoluta, determina a evolução de nosso mundo em todos seus domínios. Para compreender os fenômenos que nos cercam não basta estudá-los tal qual existem, mas compreender como se produziu o desenvolvimento, pois tudo o que nos rodeia é o resultado de um processo anterior. Ademais, se imediatamente tal coisa nos aparece como imóvel, examinando-a atentamente se comprova que se produz nela uma luta, que existe nela influências, forças que a mantém no estado em que a conhecemos, e outras forças, e outras influências, que tendem a modificá-la. Em cada fenômeno, em casa causa, se produz uma luta desses dois princípios, a tese e a antítese. Desses dois princípios, um observa, outro destrói. A luta de ambos, que existe em cada fenômeno, conduz a uma síntese, a sua união.
Para Hegel, a razão, o pensamento, a ideia, não permanecem imóveis, imutavelmente fixas, não se estabilizam em uma tese. Pelo contrário, essa tese, este pensamento, opondo-se a si mesmo, se divide em dois contrários: a afirmação e a negação, o sim e o não. A luta desses elementos contrários, trancados na antítese, constitui o movimento que Hegel chama de dialético para ressaltar o elemento de luta que existe neste. Nesta luta, nesta dialética, ambos contrários se equilibram mutuamente e se fundem. A fusão dos contrários produz um novo pensamento: sua síntese novo pensamento, nova ideia, que se divide a sua vez em duas opostas, a tese se transforma em antítese e ambos se conciliam em uma nova síntese.
Hegel considera todo fenômeno, toda coisa, como um processo, como algo em estado de transformação constante, de incessante desenvolvimento. Todo fenômeno não somente é resultado de uma modificação anterior, mas que leva em si o germe de uma nova modificação. Jamais se detém em um ponto determinado. Pelo contrário, apenas chegou a um grau superior e dali começa a luta das novas contradições. Como muito bem disse Hegel, a luta das contradições é a origem de todo desenvolvimento.
Eis aqui precisamente o aspecto revolucionário da filosofia de Hegel. Ainda que Hegel fosse idealista, ainda quando para ele o princípio seja o espírito e não a natureza, a ideia ao invés da matéria, exerceu uma imensa influência nas ciências históricas e sociais e, ainda nas ciências naturais. Incitou ao estudo da realidade, a buscar todas as formas de desenvolvimento da ideia absoluta, manifestações desta ideia que, quanto mais variadas fossem, mais o é também o fenômeno, o processo do qual é preciso estudar o desenvolvimento.
Para compreender melhor o que atraía Marx, Engels e Lassalle, assim como os revolucionários russos Bielinsky, Herzen, Bakunin e Chernichevsky por esta filosofia tão árida, com sua nebulosa linguagem, leiamos o que dela disse Chernichevsky:
"Mudança eterna da forma, destruição eterna da forma engendrada por um determinado conteúdo ou aspiração, como consequência do esforço desta mesma aspiração, do desenvolvimento último do conteúdo. Quem compreende esta grande lei eterna e universal, quem aprende a aplicá-la a cada fenômeno, permanece tranquilo frente as contingências que aos demais abatem. Repetindo o poeta: 'Apostei quanto tenho sobre nada, e o mundo inteiro me pertence', não deplora nada do que cumpriu seu tempo e disse: 'Aconteça o que aconteça, no final das contas o triunfo será nosso'".
Não explicarei aqui outros aspectos da filosofia hegeliana que mostram porque ela impulsionou fortemente o estudo da realidade. Quanto mais os discípulos de Hegel estudaram a realidade à luz e sob a direção do método dialético criado por seu mestre, mais se revelou o defeito fundamental desta filosofia: é uma filosofia idealista, pois para ela o principal motor, o criador, é a ideia absoluta, a consciência determinando o ser.
O ponto débil da filosofia de Hegel incitava a crítica. Sua ideia absoluta não era, em suma, podemos dizer, mais que uma reedição do antigo Deus cristão, ou de um deus purificado, incorpóreo, o que haviam criado para o povo, filósofos como Voltaire. Deste ponto de vista aborda a filosofia de Hegel um dos seus discípulos mais talentosos, Ludwig Feuerbach. Havia compreendido e assimilado muito bem o lado revolucionário desta filosofia, mas, questionava: pode realmente tal ideia absoluta, em seu desenvolvimento, determinar o ser? Feuerbach responde negativamente a essa questão. Inverte a tese fundamental de Hegel e demonstra, pelo contrário, que o ser é quem determina a consciência; que houve um tempo no qual o ser existia sem consciência; que o pensamento, a ideia, era o produto deste mesmo ser. Segundo ele, a filosofia hegeliana é somente o último dos sistemas teológicos, pois substitui a Deus por um ser — a ideia absoluta — do qual deriva tudo. Feuerbach prova que todas nossas ideias sobre Deus e os diferentes sistemas religiosos, compreendido neles o cristianismo, são o produto do próprio homem, que não é Deus o criador do homem, mas sim que o homem é quem cria Deus a sua imagem. Basta dissipar todo este mundo de fantasmas, de anjos, de feitiçarias e de outras manifestações da mesma essência divina, para obter o mundo humano. O homem é o princípio fundamental de toda a filosofia de Feuerbach. A lei suprema para o mundo humano não está na lei de Deus, mas na do próprio homem. De outro lado, Feuerbach opunha ao antigo princípio teológico divino, um novo princípio, o antropológico.
Após leitura dos nossos velhos críticos e jornalistas, Dobrolyubov e Chernichevsky, se adverte que sua concepção de mundo se assenta sobre o princípio antropológico, ou seja, que o ponto de partida é o homem com suas necessidades. Para instaurar a verdadeira comunidade humana não basta se ocupar do espírito, mas também do corpo; é necessário satisfazer todas as necessidades do homem, criar condições de vida nas quais o homem possa desenvolver todas suas faculdades. A estas conclusões chegaram com o auxílio de Feuerbach, o mesmo aconteceu com Marx e Engels e todos os intelectuais avançados de sua época. Basta comparar as obras de Marx e Engels anteriores a 1845 com as de Herzen, Bielinky e, Dobrolyubov e Chernichevsky, para comprovar a analogia de ideias e pontos de vista da exposição, analogia maior quanto mais os escritores russos se distanciavam de Hegel para aproximar-se de Feuerbach. Mas sabemos que nem Chernichevsky, nem Dobrolyubov, nem, por razões mais poderosas, Herzen, foram marxistas ou comunistas, ainda que fossem socialistas. Todos ficavam presos a um ponto específico, ainda Chernichevsky, que ia mais longe pelo caminho em que o havia colocado o estudo de Feuerbach.
Somente Marx introduziu algo realmente novo semelhante a filosofia de Feuerbach e extraiu novas deduções; porém para compreender o que Marx inovou na filosofia alemã será preciso retrocedermos um pouco.
Ao falar da juventude de Marx destaquei um pequeno fato. Em um dos seus trabalhos realizados no colegial, Marx demonstrou que existe, anteriormente ao nascimento do homem, uma série de condicionamentos que determinava fatalmente sua futura profissão. Assim, já no colégio, Marx conhecia a ideia que se deduz logicamente da filosofia materialista do século XVIII. O homem é o produto do meio, das circunstâncias, o que o impede de ser completamente livre para seguir suas convicções; não pode ser o artífice da sua felicidade. Nesta tese, como já destaquei, não há nada de novo, nada que pertença propriamente a Marx, somente que formulou, é verdade, o que já havia lido muitas vezes nas obras dos filósofos preferidos do seu pai de uma maneira bastante original. Ao entrar na universidade e se encontrar em um meio intelectual novo, no qual dominava a filosofia clássica alemã, Marx opôs de imediato ao idealismo uma concepção acentuadamente materialista. Por isso extraiu rapidamente da filosofia hegeliana todas as conclusões radicais que comportava e aclamou a Essência do Cristianismo de Feuerbach. Em sua crítica do cristianismo este último chega as mesmas conclusões dos materialistas radicais do século XVIII, com a diferença de que destes só vieram engano e superstição. Feuerbach, discípulo de Hegel, enxerga uma fase necessária da civilização humana; mas também para ele o homem é uma figura tão abstrata quanto para os materialistas franceses do século XVIII.
Bastava aprofundar a análise do homem e do meio para observar que o próprio homem constitui uma diversidade extrema, que existe sob diversas aparências e que se recobre das roupagens mais distintas. O rei da Prússia e o superintendente da Renânia são homens a igual título que os camponeses do Mosela e que os operários das fábricas com quem Marx mantinha relações. Todos possuem os mesmos órgãos, a mesma cabeça, as mesmas pernas e os mesmos braços. Fisiológica e anatomicamente não havia diferenças essenciais entre o campesinato do Mosela e do junker prussiano; e, ainda assim, existe entre ambos uma diferença abissal do ponto de vista de sua situação social.
Porém os homens se distinguem uns dos outros não somente no espaço, mas também no tempo; os homens do século XVII se distinguem dos do XII. De onde vem tais diferenças se o próprio homem não muda e é somente produto da natureza? Em tal direção trabalhou o espírito de Marx. Não basta dizer que o homem é o produto do meio, que o meio forma o homem. Para formar homens tão diferentes o mesmo meio deve ter diferenças e conter elementos diversos. Assim, o meio não é simplesmente uma aglomeração de seres, mas um meio social no qual os agentes estão vinculados por determinadas relações e pertencem a diferentes grupos sociais. Por isso Marx não ficou satisfeito com a crítica da religião feita por Feuerbach. Este explicava a essência da religião pela essência do homem; porém a essência do homem não é algo abstrato, exclusivo do homem como indivíduo. O próprio homem representa um resumo, um conjunto de relações sociais determinadas. Não existe o homem isolado. Porém as relações naturais existentes entre os homens são de menos importância que as sociais estabelecidas entre eles no curso do desenvolvimento histórico. Por isso o sentimento religioso não é uma coisa natural, é um produto social.
Da mesma forma, não basta dizer que o homem é o ponto de partida de uma nova filosofia. É preciso acrescentar que este homem social, produto de uma evolução histórica determinada, se forma e se desenvolve sobre o terreno de uma determinada sociedade, que se diferencia de um modo determinado. Ao aprofundar, se comprova que essa diferenciação do meio em tipos diversos não é primordial, natural, mas resultado de um largo desenvolvimento histórico. Ao estudar a forma com a qual se efetua tal evolução, chega-se a ver que é sempre resultado da luta de contradições, de oposições que surgem em um dado estado do desenrolamento social.
Marx não se limitou a crítica do aspecto religioso, mas empreendeu contra outras teses filosóficas de Feuerbach. Na filosofia puramente teórica, contemplativa, introduziu um novo elemento: a ação prática revolucionária fundada na crítica sobre a realidade.
Como os materialistas franceses, Feuerbach ensina que os homens são produto das circunstâncias e da educação, da reação do ser sobre a consciência. Parece assim que, tal qual é, cabeça, braços, pernas, o homem, distinto do resto do mundo animal, é somente um mecanismo sensível de uma espécie particular que recebeu a influência da natureza e ambiente. Todos seus pensamentos e suas ideias, são o reflexo desta natureza. Desta maneira, pois, segundo Feuerbach, o homem é um elemento passivo que registra docilmente todos os impulsos que recebe da natureza. A esta afirmação Marx opôs outra: tudo que se realiza no homem, todas as modificações do próprio homem, não são somente o resultado da ação da natureza sobre ele, mas também, em um sentido mais amplo, da sua ação sobre a natureza. Todo o desenvolvimento da humanidade consiste em que o antropomorfo primitivo não se limitou, em sua luta contínua pela existência, a sofrer passivamente a influência da natureza; operou ele mesmo sobre a natureza e, transformando-a, transformou as condições de sua existência e, ao mesmo tempo, também transformou a si mesmo.
Assim, pois, Marx introduziu na filosofia passiva de Feuerbach o elemento revolucionário, o elemento da ação. A obra da filosofia — disse, contrariamente a Feuerbach — não consiste somente em explicar o mundo, mas sim em transformá-lo. A teoria se completa com a prática; a crítica da realidade, do mundo que nos cerca, sua negação, completa-se pelo trabalho positivo, pela ação prática. Desta forma Marx introduziu na filosofia materialista o princípio revolucionário, de tal modo que transformou a filosofia contemplativa de Feuerbach em uma filosofia da ação, pela prática do seu pensamento, do seu programa. Quanto mais se aplica a ação prática, mais rapidamente encarna a realidade e prova melhor que esta mesma realidade contém já todos os elementos necessários para cumprir a tarefa que ele se colocou, para a realização do programa elaborado por ele mesmo. Brevemente Marx formula em linhas gerais esta crítica a Feuerbach. Seguindo com atenção o curso do seu pensamento, é fácil compreender o modo com o qual chegou a sua ideia fundamental, cuja elaboração o levou ao socialismo científico.
Marx, por sua origem, pertencia ao meio intelectual alemão, e é com esses intelectuais que entra em debate para convencê-los da inconsistência dos seus velhos princípios. Desde já estamos de acordo, dizia, em reconhecer que a atual Alemanha, que a Prússia, onde a vida é tão difícil, sem liberdade de imprensa nem de ensino, que todo este mundo é bem pouco atraente. Não há dúvida de que deve ser transformado caso não queiramos que o povo alemão se afunde completamente neste horrível pântano. Porém, de que maneira podemos transformá-lo? — pergunta Marx. Só pode sê-lo se na sociedade alemã há um grupo, uma categoria de homens interessados em modificar todas as condições de sua existência.
Marx examinou sucessivamente os diferentes grupos existentes na sociedade alemã: a nobreza, os funcionários, a burguesia. Chegou à conclusão de que esta última, contrariamente a burguesia francesa, que desempenhou um papel revolucionário considerável, não era capaz de assumir a função de classe emancipadora capaz de mudar todo o regime social. Porém, então, que outra classe poderia assumir esta função? E Marx, que nesta época estudava atentamente a história e a situação da Inglaterra e da França, conclui que esta classe não pode ser outra senão o proletariado.
De modo que já em 1844, Marx formula essa tese fundamental: a classe que pode e deve assumir a missão de emancipar o povo alemão e efetuar a transformação do regime social, somente pode ser o proletariado. Por que? Porque é a classe em cujas condições de existência se encarna todo o mal da sociedade burguesa contemporânea, e não há outra classe que está situada mais abaixo na escala social e sobre a qual pese mais todo o resto da sociedade. Enquanto a existência das demais classes se baseia sobre a propriedade individual, o proletariado está privado dessa propriedade e não tem interesse algum em manter a sociedade existente. Somente falta-lhe consciência de sua missão, a ciência, a filosofia; e constituirá o eixo de todo o movimento emancipador se chegar a adquirir esta consciência, esta filosofia, se compreender o grande papel que lhe corresponde.
Eis o ponto de vista próprio e fundamental de Marx.
Os grandes utópicos, Saint-Simon, Fourier, Owen, em particular este último, haviam fixado sua atenção sobre "a classe mais numerosa e mais deserdadas", sobre os proletários; mas todos eles compartilhavam a visão de que o proletariado é a classe mais miserável, a que mais sofre e que, portanto, é preciso ocupar-se dela, tarefa correspondente às classes superiores e cultas. Na condição miserável do proletariado somente viam a pobreza e não identificavam o fator revolucionário que se oculta nesta miséria, produto da decomposição da sociedade burguesa.
Marx é o primeiro a revelar que o proletariado não é somente uma classe enferma, mas também um elemento ativo da luta contra a sociedade burguesa; a classe que por suas condições de existência, chegará fatalmente a ser a única revolucionaria da sociedade burguesa. Esta ideia, que havia exposto no início de 1844, foi desenvolvida em uma obra escrita em colaboração com Engels. Esta obra, intitulada A Sagrada Família, está dedicada a seus antigos companheiros de armas, os irmãos Bauer. Hoje já envelhecido, apareceu em 1845 porém não mais que em algumas obras de Plekhanov e ainda de Lenin. Tome qualquer livro de Plekhanov publicado em 1883 ou de Lenin em 1903, e o leitor jovem não compreenderá quase nada sem um bom comentarista. Os de minha idade recordam perfeitamente o período de 1890, conhecem com detalhes os representantes das correntes literárias e revolucionárias ainda que fossem as mais ínfimas daquele tempo. Porém quem ignora quase todos esses nomes e desconhecem completamente a luta que desenvolveram os primeiros marxistas, leem com indiferença, até com incômodo às vezes, as páginas que em nós despertam o mais vivo interesse.
Nesse sentido A Sagrada Família, escrita principalmente por Marx, envelheceu; porém é de interesse para todos aqueles que querem ter uma ideia clara da Alemanha de 1840 a 1850, sobre as lutas travadas contra as distintas correntes intelectuais e sociais. Marx ridicularizou todas as tentativas dos intelectuais alemãs de apartar-se do proletariado ou de contentar-se com as sociedades de beneficência destinadas a buscar a felicidade para esta classe; explicou aos intelectuais a importância revolucionária do proletariado, que alguns meses antes, representados pelos tecelões da Silésia, demonstrou que para defender seu interesse deve-se chegar até a insurreição.
Nesta obra, Marx cumpriu os primeiros passos do desenvolvimento posterior de sua nova filosofia. O proletariado é uma classe à parte, porque a sociedade em que vive é uma sociedade de classes. Ao proletariado se opõe a burguesia; o capitalista explora o operário, e então surge novas questões. De onde surgem os capitalistas? Quais são as causas que engendram a exploração do trabalho pelo capital? Há que estudar a sociedade, as leis fundamentais de sua existência e desenvolvimento. Igualmente neste aspecto, Marx estava à frente de Feuerbach, este pouco interessado no desenvolvimento das relações sociais, e que em tal domínio era inferior ao seu mestre Hegel, que havia estudado com acuidade e a partir do ponto de vista idealista as leis do desenvolvimento da sociedade burguesa.
Em A Sagrada Família, Marx adverte que é impossível compreender qualquer coisa da história do seu tempo se não se conhecer o estado da indústria, das condições diretas de produção, das condições materiais da vida do homem e as relações que se estabeleceram entre os homens no processo de satisfação de suas necessidades materiais. Marx começou então a trabalhar com toda energia neste problema. Mas adiante veremos as conclusões a que chega no transcurso dos anos posteriores, antes da revolução de 1848.
Embarca no estudo da economia política para compreender melhor o mecanismo das relações econômicas da sociedade contemporânea. Porém, Marx não era somente um filósofo ansioso por explicar o mundo, era também um revolucionário que igualmente desejava transformá-lo. No trabalho teórico se emparelhava o trabalho prático.
Na próxima conferência veremos como, em menos de 3 anos e meio da mais implacável luta de frações, Marx organizou, com Engels, a Liga dos Comunistas, para qual se encarregou de escrever o Manifesto Comunista.
Notas de rodapé:
(1) Se refere a suas conferencias sobre o materialismo dialético. (retornar ao texto)