O Pensamento Social

Antero de Quental

1 de fevereiro de 1872


Publicação: O Pensamento Social, 1 fevereiro 1872

Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal

HTML: Graham Seaman.


Nota do transcritor

O texto constitui o primeiro editorial da revista O Pensamento Social, fundado pelo Antero e outros como boletim da Primeira Internacional em Portugal. O Nobre França confirmou que o texto era da autoria do Antero de Quental.

Cada classe é a seu turno chamada pela lei das sociedades a dizer a sua palavra e a produzir o seu pensamento no drama da historia. Cada uma d’ellas, no momento opportuno, ou melhor, no momento fatal, tem a sua razão de ser e, como tal, a sua legitimidade, o seu direito. O sacerdócio, a aristocracia, a burguezia, trouxeram cada qual á humanidade uma idéa nova, ás sociedades uma nova organisação: disseram uma palavra suprema—depois entraram na sombra. Ao povo chegou-lhe finalmente a sua vez de fallar também. Por toda a parte a voz solemne e rumorosa das plebes se ergue como o bramido de um grande mar distante: distante, mas que já se deixa ouvir e, de quando em quando, entrever no fundo do horisonte. Não é uma hypothese engenhosa, um systema provavel: é um facto, um grande facto, que se impõe com a força quasi brutal das realidades indiscutiveis. Póde-se tentar combatel-o; negal-o, não. É o facto supremo do seculo: a entrada definitiva do povo na scena da historia.

O pensamento e direcção social da burguezia, que durante um século e mais se impoz pela força das cousas ás nações do occidente, está definitivamente esgotado. Foi util, para que negal-o? Foi sobretudo inevitável. Desorganisou o velho mundo aristocratico e monarchico, desvinculou e generalisou a propriedade, fundou a liberdade política, e inaugurou o periodo industrial da humanidade. Mas, realisadas estas conquistas, parou: como que a assustaram as consequências da propria obra, retrahiu-se e, perdido o pensamento liberal a que deveu as suas primeiras e gloriosas victorias, tende cada vez mais a constituir-se como uma classe á parte, a conservar os privilegios que momentaneamente lhe puzera nas mãos o azar de uma revolução incompleta, a formar finalmente uma nova aristocracia, a aristocracia do dinheiro e da propriedade. É que a revolução burgueza, feita por uma classe e em nome dos seus interesses de classe, serviu a humanidade nos limites apenas d’esses interesses, e uma vez satisfeitos estes ficou naturaimente esgotada de pensamento e de vontade. Hoje, o dominio d’essa classe ávida e sem idéa não póde ser senão nocivo, lethal, para o desenvolvimento revolucionário das sociedades.

Ora, esse movimento revolucionário segue fatalmente, por uma força propria, sem que lhe importem ou o embaracem as deserções d’aquelles que n’um momento o representaram. A revolução prosegue, em despeito da reacção burgueza, porque o seu fim é muito maior do que os interesses de uma classe: pelo contrario, o seu fim é a destruição das classes privilegiadas umas e outras sacrificadas, para sobre esse terreno nivelado assentar definivamente o edifício da Igualdade e da Justiça. D’aqui se vê claramerite que o orgão e instrumento d’esta ultima evolução revolucionaria não póde por fórma alguma ser uma classe. Esse orgão é o Povo, unidade indissolúvel, negação das antigas divisões e affirmação energica da homogeneidade juridica da humanidade. O Povo entra assim naturalmente em scena, na sua hora precisa, produzindo um pensamento seu, destinado a ser o principio fecundante, o elemento gerador da nova evolução. Esse pensamento pertence-lhe: só elle o podia produzir, visto que importando esse pensamento a negação das classes, nenhuma ousaria apresental-o sem se condemnar ao suicídio. É n’isto que está a originalidade do movimento democrático contemporâneo e a sua legitimidade.

Entretanto, o que é esse pensamento popular? O que diz, o que affirma elle? Como tudo que começa, é indistincto ainda. Ê mais profundo e energico do que deductivo e definido. Diz já claramente o que não quer: não diz bem ainda tudo quanto quer, e como o quer. Toda a affirmação começa pela negação: é um processo dialectico seguido tão fatalmente pelo espirito individual com o pelo espirito collectivo. A affirmação completa vem depois. Entre o sermão sobre a montanha do Evangelho e o dogma de Nicea mediaram mais de tres séculos. O pensamento popular é ainda mais um oráculo do que um cathecismo.

O que convém, pois? Interpretar esse oráculo, profundar-lhe o sentido, definil-o e aproximal-o cada vez mais das fôrmas claras e precisas de um cathecismo. Ajudar corn a analyse, com a critica, o desenvolvimento laborioso da idéa popular; formulal-a, na medida do possível; applical-a, como critério, ás instituições, aos interesses, aos sentimentos da sociedade contemporânea, para se ver o que deve ser destruído e o que se póde conservar; defender essa idéa sagrada dos ataques dos seus inimigos, explicando-lh’a ao mesmo tempo; mostrar os seus progresses, as suas applicações, os seus combates, os seus triumphos; apontar os perigos, os escolhos, as illu sões; e tudo isto debaixo da inspiração serena mas energica e profunda de um espirito de Justiça, tão distante da cegueira da paixão com o da cegueira do odio, de um espirito que, se declara guerra ás instituições, proclama ao mesmo tempo a paz aos homens: tal é o trabalho—quasi diremos a missão—a que o desenvolvimento das idéas e os signaes evidentes do tempo estão chamando os verdadeiros amigos da causa popular.

Quanto a nós, por isso mesmo que seguimos o Povo, não seguiremos nenhum partido e, n’um certo sentido, nenhuma escola. Escola ou partido algum póde por ora pretender representar todo o pensamento popular. Se, porém, ao conjuncto de doutrinas e tendências, que são 0 fundo commum dos partidos e escolas democráticas, se chama Socialismo, aceitámos de boa mente a denominação de socialistas, porque entendemos serem essas tendências e doutrinas communs a expressão completa (embora não em todo o ponto consistente e harmoniosa) das aspirações sociaes do povo contemporâneo. Assim pois, o que desde já está claro na consciência popular é o caracter socialista da revolução para que se tende. Ora, em que consiste esse ponto de vista socialista, tão original que póde constituir por si um movimento novo nas sociedades?

Consiste na reivindienção do direito pleno de ser homem para todos os homens: um direito effectivo, que se exprima por instituiçães e factos, não por estereis declarações legaes; o direito de ser homem, completamente e para todos; e ínstituições sociaes que a todos dêem iguaes condições para realisar esse direito. D’aqui a negação das classes, a necessidade de tornar universal o capital e o credito, tornando-os gratuitos, a substituição da solidariedade á concorrência e da propriedade collectiva ao regimen do capital e do salario; o que tudo importa a renovação, segundo este critério de uma justiça ampla e effectiva, de todas as nossas instituições e praticas industriaes e económicas. D’aqui ainda o trabalho considerado como base unica de toda a propriedade, de todo o lucro, de toda a retribuição; e a extincção ou annulação de todos os monopolios, naturaes ou sociaes, que embaracem o desenvolvimento pleno do trabalho e o pleno direito dos trabalhadores. D’aqui, finalmente, as questões sociaes consideradas superiores ás questões politicas, e o socialismo dado como bandeira ao movimento das classes operarias, n’essa insurreição pacifica do proletariado, que é o facto capital do século XIX.

E isto o que se encerra n’esta palavra socialismo, e o que encerra a consciência popular, interpretada por uma sciencia nova, cujo desenvolvimento tem sido parallelo com o acordar d’essa consciência. Ê este também o nosso pensamento. O nosso fim não é outro senão acompanhar a manifestação da idéa nova que surge no seio das plebes, e por ella explicar e justificar as suas pretensões e os seus actos. Convém mostrar ao mundo velho que essa idéa è não só legitima, mas necessária; que não deve hostilisal-a, antes aceital-a francamente, impedindo assim que essa evolução, por natureza pacifica, gradual e contemporisadora, degenere em movimento desordenado e violento, o que seria deplorável para todos, sem por isso dar um dia de vida mais ao que está condemnado: convém fazer sentir a todos que só a paz e a liberdade fundam as cousas estáveis, mas fazer sentir tam bém aos defensores endurecidos e intransigentes do passado, que o povo trabalhador, de posse afinal da sua idéa, do que lhe dà uma missão e significação historica, não recuará diante de nenhum sacrificio para realisar o seu direito.

A aurora de um dia novo começa a clarear os horisontes. É nma hora santa e solemne, esta. Erguera-se para um destino superior milhões de seres até hoje sacrificados. Sejámos dignos d’este bello momento, não conservando em nossos corações regenerados uma unicá das paixoes más do velho mundo, mas só o amor da Justiça e a resolução de viver e morrer na sua fé.

Como homens de acção a nossa divisa é esta: critica e reforma das instituições; paz e tolerância aos homens.