O que é a Internacional?

Antero de Quental

1871


Primeira publicação: Anónimo, O que é a Internacional? — O Socialismo Contemporâneo. O Programma da Internacional. A Organização da Internacional. Conclusões., Lisboa, Typografhia do Futuro, 1871.

Fonte: O Comuneiro

HTML: Graham Seaman.


Nota do transcritor

O opúsculo foi publicado sem nome de autor, mas numa carta do 24 Junho 1872 ao Engels o Nobre França escreveu: "resolvemos publicar um folheto, (que vos remettemos), escolhendo nós para assumpto O que é a Internacional? que Anthero escreveu". A visão do futuro apresentado no texto, sobretudo na seção O Programma da Internacional, é puramente Proudhoniana. As resoluções do Congresso de 1866 a Genevre também são apresentadas no texto de uma maneira destorcida que não reflete as resoluções publicadas. Não sobrevive a resposta do Engels.

A Internacional!

Palavra terrível, dizem uns: palavra sublime, respondem outros.

Quem terá razão?

A Internacional é hoje o campeão do movimento socialista. Antes, pois, de explicarmos quais sejam as ideias e a organização desta famosa Associação, convém dizermos duas palavras sobre o Socialismo, cuja bandeira ela ergue com mão robusta no meio das nações.

O SOCIALISMO CONTEMPORÂNEO

O que é Socialismo?

Será um parto monstruoso, filho das paixões, da inveja, do espírito de anarquia? Será uma doutrina extravagante, sem raízes na natureza humana, sem precedentes na história dos povos?

Não! O socialismo, tão antigo como a injustiça e a opressão do pobre pelo rico, do desvalido pelo poderoso, não é mais do que o protesto dos que sofrem, contra a organização viciosa que os faz sofrer. E a reclamação da justiça e da igualdade nas relações dos homens; dos homens que a natureza criou livres e iguais, e de que a organização social fez como que duas raças inimigas, uma que manda, goza e oprime, outra que obedece, trabalha e sofre: dum lado, senhores, aristocratas, capitalistas: do outro, escravos, servos, proletários!

No dia em que esta desigualdade monstruosa e ímpia apareceu no mundo, apareceu também logo a protestar contra ela, o Socialismo.

O Socialismo não é de hoje nem de ontem. Todos os grandes pensadores, desde Pitágoras, e Platão, e Cristo, e os Gracos, e os santos da primitiva igreja, e os fundadores das ordens monásticas, todos reclamaram contra a miséria e a desigualdade, em nome do direito natural e inalienável que todo o homem tem à vida, ao bem-estar, aos meios de desenvolver a sua actividade, trabalhando, à família e à instrução. A todos eles fez o espectáculo da injustiça social soltar palavras de amargura e indignação.

Este movimento socialista renasce com mais força do que nunca no século XIX. Porquê?

Porque o século XIX é o século das grandes reivindicações. Porque neste século científico e positivo o povo proletário, depois de iludido durante centenas de anos por falsas promessas de melhoramento, que nunca se realizavam, da parte dos reis, dos sacerdotes e dos poderosos, convenceu-se finalmente que não era dessas classes interessadas na sua miséria que devia esperar o livramento, mas só de si, do seu esforço, da sua virtude e da sua união! O povo teve consciência do seu direito ultrajado, do seu trabalho menosprezado, sentiu uma voz íntima dizer-lhe que também os filhos do povo eram homens, e como tais deviam levantar as cabeças, e conquistar para si na sociedade o lugar que compete a homens livres e dignos!

Meditou então, e perguntou: por que sofre o povo? porque é que aqueles de cujas mãos sai todo o trabalho, toda a produção, toda a riqueza, todas as condições primárias do progresso e da ilustração, vivem na miséria, na ignorância, na abjecção? Porque é que a ociosidade que nada produz, tem a melhor parte do sol e da luz das sociedades, enquanto que a actividade, que tudo fecunda, vegeta numa obscuridade húmida e doentia? Qual é a causa desta ímpia desigualdade?

E a voz da Justiça, de acordo com a voz da Ciência, respondeu: porque a sociedade está constituída sobre uma base injusta, que em vez de servir para o melhoramento das condições de todos, serve só para o engrandecimento de alguns poucos, à custa do maior número. O princípio falso do egoísmo preside por toda a parte às relações sociais dos homens, em vez do santo princípio da fraternidade; e o mundo, em vez de nos apresentar o espectáculo consolador duma só família humana, uma família de irmãos, apresenta-nos o quadro cruel dum vasto e confuso campo de batalha, onde cada homem é um combatente que só procura engrandecer-se com os despojos daqueles que devia considerar como seus irmãos!

Há, efectivamente, um grande combate travado; há dois exércitos e duas bandeiras inimigas: dum lado o Trabalho, do outro o Capital: dum lado aqueles que, trabalhando, produzem: do outro lado aqueles que, sem esforço, e só porque monopolisaram os instrumentos do trabalho, terras, fábricas, dinheiro, vivem da pesada contribuição que impõem a quem, para produzir e viver, precisa daqueles instrumentos, daquele capital.

O Capitalista diz ao Trabalhador: se queres produzir, se queres viver, se queres existir, aceita submisso as minhas condições, recebe a minha lei, sê o meu criado e o meu servo: eu apreciarei o teu trabalho, darei por ele o que entender e quiser, serei o teu director, o teu amo, o teu tirano, e só assim terás tu direito a existir! Se essas condições te parecerem duras, cruéis, inadmissíveis, deixo-te nesse caso a liberdade de morrer de fome, a liberdade da inanição!

É isto justo? É isto humano? Não, mil vezes não: e todavia é esta a cruel realidade! A concorrência e o salário põem o trabalho à mercê do capital: e este, sentindo-se forte, extrai do trabalhador tudo quanto ele produz, deixando-lhe apenas o suficiente para não morrer, isto é, para poder continuar a trabalhar!

Pois bem! O sentimento inato da Justiça diz ao povo que isto não pode ser: e a Ciência Económica demonstra-lhe que isto não deve ser.

É nesta afirmação da Consciência e nesta demonstração da Ciência, que consiste o Socialismo contemporâneo.

Não pode ser, afirma a consciência: porque quem trabalha deve receber o produto íntegro, total do seu trabalho, que é seu e lhe pertence até à última parcela, porque foi produzido exclusivamente pelo seu esforço, pela sua actividade; deve receber todo esse produto, e não só uma parte desfalcada, minguada, reduzida miseravelmente. Se o não recebe, há um roubo: esse roubo não será voluntário, intencional; mas nem por isso deixa de existir, e de ser roubo. O salário não é mais do que uma maneira legal e civilizada do Capital pôr uma faca aos peitos do Trabalho.

Não deve ser, demonstra a Ciência: porque, no fenómeno da produção da riqueza, o capital e o Trabalho não são dois factores iguais, não concorrem igualmente, não podem, pois, ter direitos iguais. Se trabalho e capital concorrem ambos para a produção, numa colaboração harmónica, devem ser ambos retribuídos; mas se o valor, a riqueza é apenas o produto dum deles, só esse tem direito a ser retribuído; o outro é intruso e parasita. Pois bem: a Ciência económica, reformada e rectificada por aquele grande pensador popular, aquele profeta do proletariado, Proudhon, demonstra-nos que só o trabalho produz, só ele tem valor, só ele direito a retribuição. O capital, por si, é estéril: a terra, as máquinas, o dinheiro, por si, nada produzem: só o trabalho, lançando mão desses instrumentos, lhes dá valor, poder, vida, fecundidade. Sem capital, o trabalho pode ainda produzir: mas sem trabalho, que o vivifique, o que é o capital mais do que uma matéria inerte, estéril, morta? A riqueza é o trabalho transformado em produto, isto é, o trabalho sobre outra forma: o capital não é mais do que uma condição, um instrumento dessa produção. Omnipotente, posto em actividade pelo esforço do trabalhador, sem esse esforço é como se não existisse. É como o vento se não existisse a vela, como a ciência se não houvesse o pensamento — inúteis, estéreis.

Eis aí, pois, o que a consciência afirma e o que demonstra a Ciência. Mas a Sociedade pratica exactamente o contrário: logo a sociedade está organizada contra a consciência e contra a ciência, isto é, contra todas as leis da natureza: é uma monstruosidade.

O que vemos, com efeito? Vemos a legião ávida e parasita dos capitalistas, tendo monopolizado os instrumentos do trabalho e o crédito, ditarem as leis ao trabalho, imporem-lhe um jugo despótico, calcarem aos pés os direitos sagrados do trabalhador, e sugarem da produção, filha exclusiva do trabalho, a melhor e a maior parte. O capital é o rei do mundo: é mais: é um deus, o deus desta sociedade corrupta e injusta, mas um deus feito à imagem dela, como ela corruptor, injusto e tirânico! O resto, o que fica depois desse roubo legal e organizado, é o que se atira quase como uma esmola, ao trabalhador, com o nome odioso de salário! O salário, resumindo em si todas as misérias da sociedade actual, será de futuro o grande acto de acusação e corpo de delito contra essa sociedade — e já hoje o começa a ser no tribunal da consciência popular!

É assim que a classe trabalhadora, despojada da maior parte do produto da sua actividade, e condenada a uma menoridade perpétua, não tem podido elevar-se pelo pensamento, pela instrução, pela consciência cívica e particular, até aquela altura a que todo o homem que trabalha tem um duplo direito, já como homem, já como pertencendo à classe dos únicos produtores de toda a riqueza e de todo o bem-estar! Crime de horrível fraticídio social, perpetrado por uma classe contra outra, já há muitos séculos simbolizado no mito de Abel e Caim!

Mas depois desses séculos de opressão e trevas, começa hoje a raiar uma grande luz! A essa luz nova começam por toda a parte a abrir-se os olhos do povo proletário — e na Europa, na América, do seio de todas as nações sai um grito formidável e unânime: Justiça! A cada um o produto íntegro do seu trabalho! Abaixo a tirania do capital! Abaixo a exploração do homem pelo homem!

Esse grito, símbolo do pensamento novo, do pensamento popular, é o Socialismo contemporâneo. É a aplicação deste princípio de eterna justiça: dar a cada um o que é seu. Essa aplicação é a glória do povo moderno, e a grande, a suprema obra do século XIX: emancipar o trabalho, apagar por uma vez da face da terra a odiosa divisão de classes, fundindo-as todas numa só de trabalhadores livres e iguais, não ricos e pobres, senhores e servos, governantes e governados, capitalistas e operários, mas todos homens, debaixo do mesmo céu, e em face do mesmo trabalho justo e digno!

Eis a sublime concepção popular do nosso tempo, elaborada para o povo e pelo povo: sim, pelo povo, representado pelos pensadores saídos do seu seio, inspirados do seu sentimento, solidários nos seus sofrimentos e misérias!

Deste novo dogma social, a Internacional, criação essencialmente popular, é ao mesmo tempo o legislador, o soldado e o sacerdote. Vejamos pois as suas doutrinas e os seus actos.

O PROGRAMA DA INTERNACIONAL

Toda a doutrina da Internacional, e a sua originalidade, pode dizer-se que está contida numa definição nova da propriedade — numa rigorosa e fundamental distinção entre a propriedade individual, sobre a qual o indivíduo tem um direito extenso e absoluto de usar e dispor, e a propriedade colectiva, que é o património da humanidade, da qual o indivíduo, por isso mesmo que faz parte da humanidade, tem direito de usar, mas de que, por isso mesmo que não é mais do que uma parcela da humanidade, não tem direito de dispor.

Esta distinção fundamental foi em todos os tempos reconhecida por todas as sociedades. O ar, os mares, os rios, e os terrenos inexplorados, foram sempre considerados património de todos, e propriedade de ninguém. Mas o Capital, por isso que representa uma acumulação de esforços anteriores e é, por assim dizer, o trabalho armazenado, entendeu-se sempre que não devia ser considerado senão propriedade individual. E neste ponto que está a originalidade audaciosa da Internacional.

Certamente, dizem os publicistas do Socialismo, quem possui um capital, acumulação de trabalho anterior, tem direito a ele. Mas se esse capital, que, por um lado, é indispensável à produção, visto que é o instrumento do trabalho, por outro lado não cria realmente, não produz, mas somente torna possível a produção, não será a sua monopolização nas mãos de indivíduos uma injustiça flagrante, impondo-se o capital ao trabalho, ao verdadeiro produtor, ditando-lhe leis, e tendo-a na sua dependência? Além disso o regime actual do capital monopolizado estabelece uma contradição, de que não é possível sair-se. Se, de acordo com a ciência, que demonstra que o capital, não produzindo, não tem direito a ser retribuído, se estabelecesse, como uma lei industrial positiva, a gratuidade dos capitais, estes deixavam para logo de se formar e acumular, e a produção, falta de instrumentos, estagnava-se e tendia a desaparecer. Se, para não cair nesta consequência, se aceita a prática actual da remuneração ao capital, este acumula-se rapidamente nas mãos de alguns, constitui um monopólio opressor, absorve a máxima parte do produto que pertence ao trabalho, vota as classes trabalhadoras à miséria e à eterna dependência do salário e da concorrência, e a sociedade fica tendo por base a espoliação e uma insanável injustiça!

Entretanto, é por este segundo partido que têm optado as nações modernas, talvez mais ainda por incapacidade de resolverem o formidável problema, do que por corrupção e endurecimento no mal. Mas este estado de coisas lança uma perturbação profunda em todas as relações sociais dos homens, determina a hostilidade de classes, e é no fundo a origem de todas as revoluções e da instabilidade dos governos e das nações. Não pode haver paz com a espoliação arvorada em princípio e razão de Estado!

E este terrível dilema, que tantas vezes tem ameaçado com a morte as civilizações mais prósperas (pelo menos na aparência) que a Internacional, reduzindo a uma síntese os trabalhos e doutrinas das escolas socialistas do nosso século, veio dar uma resolução cabal e definitiva(1).

Se o capital, diz ela, é indispensável para a produção, e, por outro lado, a sua monopolização nas mãos de indivíduos é, além duma iniquidade, origem de universais perturbações no regime industrial e nas relações sociais, estabeleça-se um sistema, que, ao mesmo tempo que garanta a cada qual o pleno direito da propriedade individual, filha do seu trabalho, arranque todos os capitais activos — isto é, os instrumentos do trabalho — ao monopólio dos indivíduos, e faça deles o que devem ser, património da humanidade, ao dispor de todos os trabalhadores.

Que o produto íntegro da actividade de cada indivíduo lhe pertença plenamente; isto é, o direito individual: que o instrumento dessa actividade e produção seja gratuito, e que, para poder gratuitamente estar ao dispor de cada qual, não pertença a ninguém particularmente, isto é, pertença a todos e seja património da colectividade; isto é a justiça social. Que todos trabalhem livremente, e que ninguém tenha poder de impor condições e de levantar tributo sobre o trabalho alheio, tal é a base da nova concepção da economia das sociedades, firmada na distinção fundamental entre a propriedade individual e a propriedade colectiva.

Daqui o nome de colectivismo dado à doutrina. Não é o comunismo, porque admite e garante a propriedade individual, a liberdade do trabalho, e o debate no preço de produtos. Não é também o individualismo estreito e egoísta, que, em nome da liberdade industrial, serve de máscara à profunda anarquia e injustiça do regime actual. E simplesmente o direito económico na sua realidade: o direito do indivíduo garantido pelo direito de sociedade. A cada um o que é seu.

Qual a realização prática destes princípios? A associação universal de todos os trabalhadores, constituindo cooperações livres, possuidores de instrumentos do trabalho, postos assim gratuitamente ao dispor de todos os seus membros, e realizando deste modo a fusão harmónica de dois elementos rivais — trabalho e capital — reunidos num só, a unidade do trabalho livre e senhor dos seus instrumentos. Esses instrumentos são todas as grandes forças, naturais ou artificiais, que, como matéria prima, como condição, ou como meio da produção, são indispensáveis ao trabalho: a terra, o subsolo, as florestas, as máquinas, os navios, os edifícios. Sem isto não há produção, e é isto que, para ser gratuito, deve entrar na propriedade colectiva.

Com estes instrumentos, postos livremente ao seu dispor, a actividade de cada indivíduo cria, trabalhando, a sua propriedade, a propriedade individual, sobre a qual o seu direito é pleno, absoluto. Dentro da associação o indivíduo move-se livremente, dispõe de si, contrata, debate preços, entra, sai, usa do capital da associação para o seu trabalho, e tudo quanto por esse trabalho cria lhe pertence: só esse capital lhe não pertence individualmente: usa, não dispõe: é de todos que trabalham, de todos que queiram trabalhar: é colectivo. A colectividade é uma pessoa: representa a humanidade laboriosa.

Mas estas colectividades não existem isoladas: ligam-se entre si as associações, entendem-se fraternalmente, fazem-se mutuamente crédito, estabelecem um sistema universal de bancos de circulação e troca, e permutando assim directamente os produtos, suprimem os intermédios (que só vivem da falta de acordo entre os produtores e os consumidores, e aumentam de 20, de 50, de 100 por cento o preço dos objectos), a agiotagem, realizando deste modo o desideratum da ciência económica em matéria de trocas — a venda a preço de custo. Este desideratum, de que a sociedade actual, apesar dos seus progressos, se afasta cada vez mais, é o que realiza natural e quase fatalmente o Colectivismo, por meio da solidariedade entre todas as associações, que são ao mesmo tempo produtoras e consumidoras. É a este vasto sistema de crédito mútuo e gratuito que se chama a Federação agrícola-industrial. É nela que está o futuro económico do mundo, e, por ele, o seu futuro político, intelectual e moral.

A esta imensa consequência do princípio colectivista, junta-se uma outra de não menor alcance para a realização da Justiça social: é a extinção definitiva da desigualdade económica (e, como corolário, da desigualdade política e moral), representada pelo regime das classes. Classes altas e classes baixas, classe proprietária e classe trabalhadora, o que é isto senão a persistência das antigas tiranias, dos antigos privilégios, das castas, do patriciado, da aristocracia, uma forma, enfim, das opressões e injustiças das idades ignorantes e bárbaras? Todas estas raízes podres do velho mundo, arranca-as o socialismo, com mão forte, da superfície do mundo novo! Perante uma organização social, racional e equitativa, não pode haver privilégios legais: não há outra desigualdade senão aquela que determina a diferença da actividade, de energia, de vontade, isto é, de virtude. Como ninguém poderá viver do monopólio dos capitais, terão todos que trabalhar; e como o capital será gratuito e universal, serão iguais para todas as condições do trabalho. Não haverá senão uma classe: a dos produtores livres e solidários: iguais perante a lei e a organização social, desiguais somente no grau de esforço e persistência que dedicarem ao trabalho.

Eis, esboçado a largos traços, o programa do Colectivismo. Será uma utopia? É, pelo contrário, a aplicação directa das leis naturais do mundo económico, e das leis da natureza. Será uma doutrina de ódio, de guerra, de anarquia? Que o julgue a consciência recta dos homens de bem! Fazer reinar a Justiça na esfera dos interesses, e, por esse meio, nivelar as classes, levantar os oprimidos, suprimir a miséria, chamar as multidões à vida da inteligência, da dignidade, do bem-estar e da moralidade, realizando em todos os seres humanos o que até hoje mal se tem realizado em raros privilegiados — uma personalidade humana — é esta uma obra que será amaldiçoada por quantos vivem e prosperam à custa das injustiças sem número de um mundo condenado, mas que todos os homens de coração limpo, no fundo da sua consciência, acharão meritória e santa... sim! a mais santa de quantas revoluções se têm empreendido no mundo!

ORGANIZAÇÃO DA INTERNACIONAL

Esta grande renovação social, para se realizar, seguirá o exemplo das revoluções políticas (tão frequentes, e quase sempre tão estéreis neste século), apoderando-se, por meio de uma revolução, do Estado e dos poderes constituídos, e decretando dali, num só dia, a refundição das instituições e dos costumes? Não: não é revolucionariamente, e duma hora para a outra, que uma tão vasta transformação, que abrange todas as relações dos homens em sociedade, se pode efectuar, mas sim evolutivamente, por meio de sucessivas transformações, por uma lenta preparação, que eduque os homens para uma nova ordem de coisas, e torne possível, sem passar pelo caos, o novo génesis social.

Preparar, desenvolver, ajudar este vasto movimento, tal é o fim da Internacional, e é em conformidade com este plano pacífico e metódico que está organizada.

E, antes de tudo, a Internacional compreendeu uma coisa essencial: que a causa do povo não pode ser cometida a representantes oficiosos, mas deve ser reivindicada pelo mesmo povo, e pelo povo todo: que é por mãos de trabalhadores, e não por outras, que deve ser hasteada a bandeira da emancipação do trabalho. Grande pensamento, sem o qual os maiores esforços seriam baldados! O povo proletário, a quem directamente interessa a grande renovação, só será digno de gozar dos resultados dela quando, por sua união, dedicação e virtude, a tiver tornado possível. Enquanto esperar por salvadores e Messias, que lhe caiam do céu, continuará na miséria — e será, até certo ponto, merecedor dela.

Esta altíssima ideia da dignidade do proletário compreendeu-a a Internacional, e por isso lavrou os seguintes considerandos na primeira página dos seus Estatutos:

«Considerando:

Que a emancipação dos trabalhadores tem de ser obra dos próprios trabalhadores, e que os seus esforços para conquistar a emancipação não devem tender a alcançar novos privilégios, mas sim a estabelecer para todos os mesmos direitos e os mesmos deveres;

Que a submissão do trabalho ao capital é a fonte de toda a servidão política, material e moral;

Que, por isso, a emancipação económica dos trabalhadores é o grande princípio a que se deve subordinar todo o movimento político;

Que, se todos os esforços, até hoje empregados, têm sido baldados, é por falta de solidariedade entre os obreiros das diversas profissões em cada país, e de uma união fraternal entre os obreiros de todas as nações;

Por estas razões,

O Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores, celebrado em Genebra em 1866, declara que esta Associação, bem como todas as sociedades e indivíduos que a ela aderirem, reconhecerão que deve ser a base da sua conduta para com todos os homens, a Verdade, a Justiça e a Moral, sem distinção de cor, crença ou nacionalidade.

O Congresso considera como um dever reclamar os direitos do homem e do cidadão, não somente para os membros da Associação, como para todos quantos cumpram com os seus deveres. Não mais direitos sem deveres, não mais deveres sem direitos.

Ë por isso que, com o nome de Associação Internacional dos Trabalhadores se funda uma associação, para estabelecer um ponto central de comunicação e de cooperação entre os operários dos diversos países, que aspirem ao mesmo fim, isto é, ao auxílio mútuo, ao progresso e à completa emancipação da classe trabalhadora».

Assim pois, é o povo quem desta vez se encarrega da obra da própria emancipação, e desta vez podemos dizer que o triunfo será seguro.

Para o alcançar o que é necessário? Organizar os trabalhadores do mundo todo, fazendo-os caminhar como um exército único e compacto à conquista dos seus direitos. Mas essa organização deve ao mesmo tempo ser tal que, servindo de disciplina que una, seja juntamente uma escola que eduque, e um centro que prepare os elementos da ordem social futura.

A todas estas condições satisfaz a organização da Internacional.

  1. Reúne numa Secção todos os trabalhadores do mesmo ofício em cada localidade.
  2. Reúne todas as Secções do mesmo ofício numa Federação universal, que abrange todas as localidades e todas as nações.
  3. Reúne todas as Secções dos vários ofícios de cada localidade numa Federação local.
  4. Reúne todas as Federações locais numa Federação regional, em cada nação.
  5. Finalmente, reúne todas as Secções e Federações de todos os povos, na vasta aliança fraternal da Associação Internacional, que assim fica sendo o único e universal representante da classe trabalhadora em todo o mundo.

Cada uma destas Secções e Federações é livre e senhora das suas determinações, dentro dos Estatutos e Regulamentos da associação: contanto que os respeite, no mais governa-se cada um independentemente, administra os seus fundos, delibera segundo os seus interesses e as suas aspirações.

Não há autoridade, nem chefes ocultos, nem ordens misteriosas; tudo se faz à luz do dia, pela maioria dos sufrágios e com o concurso de todos. É já um modelo da liberdade e igualdade da futura república democrática social. Nas Federações, as Secções pactuam, combinam-se, contratam: nenhuma manda: e a Associação em si não é mais do que o pacto federal de todas as Secções e de todos os membros. O princípio autoritário e centralizador do velho mundo desapareceu inteiramente!

Assim pois, as Federações combinam os esforços colectivos: as secções trabalham.

Qual é esse trabalho?

É o mesmo que perguntar quais são os fins desta organização, e implicitamente os da Internacional.

Esses fins são:

  1. Educar socialmente as classes trabalhadoras. Não nos referimos aqui à famosa educação popular, tão apregoada pelos filantropos da classe burguesa, que se reduz a uma instrução incompleta e banal, incapaz de servir ao homem do povo para a compreensão e prática dos seus verdadeiros interesses, e boa somente para o estragar com pretensões literárias, deslocadas e nocivas. Dizemos intencionalmente educar socialmente, porque nos referimos a uma educação prática, efectiva, e verdadeiramente democrática, em que os trabalhadores, pelo estudo e pela gerência dos seus próprios interesses, pela reivindicação dos seus próprios direitos, adquiram a consciência da sua posição, formulem as suas aspirações, e versando-se na administração dos seus próprios negócios, relacionando-se com todas as esferas da economia social, se tornem capazes de viver duma vida própria, com uma ideia sua, independentes da protecção e do patronato em que até hoje têm vegetado, como servos, não como homens. Efectivamente, o que explica, e até certo ponto justifica, a exploração e domínio das classes capitalistas, é a incapacidade administrativa das plebes, a impotência em que têm sempre estado para se organizarem, viverem sobre si, como um organismo que encontra nos seus recursos próprios quanto precisa para existir e desenvolver-se. É isto o que a organização da Internacional, unindo os homens do trabalho, primeiro pelas afinidades naturais dos seus interesses (em Secções e Federações de cada ofício) e depois pelo laço universal de ideia do trabalho (Federação de todos os ofícios) vem realizar. Esta é que é a única educação popular — a educação social — porque só esta é prática, orgânica e emancipadora.

  2. Transformar gradualmente as condições económicas da classe trabalhadora. A passagem do regime actual do capital monopolizado, para o regime do capital colectivo, ou do socialismo, não se pode efectuar, como já dissemos, revolucionariamente, dum dia para o outro, e sem transição.

    A sociedade é um organismo, e os organismos transformam-se, não se revolucionam. E pois necessário preparar essa preparação; e é isso exactamente o que tem em vista a Internacional. A questão está toda em levantar e melhorar cada vez mais as condições do trabalho, e cortar os privilégios do capital, enfraquecê-lo, bloqueá-lo, torná-lo dia a dia mais dependente e precário, até que se renda e desapareça: numa palavra, transferir a força económica, que reside nas mãos dos capitalistas, para as mãos dos trabalhadores. Isto alcança-se por meio da resistência, com a arma legal e franca da greve, conquistando ora o aumento do salário, ora a diminuição das horas de trabalho, ora garantias para a dignidade e liberdade do operário dentro da fábrica. Alcança-se ainda por meio da associação cooperativa, sobretudo a de consumo, que liberta o consumidor do jugo da especulação (outra forma da tirania do capital), aproxima-o do produtor, e tende a nivelar o preço de venda dos objectos com o preço de custo ou de produção. Mas isto não se pode realizar senão por meio da organização dos trabalhadores em Secções e Federações de Ofício. Sem Secções de oficio não há resistência possível: sem Federação, a greve é um esforço vão: o capital, combatido por uma Secção numa localidade, pode ir buscar a outra localidade, a outro país até, onde os trabalhadores não estejam organizados, forças para opor e esmagar a resistência. É pois necessário que todos os operários de cada oficio não formem no mundo todo mais do que um corpo de exército, disciplinado, unido — um por todos, todos por um. Mas, à medida que as condições e bem-estar dos trabalhadores se levantam à custa do capital, vão-se tornando possíveis reformas e instituições parciais, que preparam a emancipação definitiva. Tais são: o resgate dos instrumentos do trabalho, a supressão do patronato, a organização do crédito e da troca, o estabelecimento de oficinas cooperativas solidárias, e de bazares de venda a preço de custo, etc. Deste modo, tendo-se gradualmente substituído a federação dos indivíduos, dos grupos, das indústrias, ao conflito anárquico de interesses egoístas, que nos apresenta a sociedade actua!, a evolução definitiva poderá realizar-se placidamente e sem abalo, pela entrada de todos os capitais no seio das Associações — de tal sorte que as Secções e Federações da Internacional, recebendo uma sanção legal, e passando a fazer parte da constituição económica da sociedade, ficam naturalmente sendo a base e a forma orgânica dessa sociedade renovada. Neste ponto de vista, a Internacional pode dizer-se que é um edifício que se forma subterrâneamente, que se alteia, e cresce, tornando cada vez mais delgada e fraca a camada superficial de terra que o encobre, até que um dia, pelo só efeito natural do seu crescimento, rompa essa capa e apareça inteiro, feito, estável e único.

  3. A solidariedade, o crédito e a justiça universais. Será este o resultado do vasto trabalho, que deixámos indicado. É, (permita-se a expressão), o fim final da Associação Internacional. Todo o socialismo está nisto. Garantir todos os direitos, creditar todas as actividades, nivelar, não todos os indivíduos, mas as condições de desenvolvimento de todos os indivíduos, de sorte que a desigualdade não resulte de factos exteriores, e fortuitos, mas só da diferença de energia, aplicação e virtude entre pessoas a quem a sociedade reparte com mão justa a mesma educação e os mesmos meios, tal é o último e supremo trabalho da Internacional! Supremo e último, com efeito, porque, no dia em que isso se tiver realizado, terá ela desaparecido também, como Associação, como representante duma classe, para se sumir, para se deixar absorver na grande federação universal do trabalho, sociedade sem fronteiras, sem distinções de classes, sem luta de interesses, onde não haverá já lugar para uma instituição de combate, porque o motivo da luta terá também deixado de existir. A Internacional terá então desaparecido, não como vencida, mas, pelo contrário, absorvida (por assim dizer) pelo seu mesmo triunfo! Será, se quiserem, uma transmigração, uma metempsicose: a alma da Internacional, o seu pensamento, passará dela para a nova sociedade, encarnado num ser mais perfeito, mais harmónico, mais belo — mas que a fará lembrar pela semelhança das feições, da índole, das formas. A associação do socialismo transitório de combate terá dado lugar à sociedade do socialismo pacífico definitivo!(2)

CONCLUSÃO

E agora, para concluir, duas palavras sobre as relações do Socialismo e da Internacional com a sociedade contemporânea. A Associação Internacional, e com ela o Socialismo, são acusados pelos conservadores de todo o mundo (isto é, pelos especuladores de todo o mundo), como imorais, dissolventes, peste e gangrena da civilização. Isto diz-se nos parlamentos francês, espanhol e italiano, e imprimem-no os jornais conservadores (isto é, especuladores) dessas nações. Depois do que levamos dito, será fazer injúria à inteligência e ao senso moral do leitor tentar rebater calúnias, que a mesma coisa é serem expostas e ficarem logo destruídas. Se o Socialismo e a Internacional representam o pensamento e a acção das classes populares, e se esse pensamento e essa acção não passarem de imoralidade e revolta, teríamos de confessar que o povo trabalhador (isto é, a maioria da humanidade) estava corrupto e perdido, a ponto de não ter em si mais do que inspirações de ódio e anarquia! E este é, com efeito, o íntimo pensamento das classes conservadoras: as suas acusações contra o Socialismo e a Internacional resolvem-se num insulto ao povo, e no desprezo pela razão e pela moralidade da maioria dos homens! O povo que lhes agradeça — e que os conheça.

Mas nós, trabalhadores, que assistimos, espectadores enojados, à comédia tristíssima dos governos da burguesia, que sabemos a soma de baixeza, de intriga, de vilania e de corrupção que representam um parlamento, um ministério e um jornal subsidiado, deixemos que passe por nós, na sua dança macabra, toda essa corte dos milagres, que nem ao menos como a outra, tem a franqueza do cinismo, e não nos indignemos com as vaias dos histriões oficiais ou oficiosos, que, em verdade, não o merecem.

A nossa preocupação é outra, e superior à cólera, à indignação, ao desprezo até, deve ser a nossa atitude. Obreiros materiais do presente, obreiros espirituais do futuro, absorvamo-nos no nosso duplo trabalho, convencidos de que, enquanto o nosso pensamento emancipador se não tiver realizado, enquanto a reforma social não for um facto, toda a acção política não representará para nós mais do que dissipação de tempo, dispersão de forças e — o que é pior — auxílio dado aos nossos inimigos, vida emprestada por nós ao organismo fatal que nos suga a nossa substância!

O programa político das classes trabalhadoras, segundo o Socialismo, cifra-se em uma só palavra: abstenção. Deixemos que esse mundo velho se desorganize, apodreça, se esfacele, por si, pelo efeito do vírus interior que o mina. No dia da decomposição final, nós cá estaremos então, com a nossa energia e virtude conservadas puras e vivas longe dos focos de infecção desta sociedade condenada.

A todos os partidos, a todos os governos, e todos os salvadores faremos uma só pergunta: e a reforma social? Se nos responderem com negativas ou com evasivas, tê-los-emos por inimigos — pouco importa que se chamem monarquia, constitucionalismo, ou república.

Para o povo não há senão uma República: a República Democrática Social. Essa é a dos trabalhadores, é a da Internacional: que só essa seja também a nossa!