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Fonte: https://bibliotecaanarquista.org/library/pierre-joseph-proudhon-justica-administracao-policia
Tradução: Plínio Augusto Coelho Texto extraído do sétimo estudo da obra Idée Générale de la Révolution au XIX”e siècle.
HTML: Fernando Araújo.
Justiça, Autoridade, termos incompatíveis, mas que o homem comum obstina-se em fazer sinônimos. Ele diz autoridade de justiça, assim como governo do povo, por hábito do poder, e sem perceber a contradição. De onde vem essa depravação de idéias?
A justiça começou como a ordem, pela força. Lei do príncipe na origem, não da consciência; obedecida por temor, não por amor, ela se impõe em vez de expor: assim como o governo, não é outra coisa senão distribuição mais ou menos calculada do arbítrio.
Sem ir além de nossa história, a justiça era na Idade Média uma propriedade senhorial, cuja exploração ora se fazia pelo senhor em pessoa, ora era confiada a arrendatários ou intendentes. Estava-se à mercê da justiça do senhor como se estava sujeito à corveia, como ainda hoje se é contribuinte. Pagava-se para se fazer julgar, assim como para moer seu trigo e assar seu pão: é óbvio que aquele que pagava mais tinha maior chance de ter razão. Dois camponeses convictos de fechar um acordo diante de um árbitro teriam sido tratados como rebeldes, e o árbitro perseguido como usurpador. Pronunciar a justiça alheia, que crime abominável!...
Pouco a pouco, agrupando-se o país em volta do primeiro barão, que era o rei da França, presumiu-se que toda a justiça dele dependia, fosse como concessão da coroa aos feudatários, fosse como delegação a companhias executoras de justiça, cujos membros pagavam seus impostos, assim como hoje fazem os escrivães procuradores, mediante uma polpuda soma.
Enfim, desde 1789, a Justiça é exercida diretamente pelo Estado, que sozinho pronuncia julgamentos executórios , e fatura, sem contar as multas, uma soma fixa de 27 milhões. O que ganhou o povo com essa mudança? Nada. A Justiça permanece o que era antes, uma emanação da autoridade, isto é, uma fórmula de coerção radicalmente nula, e em todas as suas disposições, recusável. Não sabemos o que é a justiça.
Amiúde ouvi discutirem essa questão: tem a sociedade o direito de punir com a morte? Um italiano, gênio de resto assaz medíocre, Beccaria, construiu no século passado uma reputação pela eloquência com a qual refutou os partidários da pena de morte. E o Povo em 1848 acreditou ter feito maravilha, enquanto aguarda algo melhor, ao abolir essa pena em matéria política.
Mas nem Beccaria, nem os revolucionários de fevereiro abordaram o fundamental da questão. A aplicação da pena de morte é apenas um caso particular da justiça criminal. Ora, trata-se de saber se a sociedade tem o direito, não de matar, não de infligir uma pena, por mais leve que seja, nem mesmo de absolver e agraciar, mas de julgar.
Que a sociedade se defenda, quando é atacada, é seu direito.
Que ela se vingue, com risco de represálias, isso pode ser de seu interesse.
Mas que ela julgue, e, depois de ter julgado, puna, eis o que não aceito; não aceito porque recuso toda autoridade, qualquer que seja.
Só o homem tem o direito de se julgar, e se ele se sente culpado, se crê que a expiação é-lhe boa, de reivindicar para si um castigo. A justiça é um ato de consciência, essencialmente voluntário: ora, a consciência não pode ser julga condenada ou absolvida senão por si mesma: o resto é guerra, regime de autoridade e barbárie, abuso de força.
Vivo em companhia de infelizes – é o nome que eles se dão -, que a justiça arrasta diante dela por causa de roubo, falsificação, falência, atentado ao pudor, infanticídio, assassinato.
Compreendo que esses homens, em guerra com seus semelhantes, sejam intimados, obrigados a reparar o dano que causam, a suportar as conseqüências de seus atos, e até um certo ponto, ainda pagar a multa pelo escândalo e pela insegurança com maior ou menor premeditação, de que são sujeitos. Compreendo, eu dizia, e aplicação do direito da guerra entre inimigos. A guerra também pode ter, não digo sua justiça, seria profanar esse santo nome, mas sua balança.
Todavia, fora disso, que esses mesmos indivíduos sejam trancafiados, sob pretexto de penitência, em estabelecimentos de força, estigmatizados, acorrentados, torturados em seus corpos e suas almas, guilhotinados ou, o que é pior, colocados para cumprir suas penas sob a vigilância de uma polícia cujas inevitáveis revelações perseguem-nos no fundo de seu refúgio; mais uma vez nego, da maneira mais absoluta, que nada, nem na sociedade, nem na consciência, nem na razão, autoriza semelhante tirania. O Código não faz justiça, mas vingança, a mais iníqua e a mais atroz, último vestígio do antigo ódio das classes patrícias contra as classes servis.
Que pacto fizestes com esses homens, para que vos arrogueis o direito de torná-los responsáveis por seus crimes, pelo grilhão, pelo sangue, pelo ferrete? Que garantias ofereceste-lhes, pelas quais podeis vos gabar? Que condições eles tinham aceitado e que violaram? Que limite, imposto ao transbordamento de suas paixões e reconhecido por eles, excederam’? O que fizestes por eles, enfim, que eles devam ter feito por vós, e o que vos devem? Procuro o contrato livre e voluntário que os une, e só percebo a espada de justiça suspensa sobre suas cabeças, o gládio do poder. Exijo o compromisso textual e recíproco, assinado por suas mãos, que pronuncia sua decadência: só encontro as prescrições cominatórias e unilaterais de um pretenso legislador, que não pode ter autoridade a seus olhos senão pela assistência do carrasco.
Lá onde não há convenção, não pode haver, no foro exterior, nem crime nem delito. E pego-vos aqui por vossas próprias máximas: tudo o que não é proibido pela lei é permitido e A lei só dispõe para o futuro e não tem feito retroativo.
Pois bem! a lei – isso está escrito há sessenta anos em toda as vossas constituições – é a expressão da soberania do Povo, isto é, o contrato social, o engajamento pessoal do homem e do cidadão. Visto que não a desejei, que não consenti, não votei, não assinei, essa lei não me obriga a nada, ela não existe. Prejulgá-la antes de reconhecê-la, e beneficiar-vos dela contra mim malgrado minha protestação, é dar-lhe um efeito retroativo e violá-la. Todos os dias acontece-vos de anular um julgamento por um vício de forma. Mas não há sequer um de vossos atos que não esteja maculado de nulidade, e da mais monstruosa das nulidades, a suposição da lei. Soufflard, Lacenaire, todos os celerados que enviasses ao suplício, agitam-se em seus túmulos e acusam-vos de falsificação judiciária. O que tendes a responder-lhes?
Não falemos de consentimento tácito, de princípios eternos da sociedade, de moral das nações, de consciência religiosa. É precisamente porque a consciência universal reconhece um direito, uma moral, uma sociedade, que se deveria exprimir seus preceitos, e propô-los à adesão de todos. Vós o fizestes? Não! Editastes o que vos aprouve; e chamais esse édito de regra das consciências, ditame do consentimento universal. Oh! Há demasiada parcialidade em vossas leis, muitas coisas subentendidas, equivocadas, sobre as quais não estamos absolutamente de acordo. Protestamos contra vossas leis e contra vossa justiça.
Consentimento universal! Isso lembra o pretenso princípio, que nos apresentais também como uma conquista, segundo o qual todo acusado deve ser enviado diante de seus pares, que são seus.juízes naturais. Derrisão! Esse homem, que não foi chamado para discutir a lei, que não a votou, que sequer a leu, que não a compreenderia se pudesse lê-Ia, que nem mesmo foi consultado quanto à escolha do legislador, tem ele juízes naturais? Ora, capitalistas, proprietários, pessoas felizes, que se puseram de acordo com o governo, que gozam de sua proteção e de seu favor, estes são os juízes naturais do proletário! Esses são homens probos e livres que, sobre sua honra e sua consciência – que garantia para um acusado! -, diante de Deus – que nunca entendeu; diante dos homens, dentre os quais ele não está incluído, o declararão culpado; e se ele protesta contra as más condições que a sociedade lhe deu, se se recorda das misérias de sua vida e de todas as amarguras de sua existência, opor-lhe-ão o consentimento tácito e a consciência da espécie humana!
Não, não, magistrados, não sustentareis mais esse papel de violência e hipocrisia. Já é bastante que ninguém conteste vossa boa-fé, e que em consideração por essa boa-fé o futuro vos absolva, mas não ireis mais adiante. Não tendes valor par julgar; e essa falta de valor, essa nulidade de vossa investidura, ela vos foi implicitamente notificada no dia em que foi proclamado, diante do mundo, numa federação de toda a França, o princípio da soberania do Povo, que não é outro senão o da soberania individual.
Só há, lembrai-vos bem disso, uma única maneira de fazer justiça: que o acusado, ou simplesmente o intimado, o faça por si mesmo. Ora, ele o fará quando cada cidadão tiver aderido ao pacto social; quando, nessa convenção solene, os direitos as obrigações e as atribuições de cada um tiverem sido definidos, as garantias intercambiadas e a sanção subscrita.
Então a justiça, procedendo da liberdade, não será mais vingança, será reparação. Como não existirá mais oposição entre a lei da sociedade e a vontade do indivíduo, a recriminação ser-lhe-á estranha, ele só terá como refúgio a confissão.
Aí também a instrução dos processos se reduzirá a uma simples convocação de testemunhas, entre o queixoso e o acusado, entre o demandante e sua parte não será necessário outro intermediário senão os amigos aos quais solicitarão a arbitragem (...)
A abolição completa, imediata, sem transição, nem qualquer substituição que seja, das cortes e dos tribunais, é uma das primeiras necessidades da revolução. Qualquer prazo que se tome para as outras reformas (... ), em todos os casos, a supressão das autoridades judiciárias não pode sofrer adiamento. Do ponto de vista dos princípios, a justiça constituída é apenas uma fórmula do despotismo, por conseqüência, uma negação da liberdade e do direito. Lá onde deixarmos subsistir uma jurisdição, lá teremos erigido um monumento de contrarevolução, do qual ressurgirá cedo ou tarde uma autocracia política ou religiosa.
Do ponto de vista político, recolocar nas mãos das antigas magistraturas, imbuídas de idéias nefastas, a interpretação do novo pacto, seria tudo comprometer. Constatamos isso com grande facilidade: se os homens da justiça mostram-se impiedosos em relação a socialistas, é que o socialismo é a negação da função jurídica, assim como da lei que a determina. Quando o juiz sentencia um cidadão acusado, segundo a lei, por idéias, palavras ou escritos revolucionários, não é mais um acusado que ele golpeia, é um inimigo. Por respeito à justiça, suprimamos esse funcionário que, exercendo o direito, combate por sua toga e seu tribunal.
Tudo é contradição em nossa sociedade: é por isso que não conseguimos nos entender e estamos sempre prontos à luta. A administração pública e a polícia vão oferecer-nos uma nova prova disso.
Se há hoje algo que pareça a todo mundo inconveniente, sacrílego, atentatório aos direitos da Razão e da Consciência, é um governo que, usurpando o campo da fé, teria a pretensão de regulamentar os deveres espirituais de seus subordinados. Mesmo aos olhos dos cristãos, semelhante tirania seria intolerável: na falta de insurreição, o martírio se encarregaria de responder. A Igreja, instituída do alto e inspirada, afirma seu direito de governar as almas; todavia, coisa extraordinária, e que da parte dela é um começo de liberalismo, recusa esse direito ao Estado. Não toquem no incensório, exclama aos príncipes. Sois os bispos de fora; somos os bispos de dentro. Diante de vós a fé é livre; a religião não provém de vossa autoridade.
Sobre esse ponto a opinião, ao menos na França, é unânime. O Estado ainda quer pagar o culto, e a Igreja aceitar a subvenção; quanto ao fundo do dogma e às cerimônias, o Estado não se imiscui de modo algum. Crede ou não, adorai ou não adorai nada, é ad libitiun . O Governo decidiu não mais intervir nos assuntos de consciência.
Ora, das duas uma: ou o Governo, fazendo esse sacrifício de iniciativa, caiu num grave erro; ou então, quis dar um passo para trás e nos dar uma primeira garantia de seu recuo. Por que, com efeito, se o Governo não se vê no direito de nos impor a religião, pretenderia em contrapartida nos impor a lei? Por que, não contente com essa autoridade de legislação, exerceria ainda uma autoridade de justiça? Por que uma autoridade de polícia? Por que, enfim, uma autoridade administrativa?...
Ora o Governo entrega-nos a direção de nossas almas – a parte mais séria de nosso ser – o governo da qual depende inteiramente – com nossa felicidade na outra vida – a ordem nesta aqui; e, tão logo se trata de nossos interesses materiais, assuntos comerciais, relações de boa vizinhança, as coisas mais vis, o Poder se mostra, intervém. O Poder é como a criada do padre, entrega a alma ao demônio; o que ele quer é o corpo. Desde que tenha a mão em nossos bolsos, zomba de nossos pensamentos. Ignomínia! Não podemos administrar nossos bens, acertar nossas contas, transigir sobre nossas diferenças, assegurar nossos interesses comuns, da mesma forma que não podemos sequer zelar por nosso bem-estar e cuidar de nossas almas? O que temos a ver com a legislação do Estado, a justiça do Estado, a polícia do Estado e a administração do Estado, mais do que com a religião do Estado? Que razão, que pretexto o Estado fornece dessa exceção à liberdade local e individual?
Dir-se-á que a contradição é apenas aparente; que a autoridade é, com efeito, geral e nada exclui; mas que, para seu mais perfeito exercício, ela teve de se dividir em dois poderes iguais e independentes: um, a Igreja, a quem é confiada a responsabilidade das almas; o outro, o Estado, a quem pertence o governo dos corpos.
A isso respondo, de início, que a separação do Estado e da Igreja não foi feita de modo algum com vistas a essa melhor organização, senão em conseqüência da incompatibilidade dos interesses que eles regem; em segundo lugar, que os resultados dessa separação foram os mais deploráveis, visto que a Igreja, tendo perdido a direção do temporal, acabou por não ser mais ouvida, mesmo no espiritual; enquanto o Estado, fingindo só se envolver com questões materiais e só as resolvendo pela força, perdeu o respeito e provocou por toda a parte a reprovação dos povos. E é precisamente por isso que o Estado e a Igreja, convictos, mas demasiado tarde, de sua indiscernibilidade, tentam hoje, por uma fusão impossível, reerguer-se, no momento mesmo em que a Revolução pronuncia simultaneamente sua dupla falência.
Mas nem a Igreja, faltando-lhe sanção política, poderia conservar a direção das idéias; nem o Estado, desprovido de princípios superiores, pode aspirar à dominação dos interesses; quanto à sua fusão, ela é ainda mais quimérica do que aquela entre a monarquia absoluta e a monarquia constitucional. O que a liberdade separou, a autoridade não reunirá.
Minha pergunta subsiste por completo: em virtude de que direito o Estado, indiferente às idéias e aos cultos, ateu como a lei, tenciona administrar os interesses?
A essa pergunta, inteiramente de direito e moralidade, opõem-nos:
1º Que os cidadãos e as comunas, não podendo conhecer interesses gerais, visto que não poderiam estar de acordo, necessitam de um árbitro soberano;
2º Que as coisas também não podendo caminhar em sua globalidade, unitariamente, se cada localidade, cada companhia, cada grupo de interesses fosse abandonado à sua própria inspiração, se os funcionários públicos recebessem tantas ordens diferentes, contraditórias, quanto há de interesses particulares, seria indispensável que a impulsão partisse de um motor único, conseqüentemente que os funcionários fossem nomeados pelo Governo.
Não se sai disso: antagonismo inevitável, fatal, dos interesses, eis o motivo; centralização ordenadora e hierárquica, eis a conclusão.
Foi segundo esse raciocínio que nossos pais, em 93, após terem destruído o direito divino, o regime feudal, a distinção de classes, as justiças senhoriais etc., reformaram um governo que tinha sua fonte no mandato eleitoral, e condenaram o partido da Gironda, que, sem poder dizer como tencionava conservar a unidade, não queria, contudo, segundo sustentam, centralização.
Podemos julgar os frutos dessa política.
(...)
Assim como a religião de Estado é o estupro da consciência, a centralização administrativa é a castração da liberdade. Instituições fúnebres, emanadas do mesmo furor de opressão e intolerância, e cujos frutos envenenados mostram muito bem a analogia! A religião de Estado produziu a Inquisição, a administração de Estado engendrou a polícia.
É verdade, compreendemos que o sacerdócio – que foi de início, assim como o corpo dos mandarins chineses, apenas uma casta de homens sábios e letrados tenha conservado pensamentos de centralização religiosa: a ciência, intolerante ao erro, como o gosto ao ridículo, aspira legitimamente ao privilégio de instruir a razão. O sacerdócio goza dessa prerrogativa desde que teve por programa a ciência, cuja característica é ser experimental e progressiva; ele a perdeu tão logo se pôs em contradição com o progresso e a experiência.
Mas que o Estado – cuja única ciência é a força, que só tem por doutrina, com as fórmulas de seus meirinhos, a teoria do pelotão e do batalhão -, tratando eternamente a nação como menor de idade, tencione, às suas custas e malgrado ela, sob pretexto de desacordo entre suas faculdades e suas tendências, gerir, administrar seus bens, julgar o que convém melhor a seus interesses, regular-lhe o movimento, a liberdade, a vida: eis o que seria inconcebível, o que revelaria uma maquinação infernal, se não soubéssemos, pela história uniforme de todos os governos, que se o poder em todos os tempos dominou o povo, é que em todos os tempos igualmente o povo, ignorante das leis da ordem, foi cúmplice do poder.
Se eu falasse a homens tendo amor pela liberdade e pelo respeito a eles próprios, e quisesse incitá-los à revolta, eu me limitaria, por toda arenga, a enumerar-lhes as atribuições de um prefeito.
Segundo os autores:
“O prefeito é agente do poder central; ele é intermediário entre o governo e o departamento; proporciona a ação administrativa; assegura diretamente, por seus próprios atos, as necessidades do serviço público.”
“Como agente do poder central, o prefeito exerce as ações que concernem os bens do Estado ou do departamento, e desempenha as funções de polícia.”
“Como intermediário entre o poder e o departamento, faz publicar e executar as leis que lhe são transmitidas pelos ministros; dá força executiva aos papéis das contribuições; vice-versa, faz chegar ao poder as reivindicações, informações etc.”
Funções muito diversas que são a instrução, a direção, a impulsão, a inspeção, a vigilância, a estimação ou apreciação, o controle, a censura, a reforma, a recuperação, enfim a correção ou a punição.
“Como assegurador das necessidades do serviço público, o prefeito age ora como revestido de uma autoridade de tutela; ora como revestido de um comando; ora como exercendo uma jurisdição.”
Encarregado de negócios do departamento e do Estado, oficial de polícia judiciária, intermediário, plenipotenciário, instrutor, diretor, impulsor, inspetor, vigilante, apreciador, controlador, censor, reformador, recuperador, corregedor, tutor, comandante, intendente, edil, juiz. Eis o prefeito, eis o governo! E que venham me dizer que um povo submetido a semelhante regência, um povo assim tutelado, in chamo et freno, in baculo et virga , é um povo livre! que esse povo compreende a liberdade, que é capaz de experimentá-la e recebê-la! Não, não! Tal povo é menos que um escravo, é um cavalo de combate. Antes de libertá-lo, é necessário elevá-lo à dignidade de homem, refazendo seu entendimento. Ele próprio vos diz, na ingenuidade de sua consciência: o que me tornarei quando não tiver mais rédeas nem sela? Não conheço outra disciplina, outro estado. Desembaracem minhas idéias; regulem minhas afeições; equilibrem meus interesses, então não precisarei mais de senhor, poderei dispensar o cavaleiro!
Assim, a sociedade, por sua própria revelação, gira em círculo. Esse Governo, do qual ela se faz um princípio diretor, não é outra coisa, ela concorda com isso, senão o suplemento de sua razão. Assim como, entre a inspiração de sua consciência e a tirania de seus instintos, o homem se deu um moderador místico, que foi o padre, assim também entre a sua liberdade e a liberdade de seu semelhante, ele se impôs um árbitro que foi o juiz, e ainda, entre seu interesse privado e o interesse geral, supostos por ele tão inconciliáveis quanto seu instinto e sua razão, buscou um novo conciliador, que foi o príncipe. O homem, assim, despojou-se de seu caráter moral e de sua dignidade judiciária; abdicou a sua iniciativa, e por essa alienação de suas faculdades, fez-se o escravo impuro dos impostores e dos tiranos.
Todavia, desde Jesus Cristo, Isaías, Davi, o próprio Moisés, é admitido que o justo não necessita nem de sacrifício, nem de padre; e provamos há pouco que a instituição de uma justiça superior a alguém sujeito a ela é por princípio uma contradição, uma violação do pacto social. Ser-nos-á, então, mais difícil livrarmo-nos, para a realização de nossos deveres sociais e cívicos, da elevada intervenção do Estado?
O regime industrial, já o demonstramos, é o acordo dos interesses resultando da liquidação social, da gratuidade da circulação e do crédito, da organização das forças econômicas, da criação das companhias operárias, da constituição do valor e da propriedade.
Nesse estado de coisas, para que pode ainda servir o Governo? Para que a expiação? Para que a justiça? O CONTRATO resolve todos os problemas. O produtor trata com o consumidor, o associado com sua companhia, o camponês com sua comuna, a comuna com o cantão, o cantão com o departamento etc., etc. É sempre o mesmo interesse que transige, liquida-se, equilibra-se, repercute-se ao infinito; sempre a mesma ideia que se movimenta, de cada faculdade da alma, como de um centro para a periferia de suas atrações.
O segredo dessa equação entre o cidadão e o Estado, do mesmo modo que entre o crente e o padre, entre o demandante, e o juiz, está na equação econômica que desenvolvemos anteriormente, pela abolição do lucro capitalista, entre o trabalhador e o patrão, o arrendatário e o proprietário. Fazei desaparecer, pela reciprocidade das obrigações, esse último vestígio da antiga servidão, e os cidadãos e as comunas não mais necessitarão da intervenção do Estado para gerir seus bens, administrar suas propriedades, construir seus portos, suas pontes, seus cais, seus canais, suas estradas. (...)