A inspiradora de Luiz Carlos Prestes

Figueiredo Pimentel


XVI. A partida


capa

Taciana despedia-se, com o olhar transbordante de melancolia, de sua casa, de todos os seus objetos de arte.

Naquele dia chuvoso e triste sentia sua alma invadida por uma sensação estranha, uma espécie de entorpecimento, a cabeça vazia, tonta como se tivesse aspirado muito éter. Uma vontade louca de chorar. Se conseguisse chorar naquele momento, se conseguisse desabafar-se daquela angústia que lhe comprimia o peito, talvez não partisse naquela tarde fria para nunca mais voltar.

Aquela casa, em Icaraí, lhe desper­tava já uma saudade infinita.

Não partiria, talvez, se Venâncio a tivesse compreendido, se tivesse sabido despertar-lhe o amor de que tanto necessitava.

Também ele era orgulhoso. Na sua vida de casado não conhecera nunca a felicidade.

A felicidade, sendo apenas uma ideia, só reside no espírito.

Venâncio vivia num estado desesperador, só imaginava a desgraça. Seu olhar sempre perdido na contemplação do ideal, atraia, como por encanto funesto, fantasmas terríveis que o rodeavam.

Taciana pensava na sua vida de eterna abandonada. Nunca tivera a ventura de ter a seu lado, no convívio doce da intimidade, uma pessoa amiga que a compreendesse, que a amasse, com o verdadeiro amor de amigo. Tinha inveja das pessoas que viviam num círculo de amizade, das pessoas que eram felizes ao lado dos pais, dos irmãos, dos filhos, dos esposos: das mulheres que tinham amigos, que viviam, enfim, contentes e felizes.

Sempre isolada do convívio social, só encontrara uma pessoa que a compreendera e a amara. Foi esse amor que lhe despertou o sentido da vida. Nos poucos meses de convívio com Luiz Carlos Prestes sentira o palpitar do seu coração; sentira a sensação do prazer; a beleza da vida.

Mas esse estado de espírito durara pouco.

Nos três anos de casada continuava torturada pelo espírito. Tivera somente o prazer visual. Mudara apenas o cenário. No Rio Grande do Sul vivia cansada de ver eternamente a mesma paisagem. O Rio de Janeiro a tonteava com as suas múltiplas belezas, com os sedutores aspetos da natureza.

O mar a fascinava; era o reflexo de sua alma. Quando o mar estava revolto ela sentia a tormenta em sua alma. Se estava triste, ele se entristecia e só se alegrava quando via as águas mansas do mar iluminadas pela luz gloriosa do sol.

Percorrendo todos os cantos da casa, Taciana despedia-se dos seus objetos artísticos, dos seus livros, de tudo que lhe despertava já imensa saudade. Olhava para todos os objetos com a mesma unção dos religiosos ao admirar a imagem de Cristo. Aqueles livros não mais sentiriam o contato de suas mãos carinhosas nem mais seriam iluminados pela luz dos seus olhos.

O canário-belga, seu único companheiro nas horas de tristeza, cantava, chamando-a. Ela o criara com grande carinho. Verlaine nascera ali, aprendera a cantar, ensaiado pelo assobio de Taciana. Ela acordava sempre ouvindo o canário cantando.

— Pobre Verlaine! Se ao menos soubesse voar!... Adeus, meu amigo.

Taciana despedia-se do canário que saltitava na gaiola. Os carregadores chegavam para levar as malas.

Distribuindo presentes às criadas, Taciana fazia-lhes as últimas recomendações.

Tinha a impressão de que ia suicidar-se.

Depois de muito meditar, vendo desenrolar-se, como num filme, as imagens que desfilavam pelo seu pensamento, conseguiu deixar algumas palavras de despedida a Venâncio.

“Venâncio. Sou uma mulher predestinada. Persegue-me a fatalidade. Não procure saber para onde vou. Sigo ao encontro do meu destino. Assim os fados quiseram... Perdoe-me. Sou mais infeliz que você Muito mais. Procure esquecer-me. Desejo-lhe muita felicidade. Adeus. Taciana”.

Percorreu, ainda, uma vez, os olhos pela casa. Olhou saudosa para a gaiola dourada do lindo canário que continuava a cantar. Desceu ao jardim e colheu algumas rosas das roseiras que plantara.

O mar agitadíssimo queria invadir a praia. Taciana tomou o automóvel e disse ao “chaufeur” que tinha muita pressa, que corresse a toda a velocidade.

Sentia o peito opresso, o soluço engasgado, e a cabeça tonta. Tinha a impressão de que estava acompanhando um enterro ao cemitério de Maruí.


Inclusão: 30/03/2024