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O processo, que desde há longos meses decorria, estava a chegar ao fim.
Antes de se retirar para a sala de deliberações, o Tribunal devia ainda ouvir a última declaração dos réus.
Quando estava a ser elaborado o Estatuto do Tribunal Internacional, os representantes dos EUA e da Inglaterra tinham achado que isso era supérfluo. Diferentemente do procedimento em uso nos tribunais do continente europeu, nos processos anglo-americanos esta etapa é ignorada. Não obstante, por insistência dos representantes franceses e soviéticos, foi decidido em Londres que os réus teriam direito a fazer a última declaração.
É raro essa declaração modificar por pouco que seja o desfecho do processo. Qualquer juiz mais ou menos experiente sabe isso. Mas por vezes há surpresas: determinado réu que teimara em declarar-se não culpado confessa subitamente na sua última declaração. Os motivos podem ser de diferentes tipos: arrependimento sincero ou manobra visando aliviar a sua sorte. Seja como for, esta fase do processo é sempre interessante do ponto de vista psicológico. É como a confissão suprema de um moribundo. E, como toda a confissão, pode ser sincera ou hipócrita.
Era por isso que aguardávamos com impaciência, em Nuremberga, a última declaração de pessoas que durante nove meses negaram quase totalmente a sua culpa. Dar-se-iam conta de que para a maioria deles esta declaração seria efectivamente a derradeira? Claro. E então? Será que mudaram de táctica por esse motivo? Longe disso.
Assistiu-se à mesma monstruosa hipocrisia de sempre, que se tornara já mania. Mentiam todos como o tinham feito no correr dos nove meses precedentes. Era uma comédia. Uma comédia reles em que os antigos potentados do Terceiro Reich se esforçaram, uma vez mais, por passar aos olhos do mundo por homens de Estado.
Eles trapaceavam, acumulavam mentira em cima de mentira, e à medida que falavam a sala parecia encher-se do fumo pestilento dos fornos crematórios. Pensava eu ao escutá-los:
«Que terrível castigo para o povo alemão que durante anos teve de considerar estas pessoas como chefes e seguir o caminho da catástrofe e da vergonha por eles traçado!»
De resto, os «chefes» não esqueceram o povo alemão na sua última declaração. Depois de lhe terem imposto privações e sofrimentos terríveis, acharam-se na obrigação de o defender perante o Tribunal Internacional. Goering foi o primeiro a perorar sobre o destino dos «simples alemães», a persuadir o Tribunal de que a sua condenação e a dos outros «homens de Estado» não deviam atingir por ricochete o povo alemão. Com uma ênfase prevista para os «sarcófagos de mármore», o nazi n° 2 exclamou:
— O povo alemão está inocente!
Como se não fosse evidente que estavam ali a ser julgados unicamente chefes criminosos cujos crimes se tinham abatido sobre muitos povos, incluindo o dele.
Baldur von Schirach teve exactamente a mesma atitude. Esse corruptor da juventude alemã resolveu lançar-se na sua defesa. Pediu ao Tribunal «para não acusar a juventude alemã», para a «reabilitar».
Os réus furtavam-se visivelmente à sua última sinistra sombra que por toda a Europa se estendia. Goering teve o desplante de declarar:
«Eu não desejei a guerra e não contribuí para a desencadear».
E Ribbentrop disse que
«lhe imputavam uma política extrema dirigida por um outro», isto é, por Hitler.
A última declaração de Kaltenbrunner (clique na foto para maior resolução) |
E Kaltenbrunner? Sabemos já o que afirmou na sua última declaração o torcionário dos povos da Europa, cujos braços estavam tintos de sangue até aos cotovelos. Sim, a Gestapo perpetrou hediondos crimes, mas não foi ele, e sim Himmler, quem comandou esse bando de assassinos. Ao passo que Kaltenbrunner teria ardentemente desejado ir para a frente para não ver esses horrores.
O pequenino Funk embrenha-se na filosofia:
— A vida humana é feita de erros e desatinos. Eu também me enganei e fui enganado em muitos casos: reconheço-o abertamente. Fui demasiado despreocupado e crédulo em muitos casos. É aí que eu vejo o meu erro.
Não era só aí que ele o via! Funk preferiu calar-se quanto aos cofres-fortes do Reichsbank a abarrotarem de dentes de ouro, a esse propósito apenas balbuciou uma frase ininteligível:
«Himmler enganou-me, ludibriou-me.»
Como durante todas as audiências de julgamento, alguns réus armaram-se em acusadores, denunciando fosse quem fosse para se ilibarem. Funk lamentava-se:
— Foram aqui revelados crimes atrozes... Essas acções criminosas enchem-me de profunda vergonha.
— O meu erro político foi o de não ter visto suficientemente cedo a natureza criminosa de Hitler em todo o seu alcance — exalou Schacht.
E Sauckel, o esclavagista nazi, descarregou a totalidade dos seus crimes para cima de Hitler e Himmler. Bateu todos os recordes de hipocrisia ao declarar:
— Meritíssimos juízes, fui atingido no mais profundo da minha alma pelos crimes revelados no decurso deste processo. Inclino-me com humildade e respeito diante das vítimas de todos os países e perante as desgraças e sofrimentos do seu próprio povo.
E Keitel? Que disse ele? Que palavras derradeiras encontrou este homem para explicar os seus crimes? Que escudo utilizou para tentai uma vez mais abrir caminho para a vida?
— O melhor que eu tinha a dar como soldado — a obediência e a fidelidade — foi explorado com intenções imprevisíveis — declarou o ex-chefe do OKW. Também não vi os limites que fazem igualmente parte do dever do soldado. É esta a minha sorte.
Houve réus que, com um pé na cova, optaram pelo papel de pregadores e mentores do povo alemão. Dizia Frank com um patetismo que soava a falso:
— Peço ao nosso povo para não perseverar nessa direcção e não dar nela nem mais um passo...
Seyss-Inquart formulou um pensamento que não despertou qualquer protesto e é hoje mais oportuno que nunca:
— A Alemanha, no seu próprio interesse, não deve querer a guerra. É preciso que ela esteja atenta para que não lhe ponham armas nas mãos.
Mas Seyss-Inquart compreendera isso tarde demais! Só depois de se ter dedicado de alma e coração, ao ofício criminoso de incendiário, depois de ter feito correr em torrentes o sangue de polacos e holandeses que ele tiranizava na sua qualidade de sátrapa de Hitler.
A última declaração de Speer, ex-ministro do Armamento, fez-me especial impressão:
— Hitler e o desmoronamento do seu sistema — começou ele — foram o advento de uma época de sofrimentos inauditos para o povo alemão... Depois deste processo ele desprezará e amaldiçoará Hitler, autor das suas desgraças.
Seguiu-se um monólogo sobre o papel da técnica em política:
— Muitos dos fenómenos de estabelecimento da ditadura, que aqui foram revelados, teriam sido impossíveis sem o concurso da técnica... Hitler utilizou a técnica não só para dominar o seu próprio povo, mas quase conseguiu subjugar a Europa graças ao avanço que tinha no plano técnico... A técnica bélica fornecerá dentro de cinco ou dez anos a possibilidade de disparar foguetes intercontinentais com uma terrível precisão. Ela pode, pela desintegração do átomo, aniquilar no centro de Nova Yorque um milhão de homens, com uma equipa de dez homens, em poucos segundos...
Estas palavras do ministro hitleriano do Armamento fizeram-me pensar uma vez mais na proeza do Exército Soviético que esmagou o Estado nazi!
Mas Speer, continuava a esboçar os horrores da guerra do futuro:
— Como antigo ministro encarregado de um armamento muito desenvolvido, é meu último dever constatar que uma nova guerra terminará pela destruição da cultura e civilização humanas... É por isso que este processo deve contribuir para impedir as guerras no futuro e fixar as regras fundamentais da vida comunitária dos homens.
Isto dizia aquele que ajudou Hitler a realizar o seu programa de abomináveis crimes contra a humanidade e que transformou milhões de seres humanos em escravos do «império milenário». Também ele só se acalmou depois de ter matado inúmeras vítimas fazendo-as trabalhar como forçados no armamento da Alemanha, depois dos carros-câmaras de gás e dos «armários de tortura» de ferro, quando o Reich hitleriano entrou em agonia. Foi no último momento que ele fez marcha-atrás para salvar a pele.
O destino deste homem mostra bem aonde leva a carreira — mesmo que brilhante no princípio — do «especialista» que pôs os seus conhecimentos e talentos de organizador ao serviço da agressão imperialista e se atrelou ao carro das sombrias forças reaccionárias movidas pela sede das conquistas, da hegemonia mundial.
Juízes deliberaram um mês inteiro antes de lavrarem a sentença (clique na foto para maior resolução) |
Fizeram os réus a sua última declaração. O Tribunal retirou-se para deliberar. Foi anunciada uma interrupção de cerca de um mês.
O ambiente do Palácio da Justiça mudou bruscamente. A maioria dos correspondentes de imprensa foi-se embora. Essas aves de arribação, avaros do seu tempo, correram para outros pontos escaldantes do Planeta. Pontos esses que se iam tornando numerosos. O discurso pronunciado por Churchill em Fulton tinha constituído a primeira centelha da «guerra fria» que lavrava por toda a Terra.
James Byrnes, secretário de Estado dos EUA, fora à Alemanha. Fez em Estugarda um discurso que todos os réus de Nuremberga podiam ter aplaudido. Os poucos jornalistas ocidentais que ficaram em Nuremberga diziam que os motivos de Fulton não deixariam de atravessar a porta fechada que separava do mundo os juízes do Tribunal Internacional e de se reflectir nas páginas do seu veredicto. À medida que se aproximava o fim do processo os cépticos iam-se tornando mais numerosos.
Claro, não se podia esperar que a sentença fosse a mesma para todos os réus, se bem que os Ministérios Públicos das quatro potências tenham exigido que todos fossem considerados culpados. Nenhum dos procuradores tinha dúvidas quanto à pena que eles mereciam.
O procurador-geral americano Robert Jackson terminou o seu discurso final como segue:
— Eles comportam-se perante as provas deste processo como Gloucester(25) manchado de sangue ao lado do corpo do seu rei ferido de morte. Ele suplicava à viúva, como estes nos suplicam a nós: «Dizei que eu não os matei». E a rainha respondeu: «Dizei, então, que eles não foram mortos. Mas eles estão mortos...»
Se tivéssemos de dizer que estes homens não são culpados, também seria verdadeiro dizer que não houve guerra, que não houve mortos e que não houve crime.
Roman Rudenko, depois de ter analisado todas as provas apresentadas ao Tribunal Internacional, conclui:
— Em nome do mais puro amor à humanidade...em nome dos milhões de inocentes torturados e mortos por um bando de criminosos...em nome da felicidade e do trabalho pacífico das futuras gerações, peço ao Tribunal que pronuncie contra todos os réus, sem excepção, a mais severa pena, a pena de morte.
A opinião do procurador-geral britânico Shawcross não é menos clara. No final do seu requisitório, pôs a questão: Todos os réus são passíveis da pena de morte? E respondeu nestes termos:
— Talvez alguns sejam mais culpados que outros. Alguns desempenharam um papel mais activo e mais directo que os outros nestes horrorosos crimes. Mas quando...as consequências destes crimes são a morte de dezenas de milhões dos nossos semelhantes, a devastação de um continente, a propagação por todo o mundo de uma tragédia, de indizíveis sofrimentos, como é que o facto, para alguns deles...de terem sido os autores principais e, para outros, de terem sido simples cúmplices, pode constituir circunstância atenuante? Que importa se alguns só perderam o direito à vida um milhar de vezes enquanto outros merecem um milhão de vezes a morte?
Os outros representantes do Ministério Público foram unânimes em compartilhar esta opinião. Competia ao Tribunal Internacional pronunciar-se, decidir da sorte dos inculpados.
O Tribunal terminou os seus trabalhos a 30 de Setembro de 1946: o veredicto fora assinado por todos os juízes. Nesse dia fui para o Palácio da Justiça muito cedo e logo senti a novidade da situação. À entrada estavam estacionados numerosos camiões da polícia. Tinham sido reforçados todos os meios de controlo. As sentinelas inspeccionavam minuciosamente o conteúdo das pastas, examinavam com atenção os passes, confrontavam-nos com os bilhetes de identidade. Toda a gente, sem excepção, era atingida por essas medidas: dos jornalistas aos funcionários do Tribunal, dos advogados aos convidados.
Entre estes reconheci muitas pessoas que só nas primeiras semanas tinham assistido ao julgamento. Agora voltaram. A sala de audiências é outra vez uma torre de Babel: quase todos os países do mundo lá estão representados.
Os advogados tomam os seus lugares por volta das nove e meia. Depois chegam estenógrafos e intérpretes. É verificado o sistema de transmissão. Os técnicos afadigam-se nas cabinas de rádio. A galeria da imprensa está à cunha. Fotógrafos e operadores de cinema estão na alerta.
São introduzidos os réus um a um, com menos de um minuto de intervalo. Têm um ar extremamente crispado e parecem já não se conhecer uns aos outros.
O processo de Nuremberga entrou na última fase. Um silêncio tenso reina na sala.
— O Tribunal — anuncia o oficial de diligências.
Entram os juízes. O presidente do Tribunal, Lord Geoffrey Lawrence, traz uma pasta volumosa que contém o texto do veredicto.
Rendendo-se de hora a hora, os juízes lêem o histórico documento. Um dia não chega para isso.
A leitura prossegue no dia 1 de Outubro. Chega-se às chamadas fórmulas de responsabilidade individual.
Observo atentamente os réus. É lida a fórmula para Hermann Goering. De cabeça inclinada, aperta o auscultador contra o ouvido. Esconde os olhos por trás de óculos escuros, os lábios esboçam imperceptível sorriso. Tenta sempre manter o ar de bazófia, mas já não consegue.
O vizinho, Rudolf Hess, ostenta um ar de perfeita indiferença, como se o processo não lhe dissesse respeito. Com folhas de papel em cima dos joelhos, escreve sem parar. Nem sequer pôs os auscultadores.
Keitel está retesado. Kaltenbrunner mexe as mandíbulas, como se mastigasse com esforço. Rosenberg parece ter-se embrulhado em novelo à espera do golpe fatal. Fritzsche endireita-se de chofre ao ouvir o seu nome. Frank abana dolorosamente a cabeça. Streicher cruzou os braços e é talvez a primeira vez desde o início do processo que não mastiga pastilha elástica. Walter Funk agita-se nervosamente, de cabeça baixa, os ombros levantados até às orelhas.
Schacht, Papen e Fritzsche são absolvidos. A leitura da sua absolvição faz correr pela sala um crescente rumor. Rumor heterogéneo, quis-me parecer, tal como o era, aliás, a composição da assistência, que contava tanto com representantes da imprensa progressista como com refinados reaccionários. Estes, com certeza que teriam manifestado ainda mais entusiasmo, se a lista se não resumisse àqueles três.
Não posso dizer que o veredicto tenha sido para mim uma surpresa. Nas sessões de organização do Tribunal, que eram à porta fechada, as reiteradas discussões sobre o caso Schacht, Papen e Fritzsche revelavam suficientemente os pontos de vista dos juízes. Por mais de uma vez, no decurso dessas reuniões, o juiz soviético teve de contraditar os seus colegas ocidentais cujas opiniões, formuladas sem rodeios, davam a entender a absolvição dos três réus em questão.
Sem dúvida alguma que os juízes burgueses de Nuremberga sofriam a influência de certos meios ocidentais. O juiz americano Biddle, por exemplo, relata nas suas memórias uma entrevista que teve com o papa antes do processo:
«Estive 15 minutos frente a frente com Sua Santidade... A senhora von Papen tinha-lhe pedido que intercedesse a favor do seu marido e o papa pediu-me para fazer tudo o que estivesse nos meus poderes para que o julgamento de Papen fosse equitativo. Eu prometi-lhe isso».
Mas era um erro sobrestimar os resultados dessas pressões externas. No conjunto, o Tribunal Internacional lavrou um veredicto de sentença justo e severo. Não foi sem razão que vários juízes burgueses sentiram mais tarde a reacção de certos meios influentes do Ocidente que sobre eles se abateu. Assim, Francis Biddle escreve nas suas memórias como Robert McCormick, um dos maiores editores americanos reaccionários, recusou assistir a um almoço dado em honra do juiz. O todo-poderoso editor mandou responder pelo seu secretário que não queria ser conviva de um assassino. Inútil precisar que segundo ele o assassino era Francis Biddle, membro americano do Tribunal Internacional...
Mas regressemos ao Palácio da Justiça de Nuremberga.
Três dos réus foram absolvidos. O oficial afecto ao tribunal recebe a ordem de os libertar. Fritzsche e Papen despedem-se dos seus companheiros, apertam a mão a Goering, a Doenitz e a alguns outros… Só Schacht passa à frente de Goering sem sequer olhar para ele.
Os outros ficam no banco. Depois da suspensão da audiência ouvirão o seu veredicto que nada de bom promete.
Reina no Palácio extrema animação. Esta primeira parte do dia é sensacional e a imprensa apressa-se a comunicar as peripécias ao mundo inteiro. Corre o rumor de que numa das salas, os absolvidos dariam uma entrevista. Dirijo-me para lá. O local está cheio de jornalistas de todos os países mas a maioria são ingleses e americanos. Chovem as perguntas. Os «heróis do dia» respondem com ar de suficiência. Continuam a mentir como o fizeram no banco dos réus.
Perguntam a Papen o que vai ele fazer, se se dedicará de novo à política. O velho hitleriano sacode a cabeça.
— Não, a minha vida política acabou.
Talvez nesta resposta haja uma ponta de verdade: a sua carreira acabara de maneira demasiado escandalosa após as duas guerras mundiais. A prisão, a cela, a ignomínia do grande criminoso de guerra, mais de setenta anos de idade não davam para o encorajar a retomar a vida política.
Era essa pelo menos a impressão que se tinha. Mas, mal se acha no meio da atmosfera de revanchismo que envenena a Alemanha ocidental, já o intriguista, o inveterado militarista que é, não pode ficar inofensivo, a despeito da sua idade. Papen renega a sua renúncia à actividade política logo que fica em liberdade. Viaja através da Europa ocidental e lança-se numa frenética propaganda a favor do restabelecimento do «antigo Reich». Honra com a sua visita Ancara e Madrid. Na capital de Espanha faz uma conferência sobre o tema «A Europa ocidental colocada entre os Estados Unidos e a União Soviética», e toda a camarilha de Franco o escuta encantada.
— O materialismo dialéctico — vocifera o octogenário — sabotará toda a sociedade do Ocidente se os povos dos países ocidentais não despertarem para uma resistência enérgica à sua acção perniciosa...
E Fritzsche? Esse auxiliar de Goebbels jurou, ele também, não se meter mais em política. Começou efectivamente por ser representante de produtos de beleza da firma parisiense Bannecroux. Mas esse campo não tardou a aborrecê-lo e veio-lhe a vontade de se lançar no remoinho das novas paixões militaristas. Escreve livro após livro, os editores fascizantes publicam-lhos e lá vão engrossar o caudal lamacento da literatura neonazi, que apela à guerra, à violência. A pena venenosa do revanchista Fritzsche só parou de escrever em 1953, quando da sua morte.
Quanto às actividades pós-guerra de Schacht, o leitor já delas está ao corrente.
A conferência de imprensa organizada pelos três criminosos de guerra absolvidos foi abundantemente fotografada. No dia seguinte mostraram-me uma foto da cena final... Era abjecto. Homens envergando a farda americana sacudiam cordialmente a mão a Schacht e a Papen e felicitavam-nos como se faria a um amigo que sobrevivesse a uma operação difícil, quase desesperada.
Ao ver essa foto pensei uma vez mais como tinha sido correcta a «Declaração de Voto» do juiz soviético protestando contra a absolvição de Schacht, Papen e Fritzsche.
Esse protesto teve ecos em todo o mundo. Representantes da imprensa progressista afluíram aos nossos apartamentos. Todos se declaravam solidários com a atitude do juiz soviético. Muitos deles pediram-me exemplares da «Declaração de Voto» para dela informarem de imediato a opinião pública mundial. E dois ou três dias depois chegaram a Nuremberga jornais de diversos países com os primeiros comentários do veredicto no seu conjunto e da «Declaração de Voto» do juiz soviético.
«Muitas pessoas receberam com simpatia e compreensão as reservas feitas pelos russos a propósito da decisão do Tribunal», rezava o editorial do jornal sueco Afrontidningen.
«O ponto de vista do representante russo no Tribunal desperta as mais vivas simpatias nos países que sofreram a ocupação alemã», assinalava o Arbeiterbladet norueguês.
Popper, secretário da Corporação Nacional dos Juristas dos EUA escrevia que a absolvição de Schacht só podia ter um sentido, o de que
«os industriais e financeiros nazis que tinham subvencionado o partido nazi e criado uma base económica sem a qual Hitler, nada poderia ter feito, não eram culpados de agressão e de crimes contra a humanidade... O verdadeiro significado da absolvição de Schacht só é visível se o encararmos como parte integrante da política dos EUA e da Inglaterra em relação à Alemanha».
A declaração de voto do juiz soviético foi aprovada pelas amplas camadas do povo na própria Alemanha. Cem mil manifestantes levaram pelas ruas de Leipzig panos onde estava escrito:
«Morte aos criminosos de guerra!» «Queremos uma paz duradoura!», «Que o povo faça justiça a Papen, Schacht e Fritzsche!», «Queremos paz e tranquilidade!».
Idênticas manifestações decorreram em Dresden, Hall e Chemnitz.
No dia 1 de Outubro de 1946 às 14 horas e 50 o Júri abriu a última audiência.
A sala mudou de aspecto. Foram retirados os projectores para fotografia e filmagens (é proibido fotografar e filmar na última audiência). Só a luz azulada e difusa dos tubos de néon ilumina as paredes, os rostos dos procuradores, advogados, secretários, do público.
O banco dos presos está vazio. Reina um silêncio de sala de operações. Aqui e além alguém tosse e esse barulho é como uma súbita salva de tiros.
Epílogo de Nuremberga. Os réus ouvem a leitura da sentença (clique na foto para maior resolução) |
Estão todos à espera do anúncio pelo Tribunal da sentença individual e separada de cada réu. Ninguém tira os olhos de duas portas: a que irá dar passagem os juízes e outra por onde irão entrar, um a um, os réus.
Surgem os juízes. A um imperceptível aceno de cabeça de Lord Lawrence toda a gente se senta.
O último artigo do veredicto será lido pelo presidente em pessoa. Com o seu habitual gesto, ele ajeita os óculos e, nesse mesmo momento, a porta por detrás do banco dos réus gira silenciosamente nos gonzos, sem que se veja a mão de quem a empurra. A bem conhecida silhueta de Hermann Goering sai do rectângulo escuro para a claridade da sala. Vem ladeado de dois soldados.
O seu inquieto olhar percorre uma assistência postada como que em recolhimento, aflora os representantes da Acusação e fixa-se nos juízes. Está pálido, os traços do rosto ainda contraídos. Aquele mês de espera custou-lhe caro! Abandonara-o o ar de bazófia que o ex-marechal do Reich tinha cuidadosamente cultivado durante todo o julgamento. Entregam-lhe auscultadores, se bem que ele saiba o inglês bastante para compreender a lacónica, mas o mais que pode haver de expressiva, fórmula: morte por enforcamento.
Ao ouvi-la, fulmina o júri com os olhos, e toda a sala. Quanto ódio naquele olhar! Tira sem pronunciar palavra, os auscultadores, dá meia volta e vai-se embora. A porta fecha-se atrás dele para de novo se abrir, alguns instantes depois.
É Hess. Esse recusa os auscultadores. Continua com o seu ar de comediante. Anunciam-lhe que foi condenado a prisão perpétua.
De novo a porta se fecha e se abre... Ribbentrop. Tem o rosto lívido, os olhos semicerrados, aterrorizados. Espanta-me que traga com ele uma pasta de cartão a abarrotar de papéis. Já não vai ter necessidade deles.
— ... à morte por enforcamento — diz Lord Lawrence.
Fraquejam-lhe as pernas. Tem de fazer esforços para se voltar e desaparecer na sombra da passagem.
Keitel, a última saída (clique na foto para maior resolução) |
Introduzem Keitel. Que avança, teso como um sírio, no rosto uma impenetrável expressão.
— ...à morte por enforcamento diz a voz do intérprete nos auscultadores.
Ao ouvir uma sentença igual, Rosenberg perde completamente o domínio de si.
É a vez de Frank. A cara do carrasco que prometera «fazer em picado todos os polacos» tem agora um ar de súplica. Estende os braços, como se esse gesto pudesse alterar a sua condenação já assinada: morte por enforcamento.
Julius Streicher entra como um furacão e imobiliza-se, as pernas escanchadas, pescoço esticado. Aquele organizador de pogroms, o corruptor de milhares de alemães, dá a impressão de homem à espera do golpe. E o golpe abate-se sobre ele, ouve as mesmas palavras que ouviu Frank.
Depois vem Sauckel. Que também teve o que merecia: pena de morte.
Trazem Jodl. Mal é informado de que o espera o cadafalso, arranca os auscultadores, murmura qualquer coisa e retira-se numa passada pesada, as pernas como que anquilosadas.
E agora vem Walter Funk. Recorda os dentes de ouro sacados às vítimas de Auschwitz e depositados nos cofres-fortes do Reichsbank, não está portanto à espera de outra coisa que não a pena de morte. Mas de repente ouve palavras abençoadas: «Prisão perpétua». Fica como que desamparado. Dir-se-ia que chora e se tenta inclinar diante dos juízes...
Por dezoito vezes se abriu e se fechou a porta que está por trás do banco dos réus. Vejo as horas, o relógio marca 15 e 40. Terminou o processo. Os juízes vão-se embora.
Um burburinho infernal invade os corredores do Palácio da Justiça. É a poliglota chusma de jornalistas que se precipita para o telégrafo e o telefone. Numa competição de velocidade, com risco de se atirarem de cangalhas uns aos outros, eles têm pressa de comunicar às suas agências os resultados de quase um ano de actividade do Tribunal Internacional: doze réus — Goering, Ribbentrop, Keitel, Rosenberg, Kaltenbrunner, Frick, Frank, Streicher, Sauckel, Jodl, Seyss-Inquart e, à revelia, Bormann — são condenados à morte por enforcamento; três — Hess, Funk e Raeder — a prisão perpétua; dois — Schirach e Speer — a vinte anos de cadeia; Neurath, a quinze; e Doenitz a dez anos.
Dr. Gilbert, o psiquiatra da prisão, com os seus pacientes (clique na foto para maior resolução) |
Entretanto o doutor Gilbert vai observando as reacções dos réus para depois as descrever no seu diário.
Goering voltou à cela. Atira-se logo para cima da cama. Da sua fanfarronice, nem ares. Parece ter enfim assimilado todo o horror das palavras «pena de morte por enforcamento». Olhando Gilbert no rosto, repete com voz rouca:
— A morte...
Depois é Ribbentrop quem volta. De olhar desvairado, anda para trás e para diante na cela, seu derradeiro «espaço vital», e lamenta-se:
— A morte... a morte. .. Tanto ódio!...
Quando Gilbert entra na cela de Keitel, este vira-se para ele e exclama apavorado:
— A morte...por enforcamento! Pensei que isso, pelo menos, me iria ser poupado.
Em honra de quê? O que autorizava o marechal-de-campo Wilhelm Keitel a pensar desse modo? Não tinha ele assinado dezenas de ordens de execuções em massa e proposto utilizar «todos os meios» Contra as mulheres e as próprias crianças, «para que isso contribua para o êxito»? No relatório de um dos seus subordinados, respeitante a um massacre de soviéticos, anotara Keitel com o seu próprio punho:
«É questão aqui de destruição de uma ideologia, por isso aprovo estas medidas e dou-lhes a cobertura da minha autoridade».
Poderia ele ter a esperança de o Tribunal Internacional o poupar?
No entanto não era ele o único a ter ilusões. Por estranho que pareça, também Eisenhower compartilhava essas ilusões. Quando informado da sorte de Keitel, salientou:
— Estou surpreendido por os juízes não terem hesitado em condenar um militar. Pensava que a sorte dos militares preocuparia mais o Tribunal.
Depreende-se das palavras do general americano, que ainda recentemente personificara o comando supremo dos exércitos aliados do Ocidente, que os juízes do Tribunal Internacional teriam sido bem mais respeitáveis se, em vez de condenarem à morte Keitel e Jodl, os tivessem deixado regressar a penates, a fronte aureolado pela coroa de mártires.
Houve senadores de Colúmbia que foram mais longe. Dignos émulos de Tartufo, de Judas Golovlev e de Job Trotter, eles reclamaram hipocritamente o perdão de todos os condenados à morte.
«Uma atenuação da pena — diziam eles — seria apreciada pela posteridade como um belo acto de clemência».
Mas a opinião pública mundial acolheu esta vergonhosa proposta com profundo desprezo. Os povos de todos os países viam precisamente no veredicto do Tribunal Internacional a mais alta expressão da humanidade.
Sargento americano John Wood, executor da sentença (clique na foto para maior resolução) |
Nos dias 9 a 10 de Outubro de 1946 o Conselho de Controlo para a Alemanha examinou os recursos de perdão e rejeitou-os. Compete agora ao sargento Wood agir. Vi-o em Nuremberga. De estatura média, traços do rosto vincados, não escondia a sua satisfação por ter sido escolhido para executar a sentença. Lamentava não poder enforcar Hermann Goering que, a exemplo de Hitler, Goebbels, Himmler e Ley, se tinha encarregado de se mandar a si próprio para o outro mundo.
A execução efectuou-se na noite de 16 de Outubro. Assistiram a ela representantes das quatro potências. Só foram admitidos oito jornalistas, dois por cada país. Era proibido fotografar e filmar.
A imprensa soviética delegara para o cadafalso Boris Afanassiev, enviado da agência TASS, que tantas informações dera sobre o processo de Nuremberga, e Víctor Tiomine, repórter-fotógrafo.
Encontrei-me com Afanassiev logo após a execução e falámos até de madrugada, ou quase. Deu-me conta de muitos pormenores interessantes.
Às 20 horas em ponto os jornalistas apresentaram-se no Palácio da Justiça e foram introduzidos isoladamente nas salas onde os réus tinham conferenciado com os seus advogados e tido o último encontro com as famílias. Tiveram de assumir o compromisso de não abandonarem o local e não verem ninguém antes do termo da execução. Depois o coronel Andrews convidou-os a visitarem a prisão obrigando-os a prometerem que o fariam em silêncio absoluto.
Descem por uma estreita escada de ferro para um corredor banhado em penumbra. Só estão acesas potentes lâmpadas em frente de onze portas, e a sua luz é dirigida para o interior das celas por reflectores. São as celas dos condenados à morte. São ininterruptamente vigiados por soldados.
Os jornalistas passam diante de todas as celas e lançam uma vista de olhos pelo postigo.
A primeira cela é a de Keitel. Está a fazer cuidadosamente a cama.
Ribbentrop, bem alumiado pela lâmpada, conversa com o pastor.
Jodl escreve, sentado à mesa, de costas voltadas para a porta. A mesa está cheia de papéis e livros.
Goering parece dormir. Frick lê, embrulhado no cobertor. Kaltenbrunner também está a ler. Streicher dorme. Sauckel caminha nervosamente de um lado para o outro, Funk fuma um charuto. Rosenberg dorme. Seyss-Inquart faz tranquilamente a toilette antes de se deitar.
Às 21 e 30 a ligeira vibração de um gongo anuncia o recolher obrigatório. Apagam-se as luzes. Escuridão completa.
O coronel Andrews conduz os jornalistas através do pátio até ao fundo do jardim onde há uma pequena construção de pedra. Três cadafalsos pintados de verde-escuro erguem-se lá dentro. Chega-se lá transpondo doze degraus. Cordas grossas pendem de roldanas de ferro. Junto às duas forcas há correias e cogulas que no último momento serão enfiadas nas cabeças dos condenados. Ao pé da terceira forca não há acessórios. O coronel Andrews explica que é uma forca «de reserva».
Às 23 horas os jornalistas foram levados para as respectivas salas e foi-lhes dito para esperarem, o que fizeram durante cerca de duas horas. À meia-noite e cinquenta e cinco foram para junto do cadafalso, a três ou quatro metros.
O primeiro a ser trazido foi Ribbentrop. Completamente prostrado, tem grande dificuldade em pronunciar o seu nome. O pastor reza uma breve oração e logo a seguir consuma-se a execução.
O sargento Wood faz o seu trabalho na perfeição e despacha em hora e meia todos os grandes criminosos de guerra condenados à morte. Os seus cadáveres, transportados depois para Munique, foram aí incinerados e as cinzas espalhadas ao vento. Quanto a Rudolf Hess, Walter Funk, Karl Doenitz, Erich Raeder, Baldur von Schirach, Albert Speer e Konstantin von Neurath, foram para Spandau cumprir a pena.
A sombria fortaleza de Spandau, em Berlim-Oeste, bastante grande para poder albergar centenas de detidos, tornou-se local de reclusão de sete grandes criminosos de guerra. Foi aí instituída uma administração quadripartida; a guarda, rendida todos os meses, era sucessivamente soviética, americana, inglesa e francesa.
Os prisioneiros foram inscritos. Rudolf Hess ficou com o n° 7, Baldur von Schirach com o n° 1. Hess não gostou disso. Tal como Goering no banco dos réus, ele brigava por assumir o papel de Fuhrer na prisão. Que injustiça relegar para último lugar aquele que tinha sido adjunto de Hitler na liderança do partido nazi!
Assinalei já que no decurso do processo Hess tinha, por mais de uma vez, sido levado da sala de audiências por doença. Dizia-se que tinha um cancro no estômago. Confesso que ao ver como ele se contorcia não tinha de modo nenhum a certeza de que isso fosse simulação. O cancro é um terrível mal que, quanto a fronteiras, só conhece as do tempo. Foi só depois de lhe ter sido atribuído vexatoriamente o n° 7 que sua excelência o Reichsminister se começou a queixar de dores de estômago mais frequentes. Os médicos dão-lhe injecções. Hess está convencido de que é morfina, mas é só água esterilizada. Depois de cada injecção, depressa adormece.
Os criminosos hitlerianos encarcerados beneficiaram da solicitude dos seus amigos estrangeiros. Como salienta Jack Fishman no seu livro Os Sete de Spandau, era só durante o mês de guarda atribuído aos soviéticos que os presos eram impedidos de fazer mal ao mundo dedicando-se à sabotagem política. Fishman fala das suas reiteradas tentativas de suscitarem e atiçarem o neonazismo na Alemanha e cita nomeadamente uma carta de Doenitz escrita na prisão. Endereçada à sua mulher, essa missiva era na realidade destinada aos companheiros de ideias do grande-almirante e sugeria-lhes a maneira de remilitarizarem o país.
A revista inglesa New Statesman and Nation pôs de bom grado as suas páginas à disposição da propaganda malfeitora dos hitlerianos detidos, bem como às iniciativas feitas a seu favor. Houve na Inglaterra almas caridosas que inundaram a redacção da revista de cartas de simpatia para com os «prisioneiros de Spandau». Uma lady, que apesar de tudo decidiu manter-se no anonimato, fez publicar uma carta sua à senhora Neurath assegurando-lhe as suas simpatias em relação ao marido e informando o mundo que o governo inglês desejava vê-lo libertado o mais depressa possível. O autor de análoga mensagem, endereçada à senhora Doenitz (cujo esposo se dedicara durante a guerra a afogar marinheiros ingleses, coisa de que não se tinha saído nada mal) afirmava peremptoriamente:
«O seu marido é uma vítima da actual situação política».
E para dissipar as últimas dúvidas quanto ao credo desta revista que tomava a defesa do nazismo, trarei à liça uma terceira carta, contendo exigências nada menos que ambíguas:
«A concepção dos crimes de guerra alemães deve ser retirada dos arquivos históricos. Desde que o bolchevismo é reconhecido inimigo da civilização ocidental, o exército alemão deve ser reabilitado...»
As mulheres dos grandes criminosos de guerra reclusos também não ficaram inactivas. Elsa Hess, por exemplo, publicou um livro intitulado Inglaterra — Nuremberga — Spandau. O seu cônjuge entrega-se aí às doces recordações da estadia nas Ilhas Britânicas.
«O duque de Hamilton...velou por que eu fosse transferido para um hospital militar. (Hess tinha-se ferido numa perna ao aterrar). Era no campo, num admirável recanto da Escócia».
Seguidamente vêm enumeradas no livro as soberbas vivendas onde Hess residiu depois do hospital. Detenhamo-nos um pouco sobre esta idílica cena:
«O oficial destacado para a minha guarda, músico na vida civil, tocava Mozart para mim. Dava longos passeios a pé e por vezes excursões de automóvel».
Os soldados ingleses que corajosamente se batiam na Europa contra as hordas nazis alguma vez desconfiavam de que, na terra deles, se acarinhasse a tal ponto o adjunto de Hitler?
Os anos foram passando. O processo de Nuremberga está concluído. Foram mortos os grandes criminosos de guerra. Segundo as leis — humanas e divinas — Hess deveria ter sido enforcado juntamente com eles. Era o que reclamava o juiz soviético. Mas os juízes ocidentais opuseram-se a isso. Ei-lo pois em Spandau, numa situação em que, na verdade, não tem razão de queixa. Em 12 Fevereiro de 1950 escreveu à mulher:
«Chegam-me através da janela ecos de Parsifal. Era Funk que estava a tocar harmónica... Havia Bach, um admirável concerto de Mozart, Schubert. Maravilha! Ao ouvir esta requintada música parecia estarmos em comunhão com Deus».
Pelos vistos existem também canibais melómanos! Já falei da orquestra formada pelos melhores músicos da Europa que o chefe do campo de Auschwitz possuía. Esses infelizes, vestidos com as fardas de prisioneiros, deleitavam o seu torcionário e a matilha dos seus assassinos quando estes, terminado o seu «dia de trabalho», voltavam a casa ainda laivados do vermelhão das chamas devoradoras do crematório. E o famoso carrasco Heydrich? Também ele passava por ser, entre camarilha nazi, um fervoroso, melómano. E Eichmann? Mais um que gostava dos interlúdios musicais entre as fornadas dos crematórios.
A música e o nazismo...que horrível paradoxo, que monstruosa incompatibilidade!
Será pois de estranhar que Rudolf Hess, sinistra personagem do regime nazi, se embevecesse ao ouvir Funk tocar Mozart e Schubert? Mas como está já longe tudo isso! Funk deixou Spandau em 1957, após onze anos de reclusão.
Em 1954 as autoridades aliadas indultaram Neurath, então como 81 anos. Libertado depois de ter cumprido a maior parte da pena, vindo a falecer dois anos mais tarde.
Em 1958 Raeder foi libertado com a idade de 80 anos. Doenitz, seu sucessor no cargo de comandante-chefe da Marinha hitleriana, cumpriu os seus dez anos de prisão (até 1956).
Durante alguns anos, a prisão gigante de Spandau continuou a servir de residência aos três restantes detidos: Hess, Speer e Schirach. Os dois últimos saíram em 1966. Hess suicidou-se na prisão em 1987.
A justiça foi bastante clemente para com estes criminosos, visto que lhes poupou a vida. Mas os seus nomes, bem como os dos outros condenados de Nuremberga, foram amaldiçoados pela humanidade. Tornaram-se sinónimos de barbárie, de canibalismo.
Os anos foram passando. Os povos acalentam a esperança de que, a terrível lição da Segunda Guerra Mundial seja proveitosa e que a tragédia nunca mais se repita. A firme política da URSS, de que cada passo visa prevenir o renascimento do militarismo e do fascismo, é uma boa garantia da paz, bem como as intervenções de estadistas sensatos do Ocidente.
Em 24 de Dezembro de 1943 o presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt, declarara:
— Após o armistício de 1918 pensávamos e tínhamos esperança de que o espírito do militarismo alemão fosse extirpado. Influenciados pela «piedade», passámos os quinze anos seguintes a desarmar, enquanto os alemães soltavam gritos tão lancinantes que os outros povos lhes permitiram que eles se rearmassem e até os ajudaram nisso. As tentativas bem intencionadas mas infelizes dos anos transcorridos verificaram-se terem sido funestas. Espero que as não repitamos. Não, a expressão é demasiado fraca. Como presidente e comandante supremo das Forças Armadas dos Estados Unidos, espero fazer tudo o que é humanamente possível para evitar que este erro trágico se volte a reproduzir».
Os documentos do processo de Nuremberga continuam até hoje a ser uma arma eficaz na luta pela paz, contra a agressão. Seria prematuro encerrá-los nos arquivos.
Disse já que o processo devia ser, e veio a sê-lo, uma linha de demarcação na história do Direito Internacional. O veredicto do Tribunal Internacional ajustou contas com os maiores criminosos de guerra e, o que é ainda mais importante, pôs termo à impunidade da agressão e dos agressores.
Nas rudes jornadas de Outubro de 1917 todo o mundo teve conhecimento do célebre Decreto do Poder Soviético sobre a Paz, em que Lénine escrevera pelo seu próprio punho que a guerra de agressão é «o pior dos crimes contra a humanidade». Julgava estar a ouvir estas palavras na sala de audiências em Nuremberga, no momento em que lia o veredicto, que traduziam exactamente o princípio leninista da punibilidade da agressão.
Friedrich Engels salientou um dia que estava na natureza da burguesia
«falsificar toda a mercadoria: ela falsificou também a história. A obra mais bem paga é aquela em que a falsificação da história melhor responde aos interesses da burguesia».
Como meios de falsificação vamos encontrar montes de livros de diferentes cores (azuis, vermelhos, etc.) em que homens de Estado burgueses apresentam por conveniência e na ordem que lhes agradam documentos destinados a justificar a sua política e a atirar para cima de outrem a responsabilidade dos conflitos internacionais. Contrariamente a essas «provas documentais» fabricadas, o processo de Nuremberga é uma fonte segura da história da Segunda Guerra Mundial. Trouxe para a luz do dia os documentos mais secretos de um Estado agressivo, todos os seus arquivos, revelou aos povos de todo o mundo a maneira como os militaristas alemães prepararam a guerra.
O Tribunal Internacional de Nuremberga julgou apenas os grandes criminosos de guerra alemães. Estava previsto que os criminosos hitlerianos de grau inferior seriam condenados noutros processos. Mas as potências ocidentais preferiram salvá-los e fazer deles, seus aliados. Foi assim que a Bundeswehr teve como chefes Heusinger, Kammhuber, Speidel e outros generais hitlerianos. E para que essas nomeações não indignassem a opinião pública, os grandes da NATO esforçaram-se por branquear a reputação desses fiéis lacaios do nazismo, por negar a sua participação nas atrocidades do regime hitleriano, por disfarçá-los até de encarniçados inimigos de Hitler. E a propaganda imperialista teria talvez atingido os seus fins se não tivesse contra ela a memória humana, os montões de cadáveres, as cidades em ruínas, os gemidos das vítimas de Babi Iar e Maidanek. Em suma, tudo o que, no silêncio angustiante das audiências do Tribunal Internacional, se transformava em reveladores documentos históricos.
Estão bem vivos, os materiais do processo de Nuremberga! Foi o que já sentiram na pele Erich Koch, torcionário da Polónia e da Ucrânia, Oberlander que cometeu inomináveis crueldades nos territórios soviéticos ocupados, Adolf Eichmann, que tinha na consciência o peso da morte de seis milhões de judeus. Koch e Eichmann foram julgados e condenados à morte na base dos documentos do processo de Nuremberga. Oberlander, que se insinuara no governo de Bona como ministro, foi para a reforma, tendo Adenauer sido obrigado a destituí-lo sob pressão dos documentos do processo de Nuremberga. A luz deste projector incidia desde há muito sobre um outro ministro alemão ocidental: Hans Globke. Em 1963 o Supremo Tribunal da RDA condenou à revelia esse grande criminoso de guerra hitleriano, e as provas reunidas contra ele obrigaram Bona a despedi-lo. Algum tempo depois, um dossier entregue a Bona pelo Ministério Público da RDA forçou o novo chanceler federal Erhard a destituir do seu cargo ministerial o hitleriano Krueger.
A vitalidade dos materiais do processo de Nuremberga teve igualmente repercussões no senhor Wilhelm Krankel, procurador-geral da República Federal da Alemanha. Também ele tinha sido nazi, alto funcionário do supremo tribunal de justiça criminal de Leipzig no regime hitleriano.
É deste modo que o processo de Nuremberga continua a assestar os seus golpes aos inimigos da paz e da democracia. Os procuradores e os juízes do Tribunal Internacional de modo nenhum procuraram desmascarar o capitalismo no seu conjunto. Isso não era possível pela simples razão de que das quatro potências representadas no Tribunal, três eram capitalistas. Mas a lógica da história e de um julgamento público é tal que os juízes e procuradores burgueses, as testemunhas e os réus, quaisquer que sejam as suas ideais e intenções, são obrigados, face às avassaladoras provas, a fazer depoimentos e confissões que comprometem gravemente todo o sistema do capitalismo.
A autópsia do Estado hitleriano no processo de Nuremberga revelou uma vez mais aos povos da terra a ferocidade do imperialismo e dos seus inseparáveis acólitos: agressão e reacção. Nunca até então, ao que parece, as chagas do mundo capitalista tinham sido tão completamente postas a nu.
Tratava-se, antes de mais, de um processo internacional, sem precedentes na história. Era preciso coordenar os diferentes sistemas de Direito: o do continente europeu e o dos anglo-saxões. Mas, sobretudo, tratava-se de encontrar uma linguagem comum para os sistemas judiciais soviético e burguês, elaborar princípios políticos e jurídicos de cooperação. O Tribunal Internacional ia ser o primeiro a declarar a criminalidade da agressão. Teria de evitar os escolhos de uma situação internacional em mutação, de impedir que os elementos mal-intencionados semeassem a discórdia entre a delegação da URSS e as dos países ocidentais.
Estas complexas questões foram bem resolvidas, e definitivamente. Apesar de certos defeitos do veredicto, salientados na declaração de voto do juiz soviético, pode dizer-se que o processo de Nuremberga decorreu sob o signo da unidade das quatro potências: URSS, EUA, Grã-Bretanha e França. O perigo que ameaçara a humanidade uniu no seio do Tribunal Internacional, como nos campos de batalha, homens de diversos países e continentes, representantes de diversos sistemas sociais.
É por isso que o processo de Nuremberga foi considerado em todo o mundo como um Julgamento dos Povos, um Julgamento da Humanidade, chamado a consolidar a segurança internacional, a valorizar a união dos homens na luta pelo que eles de mais precioso possuem: a Paz.
O veredicto de Nuremberga é uma espada de Dâmocles suspensa sobre a cabeça dos que de novo tentarem perturbar a paz dos povos e precipitá-los numa, outra guerra.
Depois da leitura do veredicto, quando já todos tinham abandonado a sala de audiências, um jornalista francês fotografou o banco dos prisioneiros, vazio. No dia seguinte veio oferecer-me uma cópia da sua foto. Ambos a olhámos. Parecia dizer:
— Retenham bem as lições da História, meus senhores! Não esqueçam nunca Nuremberga!
Notas de rodapé:
(25) Um dos protagonistas das tragédias de Shakespeare Henrique VI e Ricardo III. Jackson cita um diálogo de Ricardo III entre Gloucester e a viúva de Henrique VI. (retornar ao texto)
Inclusão | 16/09/2015 |
Última atualização | 05/04/2016 |