Processo de Nuremberga

Arkadi Poltorak


V - A Sinistra Carreira de um Advogado Vienense


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Tudo se explica

Quando entrei pela primeira vez na sala de audiências, perguntei a mim próprio, ao abarcar com os olhos o banco dos réus, se a quadrilha dos grandes criminosos de guerra da Alemanha hitleriana se reduzia àquelas duas dezenas de indivíduos. Estava lá Julius Streicher, mas não Schwerin von Krosigk. Por mais repugnantes que fossem Streicher e as suas acções, não parecia ter ocupado na hierarquia nazi um lugar tão importante como o do ministro das finanças. Via Fritzsche, mas não Kesselring nem Rundstedt. Fritzsche, um dos organizadores da propaganda canibal nazi, merecia com certeza ser julgado e punido, mas no primeiro processo dos grandes criminosos de guerra alemães eu teria preferido ver os dois marechais-de-campo. Porque sem eles Hitler não teria podido aceder ao poder, nem preparar a Wehrmacht para a guerra, nem varrer as fronteiras de tantos Estados vizinhos, nem destruir-cidades florescentes.

Dei parte das minhas reflexões a Trainine, que tinha contribuído em nome da URSS para a elaboração do acordo sobre o julgamento dos grandes criminosos de guerra. E ele deu-me uma explicação a que nós, juristas, chamamos autêntica. As Potências Aliadas tinham decidido que no primeiro processo de grandes criminosos de guerra o banco dos réus devia representar todas as engrenagens do Estado nazi. Era necessário lá sentar os principais dirigentes da Alemanha hitleriana (Goering, Hess), os chefes da diplomacia (Ribbentrop, Neurath), o Alto Comando da Wehrmacht (Keitel, Jodl, Doenitz, Raeder), o topo dos ideólogos nazis (Rosenberg, Streicher) e os que dirigiram a preparação económica da guerra de agressão (Schacht, Funk, Speer), e os que tinham feito reinar um regime desumano nos países ocupados (Frank, Seyss-Inquart).

Desculpem, poderia dizer alguém que entrasse na sala no início do processo, onde estão então os representantes dos organismos punitivos do Terceiro Reich? Onde estão os manda-chuvas de sinistras instituições como as SS, o SD, a Gestapo? Onde estão eles?

Himmler está ausente.

Na lista oficial dos arguidos que devem comparecer perante o Tribunal Internacional figura o nome de Ernst Kaltenbrunner, braço direito de Himmler. Mas ele também não está lá.

Após a morte de Himmler era a Kaltenbrunner que cabia o primeiro lugar no banco dos réus como representante dos repressores do Terceiro Reich. Porque foi ele quem tomou em mãos, depois de Heydrich, a direcção do Serviço Central de Segurança do Reich (RSHA) de que dependiam a Gestapo, o SD e a Polícia Criminal.

Kaltenbrunner foi preso, isso ninguém o ignora. Mas por que não o introduzem na sala? Teria seguido o exemplo do seu superior? Mais uma negligência da guarda?

Não, não! É bem mais simples: o ex-chefe RSHA, acometido de leve congestão cerebral, foi hospitalizado e faz-se transportar numa cadeira de rodas em vez de estar sentado no banco dos réus. Cruel e arrogante no tempo do seu poderio, mostrou-se cobarde na derrota e nem sequer foi capaz de suportar as durezas da detenção. Mal Kelley, o médico da prisão, transpunha a porta da sua cela, logo ele se atirava a ele soluçando de terror.

Era singular ver esse homenzarrão ossudo com mais de 1 metro e 80 de altura, de pesada mandíbula quadrada, em busca de consolo junto ao médico. Menos de seis meses antes ele nem reparava nas lágrimas que corriam de milhões de olhos, não ouvia gemer e soluçar milhões de seres humanos.

Sim, não há muito tempo ainda que Ernst Kaltenbrunner era um sátrapa que com um gesto, uma palavra, fazia perecer multidões. Pouco antes do seu suicídio Hitler investiu-o de novos poderes ao nomeá-lo comandante da região fortificada dos Alpes cuja sede era Altaussee. A região fortificada não passou de um projecto. O Fuhrer, que contava entrincheirar-se aí enquanto esperava que a situação melhorasse, preferiu finalmente matar-se. Mas Kaltenbrunner não o imitou. Pelo contrário, estava decidido a fazer os possíveis, e até os impossíveis, por prolongar a sua existência neste inconstante mundo.

Para começar, mandou instalar na hospedaria «Am See» um hospital para os SS feridos. A sua intenção era «perder-se» no meio deles antes da chegada dos Aliados. O médico particular do Obergruppenfuhrer, que tinha conseguido insinuar-se entre o pessoal do hospital, devia camuflá-lo e seguidamente fazer-lhe uma operação plástica. Na previsão de grandes mudanças, Kaltenbrunner tinha adoptado um nome falso e escondido a cara debaixo de ligaduras.

Mas em breve constatou que o sítio era pouco seguro e fugiu para as montanhas a coberto da noite, acossado por um medo pânico. No dia seguinte, por volta do meio-dia, quase sem forças, atingiu uma cabana de floresta que foi o seu último refúgio. Foi aí que uma patrulha americana o capturou. Supõe-se que esse encontro se deveu a um dos seus acólitos, verdugo Otto Skorzeny, que o denunciou para salvar a própria pele.

Foi portanto nas veredas geladas dos Alpes, numa cabana coberta de neve, que o chefe da Gestapo e das outras instituições repressivas hitlerianas transpôs a última etapa antes de Nuremberga, cuja estrada só tinha uma placa de sinalização: a forca.

O Inquisidor promete «Dizer a Verdade»

Kaltenbrunner no seu último carro de combate
Hans Kaltenbrunner no seu último carro de combate
(clique na foto para maior resolução)

A 10 de Dezembro Emst Kaltenbrunner tomou finalmente assento no banco dos réus, à esquerda de Keitel.

Já falei da recepção que lhe reservaram os seus companheiros da véspera, decididos a espantar o Tribunal ao desviarem-se ostensivamente do mestre-carrasco.

Claro que Kaltenbrunner não era tão estúpido que se iludisse sobre o sentido desse procedimento. O seu abatimento degenerou em depressão total. Mas não tardou a recompor-se, e a táctica que adoptou manteve-se imutável até ao fim do processo.

O velho finório encetou o seu discurso por uma declaração geral. Que os juízes não fossem pensar que ele não tinha consciência da precaridade da sua posição.

— Queria em primeiro lugar declarar ao Tribunal — disse ele — que estou plenamente consciente da gravidade das acusações contra mim imputadas. Sei que o ódio do mundo é contra mim que está voltado; que sobretudo depois de Himmler, Heydrich e Pohl morrerem, sou eu sozinho quem deve responder perante este Tribunal e perante o mundo. Sei que devo exprimir aqui a verdade para permitir ao Tribunal e ao mundo constatarem e compreenderem o que se passou no Reich durante esta guerra e disso extraírem um juízo equitativo...

Esta arenga impressionou. Depois de ter ouvido os depoimentos de Goering, de Ribbentrop e de Keitel, que se esforçaram por alterar a verdade histórica e negaram factos evidentes recorrendo a meios indignos, a atitude de Kaltenbrunner prometia algo de novo nos debates. Promessa vã...

Já passaram os meses de intensidade do processo de Nuremberga. Foram interrogados réus e testemunhas, apresentados inúmeros documentos. Depois, como em todos os tribunais, os inculpados tiveram o direito de fazer a sua última declaração. O microfone foi posto à disposição de Kaltenbrunner que queria «exprimir a verdade» para que o julgamento fosse equitativo:

— O Ministério Público torna-me responsável pelos campos de concentração, pelo extermínio das populações judias, pelos Einsatzgruppen e por outras coisas mais. Tudo isso não corresponde nem à apresentação das provas nem à verdade...

Abusando sem vergonha de paciência do Tribunal e do Ministério Público, ele esforça-se por «demolir» os fundamentos da acusação:

— Contrariamente à opinião divulgada, afirmo de modo peremptório que não tive conhecimento das actividades de Himmler... Estive muito enganado sobre a questão dos judeus... Nunca favoreci o seu extermínio biológico...

Kaltenbrunner afirma aos juízes do Tribunal Internacional que depois de ter sabido dos «abusos cometidos na Gestapo» (que tivesse havido coisas mais graves, disso ele nem sequer desconfiava!), ele quis logo demitir-se e partir para a frente. Mas Hitler rejeitou o seu pedido... Para não parecer demasiado ingénuo negando pura e simplesmente os seus crimes, o ex-chefe RSHA usa de outro método:

— Depois da derrocada do Império vejo que me enganaram.

Kaltenbrunner não contesta o facto de milhões de seres humanos terem sido suprimidos pelos nazis, mas amaldiçoa essa política e o seu único voto neste grande processo é o de que a humanidade conheça um futuro melhor.

— Aplaudo de todo o coração — diz ele — a ideia de que a exterminação dos povos deve ser estigmatizada como perversidade por um acordo internacional e que deve ser severamente punida!

Poder-se-ia acreditar, ao ouvi-lo, que até então tinha sido permitido massacrar milhões de homens, que o assassínio de um só indivíduo não era um crime grave segundo todos os códigos penais, incluindo o código alemão.

Mesmo no final, Kaltenbrunner derrama mais uma lágrima: se o acusam com tanta dureza hoje é

«porque o consideram o representante de Himmler e de outros elementos que lhe são estranhos».

Que se podia pensar depois de ouvir as primeiras declarações do Dr. Kaltenbrunner e esta última? Ele esperava fazer crer na pureza da sua alma, na nobreza das suas aspirações, em suma, no seu álibi. Tinha-se falado muito no Tribunal dos crimes das SS e da Gestapo. Mas como admitir que um homem que era filho de advogado e que tinha ele mesmo abraçado esta generosa carreira, estivesse misturado a estes horríveis crimes? O seu pai, Hugo Kaltenbrunner, estimado advogado vienense, tinha consagrado (não sem êxito!) muitos esforços para lhe inculcar o respeito pela lei e pelos direitos do cidadão.

Tal era o auto-retrato do chefe da Segurança do Reich. Mas o seu verdadeiro rosto era totalmente diferente. Não tinha qualquer dos atractivos de que o disfarçava em Nuremberga o advogado de Viena transformado em carrasco em Berlim. Múltiplas provas deram aos juízes do Tribunal Internacional uma opinião do Dr. Kaltenbrunner que infelizmente diferia absolutamente da sua própria. De tal maneira que o Tribunal preferiu desembaraçar a humanidade deste «carrasco diplomado», como um dia o qualificara Schacht.

Assinalei já que Kaltenbrunner era talvez o réu mais «complicado» de Nuremberga. Não que a sua culpabilidade fosse mais difícil de provar do que a de, suponhamos, Goering ou Keitel. Longe disso. O Ministério Público não teve grande dificuldade em apoiar com provas convincentes a sua inculpação. Isso era evidente para toda a gente, inclusive para o réu. Ele sabia que o seu caso tinha sido examinado com cuidado. Como chefe do RSHA, achava até bizarra essa preocupação de recolher as provas. O próprio ambiente de um julgamento regular, de um processo público, era coisa que a ele parecia inusitada.

A sua situação, em certo sentido, era mais delicada que a de Goering ou de Ribbentrop, de Hess ou de Schacht. Estes eram acusados, em primeiro lugar, de agressão, de crimes contra a paz. Tinham a possibilidade de polemizar (nomeadamente sobre a questão de saber se a guerra de agressão é um crime no momento em que é preparada). Réus e defensores podiam baralhar as coisas na esperança de despistar os juízes. Tinham condições favoráveis para arquitectarem um sistema de responsabilidade partilhada, invocando Munique e a política das potências ocidentais.

E Kaltenbrunner? O seu nome está estreitamente ligado a Auschwitz e Maidanek, a Treblinka e Dachau. Aqui é quase impossível discutir. É «sim» ou «não». Não há meio termo. Por isso o Dr. Kaltenbrunner, cujo mais ardente voto é o de sobreviver ao julgamento de Nuremberga, faz a sua opção. Persuadido de que, constituindo-se culpado, mais não faria do que apressar o desenlace fatal, decide negar tudo. No seu entender será essa a única tábua de salvação.

Uma vez que enveredou por esta via, Kaltenbrunner chama à liça toda a sua experiência de advogado burguês. Dá-se início à luta. Mas não se pode dizer que nessa luta o arsenal da Defesa seja muito abundante.

O interesse do Tribunal Internacional pelos pormenores genealógicos de Kaltenbrunner era medíocre. Não obstante, o réu espraiou-se demoradamente na descrição da sua vida na Áustria — a banal vida de um burguês, da sua educação no seio da família de um «campeão do direito e da legalidade», da sua actividade no Foro de Viena.

E o Ministério Público? Sem esquecer completamente o período vienense do passado de Kaltenbrunner, só escolheu desse período os episódios que melhor caracterizavam o futuro chefe da Segurança do Reich e que Kaltenbrunner preferiu omitir «para abreviar o processo». Os procuradores evocaram sucintamente (para abreviar o processo, bem entendido) que em 1934 o doutor Kaltenbrunner tinha experimentado a prisão por ter participado numa conspiração nazi contra o governo Dollfuss e que em 1935, sendo chefe das SS austríacas, viu ser-lhe proibido o exercício da sua profissão.

A estrela do advogado vienense só sobe em flecha após o 12 de Março de 1938. Quando Hitler conseguiu decapitar a República da Áustria, o doutor Kaltenbrunner foi nomeado secretário de Estado da Segurança do gabinete Seyss-Inquart. Algumas horas depois do Anchluss, cumprimentava Hitler no aeroporto de Viena e assegurava-lhe calorosamente que «as SS austríacas esperavam as suas ordens».

Em recompensa dos seus serviços, o Fuhrer promoveu-o a Brigadenfuhrer, depois a Gruppenfuhrer.

Ele não gostava da Carreira Policial

Janeiro de 1943 foi o marco principal da sua carreira. Os patriotas checos tinham matado Heydrich alguns meses antes, e Hitler nomeou o seu compatriota chefe do RSHA.

Quando o Ministério Público chegou a esta nomeação, o réu apressa-se a «esclarecer» os juizes do Tribunal Internacional sobre o papel que efectivamente desempenhou neste novo cargo. O RSHA, ao que parece, compreendia a Gestapo, o SD, a Polícia e o serviço de informações. Kaltenbrunner pretende ter aceitado dirigir esta instituição sinistra com a condição de ele mesmo só se ocupar das informações (o ex-advogado não gostava da palavra «espionagem»). Certifica aos meritíssimos juízes que ao assumir as suas funções ele declarou inequivocamente a Himmler a sua aversão pelos «poderes executivos» (Gestapo, Polícia, SD):

— A política com a qual Himmler e Heydrich tinham já desacreditado o Reich não seria prosseguida a meus cuidados. O meu nome, a minha honra e a minha família eram-me sagrados demais para que pudesse permitir-me isso.

Teria sido pois o serviço de informações, e nada mais que isso, a constituir o modesto campo de acção de Ernst Kaltenbrunner. Quanto ao cargo de chefe do RSHA, não passava de mero valor nominal.

Mas Kaltenbrunner sabe que não pode contar com a credulidade dos juízes. Há que dourar a versão. A sua experiência de advogado sugere-lhe a convocação de testemunhas. Uma delas, um alto funcionário cujo nome é Neubacher, «lembra-se» de ter ouvido Kaltenbrunner dizer-lhe que tinha recusado por três vezes dirigir o RSHA antes de se submeter à ordem formal que lhe tinha sido dada.

Kaltenbrunner fez-me saber — declara Neubacher — que não gostava da carreira policial, que não percebia nada disso e que se interessava pelas questões de política estrangeira.

Lord Lawrence observa que a pretensa repugnância de Kaltenbrunner pelas suas funções nada altera ao facto de ele as ter exercido, mas o réu e o seu defensor teimam na sua táctica. Uma outra testemunha de defesa, Wilhelm Hoettl, colaborador do chefe do RSHA, diz ao Tribunal pouco mais ou menos a mesma coisa que Neubacher.

Kaltenbrunner não conhecia os problemas da polícia e não se ocupava deles. O serviço de informações ocupava toda a sua atenção, sobretudo no que respeita à sua actividade no estrangeiro.

Seja como for, Kaltenbrunner acedeu em dirigir os Serviços Centrais de Segurança do Reich. E nas suas primeiras declarações ao Tribunal reconhece ter estado ao corrente das acções de Himmler e de Heydrich, que tinham «desacreditado» o Reich.

Foi perguntado ao réu por que é que ele, a quem o nome, a honra e a família eram «sagrados demais», tinha aceitado assumir a direcção dessa hedionda instituição, e por que não se tinha ele demitido depois de ver com os seus próprios olhos todos os crimes. A resposta era em muito parecida à que no seguimento deram Frank, Rosenberg, Schacht. O grande inquisidor mascarado de santo arengou ao Tribunal:

— A questão mais aguda que eu tinha a resolver era a seguinte: a situação vai melhorar...ou não, teria eu o dever, mantendo-me no meu posto, de tudo fazer para continuar a mudar a situação? Considerando a possibilidade que me tinha sido dada de agir sobre Hitler, sobre Himmler e sobre muitas outras pessoas, a minha consciência não permitia que abandonasse o meu cargo. Achava ser meu dever opor-me pessoalmente às injustiças cometidas.

«Sorriam, indignem-se tanto quanto queiram — parecia ele querer dizer com toda a sua atitude — mas não é menos verdade que foi só a preocupação pelas vítimas da tirania de Hitler que me levou a ficar à cabeça da Gestapo».

Na sua teimosia de se apresentar como anjo-da-guarda, Kaltenbrunner conta ter resolutamente combatido o «Kugelbefehl», decreto de Hitler que ordenava a execução dos prisioneiros de guerra.

— Respondi a Himmler que esse decreto do Fuhrer me indicava uma vez mais que os princípios mais elementares da Convenção de Genebra estavam a ser violados... Pedi-lhe para intervir junto do Fuhrer e entreguei um projecto de carta a Hitler, na qual Himmler pedia ao Fuhrer que anulasse o decreto.

Espantoso. Tinha-se a impressão que o processo começara pelas declarações de Kaltenbrunner. Procedia como se não tivesse assistido aos interrogatórios de Goering, de Ribbentrop, de Keitel e de numerosas testemunhas. Ora o Ministério Público já por reiteradas vezes tinha refutado as desajeitadas mentiras desses senhores.

Kaltenbrunner gabava-se, diferentemente dos outros réus, de ser um jurista. Um jurista de cepa. A acreditar nele, os principais litígios entre ele e Himmler provinham do facto a Kaltenbrunner raciocinar e agir como um homem de leis, ao passo que o espírito policial de Himmler detestava a legalidade e não suportava as mínimas alusões ao Direito. Kaltenbrunner vangloriava-se de ter sido o primeiro jurista encarregado de dirigir o RSHA. Mas por azar isso não lhe foi de qualquer proveito!

A implacável ofensiva de documentos e testemunhas começou; durou até o réu ficar entre a espada e a parede. Seria todavia injusto dizer que o Ministério Público o forçou a capitular. Kaltenbrunner travou até ao fim do processo combates de retaguarda desesperados, tal como o haviam feito os SS durante a agonia do Terceiro Reich (resistência tão encarniçada quanto inútil).

De dia para dia, a cada golpe assestado pela Acusação, Kaltenbrunner parecia mais odioso e os, seus meios de defesa mais revoltantes.

Harris, substituto do procurador-geral americano, faz a leitura do testemunho de Hermann Pister. De quem se trata? Kaltenbrunner tê-lo-á esquecido, ou pura e simplesmente o ignora? Não, conhece-o e lembra-se muito bem dele, porque um campo como Buchenwald não se esquece e Hermann Pister foi o seu comandante. Mas Pister é um homem fiel que não lambeu as botas do chefe da Segurança pela boa razão de que este julgava a coisa supérflua... E Willy Litzenberg, chefe do Gabinete do RSHA? Esse trabalhava ao lado de Kaltenbrunner e abria-lhe as portas com a destreza de um lacaio de alto estilo.

Kaltenbrunner espera que eles sejam mais subtis que Bodenschatz e Milch... Desgraçadamente eles revelaram-se ainda mais subtis do que o ex-patrão supunha. As primeiras palavras dos seus testemunhos, lidas por Harris, desiludiram Kaltenbrunner que, como todos os sátrapas, conhecia mal a alma dos seus cúmplices.

Tal como ele, estes só tinham um desejo: salvar a pele custasse o que custasse. E, naturalmente, não pensavam que falsos testemunhos a favor de Kaltenbrunner lhes garantissem a salvação.

Kaltenbrunner pretende não estar minimamente implicado nas ordens de «internamento de protecção» sem mais formalidades nos campos de concentração. Mas Hermann Pister apressa-se a informar o Tribunal de que essas ordens eram assinadas precisamente por Kaltenbrunner. E como chegavam a Pister vindas directamente do RSHA, ele pode lembrar ao patrão que para esse género de ordens existiam mesmo formulários vermelhos especiais.

Willy Litzenberg confirma logo o testemunho do chefe de Buchenwald. Atesta que

«todas as ordens. de internamento de protecção traziam... um carimbo em fac-simile em nome de Heydrich ou de Kaltenbrunner».

E que é Adolf Putger? A esse, Kaltenbrunner não conhece. Mas o pior é que Putger, vigilante do campo de Mauthausen, conhece Kaltenbrunner. Não só pelas ordens escritas sobre a execução dos detidos, mas também de vista: Kaltenbrunner, general das SS e da Polícia, visitou o campo várias vezes. Putger dá os seus sinais: quarenta anos, estatura entre um metro e setenta, e um metro e oitenta, rosto marcado por profundas cicatrizes, recordações dos duelos ao espadalhão que eram o divertimento preferido dos estudantes alemães.

É Kaltenbrunner, sem dúvida alguma. E não compete ao modelo, claro, ser o último a reconhecer a sua efígie.

O Ministério Público tinha apresentado grande número de documentos comprometedores para o ex-chefe do RSHA aquando da instrução preparatória. Mas houve muitos outros que lhe foram apresentados durante os debates, inopinadamente, e aos quais ele devia responder na hora. E isso suscitava a «justa cólera» do doutor de leis:

— Senhor procurador! — gritava. — Agradecia-lhe que não me apresentasse de surpresa situações que se destinam a confundir-me. Mas não me deixarei confundir. Juro-lhe e já lhe jurei que quero ajudá-lo a estabelecer a verdade.

Propósitos vãos... Na realidade Kaltenbrunner atinha-se sempre à sua táctica de manhoso trapaceiro provinciano e no entanto primitivo: negar tudo o que dissesse o Ministério Público. Negar em bloco, negar por meio da reles simulação de falhas de memória, usar de chicana, fingir a virtude ultrajada quando era questão de crimes que gelam o sangue.

O coronel Amen, procurador-adjunto americano, fala da tragédia do ghetto de Varsóvia. Mas vejamos, o que é que o Dr. Kaltenbrunner tem a ver com isso? Uma tragédia, sim, mas Himmler é o único responsável.

O coronel Amen riposta. Refere-se aos testemunhos de Karl Kaleske, ajudante de campo do general Stroop que em Varsóvia comandava as SS e a Polícia. Kaleske afirma que o seu superior tinha recebido de Kaltenbrunner as ordens respeitantes à «operação do ghetto».

Karl Kaleske? Kaltenbrunner nunca ouviu falar desse nome. Conhece Stroop, sim, mas que o dispensem de lidar com os ajudantes de campo dele.

O coronel Amen, meditabundo, folheia sem pressas os papéis do seu dossier e diz muito lentamente:

— Se Stroop estivesse presente, poderia ao menos dizer a verdade sobre este caso do ghetto de Varsóvia?

Kaltenbrunner torce-se no assento e lança um olhar inquieto para a porta pela qual são introduzidas as testemunhas. Cheira-lhe a armadilha. Noutro dia tinha havido essa ruim história de Paulus, que surgiu na sala como por encanto, dois ou três minutos depois de Rudenko ter pronunciado o seu nome. A voz do réu, tão firme e expedita ainda há instantes, amoleceu. Declara com uma desajeitada afectação que ficaria muito feliz por rever Stroop; pelo que disse o senhor procurador, pode supor-se que ele está aqui.

Desta vez não se deu esse milagre. A pergunta do coronel Amen não passava de hábil manobra. Em contrapartida tem nas mãos um depoimento escrito de Stroop, que lê em voz alta observando o réu por cima dos óculos:

«O Obersturmbannfuhrer, Dr. Hahn, comandava nessa altura a Polícia de Segurança de Varsóvia. Não fui eu quem lhe deu essas ordens, tinham partido de Kaltenbrunner em Berlim. Em Junho e Julho do mesmo ano, estava eu e Hahn no gabinete de Kaltenbrunner, e este disse-me que, embora Hahn e eu trabalhássemos juntos, todas as ordens importantes dirigidas à Polícia de Segurança deviam partir dele, de Berlim...»

O réu sabia perfeitamente de que ordens se tratava. Lembrava-se que era segundo as suas directrizes que milhares de pessoas tinham sido massacradas em Varsóvia.

Não contente por se meter neste crime sangrento até ao pescoço, ele forcejou em prol do extermínio de judeus em toda a Polónia.

Smirnov apresenta a prova do Ciclone A
L. Smirnov, vogal da URSS, apresenta
ao Tribunal um objeto de prova material:
"O Ciclone A", com o qual os hitlerianos
exterminaram milhões de pessoas
nos campos de concentração
(clique na foto para maior resolução)

O golpe seguinte foi-lhe assestado pelo vogal soviético Lev Smirnov. Quando este nomeia Krueger, comandante-chefe das SS e da Polícia na Polónia ocupada, Kaltenbrunner anuncia ao Tribunal que Krueger dependia directamente de Himmler; o chefe do RSHA não tinha nada a ver com ele, sempre o considerou um «porco malfeitor» e insistiu para que o corressem do Governo-Geral.

Smirnov tinha de reserva para o mentiroso um curioso documento: o diário de Frank, descrevendo com grande pormenor uma reunião em Varsóvia em que se deliberou sobre a sorte dos últimos judeus ainda vivos na Polónia. Como que de propósito, o autor assinala aí a presença de Kaltenbrunner e Krueger. E depreende-se claramente que este se dirigia ao chefe do RSHA como sendo ele o seu superior imediato.

Kaltenbrunner tenta iludir a questão. Não foi a ele — diz — que Krueger pediu para transmitir a Himmler o relatório das medidas tomadas contra os judeus. Kaltenbrunner acha Krueger horroroso.

Para que o leitor tenha uma ideia mais completa da sua atitude, citemos mais uma passagem da cópia estenografada do processo:

Smirnov. Um momento: por que passava Krueger pelo senhor antes de agir?

Kaltenbrunner. Como secretário de Estado da Polícia no Governo-Geral, ele dependia directamente de Himmler.

Smirnov. Peço-lhe que responda com brevidade: Krueger pediu-lhe que fizesse um relatório a Himmler a esse respeito, sim ou não? É só isto que lhe pergunto.

Kaltenbrunner. Tanto quanto posso lembrar-me, essa reunião era uma reunião de numerosos funcionários da administração e cada um se dirigiu aos íntimos do Fuhrer e de Himmler...

Smirnov. Peço-lhe para responder sim ou não.

Kaltenbrunner. Não sei.

Smirnov. Com que então não sabe? Vou fazer-lhe então outra pergunta.

Presidente (ao réu). Que respondeu à pergunta anterior? (A Smirnov). Pergunto-lhe qual a sua última questão... Faça uma pergunta e tente obter uma resposta dele.

Era fácil de dizer! O Dr. Kaltenbrunner, quando no seu interesse, excede-se na maneira de fazer rodeios.

O ex-chefe do RSHA apara o melhor que pode os ataques de Smirnov. Sabia que o mais terrível está para vir. Porque o papel principal no extermínio de milhões de homens cabia aos campos de concentração hitlerianos, e Kaltenbrunner é acusado de ter não só conhecimento de todo o programa dos massacres mas também de ter, juntamente com outros, dirigido a sua concretização. Sabe que o Ministério Público dispõe de testemunhos comprovativos das suas visitas aos campos da morte e da sua assistência às execuções. Mas não é assim tão simples levá-lo a confessar.

— Os testemunhos a esse respeito são totalmente falsos — declara ele sem pestanejar. Himmler ter-lhe-ia efectivamente proposto uma ou duas vezes que o acompanhasse a um campo de concentração. Mas acrescenta Kaltenbrunner — eu nunca participaria numa inspecção desse género, porque sabia muito bem que Himmler teria procedido, comigo da mesma maneira que tinha o hábito de proceder com todos os que convidava para semelhantes visitas: ter-me-ia mostrado «aldeias Potemkine»(19).

Se a sala não recebeu com uma gargalhada homérica este monólogo do «anjo incarnado» Kaltenbrunner que o carrasco Himmler tinha tentado induzir em erro, foi porque os campos nazis não davam para rir.

A 11 de Abril de 1946 é Gilbert quem fala a Kaltenbrunner dos assassinatos em massa cometidos nos campos de concentração.

— Posso provar que não tenho nada a ver com isso — grita Kaltenbrunner. — Não dei essas ordens e também não as executei. Não faz ideia do modo como essas coisas eram mantidas em segredo, mesmo para mim.

— Francamente — replica Gilbert — duvido que haja muita gente que possa acreditar que o chefe do RSHA não tenha tido nada a ver com os campos de concentração nem tenha tido conhecimento do programa de assassinatos em massa.

— Isso é propaganda dos jornais! — indigna-se Kaltenbrunner.

— Já lhe contei que quando vi a manchete «Feito Prisioneiro o Especialista em Câmaras de Gás» e que um tenente americano me explicou o seu conteúdo, fiquei pálido de espanto. Como podem eles dizer semelhantes coisas a meu respeito?! Disse-lhe que não tinha sido encarregado do serviço de informações a não ser em 1943. Foi por isso que os ingleses me quiseram assassinar e não por ter algo a ver com as atrocidades.

Kaltenbrunner não queria, decididamente, abandonar o seu papel de mártir perseguido por um cruel destino.

À medida que o Tribunal tomava conhecimento de novas provas iam caindo dos ombros de Kaltenbrunner os ouropéis sentimentais, pondo a nu aos olhos dos observadores um triste homem transtornado, só preocupado com salvar o seu invólucro carnal.

No entanto o Dr. Kaltenbrunner era de uma refinada boa educação para com os juízes e o Ministério Público, tentando lembrar-lhes que eles tinham na sua pessoa, apesar de tudo, um «colega». Vendo, por exemplo, que todo o pessoal inglês do Tribunal Internacional dava invariavelmente ao presidente o título de «Milord», também Kaltenbrunner se conformou a essa etiqueta, se bem que o velho aristocrata Geoffrey Lawrence não devesse achar do seu gosto essa marca de consideração por parte de um assassino de alto coturno.

Súbitas Metamoforses do Dr. Kauffmann

Com a entrada em liça do Ministério Público começavam para os réus todos os aborrecimentos. Quanto ao interrogatório dirigido pela Defesa, era com certeza a seus olhos a fase mais reconfortante: dele se podia deduzir que o réu estava inocente, ou quase. Mas os aborrecimentos de Kaltenbrunner começaram logo que começou a ser interrogado pelo seu próprio advogado de defesa.

Disse já que a sua táctica se reduzia a negar totalmente o ter tido conhecimento das torturas e assassínios nos campos, sem falar já de cumplicidade. Ora o advogado Kauffmann começou por lhe perguntar se ele estava a par da existência do campo de Auschwitz, onde eram exterminadas as vítimas entregues por Eichmann. Kauffmann exigia respostas lacónicas: «sim» ou «não», o que evidentemente agravava a situação de Kaltenbrunner impedindo-o de recorrer a escapatórias.

Sabia-se bem, em Nuremberga, que Eichmann era uma das mais sinistras personagens da Gestapo, um dos principais executores do programa de extermínio dos judeus. Por conseguinte toda a conivência com ele era uma desvantagem para o réu. O facto é que Kaltenbrunner não se apressa a trazer a lume as suas relações. Teria ficado encantado se pudesse provar que nunca tinha lidado com esse Eichmann, nem na Áustria nem em Berlim, e que mal o conhecia. Só faltava que o seu próprio advogado os viesse agora associar!

— Pergunto-lhe — insiste o Dr. Kaufmann — quando travou conhecimento com Eichmann?

Vai-se sabendo, a pouco e pouco, que Kaltenbrunner não tem qualquer razão de renegar o infame indivíduo, que eles são compatriotas e amigos de juventude. O pai de Eichmann era director de uma companhia de electricidade, e o pai de Kaltenbrunner era jurisconsulto dessa mesma companhia. Eichmann era companheiro de escola dos irmãos de Kaltenbrunner.

A curiosidade do advogado de defesa não tem limites. A sua pergunta seguinte quase atira Kaltenbrunner abaixo:

— Quando ouviu, pela primeira vez, dizer que o campo de Auschwitz era um campo de extermínio? Qual foi a sua atitude a esse respeito?

Mal refeito do espanto, Kaltenbrunner gagueja, invocando Himmler e Heydrich, mas o advogado corta-lhe brutalmente a palavra.

— Responda à minha pergunta. Que atitude assumiu quando ouviu falar disso? Queira responder de maneira breve e precisa.

Era um comportamento singular, o do advogado... Talvez Kauffmann estivesse à espera que o seu constituinte tivesse uma resposta vantajosa a dar. Talvez... Mas via-se bem que Kaltenbrunner não tinha ficado encantado.

Para fugir dos apertos que lhe fazia passar o defensor metamorfoseado em procurador meticuloso, de novo Kaltenbrunner se lança na acrobacia verbal. Mas Kauffmann não lhe dá asas:

— Que fez o senhor, pergunto-lhe pela última vez?

Como situação curiosa, era o máximo. Tolerar uma coisa dessas da parte do Ministério Público, ainda vá que não vá... Mas agora ser encostado à parede pelo seu próprio defensor!

Os outros réus seguem a cena com não dissimulada curiosidade. Goering abana a cabeça com ar de reprovação, sem que se descortine se ele censura a postura tola de Kaltenbrunner ou o comportamento do advogado.

Quanto ao doutor Seidl, é mesmo contra o defensor que ele assesta a sua indignação. Mal foi anunciada uma suspensão de audiência, ele precipita-se para Kauffmann e durante dez minutos fala-lhe com veemência.

Também eu, para falar verdade, fiquei algo surpreendido com a táctica de Kauffmann. A sua última pergunta, em todo o caso, não era a de um advogado de defesa. E que ódio chispava nos olhos de Kaltenbrunner quando olhava para ele! Era como se o seu rosto falasse: «Que pena o Dr. Kauffmann não ter caído nas minhas mãos quando eu era chefe da Gestapo!»

Contou-nos Gilbert que ao almoço Kaltenbrunner lhe disse:

— Vi o coronel Amen perdido de riso. Pode dizer-lhe que o felicito pela vitória que contra mim alcançou ao arranjar-me um advogado tão estúpido.

Voltarei mais adiante a falar da atitude de Kauffmann. Até lá, apenas farei a precisão, para ser justo, que o advogado de Kaltenbrunner foi escolhido por ele mesmo. O coronel Amen não teve nada a ver com isso.

Às sombras de Auschwitz e de Mauthausen

Uniram-se testemunhos e documentos para confundir Kaltenbrunner. Documentos provenientes de arquivos. Testemunhos vindos um pouco de todo o lado. Alguns, de antigos colegas e amigos de réu, talvez tivessem gostado de vir em seu auxílio, porém afundavam-no, tal como os outros, só com a esperança de salvarem a sua própria pele.

Eis Rudolf Hoess, ex-chefe do campo de Auschwitz. Tinha tentado fugir, mas foi detido e metido na prisão. É com o cinismo de assassino profissional que ele fala da superioridade do «seu» campo em relação a um complexo da morte tão atrasado como o foi Treblinka. Aí, por exemplo, eram precisas dez câmaras de gás para exterminar simultaneamente duas mil pessoas, enquanto em Auschwitz bastava uma. Em Treblinka os condenados sabiam que iam morrer.

— Em Auschwitz — explica Hoess em tom sério — tentámos enganá-los levando-os a acreditar que iam ser despiolhados.

Em Auschwitz a própria selecção das vítimas era mais bem organizada. Os deportados chegados no comboio eram em primeiro lugar mandados ao médico que logo ali fazia a triagem: as pessoas capazes de trabalhar iam para o campo, os outros para as fábricas de extermínio.

Hoess não tem um físico bestial. O seu rosto não estampa quaisquer sinais de cretinismo. Mas, ainda mal Gilbert transpõe a porta da sua cela, e já ele avança com a pergunta:

— O senhor quer verificar se eu sou são de espírito?

— Pois bem, o que pensa o senhor disso? — informa-se Gilbert.

— Sou absolutamente normal. Mesmo dedicando-me a essa tarefa de exterminação, levava uma vida familiar normal.

Gilbert pergunta-lhe se ele alguma vez tinha pensado se as suas vítimas eram culpadas e mereciam a sua sorte. Ele abana a cabeça:

— A nós, SS, não competia pensar nessas coisas. E aliás considerávamos estabelecido de antemão que os judeus eram responsáveis por tudo.

Gilbert quis saber por que é que isso era «estabelecido de antemão».

— Porquê? — espantou-se Hoess. — Mas porque nós nunca tínhamos ouvido dizer outra coisa diferente disso... Até a nossa educação militar e ideológica considerava como facto assente que nós devíamos proteger a Alemanha dos judeus...

Seria injusto dizer que Kaltenbrunner foi o único que tremeu ao ver aparecer Rudolf Hoess na barra. Esta testemunha fez tremer todos os réus. Ele era como o selo da infâmia estampado na testa de cada um, o bilhete de identidade do nazismo, a personificação do slogan canibal de Hitler: «Desenvolvamos a técnica do despovoamento». Não houve em Nuremberga outra testemunha que tanto mal tivesse causado aos inculpados. Era uma bela ocasião para se saber a fundo o que eram as «aldeias Potemkine» à maneira nazi.

Ao escutar Hoess, pensei que o conde Grigori Potemkine muitas voltas devia dar no túmulo se soubesse a que é que tinham associado as suas cândidas tentativas de enganar a imperatriz Catarina!

Era debalde que o Dr. Kaltenbrunner pretendia ter ignorado o que se passava nos campos do género de Auschwitz. O Ministério Público não tardou em perguntar a Hoess de quem emanavam as ordens de prisão e internamento de milhões de homens, da sua tortura e massacre. O impassível assassino respondeu sem hesitações:

— Depois da formação do RSHA tudo isso ficou subordinado a Heydrich. A Kaltenbrunner, como chefe do RSHA, competiam as ordens respeitantes aos internamentos de protecção, às deportações, das penas e às execuções que eram assinadas por ele ou pelo seu representante.

O ex-comandante de Auschwitz confirmou assim, ponto por ponto, o testemunho do ex-comandante de Buchenwald. E deste modo se pôde assistir ao súbito aluimento de Kaltenbrunner, que outrora tinha sido um potentado. Apoiando a cabeça cavalar nas mãos suadas, esfregava, nervoso, as têmporas.

O leitor talvez esteja recordado de que foi declarada em Bona a «prescrição», a partir de Maio de 1965, para os criminosos de guerra nazis. Como homem de leis, eu sei o que é uma prescrição. Os códigos penais de todos os países prevêem-na. Mas nenhum magistrado ignora que ela se aplica aos crimes de direito comum, como roubo, vadiagem, pilhagem, golpes e ferimentos, assassinato de homem. É o que diz o artigo 67° do código penal da República Federal da Alemanha que o governo de Bona invocou para amnistiar os criminosos de guerra nazis.

Ora nenhum jurista do mundo ousaria defender que os monstruosos crimes de Kaltenbrunner, de Hoess e seus pares são comparáveis aos crimes comuns aos quais se pode aplicar a prescrição. O ex-chefe de Auschwitz, Rudolf Ferdinand Hoess, poderia não ter sido preso. Eichmann só o foi ao cabo de quinze anos, milhares de outros criminosos de guerra ainda andam por aí à solta. Hoess confessou em Nuremberga que tinha assegurado a supressão de cerca de três milhões de homens. Recordo o gemido abafado que se levantou na sala aquando desta confissão. São provavelmente tantas vítimas quantas os assassinos do mundo inteiro fizeram no decurso de toda a história da humanidade!

Compareceram perante o Tribunal Internacional carrascos de menor envergadura. Lembro-me, entre outros, do SS Ohlendorf, chefe do Einsatzgruppe «D» que declarou só ter conseguido massacrar no sul da Ucrânia, nas redondezas de Nikolaiev...noventa mil pessoas!

Quem ousaria sustentar que os autores dos códigos penais, incluindo o código alemão, adoptado em 1871, pudessem ter admitido, mesmo que só em pensamento, a possibilidade de semelhantes crimes? Que parlamento teria suposto, ao decretar a entrada em vigor dos códigos, que os artigos sobre a prescrição seriam aplicados aos assassinos de milhões de seres humanos? Não é preciso ser jurista para se compreender que a prescrição apenas é aplicável aos crimes previstos, pelo código.

Se os códigos vulgares tivessem bastado para julgar as acções dos Hoess e dos Ohlendorf, os magistrados não teriam tido de elaborar leis penais absolutamente inéditas em que é questão, infelizmente, de outras coisas que não os roubos, a vagabundagem, os golpes e ferimentos e os assassínios individuais. Não teriam sido obrigados a introduzir na linguagem judicial o termo «genocídio», esse neologismo nascido no fogo dos crematórios de Auschwitz. Não teria havido necessidade, para avaliar da extensão dos crimes hitlerianos, de ser lançada uma outra expressão, até então desconhecida na jurisprudência: «crime contra a humanidade».

Foi precisamente porque os crimes hitlerianos ultrapassaram o quadro do código penal ordinário, que foi necessário criar uma jurisdição especial no Estatuto do Tribunal Internacional. Que inimaginável desprezo pelo Direito devem pois ter os que gostariam de tudo subverter para aplicarem a prescrição aos criminosos nazis!

Voltemos porém ao Palácio da Justiça de Nuremberga. Rudolf Ferdinand Hoess não era a única testemunha cujo depoimento tenha contribuído para o derrube da precária linha de defesa de Kaltenbrunner. Existiam outros complexos da morte além de Auschwitz, nomeadamente Mauthausen, tristemente célebre, cujo chefe era um tal Ziereis.

Mas que é isto? E no entanto é bem este nome que Kaltenbrunner acaba de ouvir. Será uma mistificação? É que Ziereis, como toda a gente sabe, já não faz parte do número dos vivos. O que porém o coronel Amen lê é o testemunho autêntico do torcionário de Mauthausen. Kaltenbrunner faz mal em pressionar o seu advogado para que proteste contra este depoimento alegando em Tribunal que Ziereis já morreu. Amen é o primeiro a informar que Ziereis já teve a sua conta. Mas sente muito ter de afligir o Dr. Kaltenbrunner: é que Ziereis, antes de morrer, fez um precioso depoimento. Quando lhe perguntaram quem lhe dava a ordem de meter nas câmaras de gás milhares de vítimas, respondeu!

— O Serviço Central de Segurança, Himmler ou Heydrich, ou ainda o Obergruppenfuhrer SS Muller ou Kaltenbrunner, chefe do RSHA.

Assim ruíam as «aldeias Kaltenbrunner», pondo a nu aos olhos da assistência os longos abarracamentos cinzentos dos campos da morte e as chaminés fumegantes dos fornos crematórios.

A última confissão de Ziereis é completada por uma testemunha muda. O coronel Amen, que se lembra das afirmações de Kaltenbrunner segundo as quais nunca teria visitado os campos da morte, mostra-lhe uma fotografia: Ziereis, Himmler e Kaltenbrunner em Mauthausen.

Ainda mal o réu se recompôs deste golpe e já é introduzida na sala a testemunha Alois Hoellriegel. Kaltenbrunner bem olha para ele, mas não consegue reconhecê-lo. Que irão perguntar a esse homem? Que novo perigo ameaça Kaltenbrunner?

Pelas primeiras declarações dele fica a saber-se que se trata de um austríaco que vivia em Gratz antes da guerra. Kaltenbrunner não se lembra desse «paisano». Mais foi bem na Áustria que eles se encontraram, em Mauthausen.

Tal como Putger, que o Ministério Público também apresentara a Kaltenbrunner, Hoellriegel era vigilante. O seu testemunho mais não faz do que trazer precisões ao que o Tribunal já sabe por intermédio de Putger. O homem conta tranquilamente:

— No Outono de 1942, creio, Ernst Kaltenbrunner visitou Mauthausen. Eu estava nessa altura de guarda e vi-o por duas vezes. Desceu mesmo à câmara de gás com Ziereis, comandante do campo, num momento em que se estavam a gasear prisioneiros.

Dir-se-ia que isto é suficiente. Os juízes e toda a assistência já têm a prova de que Kaltenbrunner mente descaradamente. Toda a gente vê que foi ele mesmo quem construiu as «aldeias Potemkine» para enganar o Tribunal. Mas o Ministério Público parece decidido a confundi-lo até ao fim. Logo após o depoimento de Hoellriegel, é lido o de Johann Kanduth, motorista do crematório de Mauthausen. Esse lembra-se muito bem que aquando de uma visita ao campo

«Kaltenbrunner entrou rindo na câmara de gás... Depois foram trazidas dos calabouços as pessoas para serem executadas; tiveram então lugar três espécies de execuções: o enforcamento, morte por bala na nuca e a câmara de gás», — Disse Johann Kanduth a concluir: «Após o que tivemos de retirar os corpos».

Kaltenbrunner dá um salto. Rejeita esse testemunho. Lembra aos juízes e ao procurador que não se pode esperar objectividade de um homem que foi ele próprio deportado e que sofreu as privações que essa condição implicava. Nenhum tribunal considera objectivo e probatório o depoimento de uma testemunha que é ela mesma parte interessada.

Por um momento tive a impressão que o coronel Amen ficara embaraçado. Mas não. Previra a contra-ofensiva e tira a limpo, pausadamente, sem veemência, as relações entre Kaltenbrunner e Ziereis. Este não era um detido mas um carcereiro, o réu não pode pois torná-lo suspeito de parcialidade.

Kaltenbrunner fareja uma nova armadilha, mas é já tarde de mais para recuar. Não tem objecções a fazer contra o depoimento de Ziereis. Pois bem, esse depoimento corresponde exactamente ao de Kanduth.

«Cerca de quinze reclusos — assinala Ziereis — foram escolhidos pelo Unterscharfuhrer Winkler a fim de mostrar a Kaltenbrunner os três modos de execução: o tiro na nuca, o enforcamento e os gases. Entre as pessoas a executar havia mulheres a quem tinham cortado os cabelos: essas foram mortas com um tiro na nuca... Os homens, encarregados de transportar os cadáveres assistiram à execução e tiveram de levar os corpos para o forno crematório. Depois da execução o Dr. Kaltenbrunner dirigiu-se para o forno crematório e de seguida foi para a pedreira».

Vi Kaltenbrunner mudar de cara e mostrar-se indeciso, aterrado pela semelhança dos dois depoimentos. Mas logo se recompôs, de olhar inquieto: uma silhueta dobrada ao peso das provas contundentes não convém àquele que representa o papel da virtude ultrajada.

No entanto o coronel Amen não presta qualquer atenção aos seus simulacros. Os outros réus desaprovam vivamente a sua estúpida táctica. Keitel olha-o de raspão e fala ao ouvido de Goering, que responde com um gesto de mão, como quem diz: «Que esperava deste esbirro idiota!?» Schirach diverte-se à socapa trocando piadas com os vizinhos. Mas eis que o ex-Reichsleiter se sobressalta. Pareceu-lhe ouvir o seu próprio nome. Que significa isso?

A culpa é de um excesso de curiosidade por parte do procurador... Perguntou, como quem não quer a coisa, a Hoellriegel se não tinha visto outros réus em Mauthausen. O vigilante do campo responde, sem pestanejar, que entre os visitantes de honra tinha havido von Schirach.

Amen. Lembra-se o bastante dele para poder reconhecê-lo?

Hoellriegel. Penso que deve ter mudado nos últimos tempos mas reconhecê-lo-ia muito bem.

Amen. Há quanto tempo o viu lá?

Hoellriegel. Em fins de 1942.

Amen. Quer olhar para a sala de audiências e tentar ver se O reconhece?

Hoellriegel. Sim, reconheço-o.

Amen. Onde está ele?

Hoellriegel. Na segunda fila, o terceiro a partir da esquerda.

Foi a vez de Schirach perder o sorriso. Apagou-se a expressão irónica do rosto, como que varrida por um furacão. Kaltenbrunner, em contrapartida, olha para ele com maldosa alegria.

Entrementes continua Hoellriegel o seu testemunho. Quando estava em Mauthausen, Schirach assistiu ao suplício dos que no campo eram conhecidos como «para-quedistas». Depois de espancados, espezinhados obrigavam-nos a lançarem-se do alto de uma falésia de quarenta metros.

Desorientado com o rumo que as coisas estavam a tomar, Sdhirach chama durante a suspensão da audiência o seu advogado, Dr. Sauter. Entabulam um breve conciliábulo, na sequência do qual o advogado «ataca» Hoellriegel. Tenta atirar a testemunha de «cangalhas» pelos métodos habituais.

Primeiro Sauter tenta provar aos juízes que estão a lidar com um SS da «escola de antes da guerra». Ora, o Tribunal não tinha ilusões a respeito de Hoellriegel e não a tomava por antifascista.

Em desespero de causa, Sauter vai em busca das «incoerências» no depoimento da testemunha. Já informado por Schirach sobre certos pormenores da sua visita a Mauthausen, pergunta a Hoellriegel:

— Von Schirach estava sozinho em Manthausen ou com outras pessoas?

Responde a testemunha:

Schirach estava com outras pessoas. Estava num grupo de cerca de dez pessoas entre as quais o reconheci com o Gauleiter Nibereuter.

Sauter «encurrala» a testemunha declarando ao Tribunal que eram «vinte e não dez».

Mas o guarda de Mauthausen, a quem não falta espírito, observa:

— Nessa altura de facto não os contei, não sabia que um dia ia ter necessidade disso.

Que gargalhada na sala!

Como já disse, as testemunhas de Kaltenbrunner eram de toda a espécie: prisioneiros, carcereiros, altos funcionários do aparelho nazi. Poderia nomear uma quantidade deles, cada um dos quais mostrou sob um novo aspecto os crimes do grande inquisidor, a quem os torcionários da Idade Média, comparados com ele, não passavam de aprendizes.

Poderia citar uma vez mais o repórter fotográfico espanhol François Boix, esse antigo recluso de Mauthausen que apoiava os seus depoimentos com fotografias aterradoras. O mais das vezes viam-se aí, entre os visitantes do campo, o Reichsfuhrer SS Himmler e o Dr. Kaltenbrunner, com a insígnia de ouro do partido ao peito, que Hitler lhe oferecera pelos seus «méritos». Lembro-me perfeitamente de ter ouvido Boix declarar que Kaltenbrunner, quando era ainda chefe da Polícia e das SS da Áustria, visitara com bastante frequência Mauthausen para ver a maneira como se poderiam organizar campos semelhantes em toda a Alemanha e nos países ocupados.

Poderia sem dúvida citar de memória, de uma ponta à outra, o horrendo relato sobre os oficiais russos prisioneiros, aos quais deram um dia uniformes novos, lençóis de cama imaculados, cigarros, para os filmarem (provavelmente para a Cruz Vermelha!) e depois os mandarem para a câmara de gás. A comédia do tratamento clemente dos prisioneiros num campo nazi não durou mais que alguns minutos! Poderia, enfim, repetir o chocante depoimento do juiz SS Morgen, funcionário do Gabinete Central da Polícia Criminal do Reich, que descreveu como foram levadas à morte milhares de vítimas em Auschwitz, com conhecimento de Kaltenbrunner e com a sua autorização. E poderia acrescentar que Morgen não era daqueles a quem o inculpado estivesse em direito de fazer recair a suspeita de parcialidade ou de rancor para com a sua pessoa.

Mas fossem quais fossem os nomes e os factos mencionados, a atitude de Kaltenbrunner nem por isso deixava de ser a mesma. Ele agarrava-se como uma lapa ao seu papel, acontecesse o que acontecesse, e negava com idiota teimosia.

Essa táctica suscitava dois géneros de reacções entre a assistência: a indignação e o riso. Até os seus próprios antigos «colegas», com ele sentados no banco, não chegavam a compreendê-lo.

Durante uma suspensão de audiência, Fritzsche exprimiu a sua surpresa bastante francamente:

— Ele tenta fazer-se passar por alguém que não fazia mal a uma mosca; estou surpreendido por o seu advogado o deixar empregar esse sistema de defesa.

Quanto a Hjalmar Schacht, a esse chocava-o e inquietava-o a falta de tacto de Kaltenbrunner:

— Mas todas essas puras negações e essas mentiras, que porcaria!

A sério, isso é muito desagradável porque lança uma sombra por cima de todos nós.

Doenitz, como militarão que era, declarou abertamente a Goering:

— Ele devia ter vergonha!

Claro que o almirante estava a pensar menos nos crimes do chefe da Gestapo e da Segurança do que nas suas absurdas manobras no processo.

De novo em forma depois do fiasco que foi o interrogatório de Hoellriegel, o Dr. Sauter perguntou ao seu cliente se tinha perguntas a fazer ao réu. Schirach respondeu sem dissimular a sua irritação:

— Não merece a pena, senhor advogado. Se ele não se pode defender a si próprio, como poderia ajudar fosse quem fosse?

Era essa a apreciação feita ao comportamento de Kaltenbrunner pelos seus co-réus.

O que tornara o ex-chefe do RSHA completamente cego era um terror louco da morte, e isso punha a nu a sua verdadeira natureza: a baixeza do carrasco, arrogante quando está no poder, ignobilmente cobarde quando tem de enfrentar a primeira prova séria.

Himmler contra Kaltenbrunner

Estava habituado a ver os generais alemães chamados a depor como testemunhas de defesa a tentarem ilibar Goering, Keitel, Jodl, Raeder, Doenitz. É certo que com o correr do interrogatório, quando este passava para as mãos do Ministério Público, essas «testemunhas», acossadas por provas irrefutáveis, mudavam de orientação e à defesa sucediam as acusações. Foi o caso de Milch, de Bodenschatz e de outros.

Mas eis que na barra se apresenta uma personagem de bastante pequena estatura, envergando um fato citadino. Olha com apreensão para o banco dos réus. Tem um ar muito respeitável, um rosto simpático. Se eu tivesse de me deitar a adivinhar sobre a sua profissão, teria dito que ele era docente livre de um qualquer instituto.

Muitos dos réus observavam-no com um interesse tenso.

— Olhe lá para Kaltenbrunner — sussurrou-me o capitão americano Priceman, sentado a meu lado.

A sua cavalar cabeça parecia ter-se alongado ainda mais, tinha a mandíbula descaída. Estava visivelmente incomodado.

Sim, tratava-se de uma das testemunhas de maior interesse, não era um docente livre, claro, mas um mestre espião: o chefe da 6ª Repartição da Segurança. Chamava-se Schellenberg e andava pelos trinta e cinco anos. Esse não tinha falta de assuntos para revelação. E como era convocado pela Acusação, Kaltenbrunner podia facilmente prever que o seu testemunho não lhe seria favorável.

Não obstante alimentava a princípio uma vaga esperança. É isso o que verifico, porque uma vez perdidas as ilusões, ele foi-se abaixo e, de cabeça entre as mãos, fechou os olhos com ar estafado.

Em que tinha ele fundado as suas esperanças?

Ao interrogar Schellenberg, o coronel Amen insistiu no entendimento ultra-secreto entre o OKW (general Wagner) e a Segurança (Heydrich). Concluído pouco antes da agressão à URSS, esse acordo previa a afectação, a todos os exércitos, de Einsatzgruppen que tinham por tarefa aterrorizar e massacrar os habitantes das regiões soviéticas ocupadas. Tratava-se de uma verdadeira aliança da Wehrmacht com organismos da repressão.

Schellenberg evocou tranquilamente as negociações em que tinha, participado bem como o objectivo do entendimento, sem aparentemente se dar conta de que desferia um golpe mortal em Keitel e Jodl e como que derramava bálsamo no coração do chefe do RSHA. Kaltenbrunner via-se desforrado da desagradável cena passada no banco dos réus a 10 de Dezembro, quando Keitel lhe virara as costas. Schellenberg, com esse depoimento, estava a esvaziar essa hipócrita cena que visava demonstrar a não participação dos generais da Wehrmacht nas atrocidades das SS e da Gestapo.

No interrogatório a Schellenberg, o coronel Amen não foi além do entendimento entre o OKW e as SS. Lamentei bastante que ele restringisse a esse ponto o seu trabalho. Mas o inquérito americano lá devia ter as suas razões.

O âmbito do interrogatório foi subitamente alargado pelo advogado Kauffmann. As suas intenções eram bastante claras: fazer corroborar por Schellenberg a versão segundo a qual Kaltenbrunner, sendo nominalmente chefe do RSHA, só teria na realidade dirigido o seu serviço de informações.

— Diga-me — perguntou Kauffmann à testemunha — algum dia Kaltenbrunner fez diante de si qualquer alusão ao facto de se ter entendido com Himmler a fim de as realizações materiais serem tiradas da sua competência e de só o SD lhe ter sido confiado na qualidade de serviço de informações?

— Não — respondeu categoricamente Schellenberg — nunca ouvi falar de tal acordo: os factos de que fui testemunha parecem provar o contrário.

O advogado teve a imprudência de querer tirar nabos da púcara, exigiu precisões. Schellenberg satisfez-lhe a curiosidade de boa vontade. No fim da guerra o RSHA teve de decidir o que fazer dos campos de concentração: evacuá-los para o interior da Alemanha e continuar o extermínio dos detidos, ou deixá-los no sítio para os entregar aos Aliados.

— Depois de ter obtido do Reichsfuhrer, com muitas dificuldades, que os campos de concentração não fossem evacuados, Kaltenbrunner, em contacto directo com Hitler, passou por cima dessa ordem de Himmler e renegou um compromisso internacional.

Foi perguntado a Schellenberg o que significava o final da sua frase. Ele explicou: Himmler, que se tinha posto já em contacto com as potências ocidentais, tinha-lhes prometido não evacuar os campos. Era a isso que Schellenberg chamava «compromisso internacional».

Que necessidade tinha ele de sobrecarregar Kaltenbrunner, seu chefe imediato, quando o próprio Ministério Público a isso o não obrigava?

A coisa era bem mais simples do que parecia.

A rivalidade entre Himmler e Kaltenbrunner ia-se acentuando no decurso da sua «colaboração». À cabeça dos organismos repressivos da Alemanha nazi havia, em suma, dois grupos antagónicos: o de Berlim e o da Áustria. Himmler personificava o primeiro; Kaltenbrunner, compatriota de Hitler, o segundo. Sabemos já que Kaltenbrunner iniciou a sua carreira entre os nacionais-socialistas austríacos, que a 13 de 1938 foi incluído no governo de Seyss-Inquart por ordem de Hitler e que, em 1942, após a morte de Heydrich, o Fuhrer o transferiu de Viena para Berlim para o nomear adjunto de Himmler. Este não ficou encantado com isso, porque via em Kaltenbrunner um agente de Hitler adstrito à sua pessoa. E tomou-se-lhe particularmente insuportável nos últimos meses da guerra, quando Himmler, nas costas do Fuhrer, procurou contactar as potências ocidentais. Em princípios de 1945 o Reichsfuhrer SS confessou francamente ao seu acólito Schellenberg que não podia receber nenhum estrangeiro notório porque isso o poria «à mercê de Kaltenbrunner». Em Março do mesmo ano Himmler encarregou o chefe da 6ª Repartição de se avistar com o presidente suíço Musy, que viera à Alemanha, e por intermédio dele entrar em ligação com os americanos.

Missões idênticas eram neste entrementes cumpridas na Suíça por homens da confiança de Kaltenbrunner. Mas esses agiam por intermédio do presidente da Cruz Vermelha, Burckhardt.

Por mais recíproca hostilidade que houvesse entre as duas camarilhas, há que reconhecer que nestas negociações elas punham em jogo o mesmo trunfo: a vida e a sorte dos prisioneiros em troca de concessões por parte dos Aliados ocidentais aquando da capitulação da Alemanha, que incluíam, bem entendido, a vida salva para os chefes das SS.

Cada um dos dois cabecilhas espiava o seu rival e tentava ultrapassá-lo no tráfico com os meios reaccionários do Ocidente. E logo que um tinha a impressão que o outro ia conseguir algo, fazia os possíveis por torpedeá-lo.

Schellenberg recomendou a Himmler que não destruísse as fábricas de V-1 e V-2 instaladas junto aos campos de concentração, no sul da Alemanha, e que as entregasse intactas às tropas americanas. Himmler cedeu, esperando assim consolidar as suas posições nas conversações com os americanos. Mas logo que o projecto chegou aos ouvidos de Kaltenbrunner este fê-lo fracassar. Pouco importava ao chefe do RSHA que a sua rivalidade com Himmler custasse a vida a algumas dezenas de milhares de homens mais. Obtinha pois de Hitler a ordem de evacuar as fábricas e os campos para o interior da Alemanha, o que fazia com que os detidos fossem em definitivo votados à morte pelos gases. Kaltenbrunner não podia tolerar que Himmler tomasse a dianteira nas negociações com o Ocidente.

Quanto ao facto de, ao entabularem essas conversações, estarem a trair o seu «Fuhrer bem-amado», as duas «altas» partes contratuais não se preocupavam absolutamente nada. Tanto Himmler como Kaltenbrunner achavam que os seus pescoços valiam bem mais do que todos esses caducos sentimentos de fidelidade... Então não tinha sido o próprio Fuhrer que lhes ensinara que a consciência é uma quimera de que é preciso desembaraçar-nos o mais rapidamente possível? Portanto era inútil estarem-se a incomodar se, com a consciência que Himmler e Kaltenbrunner só conheciam por ouvirem falar, tinham de perder Hitler. Neste ponto, o Reiehsfuhrer SS Heinrich Himmler e o Obergruppenfuhrer Emst Kaltenbrunner estavam de acordo, mesmo que estivessem prontos a mutuamente se esfolarem. As asserções de Kaltenbrunner no sentido de que o seu conflito provinha do facto de ele, como jurista, se pronunciar a favor da legalidade e de Himmler se estar nas tintas para a justiça, não passava do cúmulo da hipocrisia.

Que Schellenberg, lacaio de Himmler, arrastasse Kaltenbrunner pela lama, não era, claro, surpresa para ele. O «grande inquisidor» tinha por sua parte coisas a dizer sobre a testemunha.

— Schellenberg — explica ele ao Tribunal em tom compenetrado — era amigo íntimo de Himmler. Foi ele quem, em nome de Himmler, tomou contacto com o conde sueco Bernadotte. Foi ele o homem que, no último minuto, por intermédio de Musy na Suíça, fez relações que permitiram a um número muito pequeno de judeus ir para a Suíça, com a finalidade de rapidamente criar uma impressão favorável a Himmler e Schellenberg aos olhos do estrangeiro.

Schellenberg teria feito diligências junto à Associação de Rabinos da América do Norte com a finalidade de os grandes jornais americanos publicarem artigos favoráveis a Himmler. E o ex-chefe do RSHA sustenta ter-se aplicado em abrir os olhos do Fuhrer sobre «essas maquinações».

Kaltenbrunner diz ter ficado, indignado com a táctica separatista de Himmler. Mas também calcorreou a Europa à cata de contactos com os americanos... Hoettl, que foi um importante agente de informações alemão, revela no seu depoimento que Kaltenbrunner lhe deu parte «da sua vontade de partir a para a Suíça para encetar pessoalmente negociações com um representante americano». É certo que Hoettl queria convencer o Tribunal de que o chefe do RSHA se decidira a isso unicamente «para impedir que o sangue corresse de maneira ainda mais insensata». Mas veremos mais adiante que estas palavras são contraditadas pelos últimos actos do chefe da Gestapo.

Hoettl disse muito bem do seu patrão vencido. Kaltenbrunner fica um pouco mais descansado. Tem a impressão de que Hoettl conseguiu neutralizar o testemunho de Schellenberg. Querendo tirar partido deste presumível êxito, tenta persuadir os juízes de que procurou muitas vezes, correndo grandes riscos, apressar a capitulação. Porque depois do esmagamento do exército de Paulus no Volga ele tinha a certeza de «que a Alemanha tinha perdido a guerra».

O banco dos réus reagiu como era seu hábito a esta tagarelice. Goering mede Kaltenbrunner com um olhar de desprezo e repete o seu gesto de mão. Frank bichana ao ouvido de Rosenberg apontando o pacificador de fresca data. E à noite, na sua cela, Frank declara a Gilbert:

— Ele diz que a guerra estava perdida; e no entanto perseguiu milhares de alemães por derrotismo, atirou com eles para os campos de concentração.

O interrogatório de Kaltenbrunner pôs em causa o célebre agente de informações americano na Europa, Allen Dulles. O seu nome foi por reiteradas vezes pronunciado pelo réu e pelas testemunhas. Porque foi com ele que Kaltenbrunner negociou um acordo sobre a cessação das hostilidades a Ocidente. É inútil especificar ao leitor que os nossos aliados de então escondiam isso cuidadosamente à URSS.

Em Nuremberga o ex-chefe da RSHA fez valer tanto quanto pôde as suas relações com os americanos durante a guerra. Pensava que isso seria útil para a sua reputação e o seu destino.

— Sim — repetia ele — muitas viagens foram feitas e não só por Hoettl mas também por outras pessoas... Assim, estou em condições de citar uma conversação que tive com um tal conde Potocki a quem pedi para intervir nos meios em questão e para fazer chegar essas informações aos meios anglo-americanos na Suíça.

Mas procuradores e juízes compreendiam perfeitamente o que estava dissimulado por detrás dessas «revelações», sabiam aonde queria o inculpado chegar. E os debates continuaram.

Foi lido o depoimento do conde Bernadotte. E de novo o «grande inquisidor» ouve o detestado nome de Schellenberg. Este tinha, ao que parece, prevenido os suecos de que

«Kaltenbrunner tinha muito ascendente sobre Hitler, que era um homem muito perigoso que era necessário evitar a todo o custo».

De súbito é pronunciado um nome ainda mais temível para o réu: o de Kurt Becher. Só faltava mais isso! Será que estava com alucinações auditivas?

Infelizmente é bem Kurt Becher quem o procurador nomeia e logo, com autorização do juiz, lê o seu depoimento.

«Eu, Kurt Becher, antigo Standartenfuhrer SS, declaro sob juramento o que segue... Entre meados de Setembro e meados de Outubro de 1944, Himmler ...escreve uma ordem proibindo a supressão dos judeus. Quanto a mim, a partir dessa data Kaltenbrunner e Pohl são totalmente responsáveis pelos assassínios dos detidos... Aquando da minha visita ao campo de Mauthausen, a 27 de Abril de 1945, o Standartenfuhrer SS Ziereis, comandante do campo, confiou-me sob sigilo que Kaltenbrunner lhe tinha dado a ordem de matar, pelo menos, um milhar de internados por dia».

Durante a leitura do documento eu não tirava os olhos de Kaltenbrunner. Que se agitava, lançava aos juízes olhares inquietos, mordia os lábios, esfregava o queixo quadrado. Essa testemunha vinha demolir de alto-a-baixo a versão segundo a qual o chefe do RSHA teria tentado, no fim da guerra, salvar os detidos a despeito de Himmler.

Mas, por desesperada que fosse a sua situação, ele não pensava em render-se. O ex-advogado vienense mobilizou os seus últimos recursos na procura de uma saída, e julgou tê-la finalmente encontrado.

Que o Tribunal não se espante, mas esse depoimento foi feito para o alegrar: a ordem de Himmler de que fala Becher devia-se precisamente aos esforços de Kaltenbrunner.

Isso era tão inesperado que o Dr. Kauffmann perguntou ao seu constituinte:

— Quer o senhor dizer que essa reacção foi devida à sua intervenção?

E Kaltenbrunner respondeu sem rodeios:

— Estou firmemente convencido de que essa mudança se deveu à minha intervenção... Penso que não terá havido ninguém que mais reparos tenha feito, a cada ocasião, a Himmler do que eu fiz e que tenha falado tão abertamente, tão francamente e com tanta abnegação como eu próprio falei a Hitler...

Mas Becher acusava Kaltenbrunner de ter dado a Ziereis a ordem de exterminar pelo menos um milhar de detidos por dia. Era preciso desacreditá-lo. E Kaltenbrunner declarou, radiante, que agora que o Tribunal «sabia a verdade» (a sua, bem entendido!), era tempo de dizer uma palavrinha sobre Becher. Esse homem cumpria as missões mais sórdidas de Himmler. Negociou, nomeadamente, com representantes das potências ocidentais, a troca de prisioneiros por camiões. E para garantir aos ocidentais que esses camiões não seriam utilizados contra os seus exércitos, Becher propunha que fossem equipados com dispositivos especiais tendo em vista a sua exploração nas extensões nevadas da Rússia. Queria pois trocar a «mercadoria viva» dos campos contra matérias-primas deficitárias.

Ao fazer estas declarações o ex-chefe da RSHA manifestava uma «nobre cólera». Sempre tinha ficado indignado com as transacções comerciais de Himmler e de Becher que «atentavam contra o prestígio do Reich no estrangeiro».

Eu escutava-o atentamente e perguntava a mim mesmo do que estava ele à espera. Acreditaria ele seriamente que lhe bastava dizer, a verdade sobre Himmler para se ilibar?

Kaltenbrunner arruma-se a si próprio

Quais são os factos autênticos, desprovidos dos ouropéis com que os mascaravam os cúmplices de Himmler ou de Kaltenbrunner e Cia?

Abril de 1945. A batalha de Berlim está no auge. Hitler tem os dias contados. Os seus acólitos fogem como ratos de um barco em naufrágio... Goering abandona a Chancelaria para fugir para o sul: o seu (plano de salvação consiste em ser o primeiro a capitular perante o Ocidente. Robert Ley deixa crescer a barba para se transformar no respeitável burguês Ernst Dostelmayer. Joachim Ribbentrop tira informações sobre os seus antigos associados do negócio de champanha.

Os Aliados apertam as tenazes. Exortam solenemente os chefes dos campos para que tomem finalmente consciência da sua responsabilidade perante os homens da Terra e para que acabem com os massacres.

Que fazia durante todo este tempo Kaltenbrunner?

Ouçamos a sua própria declaração, para começar. Pelo que disse, a primeira das suas preocupações era a de negociar com o presidente' da Cruz Vermelha a libertação dos judeus e de outros detidos. As conversações corriam tão bem que a 19 de Abril, às três horas da manhã, Kaltenbrunner saiu de Berlim para ir a Linz passando por Praga. A sua intenção era a de se dirigir «a Innsbruck para aí de novo se encontrar com o representante de Burckhardt». O resultado imediato dessa viagem foi a libertação de centenas de detidos.

É esta a versão do chefe do RSHA. Mais o Ministério Público é sempre de outra opinião quanto aos seus esforços supremos. Um novo depoimento é apresentado: o de um tal Berttus Gerdes.

Era chefe do estado-maior do Gauleiter de Munique, Giesler. O documento apresentado ao Tribunal diz que em meados de Abril de 1945, Giesler telefonou a Gerdes para que se não ausentasse. Este passou o resto do dia em penosa expectativa, e à noite o seu chefe informou-o que tinha recebido de Kaltenbrunner a ordem de estabelecer de urgência o plano de liquidação do campo de Dachau e de dois campos de trabalho judeus, em Landsberg e Muehldorf. Os dois últimos deviam ser aniquilados pela Luftwaffe camuflada de aviação aliada. Esta sangrenta empresa chamava-se, em linguagem cifrada, «Wolke A-I» («Nuvem A-I»).

No momento previsto para a concretização do projecto, diz Gerdes, mensageiros de Kaltenbrunner chegavam uns atrás dos outros. Eram na sua maioria oficiais SS e todos o ameaçavam de «sanções severas, incluindo a execução, em caso de desobediência». Não obstante, Gerdes preferiu desobedecer.

Porquê? Que lhe tinha acontecido?

Vala comum perto de Dachau
Vala comum perto de Dachau
(clique na foto para maior resolução)

A testemunha afirma que a sua consciência o impediu de aplicar a horrível directriz, à qual Kaltenbrunner tinha acrescentado a ordem de envenenar todos os detidos de Dachau, salvo os arianos oriundos dos países ocidentais.

Desde quando a consciência atormentava este carrasco? Nunca dantes ela o tinha levado a queixar-se! Sim, mas as coisas tinham mudado. Estava-se em Abril de 1945. Os Aliados podiam aparecer de um momento para o outro. E se bem que o braço de Kaltenbrunner ainda fosse bastante comprido para mandar para os anjinhos um vulgar Gaustabsamtleiter, Gerdes dava-se conta que esse braço ia cada vez ficando mais curto e que russos e americanos se aproximavam. Deu pois como pretexto a falta de gasolina e de bombas para os aviões e a dificuldade de arranjar veneno.

«Então — continua o testemunho — Kaltenbrunner mandou instruções escritas para Dachau para que todos os prisioneiros oriundos dos países ocidentais da Europa fossem carregados em camiões e transportados para a Suíça, enquanto os outros seriam conduzidos a pé para o Tirol onde devia ser levada a cabo a liquidação final...»

O ex-chefe do RSHA escuta este depoimento em extrema tensão, o tronco inclinado para a frente, as mãos crispadas a ponto de ficarem lívidas. A determinado momento acreditei que ele ia, senão confessar, pelo menos fazer uma meia confissão. Mas não. Mal o juiz Lawrence lhe deu a palavra ele pôs-se a negar. E até com «motivos psicológicos».

— Eu não poderia, em consciência, executar ordens tão estúpidas quando estava simultaneamente a ordenar exactamente o contrário.

Onde está a verdade? Teria realmente Kaltenbrunner dado ordens «contrárias»?

Sim, mas tratava-se de um infame ardil, demasiado evidente para enganar fosse quem fosse. Ele ordenava, ao mesmo tempo, o massacre de centenas de milhares de vítimas e o perdão para algumas centenas ou milhares desses desgraçados.

Era preciso vê-lo empertigar-se quando Kauffmann leu o depoimento dos doutores Burckhardt, Bachmann e Meyer, representantes da Cruz Vermelha. Eles confirmavam ter concluído com ele, em Abril de 1945, um acordo segundo o qual centenas de franceses, belgas, holandeses foram repatriados. Kaltenbrunner tinha autorizado a Cruz Vermelha a visitar o campo judeu de Theresienstadt e a fornecer outros campos de medicamentos e víveres.

O inculpado passeia um olhar triunfal pelos juizes e procuradores. Imagina que convenceu o Tribunal e toda a assistência de que durante a agonia do Terceiro Reich tinha agido como um homem honesto. Não eram dignos de fé os testemunhos dos chefes da Cruz Vermelha?

O Tribunal tinha confiança neles, naturalmente, mas não em Kaltenbrunner. Provaria esse depoimento que no fim da guerra ele se tenha reabilitado?

Infelizmente para Kaltenbrunner, o seu regozijo era demasiado temporão! Ao mesmo tempo que ouvia o testemunho da Cruz Vermelha, o Ministério Público preparava o assalto final.

Cada nazi aliava paradoxalmente as características de um abominável criminoso às de um burocrata miudinho. Kaltenbrunner não era uma excepção. Guardou até ao último momento as cópias dos documentos que tinha assinado. Já não tinha secretários nem estenógrafos. Mas ao deslocar-se através da Alemanha, levava a papelada nos bolsos. E foi nesse escritório ambulante que o juiz de instrução francês Henri Moneray descobriu o documento que segue, apresentado aos juizes pelo substituto do procurador-geral americano Harris.

«Radiograma ao Gruppenfuhrer e major-general SS Fegelein, Q.G. do Fuhrer. Peço-lhe para informar o Reichsfuhrer SS e o Fuhrer que todas as medidas relativas aos judeus, aos presos políticos e aos detidos dos campos de concentração foram hoje tomadas por mim próprio no Protectorado. Kaltenbrunner».

Era uma prova irrefutável. Foi assim que o Kaltenbrunner burocrata pôs knock-out no Kaltenbrunner torcionário.

Seguidor do General Melas

Disse já que ouvi, durante e depois do processo de Nuremberga, muita gente dizer-se admirada por os debates terem sido tão longos. A culpabilidade dos sátrapas hitlerianos era tão evidente, os documentos reveladores eram tão numerosos que os arguidos não tinham, ao que parece, mais do que responder «sim» a todos os quesitos da nota de culpa.

Também eu, para falar verdade, tinha tido a princípio essa impressão. Mas enganava-me. O processo foi um duelo ininterrupto entre a Acusação e a Defesa, Defesa que usava de todos os meios para pôr em dúvida os mais comprometedores documentos ou atenuar-lhes a gravidade.

Não esqueçamos que, apesar do cinismo do governo nazi, os papéis oficiais nunca traziam a menção de termos tão brutais como «agressão» (dizia-se «resolução dos litígios territoriais»!) ou «execução dos prisioneiros de guerra» (dizia-se Sonderbehandlung: tratamento especial!). Réus e defensores agarravam-se a ambiguidades e esforçavam-se por engendrar outras. A escola burguesa da Defesa tinha um diapasão de chicana bastante lato, para permitir tentativas de alterar a verdade, mesmo num processo desta envergadura.

Pela impudência da táctica de defesa, vinha à cabeça Kaltenbrunner e na cauda o seu advogado Kauffmann. Impudentes, todos os acusados o foram, mas acho que nenhum o foi tão estupidamente.

Isso leva-me a pensar numa interessante observação do historiador Evgueni Tarlé. Ao analisar o carácter do comandante-chefe austríaco Mélas, que por duas vezes enfrentou Napoleão no campo de batalha e foi sempre vencido, Tarlé escreve que a sua maneira de raciocinar deve ter sido uma das causas disso. A tragédia deste limitado general era a de que, ao preparar-se para travar combate, ele julgava que o faria contra um outro Mélas. Ao passo que Napoleão, mesmo na previsão de um recontro com Mélas, comportava-se como se tivesse de combater um outro Napoleão.

Kaltenbrunner tinha tudo de um Mélas. Partia do princípio de que o seu adversário se achava no mesmo nível intelectual que ele. A certeza de fazer engolir aos procuradores e aos juízes as suas piores inépcias manifestava-se nele a todo o momento. Por mais paradoxal que isso pareça, ele ultrapassou-se mesmo, neste domínio, a si próprio. Se há algo que possa ultrapassar a estupidez, é só essa mesma estupidez!

É questão da ordem de Hitler relativa à execução dos homens que prestavam serviço nos comandos. Ordem criminosa, visto que esses combatentes, envergando o uniforme dos seus respectivos exércitos, deviam beneficiar do Estatuto de prisioneiros de guerra.

Tinha Kaltenbrunner conhecimento disso? Sim, diz ele. E teria mesmo protestado contra a sua entrada em vigor. Que o respeitável Tribunal tome conhecimento do que se passou no Q.G. do Fuhrer em Fevereiro de 1945:

— Declarei, perante testemunhas, ao chefe do estado-maior da Aviação e a outros oficiais que...recusava obedecer a tais ordens... Não podia fazer mais face ao homem mais forte e mais poderoso da Alemanha.

Tendo presenteado a humanidade com esta mirabolante confissão, Kaltenbrunner fitou os juízes de cabeça erguida. Mas para os seus co-réus não teve a coragem de olhar.

E eles, que fizeram eles?

Nada. Estavam habituados às patetices do ex-chefe da Gestapo. Talvez até se divertissem. Porque, em suma, nenhum outro ousou debitar semelhantes atoardas.

Lembro-me de Jackson, indignado com as tentativas de Schacht se fazer passar por adversário do programa hitleriano de agressão, lhe ter dito:

— Porque não informou então frontalmente Hitler, doutor Schacht, da sua recusa em financiar o programa de rearmamento, como ele vo-lo tinha ordenado?

Schacht sorriu docemente, marcou um compasso de espera e disse com voz untuosa:

— Senhor procurador, se eu tivesse respondido desse modo não teríamos agora o prazer de estar aqui a dialogar. Isto não passaria de um monólogo. Porque eu repousaria em paz no meu túmulo e o pastor rezaria pela salvação da minha alma.

Schacht, na corrência, não mentia mais que Goering, que respondeu de modo semelhante ao doutor Kelly, na sua cela. Kelly tinha-lhe perguntado:

— É verdade que na Alemanha lhe chamavam o «homem-sim»?

Goering sorriu, suspirou significativamente: sim, era como lhe chamavam, porque ele respondia sempre «sim» ao seu Fuhrer bem-amado. Mas após uma ligeira hesitação, o ex-marechal do Reich observou não sem humor:

— Gostaria, doutor, que me nomeasse um só «homem-não» da Alemanha que não estivesse debaixo de seis pés de terra.

Quer Goering o tivesse querido ou não, ele passou ao regime nazi, por meio da sua resposta, uma terrível certidão. Os factos são o que são: nem o «fiel paladino» do Fuhrer, nem o «mágico das finanças», nem nenhum outro réu, com excepção do chefe da Gestapo, teve a audácia de pretender ter feito frente a Hitler. Para fazer declarações desse género era preciso ser de uma fenomenal estupidez.

Aliás, como já assinalei, a situação de Kaltenbrunner no processo era mais delicada que a dos seus co-réus. Ribbentrop, por exemplo, podia invocar Munique; os generais podiam falar de ordens recebi- das; Schacht fazer-se valer da sua participação na conspiração anti-hitleriana. Isso, pelo menos, ajudava a criar uma parecença de álibi.

Mas o ex-chefe da Segurança do Reich a que poderia ele ter-se referido?

O mais honesto da sua parte teria sido confessar tudo.

Mas isso era coisa que não estava dentro das possibilidades do Dr. Kaltenbruner porque levava directamente à forca, exigia coragem, firmeza, qualidades de que carecia totalmente.

Que lhe restava então? A astúcia do animal acossado, a corrida tortuosa pelos labirintos da rabulice. E não prescindiu disso. Discutiu o mínimo erro de escrita ou de linguagem. Negava ter conhecido pessoas que afinal conhecia às mil maravilhas, bastando só que o procurador lhes deturpasse minimamente os nomes. Mas onde ele se excedia era na interpretação dos termos nazis: no meio da papelada hitleriana Kaltenbrunner sentia-se como peixe na água. Uma vez conseguiu até fazer uma amostra de sucesso.

O coronel Amen apresentou a declaração ajuramentada de um oficial SS, Josef Spacil, onde era questão do «tratamento especial». Figuravam nela duas palavras novas: Walseertraum e Winterstube. «Tratamento especial», em calão nazi, queria dizer execução, extermínio, isso era mais que sabido por toda a gente. À primeira vista Winterstube e Walseetrtraum pareciam ser os nomes de dois campos de morte. Mas por que se tinha então descontraído o rosto de Kaltenbrunner, por que perderam os seus olhos o brilho ao mesmo tempo inquieto e de ódio?

Walseertraum e Winterstube eram hotéis de luxo para os alpinistas: de Walssertal e Godesberg. Durante a guerra estavam aí detidas personalidades de certos países ocupados. Kaltenbrunner explicou com calor que os detidos recebiam aí rações alimentares diplomáticas triplas, isto é, nove vezes maiores que as dos vulgares alemães. Cada um recebia uma garrafa de vinho por dia, escrevia livremente à família e gozava de uma infinidade de outras regalias. O inculpado terminou a sua exposição num tom quase triunfal: o Tribunal já tinha agora uma ideia do sentido das trágicas palavras de «tratamento especial» quando elas provinham de Kaltenbrunner. Claro, ele sabia que as ordens de Hitler e Himmler respeitantes ao «tratamento especial» significavam a execução sem mais formalidades. Mas ele nada tinha a ver com isso. Se usava essa expressão, era só no sentido em que ela se aplicava aos hóspedes de Walseertraum e Winterstube. E no caso de os cavalheiros terem dúvidas sobre a veracidade das suas afirmações, não tinham mais do que se dirigir a François-Poncet que durante a guerra tinha estado num desses estabelecimentos.

Foi assim que o testemunho de Josef Spacil, apresentado pela Acusação, fez inesperadamente o jogo de Kaltenbrunner. Isso, bem entendido, de modo nenhum influenciou a marcha do julgamento, mas sempre era um pretexto para o réu fazer arrastar as coisas. Tentou forçar os juízes:

— Posso pedir-lhes que não arrumem já esse documento? Gostaria que o Tribunal tomasse conhecimento de que esses dois estabelecimentos foram utilizados, segundo os meus desejos, para conceder às pessoas que aí estavam internadas um tratamento superior aos dos alemães. Isso é extremamente importante para mim.

crianças eram enviadas para as câmaras de gás
Também crianças como a da foto eram enviadas para as câmaras de gás
(clique na foto para maior resolução)

Todas estas adjurações, repito-o, nada podiam contribuir para mudar fosse o que fosse, já que dezenas, centenas de outros documentos o denunciavam como zeloso executante de ordens de «tratamento especial» no seu verdadeiro sentido. O coronel Amen apresentou em Tribunal uma carta de Kaltenbrunner endereçada ao Brigadenfuhrer SS Blaschke, burgomestre de Viena, anunciando que um transporte de doze mil judeus estava a caminho de Viena, dos quais três mil e seiscentos, quando muito, podiam ser utilizados em diversos trabalhos. Que ia acontecer aos outros, aos «inaptos para o trabalho»? Que sorte lhes estava reservada? O autor de mensagem prevenia o destinatário que todos, incluindo «mulheres e crianças»...deviam estar prontos para um «tratamento especial».

Era mais que evidente que esse tratamento nada tinha a ver com aquele de que beneficiou o senhor François-Poncet. É por isso que Kaltenbrunner nega logo ter escrito a carta.

— Creio que desta vez — replica o coronel Amen — o original da carta traz a sua assinatura.

— Não! — insiste Kaltenbrunner. — É uma assinatura a tinta ou um fac-simile mas não é a minha.

Ao caibo de uma longa operação de verificação, Kaltenbrunner «admite» que é a sua assinatura. Mas tratar-se-ia de um fac-simile de que qualquer empregado da 4ª Repartição se podia servir. Então Amen faz-lhe o reparo de que na carta em questão a assinatura é precedida de uma palavra escrita pelo mesmo punho e que põe fora de hipótese o fac-simile. De novo lhe mostram o texto, ele olha para a «palavra» e o seu rosto passa do encarnado para o carmesim. Trata-se da palavra «Dein» (teu).

Pergunta-lhe o coronel Amen:

— Muito bem, mas não seria completamente ridículo fazer um fac-simile que além da assinatura trouxesse a palavra «Dein» por cima?

Este era, do ponto de vista psicológico, um golpe de morte, e foi preciso todo o descaramento de Kaltenbrunner para o encaixar. Lançou-se então numa verborreia absurda: toda a gente sabia da sua amizade por Blaschke, era por isso que qualquer funcionário tinha podido, por sua própria iniciativa, acrescentar o malfadado possessivo «Dein».

A sala reagiu a esta proeza de espírito com uma explosão de hilaridade. Mas ele teimou na negativa como se não fosse nada com ele. E o coronel Amen, habitualmente tão correcto, não aguentou mais:

— Não se tratará antes, réu, do facto de o senhor estar a mentir como tem mentido ao Tribunal sobre quase todos os factos acerca dos quais testemunhou? Não será isso?

Isto foi dito tão rudemente e com tanta convicção que Kaltenbrunner, esse comediante especializado em papéis de virtude ultrajada, nada encontrou como resposta.

«Só assim ele ficam sem condições de causar dano»

No fim do interrogatório Kaltenbrunner podia concluir com toda a certeza que o duelo entre a Acusação e a sua Defesa culminara numa catastrófica derrota desta última. Era bem obrigado a ver isso, até porque ele próprio estivera outrora na jurisprudência.

Fica em perspectiva a fase final do processo: o discurso do advogado e a última declaração do réu. O «grande inquisidor», sempre fiel a si próprio, continua a alimentar esperanças.

Dá-se perfeitamente conta que o seu advogado, fosse ele Cícero em pessoa, não podia igualar o Dr. Dix, advogado de Schacht. Kaltenbrunner está persuadido de que Schacht fez muito mais por Hitler do que ele próprio, chefe do RSHA... Mas esse finório do Dix foi capaz de apresentar extremamente bem o seu constituinte ao Tribunal, foi com muita arte que cozinhou um prato que tão bem soube servir!

O mais aborrecido foi que Dix começou por apresentar Schacht a Kaltenbrunner em oposição, qualificando o primeiro de corajoso adversário do hitlerismo e, o segundo, de carrasco, de carcereiro que causou danos ao seu cliente. Em suma, Dix contribuiu bastante para desmascarar o chefe da Gestapo ao querer salvar o «ditador económico» da Alemanha nazi.

Kaltenbrunner, antigo advogado, poderia dirigir tanto a Dix como a Kauffmann uma severa crítica, lembrar-lhes pelo menos duas das «eternas questões do Foro». Pode e deve o advogado, por exemplo, declarar culpado o seu constituinte quando este se apresenta como não culpado? E é admissível, num processo colectivo, lançar acusações sobre um dos arguidos em proveito de outro? A maioria dos advogados reprova esses métodos. Mas o Dr. Dix não teve problemas em afundar Kaltenbrunner para defender Schacht.

Com certeza que isso complicava a tarefa de Kauffmann, que já de si não era fácil.

De resto, Kaltenbrunner não o achava com suficiente inspiração para pronunciar um discurso que impressionasse. Pelo menos, nas precedentes fases do processo, Kauffmann tinha-se mostrado mais para o reservado na avaliação dos actos do seu cliente, na maneira de interrogar as testemunhas e de se comportar em relação ao Ministério Público.

Não, Kaltenbrunner não tinha ilusões quanto ao seu advogado. Disse um dia a Gilbert:

— O meu advogado é um homem muito consciencioso. Enterrou-me ainda com menos piedade do que a Acusação. A sério, estava com medo do interrogatório directo que ele me ia fazer.

Claro que Kaltenbrunner estava a exagerar. Kauffmann, apesar de tudo, defendia-o. Mas, no plano puramente profissional, a sua tarefa era ingrata. Quanto às «eternas questões do Foro», devo dizer que houve uma que se pôs a Kauffmann, e sempre a mesma: pode o advogado não ter a mesma opinião do réu no que respeita ao grau da sua culpabilidade? Poderá ele, se o réu se declara não culpado, sustentar na sua defesa que a culpabilidade do seu cliente está provada mas que ele lhe encontra circunstâncias atenuantes? Ou, digamos, reconhecer que o réu é culpado mas contestar determinados pontos de acusação? As opiniões divergem. Uns dizem que o advogado de defesa tem o direito de contraditar o seu cliente de achar que a atitude deste só agrava o seu caso. Segundo outros é inadmissível que o advogado declare o réu culpado, pois nesse caso a Defesa ficaria, em suma, assimilada à Acusação.

Kauffmann teve, aparentemente, muitas dificuldades em resolver esse problema. Dava-se conta que a sua participação no processo de Nuremberga lhe proporcionava notoriedade na Alemanha e no estrangeiro. Mas sabia também que existem duas espécies de notoriedade. Ele estava a defender, apesar de tudo, um homem cujo nome se tornara símbolo dos crimes mais atrozes, um homem odiado por todo o mundo. Ao ver que não tinha nenhum motivo de defesa, acabou por tomar a firme decisão de se dessolidarizar do seu constituinte, para não ter de passar por estúpido e ridículo. Que fosse Kaltenbrunner a armar-se em parvo: já que esse papel lhe agradava tanto, que o monopolizasse até ao fim! É que ele, pelo menos, não tinha nada a perder: aquele seria, de qualquer maneira, o seu derradeiro papel. Ao passo que o Dr. Kauffmann devia pensar no futuro.

E ei-lo pronto para fazer o seu discurso de defesa. Como irá ser? Que argumentos irá ele avançar a favor do torcionário licenciado em Direito, cujas mãos estão manchadas pelo sangue de milhões de vítimas? É difícil adivinhá-lo.

O Dr. Kauffmann começa de longe. De tão longe que ao fechar os olhos me sinto a assistir à aula universitária de um grande historiador. Kauffmann fala do Renascimento, do subjectivismo, da Revolução Francesa, das origens do liberalismo...O próprio Lord Lawrence, por natureza tão paciente e desejoso de proporcionar toda a largueza aos defensores, acaba por dar sinais de surpresa. Pergunta delicadamente quando passará ele do Renascimento a Auschwitz. Então Kauffmann vai gradualmente descendo das nuvens para a terra humilde.

Pronuncia, por fim, o nome do seu constituinte. E logo se apressa a prevenir que o seu dever o irá levar a dizer muitas coisas que ele preferiria manter em silêncio.

— Compreendo muito bem — declara — que perante o rio de sangue e lágrimas derramados me poderia abster de aclarar a psicologia moral deste homem. Mas sou seu defensor...

Lamenta que o processo tenha sido organizado cedo demais: «os seres humanos despedaçados entre...a justiça e a vingança» ainda não recobraram, depois da maior das guerras, o sangue-frio necessário para um julgamento objectivo. Mas logo rejeita deliberadamente a táctica preferida do seu cliente, que sustentou ser apenas o chefe do serviço de informações. O doutor Kauffmann diz que o réu

«não podia contar com circunstâncias atenuantes...a não ser que tivesse conseguido provar que tinha realmente procedido a uma separação nítida entre essa 4ª Repartição (Gestapo) verdadeiramente demoníaca e a Polícia Secreta de Estado, que ele de modo nenhum tinha participado nas ideias e nos métodos que estiveram na origem de todo esse processo».

Mas como nada disso se passou, como se verificou que todas as provas de Kaltenbrunner eram inconsistentes, o advogado confessa-se desarmado.

— Não posso negar que ele tenha dirigido a 4ª Repartição. Nesse sentido nada ficou provado e o seu próprio depoimento se vira contra ele.

O Dr. Kauffmann não esquece no entanto que, a despeito das suas convicções pessoais, não lhe compete desdobrar o procurador na sua tarefa. O seu dever profissional leva-o a procurar circunstâncias atenuantes. É o que todo o advogado de defesa sensato faz quando tem de defender uma causa desesperada.

Kauffmann diz que o seu cliente se opôs à linchagem dos aviadores americanos abatidos, que os desumanos decretos respeitantes aos massacres, aos campos de concentração, ao «tratamento especial» dos presos tinham aparecido muito antes da sua nomeação, para o cargo de chefe do RSHA e que o principal responsável fora, apesar de tudo, Himmler:

— Creio que Kaltenbrunner gostaria de voltar ao mundo! — exclama pateticamente o advogado. — E sei que ele defenderia essa liberdade, mesmo que tivesse de a pagar com o seu sangue...

Esta defesa não era do gosto do réu. Kaltenbrunner fez semblante de desagrado quando Kauffmann focou o ponto do dever que todo o indivíduo tem de desobedecer às ordens que visem implantar o mal e sejam contrárias aos sentimentos da humanidade. O mestre carrasco era como se tivesse os pés no fogo quando o advogado desenvolvia este perigoso tema:

— Com certeza que o doutor Kaltenbrunner não contestará que aquele que está colocado à frente de um serviço importante para a comunidade tem obrigação de sacrificar a própria vida, nas condições que acabo de expor.. .

Depois de semelhantes sentenças, o Dr. Kauffmann mais não tinha do que reconhecer a culpabilidade do seu cliente. E foi o que fez:

Kaltenbrunner é culpado, mas a envergadura da sua culpa é menor do que aos olhos da Acusação parece ser. Ele ficará à espera do vosso julgamento, sabendo que é o último representante de uma maléfica potência pertencente ao mais sombrio e doloroso período da história do Reich.

A restritiva fórmula foi dita pelo advogado tão depressa e confusamente que a maioria dos assistentes não a ouviu. E os que a ouviram não viram nela mais do que uma formalidade tradicional: é bem preciso que o defensor ponha em dúvida o grau de culpabilidade atribuído ao seu constituinte pela Acusação. E claro que também ninguém se admirou por o doutor Kauffmann, terminado o seu discurso de defesa, ter soltado um suspiro. Um grande suspiro de alívio.

Faltava ouvir a última declaração do réu.

A certeza de que nem o seu próprio advogado acreditava nele, para não falar já do Ministério Público, incita Kaltenbrunner às concessões: sim, depois da derrota do Reich ele reconhece ter cometido actos ilegítimos. Mas não teria agido com más intenções, mas apenas porque compreendera mal qual o seu dever. Além disso,

«se as próprias ordens que executei, e que são consideradas ordens importantes, foram promulgadas antes da minha entrada em funções, então a fatalidade foi mais forte que eu».

Não podíamos, mais uma vez, fazer outra coisa senão espantar-nos com o absurdo da sua táctica. Ninguém o acusava de ser o autor dessas ordens. Mas a verdade é que ele foi um zeloso executante delas. Aliás sabia perfeitamente do que era acusado. E tão bem o sabia que não pôde impedir-se de reflectir na sugestão do seu advogado: antes a morte do que ter de responder pelos crimes que lhe imputavam. Era sem dúvida uma frase cavaleiresca. Mas Kaltenbrunner não procurou aprofundá-la, e a ideia do sacrifício não demorou muito a varrer-se-lhe do espírito.

— Será que me devia ter entrincheirado por trás da irresponsabilidade simulando uma doença — gemia ele na sua última declaração — ou tudo pôr em acção para limitar os efeitos de uma barbárie sem precedentes?

Mas ele não fez, infelizmente, nem uma coisa nem outra. É que se o tivesse feito teria deixado de ser Ernst Kaltenbrunner, teria renunciado à sua natureza criminosa, coisa de que era incapaz.

No entanto acha que isso é tudo o que lhe pode ser censurado.

— Só isso deve determinar aqui a minha culpa.

A opinião do Dr. Kaltenbrunner nesta matéria, porém, só a ele viria a interessar. O Tribunal via nele um «grande inquisidor» em comparação do qual Torquemada não passava de um noviço. O Tribunal julgou-o como assassino que era, tendo por testemunhas de acusação milhões de vítimas queimadas, gaseadas, fuziladas, enterradas vivas, lançadas de precipícios! Como organizador das tragédias de Mauthausen, de Auschwitz, de Buchenwald, de Treblinka! O Tribunal dos Povos julgou aquele que, com os horríveis suplícios infligidos nas caves da Gestapo, calcara aos pés a própria ideia de justiça humana.

Condenado à morte por enforcamento no dia 1 de Outubro de 1946, Ernst Kaltenbrunner cumpriu a pena que tinha merecido no dia 16 de Outubro às duas horas da manhã. Quando nos mostraram a fotografia do seu cadáver, um jornalista alemão salientou:

— Só assim eles ficam sem condições de causar danos.


Notas de rodapé:

(19) Aparências de aldeias. O príncipe russo Potemkine, quando Catarina II manifestou o desejo de visitar a Crimeia, mandou instalar nos locais da sua passagem aldeias fictícias, destinadas a dar a ilusão de que ele velava pelo bem-estar da região. (retornar ao texto)

Inclusão 16/09/2015
Última atualização 05/04/2016