A reprodução da vida cotidiana

Fredy Perlman

1969


Primeira Edição: Black & Red, 1969

Fonte: Traduzido e publicado pelo Grupo Autonomia no website Biblioteca Virtual Revolucionária em fevereiro de 2000 a partir da versão original em inglês de Black & Red, 1969 - https://libcom.org/library/reprodu%C3%A7%C3%A3o-da-vida-cotidiana-fredy-perlman

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


"O objetivo dessa comunidade e desses indivíduos é a reprodução dos específicos meios de produção e dos indivíduos com suas características particulares, com as relações e estruturas sociais que os determinam e que eles sustentam ativamente. Todos eles te dizem que em princípio, ou seja, consideradas como idéias abstratas, competição, monopólio, etc., são as únicas bases de vida, mas na prática eles deixam muito a desejar. Todos eles querem a competição sem os efeitos letais da competição. Todos eles querem o impossível: as condições burguesas de existência sem as necessárias conseqüências destas condições. Nenhum deles compreende que a forma burguesa de produção é histórica e transitória, exatamente como a forma feudal o foi. Esse erro decorre do fato de que o homem burguês é para eles a única base possível de cada sociedade; eles não são capazes de imaginar uma sociedade na qual os homens tenham deixado de ser burgueses." Karl Marx

A atividade prática diária dos homens da comunidade tribal reproduz ou perpetua a tribo. Esta reprodução não é apenas física, mas também social. Através de suas atividades diárias, os homens da tribo não se reproduzem apenas como um grupo de seres humanos; eles reproduzem a tribo, ou seja, uma forma social particular no interior da qual esse grupo de seres humanos desempenha atividades específicas de uma maneira específica. As atividades específicas dos homens tribais não são o resultado de características "naturais" dos homens que as desempenham, já o estilo de produção do mel, decorre da natureza da abelha. A vida cotidiana produzida e perpetuada pelos homens tribais é uma resposta social específica às condições materiais e históricas muito peculiares.

A atividade cotidiana dos escravos reproduz a escravidão. Através de suas atividades diárias, os escravos não apenas reproduzem a si mesmos e seus senhores fisicamente; eles também reproduzem os instrumentos com os quais o senhor os reprime, além de sua própria submissão à autoridade do senhor. Para homens que vivem numa sociedade escravocrata, a relação senhor-escravo parece como uma relação eterna e natural. Entretanto, os homens não nascem senhores ou escravos. A escravidão é uma forma social específica, e os homens se submetem a ela apenas em condições materiais e históricas particulares.

A prática cotidiana dos trabalhadores assalariados reproduz o trabalho assalariado e o capital. Através de suas atividades diárias, os homens "modernos", como os homens tribais e escravos, reproduzem a população, as relações sociais e as idéias da sociedade em que vivem; eles reproduzem a forma social da vida cotidiana. Como a tribo e o sistema escravocrata, o sistema capitalista tampouco é a forma natural ou final da sociedade humana. Como as anteriores formas sociais, o capitalismo é uma resposta à condições históricas e materiais específicas.

Diferentemente das formas antecedentes de organização da atividade social, a vida cotidiana na sociedade capitalista transforma sistematicamente as condições materiais a que o capitalismo originalmente correspondeu. Alguns destes limites materiais para a atividade humana são gradualmente submetidos ao controle humano. Num alto nível de industrialização, a atividade prática cria suas próprias condições materiais assim como sua forma social. Portanto, o tema em análise não é apenas como a atividade prática na sociedade capitalista reproduz a sociedade capitalista, mas também como essa atividade por si mesma elimina as condições materiais a que o capitalismo correspondia.

VIDA COTIDIANA NA SOCIEDADE CAPITALISTA

A forma social das atividades regulares das pessoas no capitalismo é a resposta para uma determinada situação material e histórica. A condição material e histórica explica a origem da forma capitalista, mas não explica porque esta forma continua depois que a situação inicial desapareceu. O conceito de "atraso cultural" não é explicação para a continuidade da forma social depois do desaparecimento das condições iniciais às quais ela correspondia. Este conceito é meramente um nome para a continuidade da forma social. Quando o conceito de "atraso cultural" funciona como um nome para a "força social" que determina a atividade humana, isto é uma ofuscação na qual está presente o produto da atividade das pessoas como uma força exterior e fora de seu controle. Isto não é verdadeiro apenas para um conceito como "atraso cultural". Muitos dos termos usados por Marx para descrever atividades das pessoas têm sido elevados ao status de força externa e até mesmo "natural" que determina essa atividade. Portanto, conceitos como "luta de classes", "relações de produção" e particularmente "A Dialética", desempenham a mesma função nas teorias de alguns "marxistas" que "Pecado Original", "Destino" e "A Mão Do Destino" desempenharam nas teorias místicas medievais.

Em suas atividades cotidianas, os membros da sociedade capitalista efetuam simultaneamente dois processos: reproduzem a forma de suas atividades e eliminam as condições materiais na qual essa forma de atividade inicialmente correspondeu. Mas eles não percebem que efetuam esses dois processos. Suas próprias atividades não são transparentes para eles. Eles estão sob a ilusão de que suas atividades são respostas a condições naturais acima de seu controle, e não vêem que eles mesmos são os autores dessas condições. A tarefa da ideologia capitalista é manter o véu que impede as pessoas de ver que suas próprias atividades reproduzem a forma de sua vida cotidiana: a tarefa da teoria crítica é desvendar as atividades da vida cotidiana, torná-las transparentes, fazer com que a reprodução da forma social da atividade capitalista seja visível nas atividades cotidianas das pessoas.

Sob o capitalismo, a vida cotidiana consiste em atividades relacionadas que reproduzem e expandem a forma capitalista de atividade social. A venda do tempo de trabalho por um preço (salário), a objetivação do tempo de trabalho em mercadorias (bens vendáveis, tangíveis e intangíveis) , o consumo de mercadorias tangíveis e intangíveis (tais como consumidor de bens e espetáculos) - essas atividades que caracterizam diariamente a vida sob o capitalismo não são manifestações da "natureza humana"; tampouco são elas impostas ao homem por forças acima de seu controle. (...)

ALIENAÇÃO DA ATIVIDADE VITAL

Na sociedade capitalista, a atividade criativa assume a forma de produção de mercadorias e os produtos da atividade humana assumem a forma de mercadorias. Os produtos da atividade humana necessários para a sobrevivência são mercadorias vendáveis: elas são obtidas em troca de dinheiro. E o dinheiro só é obtido na troca por mercadorias. Se os homens aceitam a legitimação dessas convenções, se aceitam que as mercadorias são um pré-requisito para o dinheiro e o dinheiro é um pré-requisito para a sobrevivência, então eles estão aprisionados num círculo vicioso. Para aqueles que não possuem mercadorias, a única saída desse círculo é considerar a si mesmo ou parte de si mesmo como mercadoria. E esta é, de fato, a "solução" peculiar que o homem impôs a si mesmo em condições materiais e históricas específicas. Os homens não trocam seus corpos ou partes de seus corpos por dinheiro. Eles trocam o conteúdo criativo de suas vidas, sua atividade prática diária, por dinheiro.

Tão logo o homem aceita o dinheiro como um equivalente para a vida, a venda da atividade torna-se uma condição para sua sobrevivência física e social. A vida é trocada pela sobrevivência. Criação e produção passam a significar atividade vendável. E o próprio homem se torna um membro produtivo da sociedade apenas se ou na medida em que as atividades de sua vida cotidiana são atividades vendáveis. A atividade do homem é "produtiva", útil à sociedade, apenas quando é uma atividade vendida. Tão logo as pessoas aceitam os termos desta troca, a atividade diária toma a forma de prostituição universal.

O poder criativo vendido, ou a atividade diária vendida, assume a forma de trabalho. O trabalho é uma forma historicamente específica de atividade humana. O trabalho é uma atividade abstrata que possui apenas uma peculiaridade: a de ser trocado ou comercializado, de poder ser vendido por uma dada quantidade de dinheiro. O trabalho é uma atividade indiferente: indiferente à tarefa particular desempenhada e indiferente à finalidade para a qual é direcionada. Escavar, imprimir e esculpir são atividades diferentes, mas todas as três são trabalho na sociedade capitalista. Trabalho é simplesmente "ganhar dinheiro". A atividade que assume a forma de trabalho é uma maneira de se obter dinheiro. A vida se torna um meio de sobrevivência.

Este reverso irônico não é um clímax dramático de uma novela imaginária; é um fato da vida diária na sociedade capitalista. Sobrevivência, ou seja, produção e reprodução, não são objetivos de uma atividade prática criativa. Muito pelo contrário, a atividade criativa sob a forma de trabalho, ou seja, atividade vendida, é uma necessidade penosa para a sobrevivência; trabalho é meio de auto-preservação e reprodução.

A venda da atividade leva à outro reverso. Através da venda, o trabalho de um indivíduo torna-se propriedade de um outro, isto é, apropriado por um outro, fica sob controle de um outro. Em outras palavras, a atividade de uma pessoa torna-se atividade de uma outra, a atividade de seu proprietário; ela torna-se alienada da pessoa que a desempenha. Portanto, a vida, a realização de um indivíduo no mundo, a diferença que sua vida faz na vida da humanidade, não são apenas transformadas em trabalho, uma condição dolorosa para a sobrevivência; elas são transformadas em atividade alienada, atividade desempenhada pelo comprador daquele trabalho. Na sociedade capitalista, os arquitetos, os engenheiros, os trabalhadores não são os construtores; o homem que compra o seu trabalho é o construtor; seus projetos, cálculos e atos são alienados, pois suas atividades, suas realizações pertencem ao capital.

Sociólogos acadêmicos (que encaram a venda da força de trabalho como uma concessão) entendem a alienação do trabalho como um sentimento: a atividade dos trabalhadores "aparece" alienada do trabalhador, este "parece" ser controlado por outro. Entretanto, qualquer trabalhador é capaz de explicar a um sociólogo acadêmico que a alienação é tampouco sentimento ou uma idéia na cabeça, mas um fato real na vida cotidiana dos trabalhadores. A atividade vendida é, de fato, alienada do trabalhador; seu trabalho é, de fato, comprado pelo capitalista.

Em troca de sua atividade vendida, o trabalhador recebe dinheiro, o meio de sobrevivência convencionalmente aceito na sociedade capitalista. Isto revela uma diferença peculiar ao dinheiro, como "equivalente universal". Uma pessoa pode vender mercadorias por dinheiro e pode comprar as mesmas mercadorias com dinheiro. Pode vender sua atividade por dinheiro, mas não pode comprar sua atividade com dinheiro.

As coisas que o trabalhador compra com seu salário são antes de tudo mercadorias de consumo necessárias à sua sobrevivência, para produzir sua força de trabalho, de modo a poder continuar vendendo-a. Mas essas mercadorias são também objetos para admiração passiva: espetáculos dos quais ele é o espectador. O trabalhador consome e admira os produtos da atividade humana passivamente. Ele não existe no mundo como um sujeito ativo que o transforma, mas como um coitado, um espectador impotente; ele pode chamar esse estado de impotente admiração de "felicidade". E mesmo que o trabalho seja penoso, ele pode desejar ser "feliz", ou seja, não-ativo por toda sua vida (uma condição similar a estar morto em vida). As mercadorias, os espetáculos o consomem; ele consome energia viva em admiração passiva; ele é consumido pelas coisas. Neste sentido, quanto mais ele tem, menos ele é. (Um indivíduo pode superar sua morte em vida através de atividades criativas marginais; mas a população não pode, exceto abolindo a forma capitalista de atividade prática, abolindo o trabalho assalariado e portanto desalienando a atividade criativa).

O FETICHISMO DAS MERCADORIAS

Alienando suas atividades e incorporando-as em mercadorias (receptáculos materiais de trabalho humano), as pessoas reproduzem a si mesmas e criam o capital. Do ponto de vista da ideologia capitalista, e particularmente dos economistas acadêmicos, esta afirmação é falsa: as mercadorias "não são produtos do trabalho somente"; elas são produzidas pelos "fatores de produção" primordiais, Terra, Trabalho e capital, a Santíssima Trindade capitalista. O "fator" principal e, obviamente, o herói dessa peça é o capital.

O objetivo dos defensores dessa trindade superficial não é a análise, posto que a análise não é aquilo que esses especialistas são pagos para fazer. Eles são pagos para ofuscar a forma social de atividade prática sob o capitalismo, para encobrir o fato de que os produtores reproduzem a si mesmos, seus exploradores, assim como os instrumentos com os quais eles são explorados. A fórmula da trindade não é suficientemente convincente. É óbvio que a Terra não produz mercadorias, assim como a água, o ar ou o sol. (...) Mesmo os instrumentos de produção que são o capital de um capitalista são "fatores de produção" primordiais apenas se alguém limita seu campo visual a uma firma capitalista isolada. A visão da economia como um todo revela que o capital de um capitalista suga o trabalho alienado por outro capitalista. Entretanto, ainda que a 'formula da Trindade não convença, ela cumpre sua tarefa de ofuscação ocultando o essencial da questão: em vez de perguntar porque a atividade das pessoas sob o capitalismo assume a forma de trabalho assalariado, analistas em potencial da vida cotidiana capitalista transformados em acadêmicos marxistas domesticados perguntam se o trabalho é ou não o único "fator de produção".

Portanto, a economia (e a ideologia capitalista em geral) trata a terra, o dinheiro e os produtos do trabalho como coisas que possuem o poder de produzir, de criar valores, de trabalhar para seus proprietários, de transformar o mundo. Isto é o que Marx chamou de fetichismo, que caracteriza as opiniões das pessoas, e que são elevadas ao nível de dogma pela economia. Para o economista, as pessoas vivas são coisas ("fatores de produção") e as coisas vivem (o dinheiro "trabalha", o capital "produz").

O adorador de fetiches (fetichista) atribui o produto de sua atividade ao seu fetiche. Como resultado, ele cessa de exercer sua potência (de transformar a natureza, de determinar a forma e o conteúdo de sua vida cotidiana); ele exerce apenas aqueles "poderes" que atribui para seu fetiche (o "poder" de comprar mercadorias). Em outras palavras, o fetichista se castra e atribui virilidade ao seu fetiche.

Mas o fetiche é uma coisa morta, não um ser vivo; ele não possui virilidade. O fetiche não é nada mais do que uma coisa para a qual e pela qual as relações capitalistas são mantidas. O misterioso poder do capital, seu "poder" de produzir, sua virilidade, não reside nele mesmo, mas no fato de que as pessoas alienam suas atividades criativas, de que elas vendem seu trabalho aos capitalistas, que eles materializam ou reificam (coisificam) seu trabalho em mercadorias. Em outras palavras, as pessoas são compradas com o produto de suas próprias atividades, todavia vêem suas próprias atividades como atividades do capital e seus próprios produtos como produtos do capital. Atribuindo poder criativo ao capital e não à sua própria atividade, abdicam de sua atividade, de sua vida cotidiana em benefício do capital. Isto significa que, diariamente, os trabalhadores se coisificam, sacrificando-se para a personificação do capital, o capitalista.

Vendendo seu trabalho, alienando sua atividade, as pessoas reproduzem diariamente as personificações das formas dominantes de atividade sob o capitalismo, elas reproduzem o trabalhador assalariado e o capitalista. Eles não apenas reproduzem os indivíduos fisicamente, mas também socialmente; eles reproduzem indivíduos que são vendedores da força de trabalho e indivíduos que são proprietários dos meios de produção, eles reproduzem os indivíduos assim como suas atividades específicas, a venda assim como a propriedade.

Toda vez que as pessoas desempenham uma atividade que elas mesmas não definiram e não controlam, toda vez que pagam por mercadorias que produziram com dinheiro recebido em troca de sua atividade alienada, toda vez que admiram passivamente os produtos de sua própria atividade como objetos alienados adquiridos pelo dinheiro, elas dão vida nova ao capital e aniquilam suas próprias vidas.

O resultado desse processo é a reprodução da relação entre o trabalhador e o capitalista. Entretanto, não é esse o objetivo dos indivíduos envolvidos. Suas atividades não são transparentes para eles; seus olhos estão fixados no fetiche que se mantém entre o ato e o resultado. O agente individual mantém os olhos fixados nas coisas, principalmente naquelas coisas pelas quais as relações capitalistas são estabelecidas. O trabalhador como produtor deseja trocar seu trabalho diário por salário em dinheiro, ele deseja precisamente as coisas que os capitalistas têm para vender, visando a realizar seu capital.

A transformação diária da atividade vital em capital é mediada por coisas, mas não é efetuada pelas coisas. O fetichista não sabe disso: para ele trabalho e terra, instrumentos e dinheiro, empresários e banqueiros, são todos "fatores" e "agentes". Quando um caçador, que porta um amuleto, abate um cervo com uma pedra, ele talvez considere o amuleto um "fator" essencial para o seu êxito, até mesmo efetuando magicamente a presença do cervo como uma presa a ser abatida pelo caçador. Se ele é um fetichista responsável e bem educado, devotará atenção para seu amuleto, cuidando-o e admirando-o. Para melhorar as condições materiais de sua vida, tentará aperfeiçoar o seu fetiche, não a maneira de atirar a pedra; ele talvez até envie seu amuleto para "caçar" por ele. Suas próprias atividades diárias não são transparentes para ele: quando come bem, não consegue ver que é sua própria ação de atirar a pedra e não a ação do amuleto, que provê sua comida; quando está faminto, não consegue ver que é sua adoração do amuleto ao invés de caçar, e não a ira de seu fetiche, a causa de sua fome.

O fetichismo das mercadorias e do dinheiro, a mistificação das atividades diárias das pessoas, a religião da vida cotidiana que atribui atividade a coisas inanimadas, não é um capricho mental nascido das imaginações dos homens; ele tem origem no caráter das relações sociais sob o capitalismo. Os homens de fato se relacionam uns com os outros através de coisas; o fetiche é de fato a ocasião na qual eles agem coletivamente e através da qual eles reproduzem suas atividades. Mas não é o fetiche que atua. Não é o capital que transforma matérias primas, nem tampouco o capital produz mercadorias. Se a atividade vital dos homens não transformasse esses materiais, eles se manteriam inertes, matéria morta. Se os homens não se dispusessem a continuar vendendo sua atividade, a impotência do capital seria revelada. O capital deixaria de existir, sua última potência remanescente seria o poder de lembrar as pessoas de um passado em que a vida cotidiana se caracterizava pela prostituição universal e diária.

O trabalhador aliena sua vida para preservar sua vida. Se ele não vendesse sua atividade ele não ganharia um salário e não poderia sobreviver. Entretanto, não é o salário que faz da alienação a condição de sobrevivência. Se os homens decidissem coletivamente não vender suas vidas, se eles estivessem dispostos a assumir o controle sobre suas próprias atividades, a prostituição universal não seria uma condição para a sobrevivência. É a disposição das pessoas para continuar vendendo sua atividade, e não as coisas pelas quais eles a vendem que faz com que a alienação da atividade seja necessária para a preservação da vida.

A atividade vendida pelo trabalhador é comprada pelo capitalista. E é apenas essa atividade que respira vida no capital e o faz "produtivo". O capitalista, "proprietário" de matérias-primas e instrumentos de produção, exibe os objetos naturais e produtos do trabalho de outras pessoas como sua própria "propriedade privada". Mas não é o misterioso poder do capital que cria a "propriedade privada" do capitalista; a atividade vital é que cria a "propriedade privada" e a forma dessa atividade é o que a mantém "privada".

TRANSFORMAÇÃO DA ATIVIDADE VITAL EM CAPITAL

A transformação da atividade vital em capital efetua-se diariamente através das coisas, mas não pelas coisas. As coisas que são produtos da atividade humana parecem ser agentes porque as atividades e contatos são estabelecidos para e através de coisas e porque a atividade das pessoas não são transparentes para elas. Elas confundem a mediação do objeto com a causa do processo.

No processo capitalista de produção, o trabalhador incorpora ou materializa sua energia alienada num objeto inerte usando instrumentos que são materializações de atividades de outras pessoas (instrumentos industriais sofisticados incorporam a atividade intelectual e manual de incontáveis gerações de inventores, aperfeiçoadores e produtores do mundo inteiro e das mais variadas formas de sociedade). Os instrumentos por si mesmos são objetos inertes; eles são a incorporação material da atividade vital, mas não estão vivos. O único agente ativo no processo de produção é o trabalhador. Ele usa produtos do trabalho de outras pessoas e infunde-lhes vida, que é a vida dele mesmo; ele não é capaz de ressuscitar os indivíduos que estocaram atividades em seu instrumento. O instrumento talvez lhe permita fazer mais durante um período dado, e neste sentido, talvez eleve sua produtividade. Mas apenas o trabalho vivo é capaz de produzir e pode ser produtivo.

Por exemplo, quando um trabalhador industrial dirige um torno mecânico, ele usa produtos do trabalho de gerações de físicos, inventores, engenheiros, fabricantes de torno mecânico. Ele é obviamente mais produtivo do que o artesão que esculpe o mesmo objeto. Mas não faz sentido considerar que o "capital" a disposição do trabalhador industrial é mais "produtivo" do que o "capital" do artesão. (...)

A noção de "produtividade do capital", e particularmente, a medição detalhada da "produtividade" são invenções da "ciência" da Economia, aquela religião da vida diária do capitalista que consome a energia das pessoas na adoração, admiração e adulação do fetiche central da sociedade capitalista. Colegas medievais desses "cientistas" efetuaram detalhadas medidas de largura e altura dos anjos no céu, sem ao menos perguntar se os anjos e o céu existiam, porque tinham certeza da existência de ambos.

O resultado da atividade alienada do trabalhador é o produto que não lhe pertence. Este produto é uma mercadoria, uma incorporação de seu trabalho, a materialização de parte de sua vida, o receptáculo que contém sua atividade alienada. Ele não decide o que, como e quando fazer; ele não dirige sua atividade nem é dono do que faz. Se ele quiser apossar-se do que fez, será como comprador. Mas o que ele tem feito não é apenas um produto com algumas utilidades. Se ele não precisasse vender seu trabalho para o capitalista em troca de um salário, teria apenas que escolher os materiais necessários e as ferramentas disponíveis para produzir, guiado pelos seus objetivos e limitado por seus conhecimentos e habilidades. (É óbvio que um indivíduo só pode fazer isso marginalmente. A livre apropriação e o uso de materiais e ferramentas disponíveis pelos homens somente acontecerão quando o trabalho, enquanto atividade alienada pelo capital, e o próprio capital forem abolidos).

O que o trabalhador produz em condições capitalistas é um produto com uma propriedade muito específica, a de ser vendido. O que sua atividade alienada produz é uma mercadoria.

A produção capitalista é produção de mercadorias. Logo, afirmar que o objetivo do processo é a satisfação de necessidades humanas é falsa; isto é, uma racionalização e uma apologia. A satisfação de necessidades humanas não é o objetivo do capitalista ou do trabalhador engajado na produção, tampouco é o resultado do processo. O trabalhador vende seu trabalho por um salário; o conteúdo específico do salário é indiferente para ele; ele não aliena seu trabalho para um capitalista que não lhe dê um salário, não importa quantas necessidades humanas esses produtos capitalistas possam satisfazer. O capitalista compra trabalho e o engaja na produção de mercadorias. O capitalista permanece indiferente às propriedades específicas do produto e às necessidades das pessoas. Tudo que lhe interessa a respeito do produto é por quanto ele será vendido, e tudo que lhe interessa a respeito da necessidade das pessoas é quanto elas "precisam" para comprar e como elas podem ser coagidas, através da propaganda e do condicionamento psicológico para "precisar" de mais. O objetivo do capitalista é satisfazer sua necessidade de acumular o capital, e o resultado desse processo é a reprodução ampliada do trabalho assalariado e do capital (que não são exatamente "necessidades humanas").

A mercadoria produzida pelo trabalhador é trocada pelo capitalista por uma específica quantidade de dinheiro. A mercadoria é um valor que se troca por um valor equivalente. Em outras palavras o trabalho (passado e presente) materializado no produto pode existir sob duas formas distintas e equivalentes, mercadoria e dinheiro, ou no que é comum a ambos, valor. Isso não significa que valor é trabalho. Valor é uma forma social de trabalho reificado (coisificado) na sociedade capitalista.

Sob o capitalismo, as relações sociais não são estabelecidas diretamente; elas são estabelecidas através do valor. A atividade cotidiana não é trocada diretamente; ela é trocada sob a forma de valor. Consequentemente, o que acontece com a atividade sob o capitalismo não pode ser descrito observando a atividade em si mesma, mas apenas seguindo as metamorfoses do valor.

Quando a atividade das pessoas toma a forma de trabalho (atividade alienada), torna-se possível comprá-la, porque adquire a forma de valor. Em outras palavras, o trabalho pode ser trocado por uma quantidade de dinheiro "equivalente" (salário). A alienação deliberada da atividade, que é percebida como necessária para a sobrevivência pelos membros da sociedade capitalista, reproduz a forma capitalista na qual a alienação é necessária para a sobrevivência. Porque a atividade tem a forma de valor, os produtos dessa atividade devem também assumir a forma de valor: eles devem ser cambiáveis por dinheiro. É óbvio que, se os produtos da atividade humana não assumem a forma de valor, mas a de objetos úteis à disposição da sociedade, então eles permaneceriam nas fábricas ou iriam ser pegos de graça pelos membros da sociedade quando a necessidade surgisse; neste caso, o dinheiro não teria valor e a atividade não poderia ser vendida por uma quantidade de dinheiro "equivalente". A atividade não poderia ser alienada. Consequentemente, assim que atividade assume a forma de valor, os produtos dessa atividade assumem a forma de mercadoria e a reprodução da vida cotidiana toma lugar através das mudanças ou metamorfoses do valor.

O capitalista vende os produtos do trabalho no mercado; ele os troca por uma equivalente quantidade de dinheiro; ele realiza um determinado valor. A magnitude específica desse valor num mercado particular é o preço dessas mercadorias. Para o economista acadêmico, o preço é a chave de São Pedro para os portões do céu. Como o próprio capital, o preço se move num mundo maravilhoso que consiste inteiramente de objetos; os objetos tem relações humanas uns com os outros e são vivos; transformam-se uns aos outros, comunicam-se uns com os outros, eles se casam e têm filhos. E é claro, é somente através desses inteligentes, poderosos e criativos objetos que as pessoas podem ser felizes na sociedade capitalista.

Nas pinturas dos economistas, os anjos, trabalhadores celestiais, fazem tudo e os homens nada fazem. Os homens simplesmente gozam o que os anjos fazem para eles. Não apenas o capital produz e o dinheiro trabalha; outros misteriosos seres possuem virtudes similares. Portanto, Oferta, uma quantidade de coisas que são vendidas; e Procura, uma quantidade de coisas que são compradas, determinam o preço, uma quantidade de dinheiro. Quando a Oferta e a Procura se casam num ponto particular do diagrama, elas dão à luz o ponto de equilíbrio dos preços, que corresponde a um estado universal de bem-aventurança. As atividades da vida cotidiana são desempenhadas pelas coisas, e as pessoas são reduzidas à coisas ("fatores de produção") durante suas horas "produtivas" e em espectadores passivos de coisas durante o seu tempo de lazer. O mérito do economista consiste em atribuir o produto da atividade cotidiana das pessoas às coisas e em não ver a atividade das pessoas por trás da extravagância das coisas. Para o economista, as coisas (por meio das quais a atividade das pessoas é regulada pelo capitalismo) são elas mesmas mães e filhos, causas e efeitos de sua própria atividade.

A magnitude do valor - ou seja, do preço da mercadoria, a quantidade de dinheiro pela qual é trocada - não é determinada pelas coisas mas pela atividade diária das pessoas. Procura e oferta, concorrência perfeita e imperfeita nada mais são do que formas sociais de produtos e atividades na sociedade capitalista; elas não têm vida própria. O fato de aquela atividade ser alienada, de que o tempo de trabalho é vendido por uma quantidade específica de dinheiro, de que isso possui um certo valor tem algumas conseqüências para a magnitude do valor dos produtos daquele trabalho. O valor das mercadorias vendidas deve ser no mínimo igual ao do tempo de trabalho que nelas foi incorporado. Isto é aplicável tanto à firma capitalista como à sociedade. Se o valor das mercadorias vendidas pelo capitalista individual fosse menor do que o valor do tempo de trabalho nelas, a firma logo iria à falência. Socialmente, se o valor das mercadorias produzidas for menor do que o valor investido em sua produção, a força de trabalho não consegue reproduzir-se, nem tampouco reproduzir os capitalistas. Todavia, se o valor das mercadorias for igual ao do tempo investido na sua produção, os trabalhadores reproduzem meramente a si mesmos e a sociedade já não seria uma sociedade capitalista; sua atividade poderia consistir em produção de mercadorias mas não seria uma produção capitalista de mercadorias.

Para o trabalho criar capital, o valor dos produtos de trabalho devem ser maiores do que o valor do trabalho. Em outras palavras, a força de trabalho deve produzir um sobreproduto, uma quantidade de bens que ela não consome e esse sobreproduto deve ser transformado em sobrevalor ou mais-valia, uma forma de valor que não é apropriada pelos trabalhadores como salários, mas pelos capitalistas como lucro. Posteriormente, o valor dos produtos do trabalho deve ser ainda maior, porque o trabalho vivo não é a única espécie de trabalho materializado neles. No processo de produção, os trabalhadores gastam sua própria energia, mas também utilizam o trabalho morto, estocado sob a forma de instrumentos, e transformam matérias-primas nas quais foi dispendido um trabalho prévio.

Isso leva a um estranho resultado: o valor dos produtos do trabalhador e o valor de seu salário são de magnitudes diferentes, ou seja, que a quantidade de dinheiro recebida pelo capitalista quando vende as mercadorias produzidas por seus trabalhadores empregados é diferente da quantidade que ele paga aos trabalhadores. Esta diferença não é explicada pelo fato de que os materiais usados e ferramentas devem ser pagos. Se o valor de uma mercadoria vendida fosse igual ao valor de um trabalho vivo e os instrumentos, não haveria lugar para os capitalistas. O fato é que a diferença entre essas duas magnitudes deve ser grande o bastante para sustentar a classe capitalista - não apenas os indivíduos, mas também a atividade específica que estes indivíduos estão engajados, ou seja, a compra da força de trabalho. A diferença entre a venda total dos produtos e o valor do trabalho gasto em sua produção é a mais-valia, a essência do capital.

Para desvendar a origem da mais-valia é necessário examinar porque o valor do trabalho é menor do que o valor das mercadorias produzidas por ele. A atividade alienada do trabalhador transforma materiais com a ajuda de instrumentos e produz uma certa quantidade de mercadorias. Entretanto, quando essas mercadorias são vendidas e os materiais e instrumentos usados foram ressarcidos, os trabalhadores não recebem o valor remanescente como salários; a eles é dado menos. Em outras palavras, durante o dia de trabalho, os trabalhadores exercem uma certa quantidade de trabalho não pago, trabalho forçado, pelo qual eles não recebem o equivalente.

Esse trabalho não pago, esse trabalho forçado é outra "condição de sobrevivência" para a sociedade capitalista. Entretanto, como a alienação, essa condição não é imposta pela natureza, mas pelas pessoas, por suas atividades cotidianas. Antes da existência de sindicatos, o trabalhador individual aceitava qualquer trabalho forçado, pois a rejeição do trabalho implicaria que outros trabalhadores o aceitariam, e o trabalhador individual não receberia salário. Os trabalhadores competiam uns com os outros pelos salários oferecidos pelos capitalistas; se um trabalhador desistia do emprego por considerar o salário muito baixo, um trabalhador desempregado não via a hora de substituí-lo, porque para o desempregado um salário baixo é melhor do que salário nenhum. Essa competição entre trabalhadores é chamada de "trabalho livre" pelos capitalistas, que fazem grandes sacrifícios para manter essa liberdade dos trabalhadores, uma vez que foi precisamente essa liberdade que preservou a mais-valia do capitalista e tornou-lhe possível acumular capital. Não é por vontade própria que o trabalhador produz mais mercadorias do que é pago para isso. Seu desejo é ganhar um salário o mais alto possível. Entretanto, a existência de trabalhadores desempregados, que não ganham salário algum, e cuja concepção de um salário alto era consequentemente mais modesta do que a de um trabalhador empregado, fez com que fosse possível para o capitalista empregar trabalho por um salário mais baixo. De fato, a existência de trabalhadores desempregados permite ao capitalista pagar o salário mais baixo que os trabalhadores estivessem dispostos a receber para trabalhar. Portanto, o resultado da atividade diária coletiva dos trabalhadores, cada um lutando individualmente pelo maior salário possível, foi baixar o salário de todos. O efeito da competição dos trabalhadores, do cada um por si e contra todos os outros, foi que cada um ganhou o mínimo possível, e o capitalista extraiu o máximo de mais-valia possível.

A prática diária de todos anula os objetivos de cada um. Mas os trabalhadores não sabem que sua situação resulta de sua atitude diária; suas próprias atividades não são transparentes para eles. Para os trabalhadores, o salário baixo parece ser uma simples parte natural da vida, como a doença e a morte, e a redução do salário uma catástrofe natural, como uma enchente ou um inverno intenso. As críticas de socialistas e as análises de Marx, assim como o aumento do desenvolvimento industrial que liberou mais tempo para reflexão, retirou alguns dos véus e fez com que os trabalhadores enxergassem além de suas atividades. Entretanto, na Europa Ocidental e nos EUA, os trabalhadores não repudiaram a forma capitalista da vida cotidiana; eles formaram sindicatos. E em condições materiais diferentes, na Rússia e na Europa Oriental, os trabalhadores substituíram a burguesia por um estado burocrático que compra trabalho alienado e acumula capital em nome de Marx.

Com os sindicatos, a vida cotidiana é semelhante ao que era sem eles. Na verdade, é quase igual. A vida cotidiana continua a consistir em trabalho (atividade alienada) forçado e não pago. O trabalhador sindicalizado não mais negocia os termos de sua alienação; funcionários do sindicato fazem isso por ele. Os termos pelos quais a atividade do trabalhador é alienada não são mais guiados pela necessidade individual do trabalhador de aceitar o que é possível. Agora, os trabalhadores são guiados pela necessidade burocrática do sindicato de manter sua posição como um intermediário entre os vendedores e compradores de trabalho.

Com ou sem sindicatos, mais-valia não é um produto da natureza ou do capital; é criada pela atividade cotidiana das pessoas. No desempenho de suas atividades cotidianas, as pessoas não estão somente dispostas a alienar essas atividades, elas também estão dispostas a reproduzir as condições em que são forçadas a alienar suas atividades, reproduzir capital e portanto o poder do capital para comprar trabalho. Isto não é porque eles não saibam "qual é a alternativa". Uma pessoa que é incapacitada por indigestão crônica porque come muita gordura não continua comendo gordura porque não sabe "qual é a alternativa". Ou ela prefere ser incapaz de desistir da gordura ou não é claro para ela que seu consumo diário de gordura causa sua incapacidade. E se seu doutor, pastor, professor e político diz à ela, primeiro, que a gordura é o que a mantém viva, e segundo, que eles já fazem tudo que ela faria se ela estivesse bem, então não surpreende que sua atividade não seja transparente para ela e que ela não se esforce para fazê-la transparente.

A produção de mais-valia é uma questão de sobrevivência, não para a população, mas para o sistema capitalista. A mais-valia é a porção do valor das mercadorias produzidas pelo trabalho que não retorna aos trabalhadores. Pode ser expressa em mercadorias ou em dinheiro (exatamente como o capital pode ser expresso como quantidade de mercadorias ou de dinheiro), mas isso não altera o fato de que é uma expressão para o trabalho materializado que é estocado numa dada quantidade de produtos. Desde que os produtos podem ser trocados por uma "equivalente" quantidade de dinheiro, o dinheiro representa o valor dos produtos. O dinheiro pode, de volta, ser trocado por outra quantidade de produtos de valor "equivalente". O conjunto dessas trocas, que ocorrem simultaneamente na vida cotidiana capitalista, constitui o processo capitalista de circulação. É assim que a metamorfose da mais-valia em capital acontece.

A porção de valor que não retorna ao trabalhador, ou seja, a mais-valia, permite a existência do capitalista, e também lhe permite fazer muito mais do que simplesmente existir. O capitalista investe uma porção da mais-valia; ele emprega novos trabalhadores e compra novos meios de produção; ele expande seu domínio. Isso significa que o capitalista acumula novo trabalho, ambos na forma de trabalho vivo que ele emprega e do trabalho passado (pago e não pago), que é estocado nos materiais e máquinas que compra.

A classe capitalista como um todo acumula a mais-valia do trabalho da sociedade, mas esse processo ocorre numa escala social e consequentemente não pode ser visto se observarmos apenas as atividades de um capitalista. Cabe lembrar que os produtos comprados por um capitalista como instrumentos tem as mesmas características dos produtos que ele vende. Um capitalista vende instrumentos para outro capitalista por uma dada quantidade de valor, e apenas uma parte desse valor é devolvido aos trabalhadores como salários, a parte restante é mais-valia, com a qual o primeiro capitalista compra novos instrumentos e trabalho. O segundo capitalista compra os instrumentos por um dado valor, o que significa que ele paga pela quantidade total de trabalho extorquida pelo primeiro capitalista, tanto o trabalho pago quanto o trabalho não pago. Isso significa que os instrumentos acumulados pelo segundo capitalista contém o trabalho não pago extorquido pelo primeiro. O segundo capitalista, de volta, vende seus produtos por um dado valor e devolve apenas uma porção de seu valor a seus trabalhadores; ele usa o restante para novos instrumentos e trabalho.

Se todo o processo fosse comprimido num único período de tempo, e se todos os capitalistas fossem agregados em um, seria visto que o valor com o qual o capitalista adquire novos instrumentos e trabalho é igual ao valor dos produtos que ele não retornou aos produtores. Esse trabalho acumulado em mais-valia é capital.

Nos termos da sociedade capitalista como um todo, o capital total é igual a quantidade de trabalho não pago efetuado por inumeráveis gerações de seres humanos, cujas vidas consistiram na alienação diária de sua atividade. Em outras palavras, o capital para o qual os homens vendem seus dias de vida, é o produto da atividade vendida de homens, e é reproduzido e expandido sempre que um homem vende outro dia de trabalho, a cada momento que ele decide continuar vivendo na forma capitalista da vida cotidiana.

ESTOQUE E ACUMULAÇÃO DA ATIVIDADE HUMANA

A transformação do trabalho excedente em capital é a forma histórica específica de um processo mais geral, o processo de industrialização, a transformação permanente do meio ambiente material do homem.

Certas características essenciais dessa conseqüência da atividade humana sob o capitalismo podem ser compreendidas por meio de uma ilustração simplificada. Numa sociedade imaginária, as pessoas gastam a maior parte de seu tempo ativo produzindo comida e outras necessidades. A atividade excedente pode ser dedicada à produção de alimentos para sacerdotes e guerreiros, ambos improdutivos. Pode, também, ser dedicada para produzir bens que são queimados em rituais sagrados ou mesmo usados em cerimônias ou exercícios de ginástica. Em qualquer um desses casos, as condições materiais de existência dessas pessoas não mudam, de uma geração para outra, como resultado de suas atividades cotidianas. Todavia, uma geração pode estocar a produção excedente, em vez de consumi-la. O trabalho excedente estocado da geração anterior irá prover a nova geração com uma quantidade ainda maior de tempo de trabalho excedente. Num período relativamente curto, o trabalho estocado irá exceder o tempo de trabalho disponível para qualquer geração; com o baixo consumo de energia, as pessoas dessa sociedade imaginária seriam capazes de provisionar-se para a maioria das tarefas necessárias e também para as tarefas das futuras gerações. A maioria das horas que eles gastaram produzindo utilidades seria agora disponível para atividades ditadas não pela necessidade mas pela imaginação.

À primeira vista, não parece razoável que as pessoas se dediquem à bizarra tarefa de produzir e estocar excedentes. Isso lhes parece um absurdo: se elas mesmas podem consumir, é improvável que estoquem para futuras gerações o que seria apenas suficiente para realizar um maravilhoso espetáculo em dias festivos.

Entretanto, se as pessoas não se dispuseram de suas próprias vidas, se sua atividade não lhes pertencia, se sua prática consistiu em trabalho forçado, então essa atividade humana alienada pode muito bem ser orientada para a tarefa de estocar tempo de trabalho excedente em receptáculos materiais. A função histórica do capitalismo, função preservada pelas pessoas que aceitaram a legitimidade de outros disporem de suas vidas, consistiu precisamente na estocagem de atividade humana (valor) em receptáculos materiais (mercadorias) por meio do trabalho forçado.

Quando se submetem ao "poder" do dinheiro para comprar trabalho estocado assim como atividade vital, quando aceitam o ''direito" fictício de guardadores de dinheiro para controlar e dispor do estocado tanto quanto da atividade vital da sociedade, as pessoas transformam dinheiro em capital e os donos do dinheiro em capitalistas.

Esta dupla alienação, a alienação da atividade vital em trabalho assalariado e a alienação da atividade das gerações passadas na forma de trabalho estocado (meios de produção), não é um ato único da história. A relação entre trabalhadores e capitalistas não é uma coisa que se impôs na sociedade em algum momento passado, de uma vez e para sempre. Os homens nunca assinaram um contrato, nem mesmo fizeram um acordo verbal, no qual abdicavam do poder sobre suas atividades e no qual eles desistiam do poder da atividade de todas as gerações futuras, no mundo inteiro.

O capital veste a máscara da força natural; parece tão sólido como a própria terra; seu movimento aparece tão irreversível como as marés; sua crise apareceu tão inevitável como terremotos e enchentes. Mesmo quando se admite que o poder do capital é criado pelos homens, talvez seja meramente para inventar a máscara de uma força feita pelo homem, um Frankenstein, cujo poder inspira mais terror do que qualquer outra força natural.

Mas o capital não é uma força natural nem um monstro, criado pelo homem em algum tempo no passado e que desde então domina a vida humana para sempre.

O poder do capital não reside no dinheiro, desde que o dinheiro é uma convenção social a qual não tem mais "poder" do que os homens lhe concedem. Quando o homem se recusa a vender seu trabalho, o dinheiro não executa sequer as tarefas mais simples, porque o dinheiro não "trabalha".

(...)

Assim que uma pessoa vende seu trabalho para um capitalista e aceita apenas uma parte de seu produto como pagamento, cria condições para compra e exploração de outras pessoas. Nenhum homem daria voluntariamente seu braço ou seu filho em troca de dinheiro. Todavia, quando um homem deliberada e conscientemente vende sua força de trabalho para adquirir o que necessita para sobreviver, ele não apenas reproduz as condições que continuam a fazer da venda de sua vida uma necessidade para a sua preservação, ele também cria condições que fazem da venda da vida uma necessidade para outras pessoas.

Para transformar o trabalho excedente em capital, o capitalista tem de descobrir uma maneira de guardá-lo em recipientes materiais, em novos meios de produção, e deve empregar novos trabalhadores para ativar os novos meios de produção. Em outras palavras, ele deve aumentar sua empresa, ou começar uma nova empresa noutro ramo de produção. Isso requer a existência de compradores de novos produtos e a existência de pessoas que são pobres o suficiente para desejarem vender sua força de trabalho.

Os capitalistas não reconhecem limites ou obstáculos para suas atividades; a democracia exige liberdade absoluta para o capital. O imperialismo não é apenas o "último estágio" do capitalismo, ele é também o primeiro.

Qualquer coisa que possa ser transformada em em mercadoria é lançada no moinho do capital, esteja na terra dos capitalistas ou na terra do vizinho, seja subterrânea ou esteja sobre a terra, no mar ou no ar, em outros continentes ou mesmo outros planetas, todas as conquistas e conhecimentos obtidos pela exploração da natureza, da alquimia à física, são mobilizados para buscar novos receptáculos materiais que estoquem trabalho, para encontrar novos objetos que alguém possa ser convencido a comprar.

Compradores de velhos e novos produtos são criados por todos os meios possíveis. Novos meios são descobertos e "mercados abertos" pela força e pela fraude. Se falta dinheiro para as pessoas comprarem os produtos dos capitalistas, elas são empregadas pelos capitalistas e pagas para produzir os bens que desejam comprar. Se artesãos locais já produzem o que os capitalistas tem para vender, os artesãos serão arruinados. Se leis ou tradições proíbem o uso de certos produtos, as leis e tradições são destruídas. Se as pessoas não têm desejos físicos ou biológicos, então os capitalistas "satisfazem" seus "desejos espirituais" e empregam psicologos para criá-los. Se as pessoas estão tão saciadas com os produtos dos capitalistas que elas não podem mais usar outros, elas são ensinadas a comprar objetos e espetáculos que não tem uso mas podem ser simplesmente observados e admirados.

Os pobres são encontrados em comunidades pré-capitalistas em cada continente. Se eles não são pobres o bastante para desejar vender seu trabalho quando os capitalistas chegam, eles são empobrecidos pelas atividades dos capitalistas. As terras de caçadores gradualmente tornam-se "propriedade privada" de "proprietários" que usam da violência estatal para restringir os caçadores à "reservas" que não contém caça suficiente para mantê-los vivos. As ferramentas dos camponeses gradualmente tornam-se disponíveis apenas para o mesmo comerciante que generosamente empresta-lhe o dinheiro com o qual compraram as ferramentas, até que as "dívidas" dos camponeses são tão grandes que eles são forçados a vender a terra que nem eles ou qualquer um de seus ancestrais havia comprado. Os compradores de produtos artesanais gradualmente subjugam os vendedores, até chegar o dia em que o comprador decide instalar seus artesãos debaixo do mesmo teto, e provê-los com os instrumentos que facilitam-lhes concentrar suas atividades na produção dos itens de maior lucro. Caçadores independentes como não independentes, camponeses e artesãos, homens livres assim como escravos, são transformados em trabalhadores assalariados. Aqueles que previamente dispunham de suas próprias vidas cessaram de dispor delas precisamente quando mudaram suas condições materiais de vida. Aqueles que, antes, eram conscientes criadores de suas próprias magras existências tornam-se vítimas inconscientes de suas próprias atividades, mesmo enquanto abolem a magreza de suas existências. Os homens que foram muito mas tinham pouco agora tem muito mas são pouco.

A produção de novas mercadorias, a "abertura" de novos mercados, a criação de novos trabalhadores não são três atividades em separado; são três aspectos da mesma atividade. Uma nova força de trabalho é criada precisamente para produzir as novas mercadorias; os salários recebidos por esses trabalhadores são eles mesmos o novo mercado; seu trabalho não pago é a fonte da nova expansão. Barreiras naturais ou culturais não impedem a expansão do capital, a transformação da atividade cotidiana das pessoas em trabalho alienado, a transformação de seu trabalho excedente em "propriedade privada" dos capitalistas. Entretanto, o capital não é uma força natural; ele é uma série de atividades executadas por pessoas todos os dias; é a forma da vida cotidiana; sua contínua existência e expansão pressupõe apenas uma condição essencial: a disposição das pessoas para continuar alienando suas vidas no trabalho e, portanto, reproduzir a forma capitalista da vida cotidiana.

Kalamazoo, 1969

A alienação do trabalhador em seu produto significa não apenas que seu trabalho torna-se um objeto, uma existência externa, mas que ele existe fora dele, independentemente, como algo alienado a ele, que isso se torna um poder em si mesmo, enfrentando-o. Isso significa que a vida que ele atribuiu ao objeto o enfrenta, como algo hostil e alienado. Entretanto, essa forma antagônica é transitória; ela cria as condições reais para sua própria abolição ao criar as bases para o desenvolvimento universal do indivíduo. O desenvolvimento real de indivíduos, num contexto onde cada barreira é abolida, conscientiza-os de que não há limites sagrados."


Inclusão: 30/06/2020