O fetichismo das mercadorias

Fredy Perlman

1968


Primeira Edição: Introdução de Fredy Perlman, escrita em 1968, para o livro de Isaak Illich Rubin "Essays on Marx's Theory of Value" (Black Rose Books, Montreal, 1973). Perlman faz um brilhante resumo dos temas principais do livro, como o da continuidade e transformação da teoria da alienação do jovem Marx na teoria da reificação e do fetichismo das mercadorias.

Tradução: Flautista de Hamelin - http://manifestoaeconomiadovicio.blogspot.com.br
Revisão: Humanaesfera - http://humanaesfera.blogspot.com.br
Esta tradução para o português (concluída em outubro de 2015) foi feita a partir da versão original em inglês encontrada em https://libcom.org/library/commodity-fetishism-fredy-perlman

Fonte: libcom.org - https://libcom.org/library/o-fetichismo-das-mercadorias-fredy-perlman

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


De acordo com economistas cujas teorias atualmente prevalecem na América, a economia substituiu a economia política, e ela trata de escassez, preços e alocação de recursos. Na definição de Paul Samuelson, “economia, ou, como se dizia, economia política... é o estudo de como o homem ou a sociedade escolhem, com ou sem o uso de dinheiro, empregar recursos produtivos escassos, que poderiam ter usos alternativos, para produzir diversos bens ao longo do tempo e distribuí-los para consumo, agora ou no futuro, entre as várias pessoas e grupos na sociedade”(1). De acordo com Robert Campbell, “Uma das preocupações centrais da economia sempre foi o que determina o preço”(2). Nas palavras de outro especialista, “Qualquer comunidade, como as introduções explicam, deve lidar com o problema econômico pervasivo: como determinar os usos dos recursos disponíveis, incluindo não apenas os bens e serviços que podem ser aplicados produtivamente mas também outros de disponibilidade escassa”(3).

Se economia é meramente um novo nome para economia política, e se o campo de estudo que foi anteriormente coberto pelo título economia política é agora coberto pela economia, então a economia substituiu a economia política. Entretanto, se o campo de estudo da economia política não é o mesmo da economia, essa “substituição” da economia política é na verdade a omissão de um campo de conhecimento. Se a economia responde a questões diferentes das levantadas pela economia política, e se as questões omitidas referem-se à forma e à qualidade da vida humana dentro do sistema sócio-econômico dominante, então essa omissão pode ser chamada de uma “grande evasiva”(4).

O teórico econômico e historiador soviético Isaak Illich Rubin sugeriu uma definição de economia política que não tem nada em comum com a definição de economia citada acima. De acordo com Rubin, “A economia política trata da atividade laboral humana, não do ponto de vista dos métodos técnicos e dos instrumentos de trabalho, mas do ponto de vista de sua forma social. Ela trata das relações de produção que são estabelecidas entre as pessoas no processo de produção”(5). Nesta definição, a economia política não é o estudo dos preços ou de recursos escassos, mas o estudo das relações sociais, um estudo da cultura. A economia política pergunta o porquê das forças produtivas da sociedade se desenvolverem dentro de uma forma particular, o porquê do aprimoramento das máquinas se desenvolver dentro da empresa de negócios, o porquê da industrialização tomar a forma de desenvolvimento capitalista. A economia política pergunta como a atividade de trabalho de pessoas é regulada em uma forma específica e histórica de economia.

A definição americana contemporânea de economia citada previamente claramente lida com problemas diferentes, levanta questões diferentes, e referem-se a assuntos diferentes dos da economia política tal como definida por Rubin. De duas, uma: (a) ou economia e economia política são duas áreas de conhecimento, caso em que a “substituição” da economia política pela economia significa simplesmente que os profissionais americanos de uma área substituíram os de outra área, ou (b) economia é o novo nome para o que “costumava-se chamar” economia política; nesse caso, ao definir a economia como o estudo da escassez, preços, e alocação de recursos, os economistas americanos estão dizendo que as relações de produção entre pessoas não são um campo de estudos legítimo. Neste caso, os economistas acima citados estão se colocando como legisladores do que é e do que não é um assunto legítimo de preocupação intelectual; eles estão definindo os limites do conhecimento. Esse tipo de legislação intelectual levou a conseqüências previsíveis em outros tempos e sociedades: levou a uma total ignorância no campo de conhecimento excluído, e levou a enormes lacunas e pontos cegos nos campos de conhecimento relacionados.

Uma justificação para a exclusão da economia política do conhecimento americano foi dada por Samuelson. Na sua linguagem equilibrada e objetiva de professor americano, Samuelson diz: “Um bilhão de pessoas, um terço da população mundial, considera cegamente o Das Kapital como uma bíblia econômica. E, entretanto, sem o estudo disciplinado da ciência econômica, como alguém poderia formar uma opinião razoável sobre os méritos ou falta de méritos na tradicional, clássica, economia?”.(6) Se “um bilhão de pessoas” considera Das Kapital uma “bíblia econômica”, é claramente relevante perguntar porque apenas uns poucos milhões de Americanos consideram a economia de Samuelson “uma bíblia econômica”. Talvez uma resposta equilibrada e objetiva seja que “um bilhão de pessoas” vê pouco que seja relevante ou significativo nas celebrações de Samuelson do capitalismo americano e seus exercícios em geometria bidimensional, onde poucos milhões de americanos não tem outra escolha que não aprender os “méritos da tradicional, clássica, economia”. A questão retórica de Samuelson – “E, entretanto, sem o estudo disciplinado da ciência econômica, como alguém poderia formar uma opinião razoável sobre os méritos...” – é claramente uma faca de dois gumes, desde que tal questão pode ser levantada sobre qualquer teoria econômica importante, não meramente a de Samuelson: e cabe claramente ao estudante produzir suas próprias conclusões e fazer sua própria escolha depois de um “estudo disciplinado” de todas as maiores teorias econômicas, não apenas a de Samuelson.

Apesar de Samuelson, em seu manual introdutório, devotar uma grande atenção a Marx, este ensaio vai mostrar que o tratamento de Samuelson dificilmente aproxima-se de um “estudo disciplinado” da economia política de Marx.

O presente ensaio vai descrever alguns dos temas centrais da economia política de Marx, particularmente os temas que são tratados em “Ensaios sobre a Teoria do Valor de Marx”. O livro de Rubin é uma exposição argumentativa abrangente e firme da essência da obra de Marx - a teoria do fetichismo das mercadorias e a teoria do valor. Rubin, esclarece concepções erradas que resultaram, e ainda resultam, de uma leitura superficial e de um tratamento evasivo da obra de Marx.

O principal objetivo de Marx não foi estudar escassez, ou explicar o preço, ou como alocar recursos, mas analisar como a atividade laboral das pessoas é regulada numa economia capitalista. O tema da análise é uma determinada estrutura social, uma cultura particular, no caso, mercantil-capitalista, uma forma social na qual a relação entre pessoas não são reguladas diretamente, mas através de coisas. Conseqüentemente, “o caráter específico da teoria econômica como uma ciência que lida com a economia mercantil-capitalista reside precisamente no fato de que ela lida com relações de produção que adquirem formas materiais (Rubin, 47).

O tema central de Marx foi a criatividade humana, particularmente os determinantes e os reguladores que dispõem essa atividade na forma capitalista de economia. O rigoroso estudo de Rubin torna claro que essa não é apenas a principal questão do “jovem Marx” ou “do velho Marx”, mas que permaneceu central a Marx em todos os seus trabalhos teóricos e históricos, que se estendem por meio século. Rubin mostra que esse tema unifica em uma única obra cinquenta anos de pesquisa e escrita, que esse tema é o conteúdo da teoria do valor-trabalho, e assim que a teoria econômica de Marx pode ser compreendida apenas dentro do quadro desse tema principal. A vasta obra de Marx não é uma série de episódios desconectados, cada um com problemas específicos que serão depois abandonados. Conseqüentemente, o freqüente contraste traçado entre o “jovem Marx idealista” preocupado com problemas filosóficos da existência humana, e o “velho Marx realista” preocupado com problemas econômicos técnicos,(7) é superficial e perde de vista a unidade essencial da obra inteira. Rubin mostra que o tema central do “jovem Marx” ainda estava sendo refinado nas páginas finais das últimas obras publicadas de Marx; Marx continuamente aprimorou seus conceitos e frequentemente mudou sua terminologia, mas suas questões não foram substituídas. Rubin demonstrou isto investigando os temas centrais de seus escritos desde o começo da década de 1840 até o terceiro volume de O Capital, publicado por Engels em 1894.

Nos diferentes períodos produtivos de sua vida, Marx expressou sua preocupação com a criatividade humana através de diferentes, embora relacionados, conceitos. Em seus primeiros trabalhos, Marx unificou suas ideias em torno do conceito de “alienação” ou “estranhamento”. Mais tarde, quando Marx refinou suas ideias de trabalho “reificado” (coisificado N.T) ou “congelado”, a teoria de fetichismo das mercadorias proveu um foco, um quadro unificado para sua análise. No trabalho tardio de Marx, a teoria do fetichismo das mercadorias, ou seja, a teoria de uma sociedade na qual as relações entre pessoas tomam a forma de relações entre coisas, a teoria de uma sociedade na qual relações de produções são reificadas (coisificadas) torna-se a “teoria geral das relações de produção da economia mercantil-capitalista” de Marx (Rubin, p 3). Assim, a teoria do valor, a parte mais frequentemente criticada de sua economia política, pode apenas ser compreendida no contexto da teoria do fetichismo das mercadorias, ou com as palavras de Rubin, o “fundamento da teoria de valor de Marx apenas pode ser dado com base em sua teoria do fetichismo das mercadorias, que analisa a estrutura geral da economia mercantil” (p. 61).

Este ensaio vai examinar o relacionamento entre o conceito de alienação, a teoria de fetichismo das mercadorias e a teoria de valor, e mostrará que as três formulações são abordagens do mesmo problema: a determinação da atividade criativa das pessoas na forma capitalista de economia. Esse exame vai mostrar que Marx não tinha interesse per si em definir um padrão de valor, em desenvolver uma teoria do preço isolada de um modo historicamente específico de produção, ou na alocação eficiente de recursos. O trabalho de Marx é uma análise crítica de como as pessoas são reguladas na sociedade capitalista, e não um guia de como regular pessoas ou coisas. O subtítulo dos três volumes d’O Capital é “Crítica da Economia Política” e não “Manual para uma Administração Eficiente” . Isso não significa que Marx não considerava os problemas de alocação de recursos importantes, significa que ele não considerava-os o tema central da economia política, como uma ciência de relações sociais.

A primeira abordagem de Marx da análise das relações sociais na sociedade capitalista foi através do conceito de alienação, ou estranhamento. Embora tenha adotado o conceito de Hegel, mesmo nos seus trabalhos mais juvenis Marx já criticava o conteúdo que Hegel deu a esse conceito. “Para Hegel, a essência humana -  o homem – é igual à autoconsciência. Todo estranhamento do ser humano portanto não é nada mais do que estranhamento da autoconsciência”(8). Para Marx em 1844, o tratamento de Hegel da consciência como essência humana é “uma crítica oculta e mistificadora”, mas Marx observa que “na medida em que ele apreende diretamente o estranhamento do homem, ainda que o homem surja apenas na forma de mente, subjaz encoberta nela todos os elementos da crítica, já preparados e elaborados de uma maneira que com frequência se eleva muito acima do ponto de vista hegeliano”(9). Assim, Marx adota o conceito de “estranhamento” como uma poderosa ferramenta de análise, mesmo que não concorde com Hegel sobre o que é alienado, isto é, ele não concorda que pensar é a essência do homem. Para Marx em 1844, a essência do homem é maior do que o pensamento e do que a autoconsciência, é a atividade criativa humana, seu trabalho, em todos aspectos. Marx considera a consciência como sendo apenas um aspecto da criatividade do homem. Assim, enquanto ele concede que Hegel “trata o trabalho como a essência do homem”, ele ressalta que “o único trabalho que Hegel conhece e reconhece é o trabalho mental abstrato”(10). Mas Hegel não apenas define a autoconsciência como a essência do homem, ele então procede a acomodar-se aos modos de consciência alienados, externalizados, ou seja, religião, filosofia e poder estatal. Hegel “confirma-os em sua forma alienada e toma-os como seu verdadeiro modo de ser - restabelece-os, e pretende estar em casa em seu ser-outro como tal . Assim, por exemplo, depois de anular e superar a religião, depois de reconhecer a religião como produto da autoalienação, ele ainda encontra a confirmação de si na religião como religião. Eis aqui a raiz do falso positivismo de Hegel, ou de sua crítica meramente aparente”(11). Entretanto, para Marx, “não pode mais haver portanto qualquer questão sobre o ato de acomodação”, e ele explica, “se eu conheço a religião como autoconsciência humana alienada, então o que eu sei dela como religião não é minha autoconsciência, mas minha consciência autoalienada...”(12). Em outras palavras, ainda que Hegel tenha formulado o conceito de alienação, ele foi hábil no entanto para acomodar-se à religião e ao poder estatal, isto é, a formas alienadas de existência que negam a essência humana até mesmo na definição de Hegel (como consciência).

Assim, Marx preparou-se para duas metas: reformular o conceito de alienação, e redefinir a essência humana. Para esse propósito Marx recorreu a Feuerbach, que completou a primeira meta para ele, e então percorreu um longo caminho para providenciar uma solução temporária para a segunda. A solução de ambos os desafios poderia ser iniciada se a atividade prática, criativa e as relações de trabalho entre as pessoas se tornassem o centro, o ponto focal da teoria. Apenas então seria possível ver que a religião, bem como a filosofia, não são formas de pensamento mas antes formas de alienação da essência humana. Marx reconhecia sua dívida: ”A grande conquista de Feuerbach é: (1) provar que a filosofia não é nada senão religião trazida para o pensamento e exposta ao pensamento, devendo igualmente ser condenada como uma outra forma e modo de existência do estranhamento da essência humana; (2) O estabelecimento do verdadeiro materialismo e da ciência real, desde que Feuerbach também faz a relação social “de homem a homem” o princípio básico da teoria...”(13).

Marx reconheceu o papel de Feuerbah em remodelar o conceito de alienação, especialmente em compreender a religião e a filosofia como alienações da essência humana. Entretanto, um ano depois, em suas Teses sobre Feuerbachde 1845, Marx expressa insatisfação com a compreensão de Feuerbach da essência humana. “Feuerbach resolve a essência da religião na essência do homem”, mas para Feuerbach a essência do homem permanece algo isolado, ahistórico, e portanto abstrato. Para Marx, “a essência humana não é uma abstração inerente a cada indivíduo particular. A natureza real do homem é a totalidade de suas relações sociais”(14). Marx generaliza sua insatisfação com Feuerbach: ”O defeito principal de todo o materialismo anterior (incluindo o de Feuerbach) é que as coisas, a realidade, o mundo sensível, são concebidos apenas na forma de objetos ou contemplação, mas não como atividade humana sensível, não como atividade prática...”(15). Marx torna essa acusação mais específica num trabalho tardio, onde ele diz que Feuerbach “ainda permanece no reino da teoria e concebe os homens não numa certa conexão social, não em suas condições de vida existentes, que o fizeram aquilo que são”, e portanto “ele nunca alcança os homens ativos realmente existentes, mas para na abstração ´homem´... ele não conhece nenhuma outra 'relação humana' de 'homem a homem' que não o amor e a amizade, e ainda assim idealizados... desse modo, ele nunca chega a conceber o mundo sensível como atividade vital sensível total dos indivíduos que o compõem”(16).

Marx é capaz de rejeitar a definição de Feuerbach do homem como mera abstração porque, já em seu trabalho inicial sobre “Produção Humana Livre”, ele começou a ver o homem em termos muito mais concretos, isto é, ele já tinha começado a ver o mundo dos objetos como o mundo da atividade humana prática, da atividade criativa. Em seu ensaio escrito em 1844, a concepção de Marx é ainda a-histórica; ele não rejeitou explicitamente essa visão a-histórica até escrever A Ideologia Alemã com Engels em 1845-1846, e a Miséria da Filosofia em 1847. Entretanto, esse ensaio inicial já traz a atividade criativa humana para o foco, e assim ele também aponta para a “essência” que é alienada na sociedade capitalista. Marx pede ao leitor que imagine os seres humanos fora da sociedade capitalista, ou seja, fora da história: “Suponhamos que tivéssemos produzido como seres humanos. Cada um de nós afirmaria duplamente a si mesmo e a outra pessoa: 1) Na minha produção, eu teria tornado objetiva a minha individualidade, o seu caráter específico e, portanto, não só teria desfrutado ao expressar minha vidaindividual durante a atividade, mas também, ao ver o objeto, eu teria o prazer individual de saber que a minha personalidade é objetiva, perceptível aos sentidos e, portanto, um poder fora de qualquer dúvida. 2) O teu desfrute ou uso de meu produto me proporcionaria diretamente o prazer de me saber satisfazendo com minha atividade uma necessidade humana, isto é, de ter tornado objetivo o ser humano, e de ter, assim, criado um objeto correspondente à necessidade de outro ser humano. Nossas produções seriam espelhos refletindo nossa natureza... meu trabalho seria uma uma manifestação livre da vida e desfrute da vida”(17). É precisamente esse trabalho, essa produção livre, essa livre manifestação e desfrute da vida, que é alienada na sociedade capitalista: “Sob a presuposição da propriedade privada meu trabalho é uma alienação da vida porque eu trabalho para viver, para adquirir meios de vida. Trabalho não é vida.” Neste ponto, Marx contrasta vividamente a ideia de trabalho livre, trabalho não-alienado, com o trabalho assalariado, alienado, que ele chamada de trabalho forçado – da sociedade capitalista: “Sob a pressuposição de propriedade privada,  minha individualidade é alienada a tal ponto que essa atividade torna-se, ao contrário, odiosa para mim, um suplício, e mais que atividade, uma aparência dela; daí que é uma atividade forçada, imposta a mim mediante uma necessidade extrínseca e acidental, e não por uma necessidade interior e determinada... Meu trabalho, consequentemente, se manifesta como a expressão indubtável, objetiva, sensível e perceptível da perda de mim mesmo, como minha impotência”(18).

Assim, Marx é levado a contrastar um homem não-alienado, ideal, a-histórico, e o homem alienado da sociedade capitalista. A partir daqui, nós iremos seguir Rubin e mostrar a relação desse contraste entre esse ideal e o atual com o contraste posterior entre forças produtivas e relações de produção. Este último constrate torna-se a base da teoria de Marx do fetichismo das mercadorias, e por isso da sua teoria de valor. Entretanto, antes de retornar a exposição de Rubin, nós iremos discorrer brevemente para examinar dois tipos de interpretação que foram feitas recentemente dos trabalhos iniciais de Marx. Uma sustenta que a teoria de alienação de Marx pode ser aceita e aplicada sem sua crítica do capitalismo, e outra sustenta que os escritos de 1844 contém a quintessência do pensamento de Marx e que os trabalhos posteriores são meras reformulações dos mesmos insights.

O sociólogo Robert Blauner reduz a alienação a “uma qualidade de experiência pessoal que resulta de um tipo específico de arranjo social”(19). Com base nessa redução Blauner diz que “Hoje, a maioria dos cientistas sociais diria que a alienação não é uma consequência do capitalismo em si mas do emprego em organizações de larga escala e burocracias impessoais que invadem todas as sociedades industriais”(20). Em outras palavras, Blauner define alienação como uma experiência psicológica, pessoal, como algo que o trabalhador sente, e que está consequentemente na mente do trabalhador, e não como uma característica estrutural da sociedade capitalista. Então, para Brauner, dizer que a alienação assim definida “não é uma consequência do capitalismo” é uma tautologia. É a própria definição de Blauner que lhe possibilita tratar a alienação como uma consequência da indústria (ou seja, das forças de produção) e não como uma consequência do capitalismo (ou seja, das relações sociais).

Entretanto, independente do que “muitos cientistas sociais diriam”, na obra de Marx, a alienação é relacionada à estrutura da sociedade capitalista, e não à experiência pessoal do trabalhador. É a própria natureza do trabalho assalariado, a relação social básica da sociedade capitalista, que causa a alienação: “Os seguintes elementos estão contidos no trabalho assalariado: (1) a relação acidental e alienação entre o trabalho e o sujeito que trabalha; (2) a relação acidental e alienação do trabalho com seu objeto; (3) a determinação do trabalhador mediante necessidades sociais que lhe são alheias e impostas – uma coerção a qual ele se submete pela sua necessidade egoísta e sofrimento para meramente satisfazer suas necessidades mais elementares; o trabalhador é um escravo das necessidades sociais; (4) para o trabalhador, a finalidade da sua atividade é conservar a sua existência individual – tudo o que faz é realmente apenas um meio: vive para ganhar meios de vida”(21). De fato, Marx muito explicitamente localizou a alienação na própria raiz da sociedade capitalista: “Dizer que o homem aliena a si mesmo é o mesmo que dizer que a sociedade desse homem alienado é a caricatura de sua vida comum atual, de sua verdadeira vida genérica. Sua atividade, consequentemente, aparece como um tormento, sua própria criação, como uma força alheia a ele, sua riqueza, como pobreza, o laço essencial dele com os outros homens, como algo não-essencial, de modo que a separação dos outros homens aparece como sua existência verdadeira.” Marx acrescenta que a sociedade capitalista, essa caricatura da comunidade humana, é a única forma de sociedade que os economistas capitalistas são capazes de imaginar: ”A sociedade, diz Adam Smith, é um empreendimento comercial. Cada um de seus membros é um mercador. É evidente que a economia política estabelece uma forma alienada de relação social como a forma humana essencial original e definitiva”(22).

Nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844, Marx aplica o conceito de Feuerbach de alienação de si do homem na religião à alienação de si do homem no produto de seu trabalho. A passagem seguinte se aproxima muito da descrição do mundo das mercadorias como um mundo de fetiches que regulam e dominam a vida humana: “Quando mais o trabalhador se dedica ao trabalho, tanto mais poderoso se torna o mundo dos objetos por ele criado em face dele mesmo, mais pobre ele se torna em sua vida íntima, menos ele se pertence. É exatamente como na religião. Quanto mais de si mesmo ele atribui a Deus, menos é deixado para si. O trabalhador põe sua vida no objeto, e sua vida passa a pertencer não mais a ele, mas ao objeto. Quanto maior sua atividade, portanto, menos ele possui... A alienação do trabalhador nos meios de produção significa não apenas que seu trabalho torna-se um objeto, tomando uma existência própria, mas que existe fora dele, independentemente e alheio a ele, e que ergue-se contra ele como um poder autônomo. A vida que ele deu ao objeto volta-se contra ele como uma força alheia e hostil”(23). No mesmo trabalho, Marx está próximo de definir o produto do trabalho como trabalho congelado, ou trabalho reificado, uma formulação que vai reaparecer vinte anos depois em sua teoria do fetichismo das mercadorias: “O objeto produzido pelo trabalhador, seu produto, agora ergue-se contra ele como um ser alheio, como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é trabalho que foi incorporado em um objeto, e transformado em coisa física; esse produto é uma objetificação do trabalho”. O trabalho que é perdido pelo trabalhador é apropriado pelo capitalista: ”.... o caráter alienado do trabalho para o trabalhador aparece no fato de que ele não é seu trabalho mas trabalho para outro, que no trabalho, ele não pertence si mesmo, mas à outra pessoa”(24). O resultado dessa alienação do poder criativo dos trabalhadores é vividamente descrito por Marx em uma passagem que sumariza o aspecto qualitativo de sua teoria de exploração: “Quanto menos você é, quanto menos você expressa sua própria vida, maior é sua vida alienada, quanto mais você tem, maior é o acúmulo de seu ser estranhado. Tudo aquilo que o economista político retira de sua vida e humanidade, ele substitui por dinheiro e riqueza...”(25). O produtor aliena seu poder criativo, de fato vendendo-o ao capitalista, e o que ele adquire em troca diferente em gênero de seu poder criativo; em troca do poder criativo, ele adquire coisas, e quanto menos ele é, como ser humano criativo, mais coisas ele tem.

Essas formulações tornam claro que, para Marx, a alienação é inerente às relações sociais da sociedade capitalista, uma sociedade na qual uma classe se apropria do trabalho que outra classe aliena; para Marx, trabalho assalariado é, por definição, trabalho alienado. Nos termos dessa definição de trabalho alienado, a sentença “a alienação não é consequência do capitalismo” não faz sentido.

O filósofo Iugoslavo Veljko Korac apresentou a teoria de alienação formulada por Marx em 1844 como a forma final da teora de Marx e Korac sumarizou essa teoria como segue: “Baseando-se na análise crítica da alienação do homem pelo homem, do produto de seu trabalho, e inclusive de sua própria criatividade humana, Marx levantou a questão de abolir todas essas formas de desumanização, e a possibilidade de restaurar a sociedade humana”(26). Em 1844, de fato, Marx falava em “reabilitar” (se não exatamente “restaurar”) a “sociedade humana”: “O comunismo... é, por conseguinte, para a próxima etapa da evolução histórica, um fator real e necessário na emancipação e reabilitação do homem. O comunismo é a forma necessária e o princípio dinâmico do futuro imediato, mas o comunismo não é em si mesmo a meta da evolução humana - a forma da sociedade humana”.(27) Em algumas passagens dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, Marx ainda fala do comunismo como um retorno à natureza humana: ”O comunismo é a abolição positiva da propriedade privada, da autoalienação humana, e assim, a apropriação real da natureza humana, pelo e para o homem. Ele é portanto o retorno do homem a si como um ser social, isto é, realmente humano, sendo um completo e consciente retorno que assimila toda a riqueza do desenvolvimento prévio. O comunismo como um naturalismo plenamente desenvolvido é humanismo e como humanismo plenamente desenvolvido é naturalismo... A abolição positiva da propriedade privada, assim como a apropriação da vida humana, é por isso a abolição positiva de toda alienação, e portanto o retorno do homem da religião, da família, do Estado, etc, para sua vida social, ou seja, humana”.(28) Em 1844, Marx definiu o agente, a classe social, que deveria realizar essa reapropriação do poder criativo humano, esse retorno para a essência humana do homem; ela seria “uma classe com cadeias radicais, uma classe na sociedade civil que não é da sociedade civil, uma classe que é a dissolução de todas as classes, uma esfera da sociedade que tem um caráter universal devido a seu sofrimento universal e que não reivindica nenhum direito particular porque nenhuma violência particular mas uma violência sem qualificação é perpetrada contra ela; uma esfera que não pode invocar um título tradicional mas apenas um título humano...”(29). Marx ainda descreveu algumas das relações sociais de uma sociedade humana não alienada: “Suponhamos que o homem seja homem e sua relação com o mundo seja humana: então, o amor só poderá ser trocado por amor, confiança, por confiança, etc. Se se desejar apreciar a arte, será preciso ser uma pessoa artisticamente educada...”(30).

Não há dúvida de que em 1844, Marx fala da sociedade humana e da essência humana a qual poderia ser reabilitada, retornada, ou restaurada. Entretanto, por mais poderosas e sugestivas que essas passagens sejam, elas não podem ser vistas como a formulação final da teoria social e econômica de Marx, e nem as obras posteriores de Marx podem ser tratadas como meras reafirmações das mesmas ideias. Eric Fromm estava ciente disso quando escreve: “Em seus primeiros escritos, Marx ainda chamava de ´natureza humana em geral´ ´a essência humana´. Ele depois livrou-se desse termo porque ele queria tornar claro que ´a essência do homem não é uma abstração´... Marx também quis evitar dar a impressão de que ele pensava a essência humana como uma substância ahistórica”(31). Fromm também está ciente de que o conceito de alienação de Marx, “ainda que não a palavra, permanece central em todas as suas obras seguintes, incluindo O Capital”(32). Fromm, entretanto, não examina os estágios que levaram o conceito de alienação à teoria do fetichismo das mercadoriass, e no próprio quadro filosófico de Fromm, o problema central é “cessar de estar dormindo e tornar-se humano”. Para Fromm, isso envolve primariamente mudar as ideias que temos e nossos métodos de pensamento: “Eu acredito que um dos erros mais desastrosos na vida individual e social consiste em ser capturado por formas estereotipadas de pensamento... Eu acredito que o homem deve libertar-se das ilusões que o escravizam e paralisam, que ele deve se tornar consciente da realidade dentro e fora dele para que crie um mundo que não requer nenhuma ilusão. Liberdade e independência podem ser obtidas apenas quando as correntes da ilusão são quebradas”(33).

No prefácio de A Ideologia Alemã, Marx ridiculariza os supostos revolucionários que desejam libertar o homem de formas estereotipadas de pensamento, das ilusões que escravizam e paralisam os homens. Marx explica que esses revolucionário anunciam: “Livremo-nos, pois, das quimeras, das idéias, dos dogmas, dos seres imaginários, sob o julgo dos quais eles se estiolam. Revoltemo-nos contra o domínio dessas idéias. Ensinemos os homens a trocar essas ilusões por pensamentos correspondentes à essência do homem, diz um; a ter para com elas uma atitude crítica, diz outro; a tirá-las da cabeça, diz um terceiro – e a realidade atual desmorona.” Então Marx leva o ridículo à sua conclusão: “Houve um tempo em que um nobre corajoso teve a ideia de que os homens se afogavam apenas por acreditarem na idéia de gravidade. Se tirassem esta idéia da cabeça, declarando por exemplo que não era mais do que uma representação religiosa, supersticiosa, ficariam imediatamente livres de qualquer perigo de afogamento”(34). Em uma carta escrita no final de 1846, Marx apontou a mesma crítica contra P.J Proudhon: “... em vez de atitudes práticas e ações violentas das massas... O senhor Proudhon fornece o movimento caprichoso de sua própria cabeça. Então é o homem de aprendizado que faz a história, o homem que sabe como furtar os pensamentos secretos de Deus. As pessoas comuns devem apenas aplicar suas revelações. Você entenderá agora porque o Sr. Proudhon é o inimigo declarado de qualquer movimento político. A solução para os problemas presentes não surgem para ele da ação pública mas nas rotações dialéticas de sua própria mente”(35).

Entre 1845 e 1847, Marx abandona suas concepções iniciais de essência ou natureza humana para o qual o homem pode retornar: “Tal como os indivíduos expressam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, pois, com sua produção, tanto com o que produzem como também com o modo como produzem. A natureza dos indivíduos, portanto, depende das condições materiais de sua produção”(36). De fato, Marx chega a dizer que as ideias do homem sobre sua natureza ou essência são elas próprias condicionadas pelas condições materiais na qual o homem se encontra, e, consequentemente, que a “essência” humana não é algo a que ele possa retornar, ou sequer algo que ele possa conceber em pensamento, já que ela está em processo contínuo de transformação histórica. “Os homens são os produtores de seus conceitos, ideias, etc, os homens reais, ativos, tal como eles são condicionados por um desenvolvimento definido de suas forças produtivas e pelas relações correspondentes a estas... A consciência nunca pode ser senão existência consciente, e a existência do homem é seu processo real de vida.” Consequentemente, “nós não partimos do que os homens dizem, imaginam, concebem, nem tampouco dos homens como narrados, pensados, imaginados, de modo a chegar aos homens de carne e osso. Nós partimos dos homens reais, ativos, e com base em seu processos vitais reais, nós demostramos o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e ecos desse processo vital”(37). Assim, diferente do filósofo citado anteriormente, Marx não começa mais sua análise com “o conceito do Homem”; ele começa com o homem em um dado ambiente cultural. Marx sistematizou a relação entre tecnologia, relações sociais e ideias em A Miséria da Filosofia em 1847: “Ao adquirir novas forças produtivas os homens mudam seu modo de produção, e ao mudar seu modo de produção… eles mudam as todas suas relações sociais. O moinho à mão nos dá as relações sociais do senhor feudal; o moinho a vapor, a sociedade com o capitalista industrial. Os mesmos homens que estabelecem suas relações sociais em conformidade com sua produtividade material, produzem também princípios, ideias e categorias, em conformidade com suas relações sociais”(38). A próxima etapa é colocar a “essência” do homem na história, ou seja, dizer que o homem não tem essência aparte de sua existência histórica, e isso é precisamente o que Marx faz quando ele diz que “a soma das forças produtivas, fundos de capital e formas de relação social que cada indivíduo e geração encontra existindo como algo dado, é a base real do que os filósofos conceberam como ´substância´ e ´essência do homem´...”(39).

Aqui o contraste de Marx entre a sociedade ideal, não alienada, e a sociedade capitalista real, chega ao fim. O homem cria as condições materiais na qual ele vive, não em termos de uma sociedade ideal que ele poderia “restaurar”, mas em termos de possibilidades e limites de forças produtivas que ele herda. Marx define esses limites históricos e possibilidades na carta que citamos antes. “... os homens não são livres para escolher suas forças produtivas – que são a base de toda sua história – pois toda força produtiva é uma força adquirida, o produto da atividade anterior. As forças produtivas são consequentemente o resultado da energia humana prática, mas essa energia é em si mesma condicionada pelas circunstâncias na qual os homens encontram a si mesmos, pelas forças produtivas já adquiridas, pela forma social anterior que eles não criam e que é um produto da geração precedente. Por causa disso... a história da humanidade se forma tanto mais como história da humanidade a medida que as forças produtivas humanas e consequentemente suas relações sociais se tornam mais desenvolvidas”(40) “... A cada momento, as pessoas ganham liberdade para si na extensão do que foi ditado e permitido não por seus ideais de homem, mas pelas forças de produção existentes”(41).

Marx resolve a essência do homem nas condições históricas na qual o homem existe, e assim ele foi levado a abandonar o conflito entre o homem alienado da sociedade capitalista e sua essência humana não alienada. Entretanto, Rubin observa que mais de uma década depois, em 1859, o conflito reaparece em um novo plano, não mais na forma de conflito entre ideal e realidade, mas como conflito entre forças produtivas e relações sociais, que são igualmente partes da realidade: “Em um certo estágio do seu desenvolvimento, as forças materiais de produção da sociedade entram em conflito com as relações de produção existentes... De formas de desenvolvimento das forças produtivas, essas relações tornam-se seus grilhões. Então vem o período da revolução social”(42).

Tendo apontado para as relações de produção, para as relações sociais entre pessoas no processo de produção, como o quadro dentro do qual as forças produtivas do homem, sua tecnologia, se desenvolve e, como guilhões que podem obstruir o desenvolvimento da tecnologia, Marx agora se volta a uma caracterização detalhada das relações de produção da sociedade capitalista. E ao abandonar o estudo da essência do homem para estudar a situação histórica do homem, Marx também abandona a palavra “alienação”, dado que o uso inicial da palavra proveio de uma expressão abreviada de “a alienação do homem de sua essência”. Já em A Ideologia Alemã Marx refere-se sarcasticamente à palavra “estranhamento” (ou alienação) como “um termo que será compreensível aos filósofos”(43), implicando que esse já não era um termo aceitável para Marx. Entretanto, ainda que abandone a palavra, Marx continua a desenvolver o conteúdo que ele tinha expresso com ela, e esse desenvolvimento leva Marx muito além de suas formulações iniciais, e muito além dos teóricos que pensam que o conceito de alienação estava completamente desenvolvido e completado nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844. Rubin mostra que esse desenvolvimento aprofundado do conceito de alienação toma lugar precisamente na teoria do fetichismo das mercadorias e na teoria do valor, e assim dedicar-me-ei à exposição de Rubin dessas teorias e tentarei tornar explícitas suas conexões com o conceito de alienação(44).

Rubin delineia a transição de Marx do conceito de alienação para a teoria de fetichismo das mercadoriass nos seguintes termos: “Para transformar a teoria da 'alienação' das relações humanas na teoria da ´reificação´ das relações sociais (isto é, na teoria do fetichismo das mercadorias), Marx precisou criar um caminho do socialismo utópico ao científico, da negação da realidade em nome de um ideal para buscar dentro da realidade em si as forças para o desenvolvimento e transformação” (Rubin, p. 57). A ligação entre alienação e fetichismo das mercadorias é o conceito de “reificação” (materialização ou objetificação) das relações sociais. Rubin encontra estágios determinados na formulação de Marx do conceito de reificação. Em Contribuição à Crítica da Economia Política de 1859, Marx observou que na sociedade capitalista, onde o trabalhador cria mercadorias, “as relações sociais dos homens aparecem na forma invertida de uma relação social de coisas”(45). Nessa obra, as relações sociais entre pessoas meramente “aparentam” assumir a forma de coisas, elas meramente parecem reificadas (coisificadas). Consequentemente, Marx chama essa coisificação de “mistificação”, e atribui essa mistificação aos “hábitos da vida cotidiana”(46).

Entretanto, no volume 1 de O Capital, essa reificação (coisificação) das relações sociais não é mais meramente uma aparência na mente do produtor individual, e não é mais o resultado dos hábitos de pensamento do produtor. Aqui, “a materialização das relações de produção não surge de 'hábitos' mas da estrutura interna da economia mercantil. O fetichismo não é apenas um fenômeno de consciência social, mas de ser social” (Rubin, p. 59). A causa do fetichismo, ou seja, a causa do fato de que as relações entre pessoas assumam a forma de relações entre coisas, é encontrada nas características da economia capitalista como economia mercantil: ”A ausência de regulação direta do processo social de produção necessariamente leva a uma regulação indireta desse processo através do mercado, através dos produtos do trabalho, através das coisas”(Ibid) .

Consequentemente, a reificação das relações sociais e o fetichismo das mercadorias não são “correntes de ilusão” que poderiam ser “quebradas” dentro do contexto da sociedade capitalista, porque eles não surgem de “formas estereotipadas de pensamento” (Erich Fromm). A forma capitalista de produção social “necessariamente leva” à reificação das relações sociais; a reificação não é apenas uma “consequência” do capitalismo, mas um aspecto inseparável do capitalismo. O trabalho não alienado, concreto, que é a expressão criativa da personalidade de um indivíduo, não pode ter lugar no processo de produção da sociedade capitalista. O trabalho que produz mercadorias, coisas para vender no mercado, não é um trabalho concreto, mas trabalho abstrato, “abstratamente geral, trabalho social que surge da completa alienação do trabalho do indivíduo” (Rubin, 147). Na economia mercantil, o trabalho não é uma atividade criativa, ele é o gasto de tempo de trabalho, de força de trabalho, de trabalho humano homogêneo, ou trabalho em geral. Não foi assim em todas épocas e em todos os lugares. ”Apenas com base na produção de mercadorias, caracterizada por um amplo desenvolvimento da troca, uma transferência massiva de indivíduos de uma atividade a outra, e uma indiferença dos indivíduos em relação à forma concreta do trabalho, é possível desenvolver o caráter homogêneo de todos os atos de trabalho como forma de trabalho humano em geral” (Rubin, p. 138). Na sociedade capitalista, essa força de trabalho que produz mercadorias é ela própria uma mercadoria: ela é uma coisa que é comprada pelo capitalista do trabalhador, ou como Paul Samuelson coloca: “Um homem é muito mais que uma mercadoria. Porém, é verdade que os homens alugam seus serviços a um preço”(47). Assim, o trabalho na sociedade capitalista é trabalho reificado, é trabalho transformado um coisa.

O trabalho reificado da sociedade capitalista, a força de trabalho abstrata, homogênea, que é comprada pelo capitalista a um preço, é cristalizada, congelada em mercadorias que são apropriadas pelo capitalista e vendidas no mercado. O trabalhador literalmente aliena, torna estranho seu poder criativo, ele o vende. Dado que o poder criativo refere-se a uma participação consciente do indivíduo na alteração de seu ambiente material, dado que o poder de decidir está na raiz da criação, seria mais exato dizer que o poder criativo simplesmente não existe para o trabalhador assalariado da sociedade capitalista. É precisamente o poder de modificar suas circunstâncias que o trabalhador vende ao capitalista; é precisamente este poder que é apropriado pelo capitalista, não apenas na forma do tempo de trabalho homogêneo que este compra a um preço, mas também na forma de trabalho abstrato que é congelado em mercadorias. O trabalho reificado, o trabalho abstrato, que é cristalizado, congelado em mercadorias, “adquire uma forma social dada” na sociedade capitalista: a forma de valor. Assim Marx “faz a ´forma de valor´ o tema de sua análise, o valor como forma social do produto do trabalho, a forma que os economistas clássicos tomam como pressuposto...” (Rubin, p. 122). Assim, através da teoria do fetichismo das mercadorias, o conceito de trabalho reificado liga a teoria de alienação nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844 à teoria de valor em O Capital.

A explicação do fenômeno da reificação, o fato de o trabalho abstrato tomar a “forma de valor”, não está mais no plano dos hábito das pessoas, mas no plano das características da economia mercantil. Em O Capital, Marx observa que as relações entre pessoas são realizadas através das coisas, e que esse é o único modo de realizá-las na economia mercantil: “A conexão social entre as atividades dos produtores individuais de mercadorias é concretizada apenas através da equalização de todas as formas concretas de trabalho, e essa equalização é efetuada na forma de equalização de todos os produtos do trabalho como valores” (Rubin, p. 130). Isso é verdade não só para as relações entre os capitalistas como compradores e vendedores dos produtos do trabalho, mas também das relações entre os capitalistas e os trabalhadores como compradores e vendedores de força de trabalho. Deve-se notar que, na economia mercantil, o próprio trabalhor é um produtor de mercadorias “livre, independente”. A mercadoria que ele produz é sua força de trabalho; e ele produz essa mercadoria comendo, dormindo e procriando. Na linguagem de David Ricardo, o “preço natural do trabalho” é o preço que permite aos trabalhadores “subsistir e perpetuar sua raça”(48), ou seja, reproduzir sua força de trabalho. O trabalhador vende sua mercadoria no mercado de trabalho na forma de valor, e em troca por uma dada quantidade de sua mercadoria, a força de trabalho, ele recebe uma soma de valor, isto é, dinheiro, que ele troca por outra soma de valor, os bens de consumo.

Deve ser notado que o trabalhador não troca poder criativo por poder criativo. Quando vende sua força de trabalho como trabalho abstrato na forma de valor, ele aliena totalmente seu poder criativo. Quando o capitalista compra uma dada quantidade de força de trabalho do trabalhador, digamos oito horas, ele não se apropria meramente de uma parte dessa quantidade, vamos dizer quatro horas, na forma de sobre-trabalho: o capitalista se apropria de todas as oito horas da força de trabalho do trabalhador. Essa força de trabalho então cristaliza-se, congela-se em uma dada quantidade de mercadorias que o capitalista vende no mercado, que ele troca como valores por quantidades equivalentes de dinheiro. E o que o trabalhador recebe em troca de sua força de trabalho alienada é a soma em dinheiro que é “equivalente em valor” à força de trabalho. Nessa relação de troca de “valores equivalentes”, nessa troca de um número de horas de força de trabalho por uma dada quantidade de dinheiro, dissimula-se tanto o aspecto quantitativo quanto o qualitativo da exploração. O aspecto quantitativo foi tratado por Marx na teoria da exploração, desenvolvida no volume 1 de O Capital. O total que o capitalista recebe em troca das mercadorias que ele vende no mercado é maior do que o total que ele gasta na produção das mercadorias, o que significa que o capitalista se apropria de um excedente na forma de lucro. O aspecto qualitativo foi tratado por Marx na teoria da alienação, e então desenvolvido mais profundamente na teoria do fetichismo das mercadorias. Os dois termos da relação de equivalência não são qualidades equivalentes; eles são de gêneros diferentes. O que o trabalhor recebe em troca de alienar seu poder criativo é um “equivalente” apenas em uma economia mercantil, onde a capacidade criativa do homem é reduzida a uma coisa comercializável e vendida como um valor. Em troca de seu poder criativo o trabalhador recebe uma remuneração ou salário, uma soma em dinheiro, e em troca desse dinheiro, ele pode comprar produtos do trabalho, mas ele não pode comprar poder criativo. Em outras palavras, em troca de seu poder criativo, o trabalhador consegue coisas. Assim quando Marx fala da apropriação pelo capitalista de “mais-valia” ou “sobre-trabalho”, ele refere-se aos aspectos quantitativos da exploração, não aos aspectos qualitativos. Qualitativamente, o trabalhador aliena inteiramente seu poder criativo, seu poder de participar conscientemente na transformação de seu ambiente material com as forças produtivas que ele herda de desenvolvimentos tecnológicos prévios. Isso significa que “é verdade que o homem aluga seus serviços a um preço” (Samuelson), e como resultado, “Quando menos você é, menos você expressa sua vida, maior é sua vida alienada, mais você tem... “(49).

Em uma economia mercantil, as pessoas relacionam-se umas com as outras apenas através e por meio da troca de coisas: a relação de compra e venda é “a relação básica da sociedade mercantil” (Rubin p 15). As relações de produção entre pessoas são estabelecidas através da troca de coisas porque “não existem relações diretas permanentes entre determinadas pessoas que são possuidoras de diferentes fatores de produção. O capitalista, o trabalhador assalariado, assim como o proprietário de terras, são proprietários de mercadorias que formalmente são independentes uns dos outros. As relações de produção diretas entre eles tem ainda de ser estabelecidas, e então ocorrem na forma que é usual entre proprietários de mercadorias, isto é, na forma de compra e venda” (Rubin, p. 18; itálicos no original). É com base nessas relações sociais reificadas, com base em relações de produção que são realizadas através da troca de coisas, que o processo de produção é realizado na sociedade capitalista, porque “as relações de produção são estabelecidas entre representantes de diferentes classes (o capitalista, o trabalhador e o terratenente), resultando numa dada combinação de fatores técnicos de produção...” (Rubin, p 19). Assim, é através e por meio dessas relações sociais reificadas que as forças produtivas, em especial a tecnologia, são desenvolvidas na sociedade capitalista.

A apropriação capitalista do poder criativo alienado da sociedade assume a forma de uma apropriação de coisas, a forma de acumulação do capital. E é precisamente essa acumulação do capital que define o capitalista como capitalista: “O status de capitalista na produção é determinado por sua propriedade de capital, meios de produção, de coisas” (Rubin, pg 19). Assim, no volume III de O Capital, Marx afirma que “o capitalista é meramente capital personificado e funciona no processo de produção unicamente como agente do capital”(50) e, desse modo, Rubin fala em “personificação de coisas” (Rubin, capítulo 3). O capital dá ao capitalista o poder de comprar equipamento, matérias primas e força de trabalho, de aplicar o material e os agentes humanos numa atividade produtiva que resulta numa dada soma de mercadorias. Nesse processo, o capital “extrai uma quantidade definida de sobre-trabalho dos produtores diretos, dos trabalhadores; o capital recebe esse sobre-trabalho sem equivalente, e ele permanece essencialmente trabalho forçado – não importa o quanto pareça o resultado de um livre acordo contratual”(51). Na sociedade capitalista um homem sem capital não tem poder para estabelecer tais relações. Assim, superficialmente, parece que o capital, uma coisa, possui o poder de contratar trabalho, comprar equipamento, combinar trabalho e equipamento num processo produtivo, para render lucros e juros, “parece que a própria coisa possui a habilidade, a virtude, de estabelecer relações de produção” (Rubin, p. 21). Nas palavras da cartilha oficial americana, “Os salários são a remuneração do trabalho; os juros, a remuneração do capital; a renda, a remuneração da terra”(52). Marx chamava isso de Fórmula da Trindade do capitalismo:” Na fórmula: capital-juros, terra-renda, trabalho-salário, capital, terra e trabalho aparecem respectivamente como fontes de juros (ao invés de lucro), renda da terra e salários, assim como seus produtos ou frutos, o primeiro é a base, o último, a consequência, o primeiro é a causa, o último, o efeito; e de fato, de tal maneira que cada fonte individual é relacionada ao seu produto como aquilo que é ejetado e produzido por ela”(53). O capital é uma coisa que tem o poder de render juros, a terra é uma coisa que tem o poder de dar renda da terra, o trabalho é uma coisa que tem o poder de render salários, e o dinheiro “transforma fidelidade em infidelidade, amor em ódio, ódio em amor, virtude em vício, vício em virtude, servo em senhor, senhor em servo, idiotia em inteligência, e inteligência em idiotia”(54), ou como os bancos americanos anunciam, “o dinheiro trabalha por você”. Rubin afirma que os “economistas vulgares... atribuem o poder de aumentar a produtividade do trabalho, que é inerente aos meios de produção e que representa sua função técnica, ao capital, isto é, uma forma social específica de produção (teoria da produtividade do capital)” (Rubin, p. 28), e os economistas que representam o consenso pós-segunda-guerra-mundial escrevem que, em 1967, “o capital tem uma produtividade líquida (ou taxa de juros real) que pode ser expressa na forma de uma porcentagem anual...”(55).

Uma coisa que possui tal poder é um fetiche, e o mundo do fetiche é “um mundo encantado, pervertido, virado as avessas, no qual o Senhor Capital e a Senhora Terra realizam seus truques simultaneamente como personagens sociais e como meras coisas”(56). Marx definiu esse fenômeno no primeiro volume de O Capital: “... uma relação social definida entre os homens que assume, a seus olhos, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. A fim de encontrar uma analogia, devemos recorrer às regiões enevoadas do mundo religioso. Neste mundo, as produções do cérebro humano aparecem como seres independentes dotados de vida, e entrando em relações tanto entre si quanto com a espécie humana. O mesmo acontece no mundo das mercadorias com os produtos das mãos dos homens. A isto dou o nome de fetichismo que adere aos produtos do trabalho, tão logo eles são produzidos como mercadorias, e que é, portanto inseparável da produção de mercadorias. Esse fetichismo das mercadorias tem sua origem... no caráter social peculiar do trabalho que o produz”(57). O fetichista, que sistematicamente atribui a coisas o produto das relações sociais, é levado a conclusões bizarras: “O lucro é retorno de que? … o economista, depois de cuidadosa análise, termina ligando o conceito de lucro à inovação dinâmina e à incerteza, e ao problema dos monopólios e incentivos”(58). Rubin observa que, “no lugar de considerar fenômenos técnicos e sociais como diferentes aspectos da atividade humana laboral, aspectos que estão intimamente ligados mas diferentes, os economistas vulgares põem-nos no mesmo nível, no mesmo plano científico por assim dizer... Essa identificação do processo de produção com suas formas sociais... vinga-se cruelmente” (Rubin. p. 28), e os economistas ficam estupefatos ao notar que “o que eles justamente pensaram ter definido com grande dificuldade como uma coisa subitamente aparece como uma relação social, e então reaparece para provocá-los outra vez como uma coisa, antes que eles consigam distingui-lo como uma relação social”(59).

As forças de produção “alienadas do trabalhador e confrontando-o como um poder independentemente”(60) na forma de capital, dá ao capitalista poder sobre o resto da sociedade: “O capitalista resplandece com a luz refletida de seu capital” (Rubin, p. 25), e ele pode brilhar apenas porque a força produtiva dos trabalhadores foi cristalizada nas forças produtivas e acumulada pelo capitalista na forma de capital. O capitalista, como possuidor do capital, agora confronta o resto da sociedade como aquele sob cujo arbítrio a produção e consumo ocorrem; ele confronta a sociedade como seu governante. Esse processo é celebrado nas cartilhas oficiais de economia: “Lucros e altos ganhos são a isca, as cenouras suspensas diante de nós, asnos empreendedores. Perdas são nossas chicotadas de castigo. Lucros são para aqueles que foram eficientes no passado – eficientes em fazer coisas, em vender coisas, em prever coisas. Através dos lucros, a sociedade dá o comando dos novos empreendimentos para aqueles que acumulam um curriculum de sucesso”(61).

Agora pode-se mostrar que a sequência precedente é um desenvolvimento detalhado, uma clarificação e concretização da teoria de alienação que Marx apresentou em 1844. Isso pode ser visto comparando a sequência com a passagem citada anteriormente, escrita um quarto de século antes da publicação da teoria do fetichismo das mercadorias no primeiro volume de O Capital, e quase meio século antes do terceiro volume: ”O objeto produzido pelo trabalhador, seu produto, agora ergue-se contra a ele como um ser alheio, como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é trabalho que foi incorporado em um objeto, e transformado em coisa física; esse produto é uma objetificação do trabalho... A alienação do trabalhador nos meios de produção significa não apenas que seu trabalho torna-se um objeto, tomando uma existência própria, mas que existe fora dele, independentemente e alheio a ele, e que ergue-se contra ele como um poder autônomo. A vida que ele deu ao objeto volta-se contra ele como uma força alheia e hostil”(62). Essa passagem parece, em retrospecto, como um resumo da teoria do fetichismo das mercadorias. Entretanto, as definições, os conceitos, as relações detalhadas que a passagem parece sintetizar só foram desenvolvidas décadas depois.

O próximo objetivo é examinar a teoria de valor de Marx dentro do contexto de sua teoria do fetichismo das mercadoriass, dado que, como Rubin indica, “A teoria do fetichismo é, per se, a base de todo sistema econômico de Marx, e em particular de sua teoria de valor” (Rubin, p. 5). Nesse contexto, Rubin, distingue três aspectos do valor: “(1) é uma relação social entre pessoas, (2) que assume uma forma material e (3) é relacionada com o processo de produção” (Rubin, p. 63). O campo da teoria de valor é a atividade laboral das pessoas, ou como Rubin o define: “A teoria de valor trata das interrelações de várias formas de trabalho no processo de sua distribuição, que é estabelecida através da relação de troca entre coisas, isto é, produtos do trabalho” (Rubin, p. 67). Em outras palavras, o campo da teoria do valor é o trabalho tal como se manifesta na economia mercantil: aqui o trabalho não toma a forma de participação consciente e criativa na transformação do ambiente material: ele toma a forma de trabalho abstrato que é congelado em mercadorias e vendido no mercado como valor. “O caráter específico da economia mercantil consiste no fato de que o processo técnico-material não é regulado diretamente pela sociedade mas é dirigido por produtores individuais de mercadoria... O trabalho privado dos produtores de mercadorias separados é conectado com o trabalho de todos os outros produtores de mercadorias e torna-se trabalho social apenas se o produto de um produtor é equalizado como valor com todas as outras mercadorias” (Rubin, p. 70). Antes de analisar como o trabalho é alocado através da equalização das coisas, ou seja, como a atividade humana é regulada na atividade capitalista, Rubin aponta que a forma que o trabalho assume na sociedade capitalista é a forma de valor: “A reificação do trabalho em valor é a conclusão mais importante da teoria do fetichismo, que explica a inevitabilidade da 'reificação' das relações de produção entre pessoas em uma economia mercantil” (Rubin, p. 72). Assim a teoria de valor trata da regulação do trabalho; este é um fato que a maioria dos críticos da teoria não entenderam.

A questão que Marx levanta é a de como a atividade laboral de pessoas é regulada numa sociedade capitalista. Sua teoria de valor é oferecida como uma resposta para essa questão. Será mostrado que muitas críticas não oferecem uma resposta diferente à questão que Marx levantou, eles objetam a própria questão. Em outras palavras, os economistas não dizem que Marx deu uma resposta errada para a questão que ele levanta, mas que ele dá a resposta errada à questão que eles mesmos levantam:

Marx pergunta: Como a atividade laboral humana é regulada numa sociedade capitalista?

Marx responde: A atividade laboral humana é alienada por uma classe, apropriada por outra classe, congelada em mercadorias, e vendida no mercado na forma de valor.

Os economistas respondem: Marx está errado. O preço de mercado não é determinado pelo trabalho; é determinado pelo preço de produção e pela demanda. “O grande Alfred Marshall” enfatizou que “o preço de mercado – isto é, o valor econômico - é determinado igualmente pela oferta e pela procura, que interagem entre si de modo muito semelhante à descrição de Adam Smith da operação de mercados competitivos”(63).

Marx estava perfeitamente ciente do papel de oferta e da procura em determinar o preço de mercado, como será mostrado abaixo. A questão é que Marx não pergunta o que determina o preço de mercado, ele perguntava como a atividade laboral é regulada.

A mudança de questão começa já na década de 1870, antes da publicação do segundo e terceito volumes de O Capital. Nessa época, os economistas capitalistas reviveram a teoria do valor utilitário de Jean Baptiste Say e a teoria da oferta e procura de Augustin Cournot(64), ambas desenvolvidas no início do século 19. A virtude de ambas as abordagens é que elas não dizem nada sobre a regulação da atividade humana laboral na sociedade capitalista, e isso é fortemente recomendado aos economistas profissionais de uma sociedade comercial. A ressurreição de Say e Cournot foi aclamada como uma nova descoberta, dado que o “novo princípio” coloca uma cortina pesada sobre as questões que Marx tinha levantado. “O novo princípio era simples: o valor do produto ou serviço é devido não ao trabalho incorporado nele mas à utilidade da última unidade comprada. Esse, em essência, era o princípio de utilidade marginal”, de acordo com o historiador Fusfeld(65). Aos olhos do economista Robert Campbell, o reaparecimento da teoria da utilidade trouxe ordem ao caos: “A reconciliação de todas essas explicações parciais conflitantes em uma teoria geral unificada do valor veio apenas no final do século XIX, com o conceito de equilíbrio geral e a redução de todas as explicações ao denominador comum da utilidade, graças aos escritores da escola da utilidade marginal”(66). Fusfeld aponta a principal razão para a excitação: “Uma das mais importantes conclusões vindas dessa linha de pensamento foi que um sistema de livres mercados tende a maximizar o bem-estar individual”(67). Foi possível outra vez tomar por garantido não questionar precisamente o que Marx questionou. Depois de saudar o reaparecimento da teoria da utilidade, Campbell passa a redefinir a economia de modo a excluir as próprias questões que Marx levantou. Campbell faz isso explicitamente: “Um reflexo desse novo insight no problema do valor foi a formulação de uma nova definição de economia, aquela comumente usada hoje, como a teoria da alocação de recursos escassos entre fins competitivos”(68). Omitindo que suas próprias ideias sobre valor eram vigentes no tempo de Ricardo, o economista científico Campbell pretende descartar Marx por ele ainda reter “ideias sobre valor vigentes nos tempos de Ricardo”. Campbell usa então a linguagem contida, objetiva, da escola americana de ciências sociais para resumir a obra vital de Marx: “Marx tomou a teoria de valor tal como ela então existia, e compôs, mediante certas confusões, uma teoria da dinâmica do sistema capitalista. (Pode ser mais exato descrever o processo de modo inverso: Marx tinha as conclusões e estava tentando mostrar como elas decorriam rigorosamente e inevitavelmente da teoria de valor então geralmente aceita. Com o benefício da retrospectiva, podemos rever seu esforço como uma técnica de reductio ad absurdum [redução ao absurdo] para provar as deficiências da teoria de valor ricardiana)”. Com base nessa elaborada análise da obra de Marx, Campbell conclui com imparcialidade: “Assim o cativeiro de uma herança marxista na teoria econômica está não tanto em que a visão marxista é simplesmente errada em algo particular (isto é, assumir que o valor é criado apenas pelo trabalho) mas que ele não compreende o problema básico da teoria econômica; que ele não atingiu a compreensão completa do que é que uma teoria econômica válida deve iluminar. Essa conquista só se tornou a linha dominande da teoria econômica mundial depois que os marxistas já haviam desviado-se para entrar no beco sem saída mencionado acima”(69). Com a economia assim redefinida e Marx excluído dela, tornou-se possível, outra vez, prender-se a “uma teoria do valor baseada na análise do ato de troca como tal, isolado de um contexto sócio-econômico determinado” (Rubin, p.85-86).

Assim, os economistas não substituíram as respostas às questões de Marx com respostas mais precisas; eles jogaram fora as questões, e as substituíram por questões sobre escassez e preço de mercado; desse modo, os economistas “redirecionaram todo o foco da economia para longe da questão social das classes e de seus interesses econômicos, os quais eram enfatizados por Ricardo e Marx, e centralizaram a teoria econômica no indivíduo”(70). Fusfeld também explica porque economistas mudaram o foco: “Os economistas e suas teorias altamente abstratas foram parte do mesmo desenvolvimento social e intelectual que trouxe à luz as teorias legais de Stephen Field e o folclore do self-made man [homem que se faz sozinho]”(71), isto é, os economistas estão ideologicamente com a classe dominante, os capitalistas, ou como Samuelson colocou, “Lucros e elevadas taxas de retorno são a isca, as cenouras suspensas diante de nós, asnos empreendedores”(72).

Mesmo teóricos cuja objetivo primário não era a celebração do capitalismo interpretaram a teoria do valor de Marx como uma teoria de alocação de recursos ou uma teoria do preço, e minimizaram ou mesmo negligeciaram totalmente o contexto sociológico e histórico da teoria. Isso não significa que os problemas de alocação de recursos ou preços não tenham nada a ver com uma análise histórica e sociológica do capitalismo, ou que a elucidação desse aspecto necessariamente não escrescente nada à compreensão dos outros. O problema aqui é que a teoria da alocação de recursos ou a teoria dos preços não precisam explicar porque a atividade humana é regulada através de coisas na forma histórica capitalista de economia, porque essa teoria pode começar sua análise tomando o capitalismo por garantido. Ao mesmo tempo, uma análise histórica e sociológica da economia capitalista não precisa explicar a alocação de recursos ou os componentes do preço em sua tentativa de caracterizar a forma que a atividade laboral humana assume em um dado contexto social. Um teórico dos preços pode se ocupar explicitamente com a forma social da economia cujos preços ele examina, tanto quanto Marx ocupou-se explicitamente com problemas de preços e alocação. Mas isso não significa que todos os teóricos de preços ou da alocação de recursos necessariamente esgotam os problemas sociológicos e históricos, ou ainda que eles minimamente se atentem ao capitalismo como uma forma histórica específica de economia, do mesmo modo que isso não significa que Marx necessariamente esgotou os problemas da determinação do preço ou da alocação de recursos, mesmo embora ele tivesse uma consciência muito mais profunda desses problemas do que lhe dão crédito a maioria de seus críticos superficiais, e até de seus seguidores superficiais.

Oscar Lange afirma que “os escritores fundamentais da escola marxista” buscaram em Marx uma teoria do preço, e que consequentemente “eles viram e resolveram o problema apenas dentro dos limites da teoria do valor trabalho, sendo assim sujeitos a todas as limitações da teoria clássica”(73). Entretanto, o próprio Lange via a teoria de valor de Marx como uma tentativa de resolver o problema da alocação de recursos. De acordo com Lange, Marx “parece ter pensado o trabalho como o único tipo de recursos escasso a ser distribuído entre os diferentes usos e desejou resolver o problema pela teoria do valor trabalho”(74). Na realidade, foi Lange que se devotou a desenvolver essa teoria da alocação de recursos, não Marx, e “o caráter insatisfatório de sua solução”(75) é claramente devido ao fato de que a teoria de Marx não foi apresentada como uma solução dos problemas de Lange.

Fred Gottheil, em um livro recente sobre Marx, explicitamente reduz a teoria do valor de Marx a uma teoria do preço. Diferente dos críticos superficiais de Marx, Gottheil aponta que Marx estava ciente de que numa sociedade capitalista os preços não são determinados pelo “conteúdo de trabalho” das mercadorias: “O conceito de preço que é incorporado na análise do sistema de economia marxiana é, sem exceção, o conceito de preços de produção ...”(76). Entretanto, ao reduzir a teoria de valor de Marx a uma teoria dos preços, Gottheil puxa a teoria de Marx para fora de seu contexto sociológico e histórico (Gottheil não menciona sequer a teoria de fetichismo das mercadorias de Marx). Desse modo Gottheil reduz a análise histórica e sociológica da economia capitalista mercantil a um sistema mecanicista de que Gottheil mecanicamente deriva mais de 150 “predições”.

Joan Robinson sabe que a construção de uma teoria dos preços não era o principal objetivo da análise de Marx, e diz que Marx “sentiu-se obrigado a oferecer uma teoria de preços relativos, e embora pensasse que isso era essencial podemos ver que é irrelevante para o tema principal de seu argumento”(77). Porém, Robinson parece não estar ciente justamente de que “tema do argumento” é esse : “O tema principal desse argumento era algo muito diferente. Aceitando o dogma de que todas as coisas trocam-se por preços proporcionais a seus valores, Marx aplica isso à força de trabalho. Essa é a pista que explica o capitalismo. O trabalhador recebe seu valor, seu custo em termos de tempo de trabalho, e o empregador faz uso dele para produzir mais valor do que ele custa”(78). Tendo reduzido a obra de Marx a esse “argumento”, Robinson é hábil em concluir: “Nesse plano, todo o argumento mostra-se metafísico, um típico exemplo de como ideias metafísicas operam. Logicamente, é mero malabarismo com as palavras, mas para Marx foi um raio de iluminação e, para os marxistas dos últimos dias, uma fonte de inspiração”(79).

Em um ensaio escrito mais de um século antes de Economic Philosophy de Joan Robinson, Thorstein Veblen chegou muito mais próximo que Robinson ao “tema” da obra de Marx: “... dentro do domínio em que a cultura humana se desdobra, que é o campo da especulação marxiana em geral, Marx devotou seus esforços em especial a uma análise e formulação teórica da situação presente – a fase corrente do processo, o sistema capitalista. E, dado que o modo prevalecente de produção de bens determina a vida institucional, intelectual e espiritual da época ao determinar a forma e método da luta de classes atual, a discussão necessariamente começa com a teoria da 'produção capitalista', ou a produção tal como levada sob o sistema capitalista”(80). Veblen também estava muito ciente da irrelevância das críticas baseadas na redução da teoria de valor de Marx a uma teoria dos preços: “A crítica de Marx comumente identifica o conceito de 'valor' com o de 'valor de troca', e mostra que a teoria de 'valor' não fecha com os fatos correntes dos preços no sistema existente de distribuição, piamente esperando por isso ter refutado a doutrina marxiana; quando, é claro, eles em grande parte nem a tocaram”(81).

O método de Marx, sua abordagem ao problema que ele levantou, foi desenhado para lidar com este problema, não com os problemas levantados por seus críticos, isto é, para responder como a distribuição de trabalho é regulada, e não para saber porque as pessoas compram bens, ou como os recursos são alocados, ou o que determina o preço de mercado. Assim, não foi para definir o que determina o preço de mercado, mas para focalizar o problema da regulação do trabalho, que Marx abstraiu a economia capitalista real, que ele reduziu a seu essencial nu, por assim dizer. O Capitalismo é uma economia mercantil; as relações sociais não são estabelecidas diretamente, mas através da troca de coisas. Para aprender como o trabalho é regulado em uma economia onde a regulação ocorre através da troca de coisas, Marx constrói um modelo de “economia mercantil simples”, uma economia abstrata na qual as relações sociais são estabelecidas através da troca de coisas, e na qual a razão ao redor da qual as mercadorias tendem a ser trocadas é determinada pelo tempo de trabalho gasto em sua produção. A afirmação de que as mercadorias são trocadas em termos de tempo de trabalo gasto em sua produção é então uma tautologia, desde que já está contida na definição do modelo de Marx. O motivo da abstração é focalizar na regulação do trabalho em uma economia mercantil, não resolver o que determina os preços na sociedade capitalista atual. Nesse contexto é irrelevante observar que há “outros fatores de produção” (tais como terra e capital), visto que, como Rubin afirma, “a teoria do valor não trata o trabalho como um fator técnico de produção, mas com a atividade laboral de pessoas como a base da vida social, e com as formas sociais dentro das quais o trabalho é realizado” (Rubin, p 82). Também é irrelevante apontar que “outras coisas além do trabalho” são trocadas, já que “Marx não analisa toda troca de coisas, mas apenas a equalização das mercadorias através das quais a equalização social do trabalho é realizada na economia mercantil” (Rubin, p. 101). A abstração de Marx não é elaborada para explicar tudo; é elaborada para explicar a regulação do trabalho numa economia mercantil.

No capítulo 2 de sua cartilha econômica, Paul Samuelson considera o método de Marx totalmente inaceitável. Esse acadêmico, cuja significância na economia americana pode provavelmente ser compara à de Lysenco na genética soviética, resume a teoria de valor de Marx como segue: “A famosa 'teoria de valor trabalho' foi adaptada por Karl Marx de escritores clássicos como Adam Smith e David Ricardo. Não há melhor introdução a ela do que mencionando a Riqueza das Nações de Adam Smith. Smith aplicou a noção fantástica de uma Era de Ouro, um tipo de Éden, onde vivia o nobre selvagem antes que a terra e o capital tivessem se tornado escassos e quando o trabalho humano sozinho bastava”(82). Após exibir seu entendimento da teoria, Samuelson faz uma análise crítica dela, usando a linguagem objetiva, contida, não ideológica da ciência social americana: “Karl Marx, há um século, em Das Kapital (1867), infelizmente apega-se mais teimosamente do que Smith à supersimplificada teoria do trabalho. Isso deu a ele uma terminologia persuasiva para declamar contra a 'exploração do trabalho', mas isso constitui má ciência econômica...”(83). Antes de levar essa demonstração à conclusão, Samuelson oferece sua própria teoria da origem da propriedade privada: a propriedade privada nasce da escassez, tão naturalmente quanto bebês nascem do útero: “Mas suponha que deixemos o Éden e os bens agrícolas requiram, junto com o trabalho, terra fértil que cresceu escassa o bastante para tornar-se propriedade privada”(84). Baseado nessa análise sociológica e histórica profunda da economia no qual ele vive, o Lysenko americano conclui: “Uma vez que fatores outros que o trabalho tornam-se escassos... a teoria do valor falha Q.E.D”(85).

Entretanto, no capítulo 34 da mesma cartilha, o mesmo Samuelson explica “A Lei da Vantagem Comparativa” com o mesmo método de abstração que Marx usou, ou seja, ele aplica a mesma teoria do valor trabalho(86) do mesmo modo, e ele refere-se à mesma fonte, Ricardo. Samuelson ainda conta ao leitor que mais tarde ele “poderá dar alguma da qualificações necessárias quando nossas assunções simples forem relaxadas”(87). Na introdução de sua cartilha, Samuelson mesmo defende o método de abstração: “Ainda que nós tivéssemos mais e melhores dados, ainda seria necessário – como em toda ciência – simplificar, abstrair, da infinita massa de detalhes. Nenhuma mente pode compreender um emaranhado de fatos não relacionados. Toda análise envolve abstração. Sempre é necessário idealizar, omitir detalhes, ajustar hipóteses simples e padrões em que os fatos podem ser descritos, ajustar as questões certas antes de ir olhar o mundo a volta como ele é”(88). Assim Samuelson não pode se opor ao método de análise de Marx; o que o aborrece é assunto temático dele; aquilo a que ele se opõe é a análise que pergunta porque “em nosso sistema, capitalistas individuais ganham juros, dividentos, lucros ou rendas e royalties sobre os bens de capital que eles fornecem. Cada pedaço da terra e cada pedaço de equipamento tem uma escritura, ou um 'título de propriedade', que pertence a alguém diretamente – ou pertence aos acionistas individuais que possuem a corporação”(89). Samuelson já contou a seus leitores a resposta: “Através dos lucros, a sociedade dá o comando dos novos empreendimentos para aqueles que acumulam um curriculum de sucesso ”(90).

Rubin aponta que a “economia mercantil simples” de Marx não pode ser tratada como um estágio histórico que precedeu o capitalismo: “Ela é uma abstração teórica e não um retrato da transição histórica de uma economia mercantil simples a uma economia capitalista” (Rubin, p. 257). Consequentemente, a “teoria do valor trabalho é uma teoria da economia mercantil simples, não no sentido de que ela explique o tipo de economia que precede a economia capitalista, mas no sentido de que ela descreve apenas um aspecto da economia capitalista, a saber, as relações de produção entre produtores de mercadorias que são a característica de toda economia mercantil” (Rubin, p. 255). Marx estava perfeitamente ciente de que ele não poderia “construir a teoria da economia capitalista diretamente da teoria de valor trabalho e... evitar as ligações intermediárias, lucro médio e preços de produção. Ele caracterizou tais tentativas como 'tentativas de forçar e diretamente encaixar as relações concretas nas relação elementar do valor', 'trentativas de apresentar como existente aquilo que não existe” (Rubin, p 255).

O livro de Rubin analisa as conexões entre tecnologia e relações sociais em uma economia mercantil onde pessoas não se relacionam umas com as outras diretamente mas através dos produtos de seu trabalho. Nessa economia, o avanço técnico não é experimentado diretamente pelos produtores como um melhoramento da vida, e não é acompanhado por uma transformação consciente de atividade laboral. A atividade laboral é transformada não em resposta à força produtiva aumentada da sociedade, mas em resposta a mudanças no valor dos produtos. “A força motriz que transforma por inteiro o sistema do valor se origina no processo técnico-material de produção. O aumento da produtividade do trabalho é expresso em uma diminuição na quantidade de trabalho concreto que é de fato gasto na produção, em média. Como resultado disso (devido ao duplo caráter do trabalho, como concreto e abstrato), a quantidade do trabalho que é 'social' ou 'abstrato', isto é, participante do trabalho homogêneo da sociedade, decai. O aumento da produtividade do trabalho modifica a quantidade de trabalho abstrato necessária para a produção. Isso causa uma mudança no valor do produto do trabalho. Uma mudança no valor dos produtos por sua vez afeta a distribuição do trabalho social entre os vários ramos de produção... esse é o esquema da economia mercantil no qual o valor assume o papel de regulador, estabelecendo equilíbrio na distribuição de trabalho social entre vários setores...” (Rubin, p. 66)

Na condição concreta da economia capitalista esse processo é mais complexo, mas a despeito dessa complexidade, a regulação das atividades produtivas das pessoas é ainda assim realizada através do movimento de coisas. Na economia capitalista “a distribuição do capital leva à distribuição do trabalho social” (Rubin, p. 226). Como “nosso objetivo (como antes) é analisar as leis de distribuição do trabalho social” (Rubin, p. 228), consequentemente “devemos lançar mão de um caminho indireto e proceder a uma análise preliminar das leis de distribuição do capital” (Ibid.). O desafio torna-se mais complicado pelo fato de que, “se nós assumimos que a distribuição do trabalho é determinada pela distribuição do capital, que adquire significado como elo intermediário numa cadeia causal, então a fórmula da distribuição do trabalho depende da fórmula de distribuição de capitais: massas desiguais de trabalho que são ativadas por iguais capitais, que são equalizados entre si” (p235). A distância entre a distribuição do capital e distribuição do trabalho é coberta através do conceito de composição orgânica, que estabelece uma relação entre os dois processos (p. 237).

Na sua análise, Rubin aponta “a existência da competição entre capitalistas engajados em diferentes ramos de produção” e também “a possibilidade de transferência de capital de um ramo a outro” (p. 230)(91). Com essas premissas, “a taxa de lucro torna-se o regulador da distribuição de capital”(p. 229). Rubin define o lucro como “o excedente no preço de venda de uma mercadoria sobre seus custos de produção” (p. 230). E uma mudança no custo de produção é “em última análise causado por mudanças na produtividade de trabalho e no trabalho-valor de alguns bens” (p. 251) Esquematicamente, o processo pode ser resumido como segue. Mudanças técnicas causam uma mudança na produtividade do trabalho. Isso altera o total de trabalho alienado, abstrato, que é congelado em certas mercadorias, e consequentemente muda o valor dessas mercadorias. O que por sua vez afeta o custo de produção dos ramos que usam estas mercadorias específicas em seu processo de produção, e assim afeta o lucro dos capitalistas nesses ramos. A mudança na lucratividade dos ramos afetados leva os capitalistas a mover seus capitais para outros ramos, e esse deslocamento de capitais, por seu turno, leva a uma movimentação dos trabalhadores para os outros ramos (embora esse deslocamento de trabalhadores não seja necessariamente proporcional ao deslocamento de capitais, dado que isso depende da composição ôrganica do capital). A conclusão de Rubin é que a regulação do trabalho na sociedade capitalista difere apenas em complexidade, mas não em gênero, da regulação do trabalho em uma economia mercantil simples: ”A anarquia na produção social; a ausência de relações sociais diretas entre produtores; a influência mútua de suas atividades laborais através de coisas que são produtos de seus trabalhos; a conexão entre o movimento das relações de produção entre pessoas e o movimento das coisas no processo de produção material; a 'reificação' das relações de produção, a transformação de suas propriedades em propriedades das 'coisas' - todos esses fenômenos de fetichismo da mercadoria estãoigualmente presentes em toda economia mercantil, na simples tanto como nacapitalista. Eles caracterizam o valor trabalho e preço de produção do mesmo modo” (p.253, itálicos de Rubin). O primeiro volume de O Capital oferece o contexto, o segundo descreve o mecanismo e o terceiro trata do processo formidável através do qual “O objeto produzido pelo trabalhador, seu produto, agora ergue-se contra ele como um ser alheio, como um poder independentedo produtor”, o processo pelo qual “a vida que ele deu ao objeto volta-se contra ele como uma força alheia e hostil”.

Fredy Perlman
Kalamazzo


Notas de rodapé:

(1) Paul A. Samuelson, Economics, An Introductory Analysis, New York: McGraw Hill, 1967, Seventh Edition, p. 1 and p. 5 (Itálicos de Samuelson). O livro de Samuelson é o protótipo do livro didático usado atualmente nas universidades americanas para ensinar aos alunos os princípios da economia. (retornar ao texto)

(2) Robert W. Campbell, "Marx, Kantorovich and Novozhilov: Stoimost versus Reality", Slavic Review, October, 1961, pp. 402-418. Reimpresso em Wayne A. Leeman, ed., Capitalism, Market Socialism and Central Planning, Boston: Houghton Mifflin, 1963, pp. 102-118, e também em Harry G. Shaffer, The Soviet Economy, New York: Appleton-Century-Crofts, 1963, pp. 350-366. Campbell é atualmente uma autoridade americana em economia marxista. (retornar ao texto)

(3) Abram Bergson, The Economics of Soviet Planning, New Haven: Yale University Press, 1964, p. 3. Bergson é diretor do Russian Research Center na Universidade de Harvard e, como Campbell, ele é atualmente uma autoridade em economia marxista. (retornar ao texto)

(4) Título do livro de William Appleman Williams, The Great Evasion, Chicago: Quadrangle Books, 1964. Williams descreve vividamente algumas das técnicas de evasiva: "As táticas de fuga empregadas nesta corrida precipitada da realidade encheria um manual dos equívocos, uma receita de minúcias, e um guia para mudar de assunto” (p. 18). (retornar ao texto)

(5) I. I. Rubin, Ocherki po teorii stoimosti Marksa, Moskva: Gosudarstvennoe Izdatel'stvo, 3rd edition, 1928, p. 41; a presente tradução inglesa, página 31. A obra de Rubin não teve edição na União Soviética após 1928, e nunca antes foi traduzida. As citações de página nesta Introdução referem-se à esta tradução em inglês [nota do tradutor: I.I. Rubin's "Essays on Marx's Theory of Value", Black Rose Books, Montreal, 1973. ] (retornar ao texto)

(6) Samuelson, op. cit., p. 1. (retornar ao texto)

(7) Por exemplo: "Curiosamente, foi o jovem Marx (escrevendo no início dos anos 1840) que desenvolveu idéias muito no espírito de outros sistemas de pensamento que tem grande apelo para a mentalidade das décadas de 1950 e 1960: psicanálise, existencialismo e Zen Budismo. E, pelo contrário, o trabalho do Marx maduro, que salientou a análise econômica e política, tem sido menos atraente para os intelectuais dos países ocidentais avançados desde o fim da II Guerra Mundial.” Robert Blauner, Alienation and Freedom: The Factory Worker and His Industry, Chicago: University of Chicago Press. 1964, p. 1. (retornar ao texto)

(8) Karl Marx, The Economic and Philosophic Manuscripts of 1844. New York: International Publishers, 1964, p. 178. (retornar ao texto)

(9)  Ibid., p. 176. (Italics in original.) (retornar ao texto)

(10) Ibid., p. 177. (retornar ao texto)

(11) Ibid., p. 184. (retornar ao texto)

(12) Ibid., p. 185. (retornar ao texto)

(13)  Ibid., p. 172. (retornar ao texto)

(14) Karl Marx, Theses on Feuerbach, in T.B. Bottomore and Maximillien Rubel, editors, Karl Marx, Selected Writings in Sociology and Social Philosophy, New York: McGraw Hill, 1964, p. 68. (retornar ao texto)

(15) Ibid., p. 67. (retornar ao texto)

(16) Karl Marx and Frederick Engels, The German Ideology, Moscow: Progress Publishers, 1964, pp. 58-59. (retornar ao texto)

(17) De "Excerpt-Notes of 1844" in Writings of the Young Marx on Philosophy and Society, translated and edited by Loyd D. Easton and Kurt H. Guddat, Garden City: Anchor Books, 1967, p. 28 1. (italics in original) (retornar ao texto)

(18) Ibid., p. 281-282. (retornar ao texto)

(19) Blauner, Alienation and Freedom: The Factory Worker and his Industry, p. 15. (retornar ao texto)

(20) lbid., p. 3. (retornar ao texto)

(21) From "Excerpt-Notes of 1844," loc. cit., p. 275-276. (retornar ao texto)

(22) Ibid., p. 272. (retornar ao texto)

(23) Bottomore and Rubel, eds., op. cit., p. 170. (retornar ao texto)

(24) Ibid., p. 171 and 170. (retornar ao texto)

(25) Karl Marx, Economic and Philosophic Manuscripts of 1844, New York: International Publishers, 1964, p. 150. (retornar ao texto)

(26) Veljko Korac, "In Search of Human Society," in Erich Fromm, editor, Socialist Humanism, Garden City: Anchor Books, 1966, p. 6. (Italics in original.) (retornar ao texto)

(27) Marx, Economic and Philosophic Manuscripts of 1844, p. 146. (retornar ao texto)

(28) Bottomore and Rubel, eds., op. cit., pp. 243-244. (retornar ao texto)

(29) Easton and Guddat, Writings of the Young Marx on Philosophy and Society, pp. 262-263. (retornar ao texto)

(30) Marx, Economic and Philosophic Manuscripts, p. 169. (retornar ao texto)

(31) Erich Fromm, Beyond the Chains of Illusion, New York: Pocket Books, Inc., 1962, p. 32. (retornar ao texto)

(32) Ibid., p. 49. (retornar ao texto)

(33) Ibid., pp. 196-197. (retornar ao texto)

(34) Marx and Engels, The German Ideology, p. 23-24. (retornar ao texto)

(35) Letter of Marx to P.V. Annenkov. December 28, 1846, in Karl Marx, The Poverty of Philosophy, New York: International Publishers, 1963. p. 191. (retornar ao texto)

(36) Marx and Engels, The German Ideology, p. 32. (retornar ao texto)

(37) Ibid., p. 37. (retornar ao texto)

(38) Marx, The Poverty of Philosophy, p. 109. (retornar ao texto)

(39) Marx and Engels, The German Ideology, p. 50. (retornar ao texto)

(40) Letter of Marx to Annenkov, loc. cit., p. 181. (retornar ao texto)

(41) Marx and Engels, The German Ideology, p. 475. (retornar ao texto)

(42) Karl Marx, A Contribution to the Critique of' Political Economy, Chicago: Charles H. Kerr & Co., 1904, p. 12. É interessante notar que, neste ponto, Marx começa a desenvolver uma teoria geral do desenvolvimento cultural e da mudança cultural, ou o que o antropólogo Leslie White chamou de "ciência da cultura". (cf. Leslie A. White, The Science of Culture, New York: Grove Press, 1949.) O parágrafo que contém o trecho citado acima também contém a seguinte formulação: “Assim como nossa opinião sobre um indivíduo não é baseada no que ele pensa de si mesmo, de modo que não se pode julgar uma certa época de transformação pela sua própria consciência; pelo contrário, essa consciência deve, antes, ser explicada pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças materiais de produção e as relações de produção. Nenhuma ordem social jamais desaparece antes que todas as forças produtivas para as quais não há espaço nela sejam desenvolvidas; e novas relações de produção mais elevadas nunca aparecem antes que as condições materiais de sua existência tenham amadurecido no seio da velha sociedade. Portanto, a humanidade sempre só se coloca problemas que ela pode resolver; dado que, examindando mais de perto o assunto, sempre descobrimos que o próprio problema em si surge somente quando já existem as condições materiais necessárias para a sua solução ou que, pelo menos, já estejam em processo de formação.” (pp. 12-13.) (retornar ao texto)

(43) Marx and Engels, The German Ideology, p. 46. (retornar ao texto)

(44) C. Wright Mills não viu a conexão entre o conceito de alienação e a obra posterior de Marx, ou seja, os três volumes de O Capital e, consequentemente, Mills reduziu a questão da alienação à "questão da atitude dos homens para com o trabalho que fazem." Como resultado, Mills estava desapontado com Marx a respeito: "para dizer o mínimo, a condição em que Marx deixou a concepção de alienação é bastante incompleta, e brilhantemente ambígua”. (C. Wright Mills, The Marxists, New York: Dell Publishing Co., 1962, p. 112.) (retornar ao texto)

(45) Marx, A Contribution to the Critique of Political Economy, p. 30. (retornar ao texto)

(46) Ibid. (retornar ao texto)

(47) Samuelson, Economics, p. 542. (retornar ao texto)

(48) David Ricardo, The Principles of' Political Economy and Taxation, Homewood, Illinois: Richard D. Irwin. Inc., 1963, p. 45. (retornar ao texto)

(49) Marx, Economic and Philosophic Manuscripts of' 1844, p. 150. (retornar ao texto)

(50) KarI Marx, Capital: A Critique of Political Economy, Volume III, Moscow: Progress Publishers, 1966, p. 819. (retornar ao texto)

(51) Marx, Capital, III, p. 819. (retornar ao texto)

(52) Samuelson, Economics, p. 591. (retornar ao texto)

(53) Marx, Capital, III, p. 816. (retornar ao texto)

(54) Marx, Economic and Philosophic Manuscripts of 1844, p. 169. (retornar ao texto)

(55) Samuelson, Economics, p. 572. (retornar ao texto)

(56) Marx, Capital, III, p. 830, na última parte desta passagem se lê: "... em que Monsieur le Capital e Madame la Terre fazer o seu passeio fantástico como personagens sociais e, ao mesmo tempo, diretamente como meras coisas." A versão citada acima é de Marx on Economics, edited by Robert Freedman, New York: Harcourt, Brace & World, 1961, p. 65. (retornar ao texto)

(57) Karl Marx, Capital, Volume 1, Moscow: Progress Publishers, 1965, p. 72; New York: Random Housc, 1906 edition, p. 83. (retornar ao texto)

(58) Samuelson, Economics, p. 591. (retornar ao texto)

(59) Marx, A Contribution to the Critique of Political Economy, p. 31. (retornar ao texto)

(60) Marx, Capital, III, p. 824. (retornar ao texto)

(61) Samuelson, Economics, p. 602. (retornar ao texto)

(62) Marx, Economic and Philosophic Manuscripts of 1844, p. 108; a passagem citada é de Bottomore and Rubell, op. cit., p. 170-171. (retornar ao texto)

(63) Daniel R. Fusfeld, The Age of the Economist, Glenview, Illinois: Scott. Foresman & Co., 1966, p. 74. (retornar ao texto)

(64) Jean Baptiste Say, Traite d'Economie politique, first published in 1803. Augustin Cournot, Recherches sur les principes mathematiques de la theorie des richesses, 1838. Essa ressurreição foi realizada na década de 1870 por Karl Menger, William Stanley Jevons, Walras e Leon, e o trabalho foi "sintetizado" por Alfred Marshall em 1890. (retornar ao texto)

(65) Op. cit., p. 73. (retornar ao texto)

(66) Robert Campbell, "Marxian Analysis, Mathematical Methods, and Scientific Economic Planning", in Shaffer, op. cit., p. 352. (retornar ao texto)

(67) Fusfeld, op. cit., p. 74. (retornar ao texto)

(68) Campbell, loc. cit. (retornar ao texto)

(69) Ibid. (retornar ao texto)

(70) Fusfeld, op. cit., p. 74. (retornar ao texto)

(71) Ibid., p. 75. (retornar ao texto)

(72) Economics, pp. 601-602; citado anteriormente. (retornar ao texto)

(73) Oskar Lange, On the Economic Theory of Socialism, New York: McGraw Hill, 1964 (published together with an essay by Fred M. Taylor), p. 141. (retornar ao texto)

(74) Ibid., pp. 132-133. (retornar ao texto)

(75) Ibid. p. 133. (retornar ao texto)

(76) Fred M. Gottheil, Marx's Economic Predictions, Evanston: Northwestern University Press, 1966, p. 27. (retornar ao texto)

(77) Joan Robinson, Economic Philosophy, Garden City: Anchor Books, 1964, p. 35. (retornar ao texto)

(78) Ibid, p, 37, Italics in original. (retornar ao texto)

(79) Ibid. (retornar ao texto)

(80) Thorstein Veblen, "The Socialist Economics of Karl Marx", The Quarterly Journal of Economics. Vol: XX, Aug., 1906 , reprinted in The Portable Veblen, edited by Max Lerner, New York: Viking Press, 1948, p. 284. Em uma nota de rodapé, Veblen acrescenta a explicação de que "no uso marxiano, ´produção capitalista´ significa a produção de bens para o mercado pelo trabalho contratado sob a direcção de empregadores que possuem (ou controlam) os meios de produção e estão envolvidos na indústria em vistas do lucro." (retornar ao texto)

(81)  Ibid., pp. 287-288. (retornar ao texto)

(82) Samuelson, Economics, p. 27. (retornar ao texto)

(83) ibid, p. 29. (retornar ao texto)

(84) Ibid, italics by Samuelson. (retornar ao texto)

(85) Ibid. (retornar ao texto)

(86) Da explicação de Samuelson da lei da vantagem comparativa: “Nos Estados Unidos uma unidade de alimentos custa 1 dia de trabalho e uma unidade de vestuário custa 2 dias de trabalho. Na Europa, o custo é de 3 dias de trabalho para esse alimento e 4 dias de trabalho para esse mesmo vestuário” , etc. Ibid., p. 649. (retornar ao texto)

(87) Ibid., p. 648. (retornar ao texto)

(88) Ibid., p. 8. Samuelson's italics. (retornar ao texto)

(89) Ibid., p. 50. (retornar ao texto)

(90)  Ibid., p. 602. (retornar ao texto)

(91) Rubin não trata dos casos em que a assunção de perfeita concorrência e perfeita mobilidade do capital não sejam se aplica. Assim, ele não estende sua análise para os problemas do imperialismo, monopólio, militarismo, colônias domésticos (que hoje viria sob o título de racismo). Rubin também não trata as mudanças nas relações de produção causadas pelo aumento de escala e poder das forças produtivas, algo que Marx tinha começado a explorar no terceiro volume de O Capital, e não trata de seu desenvolvimento ou de suas transformações. (retornar ao texto)

Inclusão: 07/09/2020