Manual de Economia Política

Academia de Ciências da URSS


Capítulo III - A Produção Mercantil. O Aparecimento do Modo de Produção Capitalista


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A Produção Mercantil — Ponto de Partida para o Aparecimento do Capitalismo

O modo de produção capitalista, que sucede ao modo de produção feudal, é baseado na exploração da classe dos operários assalariados pela classe dos capitalistas. Para compreender a essência do modo de produção capitalista, é necessário ter em vista, antes de tudo, que ele se fundamenta na produção mercantil.

A produção mercantil, como já foi visto, existia tanto sob o regime escravista, como sob o feudalismo. No período da desagregação do feudalismo, a produção mercantil simples serviu de base para o aparecimento da produção capitalista.

A produção mercantil simples pressupõe, em primeiro lugar, uma divisão social do trabalho, na qual produtores individuais se especializam na elaboração de determinados produtos e, em segundo lugar, a existência da propriedade privada sobre os meios de produção e sobre os produtos do trabalho.

A produção mercantil simples dos artesãos e camponeses diferencia-se da produção mercantil capitalista pelo fato de que a primeira baseia-se no trabalho individual do produtor de mercadorias. Ao mesmo tempo, sua base é do mesmo tipo que a da produção capitalista, uma vez que se apoia na propriedade privada sobre os meios de produção. A propriedade privada engendra inevitavelmente a concorrência entre os produtores de mercadorias, o que conduz ao enriquecimento de uma minoria e a ruína da maioria. Em vista disso, a pequena produção mercantil constitui o ponto de partida para o aparecimento e o desenvolvimento das relações capitalistas.

No capitalismo, a produção mercantil assume um caráter dominante, universal. A troca de mercadorias, escreveu Lênin,

é “a relação mais simples, corrente, fundamental, maciça e comum, que se encontra bilhões de vezes, na sociedade burguesa (mercantil).”(19)

A Mercadoria e suas Propriedades. O Duplo Caráter do Trabalho Materializado na Mercadoria

A mercadoria é uma coisa que, em primeiro lugar, satisfaz uma necessidade humana qualquer e, em segundo lugar, é produzida não para o próprio consumo, mas para a venda.

A utilidade de uma coisa, as propriedades graças as quais ela pode satisfazer esta ou aquela necessidade dos homens, fazem da coisa um valor de uso. O valor de uso tanto pode satisfazer diretamente uma necessidade individual do homem, como servir de meio de produção de bens materiais. O trigo, por exemplo, satisfaz a necessidade de alimento, o tecido, a de vestuário; o valor de uso do tear consiste em que o tecido é produzido por seu intermédio. No curso do desenvolvimento histórico, o homem descobre constantemente novas propriedades úteis das coisas e os meios de utilizá-las.

Muitas coisas que absolutamente não foram criadas pelo trabalho humano têm valor de uso, como, por exemplo, a água nas nascentes, os frutos das plantas silvestres. Entretanto, nem todas as coisas que possuem valor de uso são mercadorias. Para que uma coisa possa tornar-se mercadoria, deverá ser um produto do trabalho destinado a venda.

Os valores de uso constituem o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social que esta assuma. Na economia mercantil, o valor de uso é o portador do valor de troca da mercadoria. O valor de troca apresenta-se, antes de tudo, como uma relação quantitativa em que valores de uso de um tipo são trocados por valores de uso de outro tipo. Um machado, por exemplo, é trocado por 20 quilogramas de cereal. Nesta relação quantitativa entre as mercadorias trocadas, também está expresso o seu valor de troca. As mercadorias em determinadas quantidades equiparam-se umas as outras; consequentemente, possuem uma base comum. Esta base não pode ser nenhuma das propriedades naturais das mercadorias — seu peso, volume, forma, etc.. As propriedades naturais das mercadorias determinam sua utilidade, o seu valor de uso. Condição necessária para a troca é a diferença de valores de uso das mercadorias trocadas. Ninguém irá trocar mercadorias que tenham valores de uso iguais, como, suponhamos, trigo por trigo ou açúcar por açúcar.

Sendo, porém, qualitativamente diferentes, os valores de uso de diferentes mercadorias são quantitativamente incomensuráveis. As diferentes mercadorias têm apenas uma propriedade comum, que as torna comparáveis entre si nas trocas: esta propriedade é precisamente o fato de que elas são produtos do trabalho. Na base da igualdade de duas mercadorias, que se trocam, está o trabalho social gasto na sua produção. Quando o produtor de mercadorias leva um machado para trocar no mercado, então ele descobre que por seu machado dão 20 quilogramas de cereal. Isto significa que o machado vale tanto quanto valem 20 quilogramas de cereal. O valor é o trabalho social dos produtores mercantis materializado na mercadoria.

Que o valor da mercadoria materializa o trabalho social gasto na sua produção, confirmam-no fatos de todos conhecidos. Bens materiais, como o ar, úteis em si mesmos, mas que não exigem gasto de trabalho, também não têm valor. Inversamente, mercadorias cuja produção exige uma grande quantidade de trabalho possuem um elevado valor, como o ouro, ou o diamante. Muitas mercadorias, antes caras, baratearam consideravelmente em consequência do desenvolvimento da técnica ter diminuído a quantidade de trabalho necessária a sua produção. As modificações nos gastos de trabalho para a produção de mercadorias também se refletem comumente na relação quantitativa das mercadorias trocadas, isto é, no seu valor de troca. Daqui decorre que o valor de troca de uma mercadoria é a forma de manifestação do seu valor.

Por trás da troca de mercadorias oculta-se a divisão social do trabalho entre os homens que são donos destas mercadorias. Os produtores mercantis, ao comparar diferentes mercadorias, comparam, ao mesmo tempo, seus diferentes tipos de trabalho e atuam sob determinadas relações uns com os outros. Estas relações se formam no processo da atividade produtiva dos homens e aparecem na troca de mercadorias. Desse modo, no valor estão expressas as relações de produção entre os produtores de mercadorias.

A mercadoria tem um duplo caráter: de um lado, ela é um valor de uso e do outro é um valor. O duplo caráter da mercadoria é condicionado pelo duplo caráter do trabalho cristalizado na mercadoria. Os tipos de trabalho são tão variados quanto os valores de uso produzido. O trabalho do marceneiro é qualitativamente diferente do trabalho do alfaiate, do sapateiro, etc.. Os diferentes tipos de trabalho distinguem-se uns dos outros pelo seu objetivo, seus métodos, instrumentos e, finalmente, por seus resultados. O marceneiro trabalha com emprego do machado, da serra, da plana e produz objetos de madeira: mesas, cadeiras, armários; o alfaiate produz roupas utilizando a máquina de costura, a tesoura, a agulha. Em cada valor de uso, portanto, está cristalizado um tipo determinado de trabalho: na mesa — o trabalho do marceneiro; na vestimenta — o trabalho do alfaiate; no sapato — o trabalho do sapateiro; e assim por diante. O trabalho gasto sob uma forma determinada é o trabalho concreto. O trabalho concreto cria o valor de uso da mercadoria.

Na troca, as mais diversas mercadorias, criadas por diferentes tipos de trabalho concreto, comparam-se entre si e equiparam-se umas as outras. Consequentemente, atrás de diferentes tipos concretos de trabalho, oculta-se alguma coisa de comum, inerente a qualquer trabalho. Tanto o trabalho do marceneiro, como o do alfaiate, apesar da diferença qualitativa que possuem, representam um desgaste produtivo de cérebro humano, nervos, músculos, etc., do homem, e assim considerados constituem trabalho humano igual, trabalho em geral. O trabalho dos produtores de mercadorias que representa dispêndio de força de trabalho humana, em geral, independentemente de sua forma concreta, é trabalho abstrato. O trabalho abstrato cria o valor da mercadoria.

O trabalho abstrato e o trabalho concreto são dois aspectos do trabalho materializado na mercadoria.

“Todo trabalho é, de um lado, gasto de força de trabalho humano, no sentido fisiológico da palavra, e, nesta sua qualidade de trabalho humano igual, ou abstrato, cria o valor das mercadorias. Todo trabalho é, por outro lado, gasto de força de trabalho humana, sob uma forma racional particular, e, nesta sua qualidade de trabalho útil concreto, cria valores de uso.”(20)

Na sociedade, onde impera a propriedade privada sobre os meios de produção, o duplo caráter do trabalho cristalizado na mercadoria reflete a contradição entre o trabalho privado e o trabalho social dos produtores de mercadorias. A propriedade privada sobre os meios de produção divide os homens, faz do trabalho dos diversos produtores de mercadorias um assunto privado seu. Cada produtor de mercadorias dirige sua atividade econômica isoladamente dos demais. O trabalho dos diferentes produtores não é coordenado nem vinculado em escala de toda a sociedade. De outra parte, porém, a divisão social do trabalho significa a existência de laços multilaterais entre os produtores, que trabalham uns para os outros. Quanto mais dividido esteja o trabalho na sociedade, tanto maior é a variedade de produtos elaborados por diferentes produtores, tanto mais ampla é a dependência mútua entre eles. Consequentemente, o trabalho de um produtor de mercadorias tomado isoladamente é em essência trabalho social, constitui uma partícula do trabalho da sociedade em seu conjunto. As mercadorias, sendo produtos de diferentes tipos de trabalho privado concreto, simultaneamente são também produtos do trabalho humano em geral, do trabalho abstrato.

A contradição da produção mercantil consiste, portanto, em que o trabalho dos produtores de mercadorias, sendo no plano imediato um assunto privado seu, possui, ao mesmo tempo, um caráter social. Em decorrência do isolamento dos produtores de mercadorias, o caráter social do seu trabalho no processo de produção permanece oculto. Um produtor de mercadorias, com o seu trabalho concreto privado, cria determinados valores de uso, mas desconhece as efetivas necessidades da sociedade. O caráter social do trabalho do produtor de mercadorias somente se manifesta no processo da troca, quando a mercadoria chega ao mercado e é trocada por outra mercadoria. Só no processo da troca é que se revelará se o trabalho desse ou daquele produtor de mercadorias é necessário a sociedade e recebe o reconhecimento social.

O trabalho abstrato, que cria o valor da mercadoria, constitui uma categoria histórica, é uma forma específica do trabalho social, inerente exclusivamente a economia mercantil. Na economia natural, os homens não produzem para a troca, mas para o próprio consumo, razão pela qual também o caráter social do seu trabalho aparece diretamente em sua forma concreta. Quando, por exemplo, o senhor feudal tomava do servo o produto suplementar, sob a forma de renda-trabalho ou de renda-produto, ele se apropriava do seu trabalho diretamente sob a forma de contribuição, em trabalho, ou de determinados produtos. Naquelas condições, o trabalho social não assumia a forma de trabalho abstrato. Na produção mercantil, os produtos não são criados para o próprio consumo, mas para a venda. Aqui, o caráter social do trabalho manifesta-se através da equiparação de uma mercadoria a outra, e esta equiparação pressupõe a redução de diferentes tipos de trabalho concreto ao trabalho abstrato, que forma o valor da mercadoria. Nas condições do domínio da propriedade privada sobre os meios de produção, este processo opera-se espontaneamente, fora de qualquer plano geral, a revelia dos produtores de mercadorias.

O Tempo de Trabalho Socialmente Necessário. O Trabalho Simples e o Trabalho Complexo

A grandeza do valor de uma mercadoria é determinada pelo tempo de trabalho. Quanto mais tempo for preciso para a produção de uma mercadoria determinada, tanto maior será o seu valor. Ora, diferentes produtores, que trabalham em diversidade de condições, também gastam uma quantidade diferente de tempo de trabalho para a produção de mercadorias iguais. Isto, porém, significará que quanto mais indolente for o trabalhador, quanto mais desfavoráveis forem as condições em que ele trabalha, tanto maior será o valor da mercadoria por ele produzida? Não, não significa. A grandeza do valor de uma mercadoria é determinada não pelo tempo de trabalho individual gasto por um produtor isolado para produzi-la, mas pelo tempo de trabalho socialmente necessário.

O tempo de trabalho socialmente necessário é o tempo que se requer para a elaboração de qualquer mercadoria, nas condições de produção socialmente normais, isto é, com o nível médio de técnica, e com a capacidade e a intensidade médias de trabalho. Esse tempo é determinado pelas condições de produção em que é criada a maior massa de mercadorias de um determinado tipo. O tempo de trabalho socialmente necessário modifica-se em consequência da alteração na produtividade do trabalho.

A produtividade do trabalho é medida pela quantidade de produtos criada numa unidade de tempo de trabalho. A produtividade do trabalho cresce com o aperfeiçoamento, ou com uma utilização mais completa dos instrumentos de produção, com o desenvolvimento da ciência, com o aumento do grau de habilidade do trabalhador, com a racionalização do trabalho e outros melhoramentos no processo da produção. Em certa medida, ela também depende das condições naturais. Quanto mais alta for a produtividade do trabalho, tanto menor será, em igualdade de outras condições, o tempo necessário para a produção de uma unidade de determinada mercadoria e tanto mais baixo será o valor desta mercadoria.

A intensidade do trabalho é determinada pelo gasto de trabalho numa unidade de tempo. O aumento da intensidade do trabalho significa o aumento dos gastos de trabalho durante um mesmo intervalo de tempo. Incorporando-se em maior quantidade ao produto, o trabalho mais intensivo cria maior valor numa unidade de tempo do que o trabalho menos intensivo.

Na produção das mercadorias, participam trabalhadores de diferentes qualificações. O trabalho do operário que não possui qualquer preparação especial é o trabalho simples. Já o trabalho que exige uma preparação especial é complexo ou qualificado.

Numa unidade de tempo, o trabalho complexo cria um valor de grandeza maior que o trabalho simples. O trabalho complexo representa uma multiplicação do trabalho simples; uma hora de trabalho complexo equivale a algumas horas de trabalho simples. A redução dos diferentes tipos de trabalho complexo a trabalho simples opera-se espontaneamente na produção mercantil baseada na propriedade privada. A grandeza do valor de uma mercadoria é determinada pela quantidade de trabalho simples socialmente necessário.

O Desenvolvimento das Formas do Valor. Essência do Dinheiro

O valor da mercadoria é criado pelo trabalho no processo da produção, mas só se revela mediante a equiparação de uma mercadoria a outra no processo da troca, isto é, através do valor de troca.

A forma mais simples do valor é a expressão do valor de uma mercadoria em outra mercadoria: por exemplo, um machado = 20 quilogramas de trigo. Analisemos esta forma.

Aqui, o valor do machado está expresso no trigo. O trigo serve de meio de expressão do valor do machado. A expressão do valor do machado no valor de uso do trigo só é possível porque para a produção deste último, da mesma maneira que para a produção do machado, foi gasto trabalho. Por trás da igualdade das mercadorias, oculta-se a igualdade do trabalho gasto para produzi-las. A mercadoria que expressa o seu valor em outra mercadoria (no nosso exemplo, o machado) encontra-se sob a forma relativa do valor. A mercadoria ou o valor de uso que serve de meio de expressão do valor da outra mercadoria (no nosso exemplo, o trigo), encontra-se sob a forma equivalente. O trigo é o equivalente (de igual valor) de outra mercadoria — o machado. O valor de uso de uma mercadoria — o trigo — torna-se, desse modo, a forma de expressão de valor de outra mercadoria — o machado.

As primeiras trocas, que encontramos já na sociedade primitiva, tinham um caráter fortuito e realizavam-se sob a forma da troca direta de um produto por outro. A este estádio no desenvolvimento da troca corresponde a forma simples ou casual do valor:

1 machado = 20 quilogramas de trigo

Na forma simples do valor, o valor do machado só pode ser expresso no valor de uso de outra mercadoria, ou seja, do trigo, no exemplo dado.

Com o aparecimento da primeira grande divisão social do trabalho — a separação das tribos pastoris da massa geral das tribos — as trocas tornaram-se regulares. Algumas tribos, de criadores, por exemplo, começam a obter excedentes de produtos da pecuária, que eles trocam por outros da agricultura ou do artesanato, de que não dispõem em quantidade suficiente. A este estádio no desenvolvimento da troca corresponde a forma total ou desenvolvida do valor. Na troca já não participam apenas duas, mas toda uma série de mercadorias:

1 ovelha = 40 quilogramas de trigo,
ou
= 20 metros de tecido,
ou
= 2 machados,
ou
= 3 gramas de ouro,
etc..

Aqui, o valor de uma mercadoria encontra sua expressão já não no valor de uso de uma única mercadoria, mas no de várias, que desempenham o papel de equivalente. Ao mesmo tempo, as relações quantitativas, segundo as quais as mercadorias são trocadas, assumem um caráter mais estável. Todavia, neste estádio ainda se mantém a troca direta de uma mercadoria por outra.

Com o ulterior desenvolvimento da divisão social do trabalho e da produção mercantil, a forma de troca direta de uma mercadoria por outra revela-se insatisfatória. No processo da troca surgem dificuldades, engendradas pelo crescimento das contradições da produção mercantil, das contradições entre o trabalho privado e o trabalho social, entre o valor de uso e o valor da mercadoria. Ocorrem cada vez mais situações nas quais, por exemplo, o dono do sapato precisa de um machado, mas o dono do machado precisa, não do sapato, e sim de trigo: entre estes dois produtores de mercadorias é impossível realizar-se a transação. Então, o dono do sapato troca-o por uma mercadoria que aparece mais frequentemente que as outras, nas operações de troca e que todos aceitam de bom grado, uma ovelha, suponhamos, e depois troca esta ovelha pelo machado de que precisa. O dono do machado, por sua vez, tendo recebido uma ovelha em troca do seu machado, troca-a pelo trigo. Assim se resolve a contradição da troca direta. A troca direta de uma mercadoria por outra desaparece gradualmente. Do conjunto das mercadorias, destaca-se uma, como o gado, por exemplo, que começa a ser trocada por todas as mercadorias, a este estádio no desenvolvimento da troca corresponde a forma universal do valor:

40 quilogramas de trigo, = 1 ovelha
ou
20 metros de tecido, =
ou
2 machados, =
ou
3 gramas de ouro, =
etc..

A forma universal do valor caracteriza-se pelo fato de que todas as mercadorias começam a ser trocadas por uma mercadoria, que desempenha o papel de equivalente universal. Neste estádio, entretanto, o papel de equivalente universal ainda não aparece plasmado numa determinada mercadoria. Em lugares diferentes, diferentes mercadorias desempenham o papel de equivalente universal. Em alguns lugares é o gado, em outros são as peles, em outros, ainda, é o sal e assim por diante.

O crescimento posterior das forças produtivas, a utilização dos instrumentos de metal, o aparecimento da segunda grande divisão social do trabalho — a separação do artesanato da agricultura — tiveram como consequência o desenvolvimento da produção mercantil e o alargamento do mercado. A multiplicidade de mercadorias desempenhando o papel de equivalente universal entrou em contradição com as exigências do crescimento do mercado, que reclamava a adoção de um único equivalente.

No momento em que o papel de equivalente universal identificou-se com uma única mercadoria, surgiu a forma dinheiro do valor. O papel de dinheiro era desempenhado por diferentes metais, mas pouco a pouco foi-se identificando com os metais nobres — a prata e o ouro. Na prata e no ouro exprimem-se de modo particularmente notável todas as superioridades dos metais, razão pela qual eles eram os que apresentavam maiores vantagens para cumprir a função de dinheiro: são substâncias homogêneas, são divisíveis, guardam-se facilmente e, mesmo em grandes valores, apresentam volume e peso insignificante. Por isso, o papel de dinheiro identificou-se firmemente com os metais nobres e, finalmente, com o ouro.

A forma dinheiro do valor pode ser representada do seguinte modo:

40 quilogramas de trigo, = 3 gramas de ouro
ou
20 metros de tecido, =
ou
2 machados, =
ou
1 ovelha =
etc..

Na forma dinheiro, o valor de todas as mercadorias expressa-se no valor de uso de uma mercadoria, que se torna equivalente universal.

O dinheiro, desse modo, surgiu como consequência de um longo processo de desenvolvimento da troca e das formas do valor. Com o aparecimento do dinheiro, o mundo das mercadorias divide-se em dois polos: num polo, permanecem as mercadorias comuns, enquanto que no outro polo fica a mercadoria que desempenha o papel de dinheiro. Agora, todas as mercadorias passam a expressar o seu valor na mercadoria dinheiro. Portanto, o dinheiro, em contraposição a todas as outras mercadorias, manifesta-se como a cristalização universal do valor, como equivalente universal. O dinheiro possui a capacidade de ser diretamente trocado por todas as mercadorias e, de tal maneira, serve como meio para a satisfação de todas as necessidades dos produtores de mercadorias, ao tempo em que todas as demais mercadorias somente podem satisfazer uma necessidade determinada, como, por exemplo, de alimento, de roupa, etc..

Consequentemente, o dinheiro é uma mercadoria que é o equivalente universal de todas as mercadorias: o dinheiro encarna o trabalho social e expressa as relações de produção entre os produtores de mercadorias.

As Funções do Dinheiro

Na medida em que se desenvolve a produção mercantil, desenvolvem-se as funções do dinheiro. Na produção mercantil desenvolvida, o dinheiro serve:

  1. como medida do valor,
  2. como meio de circulação,
  3. como meio de acumulação,
  4. como meio de pagamento e
  5. como dinheiro universal.

A função fundamental do dinheiro consiste em que serve de medida do valor das mercadorias. Em meio ao isolamento e a dispersão dos produtores privados de mercadorias, a única forma possível de vinculação econômica entre eles é a forma mercantil-monetária. Daqui o fato do valor da mercadoria não poder ser expresso diretamente no tempo de trabalho, mas só indiretamente, através da equiparação da mercadoria ao dinheiro no processo da troca. Por intermédio do dinheiro, o trabalho privado do produtor de mercadorias encontra uma expressão social e se realizam o cálculo espontâneo e a medida do valor de todas as mercadorias.

Para cumprir a função de medida do valor, o próprio dinheiro deve ser uma mercadoria, possuir valor. Do mesmo modo que o peso de um determinado corpo só pode ser medido com pesos, estes próprios pesados, também assim o valor de uma mercadoria somente pode ser medido através de outra mercadoria, que igualmente tenha valor.

A medida do valor das mercadorias por meio do ouro efetua-se ainda antes de realizar-se a troca da mercadoria dada por dinheiro. Para exprimir em dinheiro o valor de uma mercadoria, não é preciso ter-se dinheiro em mão. Ao fixar um determinado preço para a mercadoria, o seu possuidor exprime mentalmente o valor de sua mercadoria em ouro, ou, como dizia Marx, exprime-o de um modo ideal. Isto é possível, graças ao fato de que na realidade existe uma correlação entre o valor do ouro e o valor de uma dada mercadoria; tal correlação baseia-se no trabalho socialmente necessário empregado na sua produção.

O valor da mercadoria expresso em dinheiro chama-se preço. O preço é a expressão em dinheiro do valor da mercadoria.

As mercadorias exprimem o seu preço em determinadas quantidades de prata ou de ouro. Estas quantidades de mercadoria dinheiro precisam, por sua vez, de ser medidas. Daí a necessidade de existir uma unidade de medida do dinheiro. Tal unidade é uma determinada quantidade de peso do metal-dinheiro.

Na Inglaterra, por exemplo, a unidade monetária chama-se libra esterlina e já houve tempo em que essa unidade correspondia a uma libra de prata. Posteriormente, as unidades monetárias foram sendo desvinculadas das unidades de peso. Isto se deu em consequência do fato de países atrasados introduzirem moedas estrangeiras que se distinguiam das unidades monetárias locais pela denominação; devido a passagem da prata para o ouro e, principalmente, porque os governos desvalorizavam as moedas, reduzindo-lhes gradualmente o peso. Para facilitar as operações de medida dos valores, as unidades monetárias dividem-se em frações: o rublo, em 100 copeques; o dólar, em 100 cents; o franco, em 100 cêntimos, etc..

A unidade monetária com suas frações serve de escala de preços. A função do dinheiro como escala de preços é completamente diferente daquela que ele desempenha como medida do valor. Como medida do valor, o dinheiro mede o valor das outras mercadorias; já como escala de preços ele mede a quantidade do próprio metal-dinheiro. O valor da mercadoria-dinheiro modifica-se quando se modifica a quantidade de trabalho socialmente necessário a sua produção. A modificação no Valor do ouro não se reflete na sua função de escala de preços. Efetivamente, como quer que se modifique o valor do ouro, um dólar sempre será cem vezes um cent.

O Estado pode modificar o conteúdo de ouro da unidade monetária, mas não pode modificar a correlação de valor entre o ouro e as outras mercadorias. Se o Estado diminuir a quantidade de ouro contida na unidade monetária, isto é, se rebaixar seu conteúdo de ouro, o mercado reagirá a isto com a elevação dos preços e o valor da mercadoria continuará a exprimir-se, como antes, na mesma quantidade de ouro que corresponde ao trabalho gasto nesta mercadoria. Somente que agora para exprimir a mesma quantidade de ouro serão necessárias mais unidades monetárias do que antes..

Os preços das mercadorias podem elevar-se ou reduzir-se tanto sob a influência de modificações no valor das mercadorias, como no valor do ouro. O valor do ouro, como o valor de todas as outras mercadorias, depende da produtividade do trabalho. Assim, a descoberta da América com suas ricas jazidas auríferas acarretou na Europa, nos séculos XVI/XVII, uma “revolução” dos preços. O ouro na América era obtido com um gasto de trabalho menor do que nas regiões auríferas do mundo então conhecidas. A afluência a Europa do ouro americano, mais barato, provocou a elevação geral dos preços.

O dinheiro desempenha a função de meio de circulação. A troca de mercadorias, que se realiza por intermédio do dinheiro, chama-se circulação de mercadorias. A circulação das mercadorias está indissoluvelmente ligada a circulação do próprio dinheiro: quando a mercadoria passa das mãos do vendedor para as do comprador, o dinheiro passa das mãos do comprador para as do vendedor. A função do dinheiro como meio de circulação consiste também em que ele aparece como intermediário no processo de circulação das mercadorias. Para o cumprimento desta função, tem que estar presente o dinheiro real.

Inicialmente, nas trocas de mercadorias, o dinheiro aparecia diretamente sob a forma de barras de prata ou de ouro. Isto criava certas dificuldades: era necessário pesar o metal-dinheiro, fracioná-lo em pequenas partes, determinar sua lei. Gradualmente, as barras de metal-dinheiro foram sendo substituídas por moedas. A moeda é um pedaço de metal com forma, peso e valor determinados, que serve de meio de circulação. A cunhagem de moedas passou a se concentrar em mãos do Estado.

No processo da circulação, com o uso continuado, as moedas desgastam-se e perdem parte do seu valor. A prática da circulação do dinheiro mostrou que as moedas desgastadas podem desempenhar a função de meio de circulação, do mesmo modo que as moedas que conservam lodo o seu valor. Isto se explica pelo fato de que o dinheiro na função de meio de circulação desempenha um papel transitório. Geralmente, o vendedor da mercadoria troca-a por dinheiro para com este dinheiro comprar outra mercadoria. Portanto, o dinheiro na qualidade de meio de circulação não deve possuir necessariamente um valor próprio.

Levando em conta a prática da circulação das moedas que se desgastavam, os governos começaram a desvalorizar conscientemente a moeda, diminuir o seu peso, baixar a lei do metal-dinheiro, sem alterar o valor nominal da moeda, isto é, a quantidade de unidades monetárias nela significada. A moeda foi-se transformando cada vez mais em signo de valor em signo de dinheiro. Como consequência da desvalorização da moeda, seu valor real tornou-se bastante menor do que o que ela representa nominalmente.

O desdobramento das mercadorias em mercadorias e dinheiro indica o desenvolvimento das contradições da produção mercantil. Na troca direta de uma mercadoria por outra, cada transação apresenta um caráter isolado, a venda é inseparável da compra. Coisa completamente distinta é a troca por intermédio do dinheiro, isto é, a circulação mercantil. Aqui, a troca pressupõe múltiplas ligações entre os produtores de mercadorias e um incessante entrelaçamento de suas transações. Cria-se a possibilidade da venda ser separada da compra. O produtor de mercadorias pode vender o seu produto e reter durante um certo tempo o dinheiro com ele obtido. Quando muitos produtores mercantis vendem, 6em comprar, pode surgir um entorpecimento nas vendas de mercadorias. Como se vê, já na circulação mercantil simples está contida a possibilidade das crises. Entretanto, para a transformação dessa possibilidade das crises na inevitabilidade delas, é necessária uma série de condições que só surgem com a passagem para o modo de produção capitalista.

O dinheiro desempenha a função de meio de acumulação, ou meio de entesouramento. O dinheiro transforma-se em tesouro quando retirado da circulação. Uma vez que o dinheiro pode a qualquer momento ser transformado em qualquer mercadoria, é ele o representante universal da riqueza. Pode ser guardado em qualquer quantidade. Os produtores de mercadorias acumulam dinheiro, por exemplo, para comprar meios de produção ou a título de poupança. Com o desenvolvimento da produção mercantil, cresce o poder do dinheiro. Tudo isto fez surgir a paixão pela poupança de dinheiro, pelo entesouramento. Somente pode ser entesourado o dinheiro que conserve a plenitude do seu valor: moedas de prata e de ouro, pedaços de ouro e de prata e também os objetos destes metais.

Quando as moedas de ouro ou de prata desempenham as funções de dinheiro, sua quantidade ajusta-se espontaneamente as necessidades da circulação mercantil. Se há redução da produção de mercadorias e diminuição da circulação mercantil, parte das moedas de ouro sai da circulação e é entesourada. Inversamente, quando a produção se amplia e cresce a circulação mercantil, estas moedas retornam a circulação.

O dinheiro desempenha a função de meio de pagamento. O dinheiro funciona como meio de pagamento, quando a compra-e-venda da mercadoria realiza-se a crédito, isto é, com o adiamento do pagamento da mercadoria. Na compra a crédito, a transmissão da mercadoria das mãos do vendedor para as do comprador realiza-se sem o pagamento imediato da mercadoria comprada. Vencido o prazo de pagamento, o comprador paga ao vendedor sem que haja entrega da mercadoria, pois isto já foi feito anteriormente. Também no pagamento de impostos, da renda da terra, etc., o dinheiro é meio de pagamento.

A função do dinheiro como meio de pagamento reflete o ulterior desenvolvimento das contradições da produção mercantil. Os vínculos entre os diferentes produtores de mercadorias tornam-se mais largos, cresce a dependência recíproca entre eles. Aqui, o comprador torna-se devedor e o vendedor transforma-se em credor. Quando são muito numerosas as compras de mercadorias efetuadas a crédito, o não pagamento no prazo por um ou por vários devedores pode refletir-se em toda a cadeia de obrigações de pagamento e provocar a bancarrota de uma série de possuidores de mercadorias, ligados entre si por relações de crédito. Dessa maneira, aumenta a possibilidade das crises, que já está contida na função do dinheiro como meio de circulação.

A análise das funções do dinheiro como meio de circulação e como meio de pagamento permite descobrir a lei que rege a quantidade de dinheiro necessária a circulação das mercadorias.

As mercadorias são vendidas e compradas simultaneamente em muitos lugares. A quantidade de dinheiro necessária a circulação num dado período depende, em primeiro lugar, da soma dos preços das mercadorias em circulação, que, por sua vez, depende da quantidade de mercadorias e do preço de cada mercadoria isoladamente. Além disso, é preciso ter em conta a velocidade com que circula o dinheiro. Quanto maior for a velocidade com que circule o dinheiro, tanto menor será a quantidade de que dele se necessitará para a circulação, e vice-versa. Se, por exemplo, durante um determinado período, um ano, suponhamos, são vendidas mercadorias por 1 bilhão de dólares e cada dólar realiza, em média, 5 rotações, nesse caso serão necessários apenas 200 milhões de dólares para a circulação de toda essa massa de mercadorias.

Graças ao crédito, que uns produtores de mercadorias abrem aos outros, a necessidade de dinheiro reduz-se da soma dos preços das mercadorias vendidas a crédito e da soma dos pagamentos que se amortizam mutuamente. A presença de dinheiro só é exigida para saldar aquelas dívidas cujo prazo de pagamento se venceu.

Assim, a lei da circulação monetária consiste em que a quantidade de dinheiro necessário a circulação das mercadorias deve ser igual a soma dos preços de todas as mercadorias vendidas, dividida pelo número médio de rotações das unidades monetárias do mesmo nome. Ao mesmo tempo, da soma dos preços de todas as mercadorias é preciso deduzir a soma dos preços das mercadorias vendidas a crédito e a soma dos pagamentos que se amortizam mutuamente e acrescentar a soma dos pagamentos daquelas dívidas, cujo prazo venceu.

Esta lei tem validade universal para todas as formações sociais onde haja produção e circulação de mercadorias.

Por fim, o dinheiro desempenha o papel de dinheiro universal na circulação entre os países. A função de dinheiro universal não pode ser desempenhada pelas moedas, que não possuam plena cotação, ou pelo papel-moeda. No mercado mundial, o dinheiro se despoja da sua forma de moeda e reaparece sob o aspecto primitivo — barras de metais nobres. No mercado mundial, na circulação entre os países, o ouro é o meio universal de pagamento na amortização das dívidas internacionais, no pagamento de juros de empréstimos externos e de outras obrigações; é o meio universal de compra das mercadorias importadas de um país para o outro; é também a encarnação universal da riqueza social, na transferência de riquezas de um país para outro em forma monetária, como, por exemplo, no caso da exportação de capitais de um país para outro com o fim de depositá-los em bancos estrangeiros, ou para a concessão de empréstimos, ou para a imposição de obrigações por um país vencedor a um vencido, etc..

O desenvolvimento das funções do dinheiro reflete o crescimento da produção mercantil e de suas contradições. O dinheiro, nas formações sociais baseadas na exploração do homem pelo homem, possui uma natureza de classe. Nas mãos das classes exploradoras, serve de meio para a apropriação do trabalho alheio. Tanto na sociedade escravista como na feudal, o dinheiro desempenhou este papel. Como veremos posteriormente, o papel do dinheiro como instrumento de exploração dos trabalhadores atinge a plenitude do seu desenvolvimento na sociedade capitalista.

O Ouro e o Papel-Moeda

Numa produção mercantil desenvolvida, para a realização de compras e pagamentos, emprega-se com frequência o papel-moeda em substituição as moedas de ouro. A emissão de papel-moeda originou-se da prática da circulação de moedas depreciadas e desvalorizadas, que se transformaram em signos do ouro, em signos de dinheiro.

O papel-moeda é constituído por signos de dinheiro emitidos pelo Estado e de aceitação obrigatória, que substituem o ouro em sua função de meio de circulação e de meio de pagamento. O papel-moeda não tem valor próprio. Por isto, não pode desempenhar a função de medida do valor das mercadorias. Qualquer que seja a quantidade de papel-moeda emitido, ele representa apenas o valor da quantidade de ouro necessária para assegurar a circulação das mercadorias. Em geral, não se troca o papel-moeda por ouro.

Se a emissão de papel-moeda corresponde a quantidade de ouro necessária para a circulação das mercadorias, nesse caso o poder de compra do papel-moeda, isto é, a quantidade de mercadorias que pode ser comprada com ele, coincide com o poder de compra do dinheiro-ouro. Entretanto, geralmente o Estado emite papel-moeda para a cobertura de suas despesas, sobretudo em tempos de guerra, de crises e outras comoções, sem levar em conta as exigências da circulação das mercadorias. Com a diminuição da produção e da circulação mercantil, ou com a emissão de uma quantidade excessiva de papel-moeda, este ultrapassa a quantidade de ouro necessária a circulação. Suponhamos que o dinheiro emitido seja o dobro que é necessário. Em tal caso, cada unidade de papel-moeda (um dólar, um marco, um franco, etc.) representará uma quantidade de ouro duas vezes menor, isto é, o papel-moeda terá o seu valor reduzido a metade.

As primeiras tentativas de emissão de papel-moeda verificaram-se na China, ainda no século XII; na América, o papel-moeda começou a ser emitido em 1690 e na França, em 1716; a Inglaterra tomou o caminho das emissões de papel-moeda durante as guerras napoleônicas. Na Rússia, as primeiras emissões de papel-moeda ocorreram no século XVIII, sob o reinado de Catarina II.

A emissão excessiva de papel-moeda, que provoca a sua desvalorização e é utilizada pelas classes exploradoras para descarregar sobre os ombros das massas trabalhadoras o fardo das despesas estatais e para intensificar sua exploração, recebe o nome de inflação. Provocando o crescimento dos preços dos produtos, a inflação atinge mais fortemente os trabalhadores, uma vez que o salário dos operários e empregados permanece aquém do crescimento dos preços.

O Fetichismo da Mercadoria

Nas condições da produção mercantil baseada na propriedade privada sobre os meios de produção, os vínculos sociais que se estabelecem entre os homens, no processo da produção, somente aparecem através da troca de coisas-mercadorias. A sorte dos produtores de mercadorias acha-se estreitamente vinculada a sorte das coisas-mercadorias por eles criadas. Os preços das mercadorias variam constantemente, sob a influência da oferta e da procura. Estas variações dos preços de mercado, que se processam independentemente do produtor, têm como consequência o enriquecimento de uns e a ruína de outros. As relações entre as coisas dissimulam as relações sociais entre os homens.

Desse modo, na economia mercantil, baseada na propriedade privada sobre os meios de produção, as relações de produção entre os homens revestem inevitavelmente uma forma de relações entre coisas-mercadorias. Nesta materialização das relações de produção é que consiste precisamente o fetichismo da mercadoria(21), inerente a produção mercantil.

Isto engendra nos produtores de mercadorias a ilusão, a falsa representação, de que as mercadorias são supostamente dotadas de determinadas propriedades inatas, que exercem influência sobre o destino das pessoas. Assim, o valor da mercadoria expressa uma relação social entre os produtores, mas a representação é de que o valor constitui uma propriedade natural da mercadoria, semelhante, digamos, a sua cor ou seu peso.

O fetichismo da mercadoria revela-se de modo particularmente claro no dinheiro. Na economia mercantil o dinheiro é uma imensa força, que dá poder sobre os homens. Com o dinheiro tudo se pode comprar. Cria-se a aparência de que, supostamente, esta capacidade de tudo comprar é uma propriedade natural do ouro, quando na realidade ela é fruto de determinadas relações sociais entre os produtores de mercadorias.

“O que é apenas uma determinada relação de produção entre os próprios homens — escreveu Marx —, assume aos seus olhos a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas.”(22)

Esta representação subjetiva, fantástica e falsa tem origem no papel peculiar que as coisas desempenham objetivamente na economia mercantil, isto é, independentemente da vontade e da consciência dos homens.

O fetichismo da mercadoria tem profundas raízes na produção mercantil, onde o trabalho do produtor atua diretamente como trabalho privado, e o seu caráter social só se revela na troca de mercadorias. Somente com a supressão da propriedade privada sobre os meios de produção, desaparece também o fetichismo da mercadoria.

A Lei do Valor — Lei Econômica da Produção Mercantil

Na economia mercantil, baseada na propriedade privada, a produção de mercadorias é realizada por produtores dispersos. Entre os produtores trava-se uma luta de concorrência. Cada produtor de mercadoria procura descartar-se do outro, consolidar e ampliar sua própria posição no mercado. A produção processa-se sem qualquer espécie de plano geral. Cada qual produz o que bem entende, independentemente dos demais, sem que ninguém saiba qual seja a demanda daquela mercadoria que ele produz, ou se conseguirá vendê-la no mercado de modo a compensar o trabalho gasto. Com o desenvolvimento da produção mercantil, aumenta cada vez mais o poder do mercado sobre os produtores de mercadorias.

Isto significa que na produção mercantil, baseada na propriedade privada sobre os meios de produção, impera a lei econômica da concorrência e da anarquia da produção. Esta lei expressa o caráter espontâneo da produção e da troca e a luta entre os produtores privados por condições mais vantajosas de produção e de venda das mercadorias.

Em meio a anarquia da produção, que impera na economia mercantil baseada na propriedade privada, a lei do valor, que atua através da concorrência no mercado, é o regulador espontâneo da produção.

A lei do valor é a lei econômica da produção mercantil, segundo a qual a produção e a troca das mercadorias efetuam-se de acordo com os gastos socialmente necessários de trabalho. Isto significa que os preços das mercadorias têm como base os gastos socialmente necessários de trabalho. Por isso, os produtores de mercadorias que gastam em sua produção uma quantidade de trabalho superior aquela que é socialmente necessária para produzi-las, ficam numa situação desvantajosa. Na venda de sua mercadoria, eles deixam de realizar uma parte do trabalho que inverteram para produzi-la. Inversamente, saem ganhando aqueles produtores cujos gastos individuais de trabalho são iguais ou inferiores aos gastos socialmente necessários.

A ação da lei do valor condiciona o desenvolvimento das forças produtivas da economia mercantil. Os produtores, que se adiantam aos demais no emprego de uma técnica mais elevada, produzem suas mercadorias com gastos menores, em comparação com os gastos socialmente necessários, mas vendem essas mercadorias a preços correspondentes ao trabalho socialmente necessário. Ao vender suas mercadorias, eles recebem um excedente de dinheiro e enriquecem. Isto impele os demais produtores a introduzir em suas empresas inovações técnicas. Assim, em consequência das ações individuais dos produtores isolados, que lutam por vantagens para si próprios, desenvolvem-se as forças produtivas da sociedade.

A lei do valor regula espontaneamente, por intermédio do mecanismo de preços, a distribuição do trabalho social e dos meios de produção entre os diferentes ramos da economia mercantil. Sob a influência das variações na correlação entre a oferta e a procura, os preços das mercadorias desviam-se constantemente do seu valor, ora para cima, ora para baixo. Os desvios dos preços em relação ao valor não são consequência de qualquer deficiência na atuação da lei do valor, mas, ao contrário, constituem um modo de sua manifestação. Numa sociedade em que a produção se encontra em mãos de proprietários privados, que trabalham as cegas, somente as variações espontâneas dos preços no mercado fazem saber aos produtores quais as mercadorias que são produzidas em excesso ou em quantidade insuficiente, em relação a demanda solvente da população. Somente as variações dos preços em torno do valor impelem os produtores a ampliar ou reduzir a produção destas ou daquelas mercadorias. Sob a influência das variações dos preços, os produtores de mercadorias voltam-se para aqueles ramos que oferecem maiores vantagens num dado momento, onde os preços das mercadorias são superiores ao seu valor e abandonam aqueles ramos nos quais os preços das mercadorias são mais baixos do que o valor.

Nas condições da concorrência e da anarquia da produção, a distribuição do trabalho e dos meios de produção entre os diversos ramos e o desenvolvimento das forças produtivas na economia mercantil são obtidos ao preço de grandes perdas de trabalho social e conduzem a um crescente agravamento das contradições desta economia.

Na economia mercantil, baseada na propriedade privada dos meios de produção, a ação da lei do valor leva ao aparecimento e ao desenvolvimento das relações capitalistas. As flutuações espontâneas dos preços de mercado em torno do valor, as variações dos gastos individuais de trabalho em relação ao trabalho socialmente necessário, que determina o grandeza do valor da mercadoria, acentuam a desigualdade econômica e a luta entre os produtores de mercadorias. A luta de concorrência leva a que uns produtores se arruínem, transformando-se em proletários, enquanto que outros enriquecem, tornando-se capitalistas. Dessa maneira, a ação da lei do valor provoca uma diferenciação entre os produtores mercantis. “A pequena produção engendra o capitalismo e a burguesia constantemente, cada dia, cada hora, espontaneamente e em escala de massa.(23)

A Acumulação Primitiva do Capital

A produção capitalista pressupõe duas condições fundamentais:

  1. a existência de uma massa de pessoas despossuídas, individualmente livres e ao mesmo tempo privadas de meios de produção e de meios de existência e, por isso, obrigadas a alugar-se aos capitalistas para trabalhar, e
  2. a acumulação, em mãos de um reduzido número de pessoas, de riquezas em dinheiro necessárias a criação de grandes empresas capitalistas.

Portanto, para a passagem ao modo de produção capitalista, para a formação da classe dos operários-proletários assalariados e da classe dos capitalistas, que explora o trabalho dos operários, é necessário um processo histórico no qual se opera a separação entre o produtor imediato e os meios de produção. Este processo realiza-se a base da ação das leis interiormente inerentes a produção mercantil e, em particular, da lei do valor.

Como já vimos, na base da ação da lei do valor, produz-se uma diferenciação entre os pequenos produtores de mercadorias — os artesãos e os camponeses. A ampliação da esfera da troca de mercadorias e da circulação monetária, o aparecimento do mercado nacional e, posteriormente, também do mercado mundial aceleraram o processo de diferenciação das economias dos pequenos produtores. Dentre os pequenos produtores, emergiu uma cúpula capitalista relativamente restrita, ao passo que uma parte considerável arruinou-se e se converteu em operários assalariados.

A lentidão deste processo não atendia, contudo, as exigências do novo mercado mundial, criado pelas grandes descobertas geográficas de fins do século XV. O aparecimento do modo de produção capitalista foi acelerado pelo emprego dos métodos mais brutais de violência por parte dos grandes latifundiários, da burguesia e do poder estatal, que se encontrava em mãos das classes exploradoras. Segundo as palavras de Marx, a violência desempenhou o papel da parteira que apressou o nascimento do novo modo de produção, o modo de produção capitalista.

Os ideólogos burgueses representam idilicamente a história do aparecimento da classe dos capitalistas e da classe dos operários. Em tempos imemoriais, dizem eles, existia um pequeno número de pessoas laboriosas e econômicas, que, com seu trabalho, foram acumulando riquezas. De outro lado, existia uma massa de indolentes e ociosos que esbanjaram todos os seus haveres, transformando-se em proletários despossuídos.

Estas fábulas dos defensores do capitalismo nada têm de comum com a realidade. Em verdade, na formação da massa de pessoas despossuídas — os proletários — e na acumulação das riquezas em mãos de uns poucos, grande papel foi desempenhado pela privação violenta dos pequenos produtores dos seus meios de produção.

O processo de separação dos produtores dos meios de produção (da terra dos instrumentos de produção, etc.), foi acompanhado por uma série interminável de saques e de crueldades. Este processo chama-se acumulação primitiva do capital, porque precedeu a criação da grande produção capitalista.

Foi na Inglaterra onde a produção capitalista primeiro alcançou um significativo desenvolvimento. Neste país, em fins do século XV, operou-se um doloroso processo de ocupação violenta das terras camponesas. A causa imediata deste processo foi a crescente procura de lã pelas grandes manufaturas têxteis, que primeiro surgiram nas Flandres e depois também na própria Inglaterra. Os latifundiários começaram a criar grandes rebanhos de ovelhas, para os quais se necessitavam extensas pastagens. Os senhores feudais expulsaram em massa os camponeses dos lugares onde residiam, tomaram-lhes as terras entregues em usufruto e transformaram em pastagens os campos de cultura.

A expulsão dos camponeses das terras realizava-se por diferentes maneiras, principalmente através da usurpação pura e simples das terras das comunidades. Os latifundiários cercavam as terras, derrubavam as casas dos camponeses e os deportavam violentamente. Quando os camponeses tentavam reaver as terras que lhes haviam sido arrebatadas ilegalmente, em ajuda dos latifundiários acorria a força armada do Estado. No século XVII o poder estatal passou a promulgar leis sobre a ‘“cercadura das terras”, sacramentando, desse modo, a pilhagem dos camponeses.

Os camponeses saqueados e arruinados formavam multidões inumeráveis de pobres despossuídos, que enchiam as cidades, aldeias e estradas da Inglaterra. Privados dos meios de existência, mendigavam. O poder estatal promulgava leis draconianas contra os expropriados, leis que se caracterizavam pela extrema crueldade. Assim, sob o reinado de Henrique VIII, da Inglaterra (século XVI), 72 mil pessoas foram executadas por “vagabundagem”. No século XVIII, os “vagabundos” e os que não tinham onde morar, em vez de executados, eram encarcerados nas “casas de trabalho”, que gozavam da reputação de “casas dos horrores”. Era assim que a burguesia empenhava-se em ensinar a população rural, privada da terra e transformada em vagabundos, a disciplina do trabalho assalariado.

Na Rússia tzarista, que ingressou no caminho do desenvolvimento capitalista mais tarde do que uma série de países europeus, a separação dos produtores dos meios de produção operou-se pelos mesmos métodos empregados em outros países. O processo de acumulação primitiva do capital começou na Rússia muito antes mesmo da abolição da servidão. Em 1861, o governo tzarista, sob a pressão das insurreições camponesas, foi obrigado a abolir a servidão.

Caracterizando a reforma camponesa de 1861, escreveu Lênin:

“É a violência exercida pela primeira vez em massa contra os camponeses, em favor do capitalismo nascente na agricultura. É a “limpeza das terras” pelos latifundiários para o capitalismo.”(24)

Com o despojamento dos camponeses das suas terras foi alcançado um duplo resultado. De uma parte, não só foi mantida, mas também ampliada, as custas das terras camponesas repartidas, a grande agricultura dos latifundiários, que por esse tempo já haviam enriquecido com os pagamentos dos resgates(25). A propriedade feudal da terra transformou-se em propriedade burguesa. De outra parte, foi assegurada a indústria uma abundante torrente de trabalhadores livres, dispostos a alugar-se aos capitalistas.

Além da existência de força de trabalho barata, para o aparecimento da produção capitalista era necessária a acumulação de recursos, em poucas mãos, sob a forma de dinheiro, que pudesse ser transformado em qualquer meio de produção e empregado no aluguel de trabalhadores.

Na Idade Média, os comerciantes e usurários acumularam grandes recursos em dinheiro. Posteriormente, estes recursos foram utilizados para a organização de muitas empresas capitalistas.

A conquista da América, que se processou em meio ao saque e ao assassínio em massa da população indígena, proporcionou aos conquistadores riquezas incalculáveis, que se tomavam ainda maiores devido a exploração das riquíssimas jazidas de metais nobres. As minas requeriam mão-de-obra. A população local — indígenas — sucumbiam em massa, não suportando as condições carcerárias de trabalho. Os comerciantes europeus organizaram caçadas de negros na África, que se realizavam segundo todas as regras da caça aos animais ferozes. O comércio de negros, arrancados da África e transformados em escravos, era excepcionalmente lucrativo. Os lucros dos traficantes de escravos atingiam proporções fantásticas. Nas plantações de algodão da América passou a ser largamente empregado o trabalho escravo dos negros.

Outra fonte importantíssima da formação de grandes recursos era também o comércio colonial. Os comerciantes holandeses, ingleses e franceses organizaram as Companhias das Índias Orientais a fim de comerciar com a índia. Estas companhias contavam com o apoio dos seus governos. Eram-lhes assegurados o monopólio do comércio das mercadorias coloniais e o direito de exploração ilimitada das colônias, com o emprego de quaisquer medidas de violência. Os lucros das Companhias das Índias Orientais calculavam-se segundo taxas que iam a várias centenas por cento ao ano. Na Rússia, grandes lucros eram obtidos pelos comerciantes através do comércio rapace com as populações siberianas e do sistema de pilhagem chamado de arrendamento de vinhos. Tal sistema consistia em que o Estado, em troca de determinado pagamento, dava aos empresários o direito de vender bebidas alcoólicas.

O capital comercial e usurário acumulou, dessa maneira, imensos recursos em dinheiro.

A impiedosa expropriação dos pequenos produtores mercantis, acompanhada de excepcionais crueldades, a ocupação violenta das terras dos camponeses, a pilhagem colonial, o massacre das populações indígenas e a introdução da nova e implacável disciplina capitalista do trabalho — tais são os traços característicos da transição ao modo de produção capitalista.

Assim, mediante a pilhagem e a ruína das massas de pequenos produtores, foram acumulados os recursos em dinheiro necessários a criação de grandes empresas capitalistas e criado o necessário exército de operários assalariados.

Caracterizando este processo, escreveu Marx que:

“ao nascer, o capital transpira sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés.”(26)

Em consequência do desenvolvimento econômico, acelerado pelos métodos de expropriação violenta dos pequenos produtores de mercadorias, surgiu o capitalismo, formaram-se novas forças produtivas, que ocupavam a posição dominante nas novas relações de produção capitalistas.


Notas de rodapé:

(19) V.I. Lênin, Sobre a Questão da Dialética, in Obras, t. XXXVI, p. 325. (retornar ao texto)

(20) K. Marx, O Capital, t. I, 1955, p. 53. (retornar ao texto)

(21) A materialização das relações de produção inerentes à produção mercantil baseada na propriedade privada dos meios de produção, foi chamada por Marx de feitichismo da mercadoria por analogia com o feitichismo religioso, que consiste na divinização pelos homens primitivos de objetos feitos por eles próprios. (retornar ao texto)

(22) K. Marx, O Capital, t. I, 1955, p. 79. (retornar ao texto)

(23) V I. Lênin, A Doença Infantil do “Esquerdismo" no Comunismo, in Obras, t. XXXI, pp. 7/8. (retornar ao texto)

(24) V.I. Lênin, A Reforma Agrária da Social-Democracia na Primeira Revolução Russa de 1905/1907, in Obras, t. XIII, p. 250. (retornar ao texto)

(25) Ao ser abolida a servidão na Rússia, os latifundiários privaram os camponeses de parte considerável das terras que estes vinham cultivando e, além disto, obrigaram-nos a pagar-lhes um resgate de cerca de 2 bilhões de rublos, a título de “libertação”. (N. do T.). (retornar ao texto)

(26) K. Marx, O Capital, t. I, 1955, p. 764. (retornar ao texto)

Inclusão 13/02/2015