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Primeira Edição: Publicado em 20 de abril de 1918, no primeiro número do jornal Kommunist.
Fonte: Passa Palavra
Tradução: Rubens Vinicius a partir de uma tradução para o espanhol disponível em https://www.marxists.org/espanol/ossinski/1918/constsoc.htm e revisado pelo Passa Palavra.
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Atualmente, no seio de nosso partido se desenvolve uma “nova orientação”. Não nos referimos aqui à política exterior e sim à interior, particularmente à política econômica.
Esta orientação, cujo autor é o camarada Lênin, consiste no seguinte: até quase fins de janeiro de 1918, vivemos um período de aguda guerra civil, a época do naufrágio da velha ordem política e econômica e das forças que a defendiam. Hoje, este período terminou e é hora de começar um trabalho ativo e positivo, a “construção orgânica”(1) de uma nova sociedade. De um lado, devemos construir o socialismo. De outro, devemos instalar em todas as partes essa ordem que todos reclamam, pôr um fim ao desconcerto, à desorganização e ao caos. Tendo em conta que somos um poder e que nossos inimigos foram derrotados, não devemos ter medo de empregar as forças sociais que antes eram inimigas. Devemos fazer com que a intelligentsia trabalhe nas causas da sabotagem. Ela se vendia para servir ao capital: nós também devemos comprá-la. Dentro da intelligentsia, necessitamos sobretudo dos organizadores da produção, estes “capitães da indústria” que organizavam a economia para o capital. Assim como devemos solicitar a ajuda dos comandantes do exército czarista para organizar o Exército Vermelho, também devemos atrair os responsáveis dos trustes para organizar o socialismo, seja qual for o seu preço.
“Aprender a organizar o socialismo com a ajuda dos organizadores dos trustes”, essa é uma das consignas do camarada Lênin. Outra é: “acabar com a desordem”. De cima a baixo, nas estruturas que dirigem os diferentes ramos econômicos, reina a desordem, a preguiça e o roubo, que prosperam neste podre terreno. “Nem roubos, nem indolência. Que seja feito um inventário de tudo”: estas simples recomendações pequeno-burguesas se convertem nas principais consignas(2). Todos devem ser ensinados: os empregados, os operários, os funcionários; não somente a consumir, mas também a trabalhar. Para isso é necessário autodisciplina e tribunais de pessoal, reforçar o poder dos comissários eleitos pelos sovietes, que devem trabalhar e não fazer discursos. É preciso intensificar o trabalho, introduzindo o salário por peças e as premiações nas fábricas, nas ferrovias, etc. Talvez também seja necessário introduzir o sistema norte-americano de Taylor, que por sua vez junta o salário por peça e por tempo: paga-se não somente em função da quantidade de produtos, mas também pela rapidez com a qual são fabricados.
Os partidários da “nova orientação” afirmam que tudo isso é necessário para construir o socialismo, que esta nova visão das tarefas políticas se deve ao fato de que começou um novo período no interior do país, um período orgânico. Contudo, estas novas tendências se originam justamente quando a paz foi firmada, uma paz anexacionista, que supõe de fato uma retirada ante o capital internacional e concessões ao imperialismo estrangeiro no interior. Com efeito, a guerra não só foi levada a cabo para apoderar-se de territórios, mas também para submetê-los aos tentáculos do capital. Os diversos imperialismos firmaram uma paz anexacionista para poder colocar suas mãos na economia do país vencido. E inclusive para o cérebro do camarada Lênin, este novo período “socialista” orgânico requer novas relações com o capital estrangeiro, do que tanta falta nos faz obter dinheiro, engenheiros, armas, instrutores militares e até apoio militar. É esta mesma fase em que se constrói também o chamado exército “vermelho”, em estreita colaboração – demasiado estreita e perigosa, acrescentamos – com os oficiais e generais czaristas.
“E então?”, nos dirão, “Para vocês, então, ainda não terminou o agudo período de derrubada da sociedade burguesa? Vocês negam que seja necessário construir ativamente e colocar em ordem nossa pátria ‘socialista’”?
Não negamos nem uma coisa, nem a outra. Mas, para nós, o final deste período agudo tem decididamente outro sentido. E avaliamos que faz falta outra construção, outra forma de colocar ordem, distinta daquelas que a maioria de nosso partido defende.
O período crítico de enfrentamento armado com as forças militares da burguesia (os Guardas Brancos, as forças de Kaledin(3), etc.) terminou. O tempo da sabotagem da burguesia e da intelligentsia, também. Da mesma forma, acabou o período crítico da destruição da ordem estatal e econômica burguesa, da velha justiça, dos zemstvos(4) e das municipalidades, dos bancos, da economia capitalista e dos grandes proprietários de terras, etc. Mas ainda não terminou o difícil período de antagonismo entre a classe burguesa e o proletariado; não pode acabar assim. Depois de vencer a burguesia, os operários não podem concluir a paz com ela; devem eliminá-la completamente como classe; depois de derrotar as forças armadas e as próprias bases de classe da burguesia, não podemos pactuar com as forças organizadas que lhes restam, nem deixar rastro das relações sociais burguesas; não podemos pactuar com a burguesia como classe. Devemos empregar os conhecimentos e a experiência dos antigos mercenários da burguesia, de seus organizadores, seus técnicos especialistas, seus experts, etc. (ainda que a própria burguesia e os capitalistas não entendam muito disso tudo). Mas devemos utilizá-los à nossa maneira, rompendo seus laços organizativos de classe, suas relações com a burguesia e a ordem burguesa.
Devemos colocá-los para trabalhar sob novas relações sociais, como trabalhadores de toda a sociedade submetidos ao poder dos operários e camponeses; devemos dissolvê-las em suas fileiras. E nosso trabalho concreto, assim como a “construção orgânica” do socialismo, deve ser efetuado de outra maneira. Os gestores dos trusts nunca poderão nos dizer como edificar o socialismo. Este só pode surgir da criação da própria classe proletária, mediante esforços enormes e o concurso técnico da intelligentsia.
Não podemos nem pensar num trabalho orgânico plausível sob as diretrizes dos pequeno-burgueses. Para começar, a situação externa, a enérgica ofensiva imperialista em todas as direções, torna-o impossível. Se o que pretendemos é construir o socialismo, esta construção estará inevitavelmente ligada à luta, à resistência frente às ambições do imperialismo estrangeiro. E inclusive no que diz respeito a esta construção em si mesma, não bastam simples diretrizes pequeno-burguesas e um escrupuloso trabalho mecânico comandado por quem quer que seja. Não são os velhos servidores do capital quem deve mover os operários como marionetes inanimadas; as massas operárias devem desenvolver e organizar sua força. Se o proletariado põe em marcha a nova economia, se a submete como se fosse seu dono, se a domina e sua organização é assumida pelos próprios operários, o socialismo terá uma base firme e não será possível eliminá-lo.
Não se trata de que desenvolvam uma atividade passiva sob a direção dos velhos servidores do capital, de que estes instaurem o “socialismo”, fazendo o mesmo que faziam na época dos trusts, mas de que os operários construam voluntariamente o socialismo com a ajuda técnica da intelligentsia, que o proletariado combata pelo socialismo contra os inimigos externos e internos (às vezes defendendo-se e outras atacando, dependendo da situação). Este é o nosso ponto de vista.
Antes de tudo, temos que fazer alguns comentários gerais sobre a organização da produção, sobretudo na sociedade capitalista.
Um dos traços mais característicos da atividade do capitalismo no plano da produção é o fato de que todos os elementos, todos os aspectos da produção, adquirem um valor que aumenta ao se unir, formando um capital que produz mais-valia.
Isso afeta, em primeiro lugar, a força de trabalho, que é comprada como uma mercadoria a mais que o capital consome; sua exploração cria uma nova mais-valia, enquanto o valor inicial dos meios de produção (máquinas, matéria-prima, etc.) é conservado e “transferido” à mercadoria produzida. Esta característica da força de trabalho é a fonte da pretendida superioridade econômica do capitalismo, de seu poder (“comando do capital”, Marx).
Na fábrica capitalista não é o operário quem usa os meios de produção para fabricar produtos, mas são os meios de produção, convertidos em capital, que exploram e oprimem os operários, extraindo deles a mais-valia. Por isso, na grande indústria, os agentes do capital, que são seus olhos e ouvidos (os diretores, os engenheiros, os chefes de oficina, etc.), não somente organizam o processo técnico da produção, mas também o trabalho como atividade “concreta” que produz valor de uso, assim como o emprego da força de trabalho, a extorsão do trabalho “abstrato” dos operários, o gasto de energia que cria valor de troca. Este último aspecto é essencial. Neste sentido, para eles o homem livre não tem vontade própria. Não é mais do que uma mercadoria singular, uma coisa viva, fonte de valor de troca, este suco dourado. Se a mercadoria foi vendida por dinheiro, não deve “dar a sua opinião”. Eis aqui porque a principal tarefa de todos estes engenheiros, técnicos e vigilantes é empregar ao máximo esta mercadoria e tirar dela todo o seu suco preciso. Por isso, seu poder sobre a força de trabalho deve ser ilimitado.
A gestão de uma grande fábrica está sempre centralizada, concentrada num lugar, sobretudo devido à concentração técnica que o capitalismo necessita; além do mais é ditatorial, porque o que a impulsiona é produzir mais-valia.
Há outro aspecto que também está ligado a este objetivo principal da produção capitalista. Para o capitalismo, é desde logo importante utilizar completamente a mercadoria que compra: a força de trabalho. Também é importante o domínio sobre o próprio possuidor desta mercadoria, que é o operário, que a possui e decide colocá-la em marcha. Por isso o capitalista trata de criar uma situação em que, conservando a direção do capital e o ilimitado direito de explorar, é possível manter o operário num estado de objeto animado e obrigá-lo, como possuidor da mercadoria e da força de trabalho, a ser dele quem se extraia ao suco máximo para dar-lhe ao capitalista. Segundo Marx, isto é conseguido graças à transformação do salário, quer dizer, a transformação do valor da mão de obra em valor do trabalho. O operário não é pago pelo tempo que dura o seu contrato, por exemplo, um mês ou duas semanas. Ele é pago por horas, por peças, prêmios, etc.
O proletário – como pessoa que não possui capital e que não está interessada em produzir mais-valia (porque esta não é extraída em seu proveito) – concebe a produção e seu trabalho, sobretudo desde o ponto de vista social. Enquanto membro consciente da classe dos operários industriais, considera a fábrica como uma força social de produção, que produz valores de uso e que, um dia, não será mais útil para a sociedade. Assim, considera o trabalho como a função social que produz bens. Tem o mau costume de se considerar como um homem vivo e membro da sociedade. Inclusive como mero proprietário de uma mercadoria, não está interessado que sua força de trabalho se esgote demasiada e prematuramente.
Mas semelhante postura não convém ao capitalismo: para ele, o importante é dividir os operários, convertê-los apenas em donos de uma mercadoria, sua força de trabalho, que devem vender por preços baixos. Isso reforça o poder do capital e facilita a extração de mais-valia dos operários. Por isso o sistema autoritário e hierárquico de gestão da empresa capitalista está estreitamente ligado ao salário por peças, aos prêmios, à “participação nos lucros”, e, enfim, como síntese de todos estes procedimentos, ao sistema “Taylor” (que não é nada além de trabalho forçado).
Vejamos agora como os camaradas da ala majoritária do partido querem “construir o socialismo”. Propõem uma forma de organizar a produção que pode ser descrita assim: organizamos, por exemplo, a indústria dos vagões e dos trens(5); para isso, todas as fábricas que produzem vagões e trens seriam declaradas propriedade do Estado. Assim se formaria uma empresa, um trust estatal. Vista de fora, esta fábrica parece uma sociedade por ações cujas ações pertencem ao Estado, ou ao menos sua maioria. Assim, pois, para “comprar” a participação dos “capitães da indústria” e dos diretores de trust, vende-se-lhes uma parte das ações ou emitem-se obrigações ao portador (debêntures) pelas quais um tipo de lucro determinado é pago de uma vez por todas (diferente das ações, onde os dividendos variam segundo o lucro anual). Com estas obrigações ao portador os gestores capitalistas são comprados. Assinalemos que não somente os capitalistas são comprados, mas que lhes são vendidas também as fábricas nacionalizadas. As velhas ações do capital não são anuladas e liquidadas, mas substituídas pelas debêntures. Os coproprietários da empresa, os acionistas, se convertem em seus credores. Que toda a parte de seu capital lhes seja devolvida, isso já é outra questão. Em todo caso, receberão ao menos uma parte de seu capital; ademais, terão lucro trocando as ações por debêntures e estas por algum “contrabando”.
Como dirigir semelhante trust? Certamente, ele estará bastante centralizado. A direção concentrar-se-á nas mãos de um núcleo formado pelos representantes do Estado, os senhores “capitães da indústria” (que representam ao mesmo tempo os credores, os donos de debêntures) e os representantes dos sindicatos. Toda iniciativa acerca do plano de organização e direção da empresa ficará a cargo dos “gestores dos trustes”; pois não se trata de educá-los, de convertê-los em trabalhadores de base, mas deve-se aprender com eles. Naturalmente, em todas as fábricas a direção estará centralizada e será autoritária frente à base. O centro nomeará os diretores, perto dos quais talvez estejam os inspetores-comissários, estes “arcanjos”, segundo diz o camarada Krylenko(6). Seu poder não será controlado pelos operários fabris: no melhor dos casos, os comitês operários terão direito a queixar-se deles para o centro superior. Não será necessário que se desenvolva o controle operário; tudo será controlado pelo centro, pois ele é composto pelos representantes das autoridades operárias e camponesas e por diretores profissionais. É certo que se deve aprender com estes senhores capitalistas, mas não há com que se preocupar, pois os alunos controlam os professores.
Neste exemplo, a organização do trabalho é assim, realmente muito edificante. Chega de reagir e “resolver os conflitos”! Mas, antes de qualquer coisa, ao trabalho! O centro se encarregará de organizar a produção; o operário da base não deve esquecer que, acima de tudo, não é mais que força de trabalho a ser usada intensivamente. Os operários ainda não controlam sua maturidade social, não garantiram a produção nem sujeitaram sua emancipação do capitalismo ao aumento da produtividade do trabalho; por isso, é necessário deslocá-los completamente da direção da produção e obrigá-los a trabalhar por um estímulo material: pagá-los por peça e, provavelmente, introduzir o taylorismo. Como não existem capitalistas, não há mais risco. Além do mais, é necessário fazer propaganda entre eles em defesa da autodisciplina, dos tribunais profissionais, das normas de desempenho, etc. É preciso puxar as rédeas e incitar os operários a se submeter às regras; e nós mesmos também devemos nos submeter a elas. Não há porque se preocupar: a classe operária detém o poder e os gestores dos trustes não serão mais do que professores, instrutores.
É certo que não há com o quê se preocupar? E o que ocorre, ou pode ocorrer, durante semelhante “construção do socialismo”? Pensamos que é um caminho muito perigoso, e que pouco tem a ver com o socialismo.
Em primeiro lugar, se consideramos a construção do socialismo como nacionalização das empresas, é preciso saber que a nacionalização em si mesma, quer dizer, a transferência da propriedade das empresas ao Estado, não é de forma alguma uma medida socialista. Na Prússia a ferrovias estão nas mãos do Estado, mas ninguém se atreve a afirmar que seja uma medida de transição ao socialismo.
Para que a nacionalização adquira este sentido e se converta em socialização, é necessário, acima de tudo, que a organização econômica das empresas nacionalizadas tenha uma base socialista, quer dizer, que a direção capitalista seja suprimida e já não seja possível restaurar este tipo de organização empresarial; em segundo lugar, é necessário que o poder social esteja nas mãos daqueles que possuem os meios de produção, que o proletariado tenha este poder. Em que situação nos encontramos atualmente?
A segunda condição existe. Até agora existe a ditadura do proletariado e dos camponeses pobres. Está condição existirá sempre? Se com isto se quer dizer: “existe risco de que a fração conciliadora da intelligentsia e a burguesia constitucional-democrata recuperem o poder?” – a resposta é não. Mas se entendemos a pergunta como: “é possível que surja uma tendência degenerativa e que a ditadura semiproletária se transforme no domínio político de uma massa metade proletária, metade pequeno-burguesa?”, a resposta é sim. Existe semelhante perigo. Como demonstram as “Teses sobre a situação atual” publicadas neste primeiro número(7), as consequências econômicas e internacionais da paz permitem que surjam este tipo de tendências, que só podem ser combatidas com uma resoluta política de classe e com uma coerente construção do socialismo. No decorrer desta construção, a classe operária deverá reforçar sua base social, que atualmente sofre algumas lesões, e organizar-se e fortalecer a si mesma. Se não o fizer, se for arrastada para uma direção oposta, a degeneração da força política dominante na Rússia, o poder soviético, será inevitável. Por isso, em grande medida, na hora de responder à pergunta: “exercemos o poder mediante as nacionalizações como um passo rumo ao socialismo?”, resta saber como se organiza a produção; será sobre bases socialistas? O proletariado será convidado a se organizar e a encarar a via do socialismo?
Nossa responsabilidade é examinar a forma de organizar a produção que a maioria do partido propõe. Sua aparência externa, jurídica, é a nacionalização. Já explicamos que esta, em si mesma, não é uma medida socialista. E mais, a proposta de que os trusts estatais se convertam em sociedades anônimas é algo típico do capital financeiro e do capitalismo de Estado. A sociedade anônima é a forma que melhor se adapta ao capital financeiro, facilitando-lhe a união dos bancos com a indústria.
Talvez isto seja acidental (o que para nós não é o caso). Mas o que não é casualidade é que se conceda este “contrabando” aos gestores dos trusts, sob a forma de emissão de obrigações ao portador (debêntures)(8). Uma boa remuneração individual bastaria se o que se pretendia era comprá-los como simples instrutores-organizadores. Mas o fato é que eles foram comprados como representantes de uma classe, e há “contrabando” para todos (reembolso, mais concretamente). Assim, por uma parte, é feita uma concessão a esta classe e se reforça seu poder social e, por outra, os laços entre este instrutores com sua classe, com a burguesia, são consolidados. Não somente jogam o papel de empregados da República Soviética, mas também o de representantes do capital financeiro. A isto é necessário acrescentar sua mais que possível participação nos futuros trusts como representantes oficiais dos donos de debêntures. E como eles são, de fato, os banqueiros internacionais, que já conseguiram ações das fábricas e que farão negócios com o aval do senhor Mechtcherski(9) e companhia (“os gestores dos trusts”), é evidente que existirão laços reais, “laços de sangue” com o capital financeiro estrangeiro. Eis aqui porque o sistema de empréstimo dos donos de obrigações ao portador e das sociedades anônimas não é algo casual: para os senhores “gestores dos trusts” o sistema é uma parte necessária desta engrenagem que os une ao capital estrangeiro, que poderia entrar através desta ponte na indústria “socialista”. A partir deste ponto de vista, já existe o risco de que nossos “professores” não nos ajudem a construir o socialismo, de que acreditam sub-repticiamente verdadeiros trusts capitalistas e utilizem sua atividade de classe.
Mas por enquanto isto é algo secundário, que afeta as relações com o “mundo” capitalista “exterior”. Contudo, todos os avanços neste sentido são extremamente perigosos, sobretudo hoje, quando os tentáculos dos banqueiros estrangeiros e as baionetas das coalizões imperialistas (que eles mesmos dirigem) pairem sobre nós; e tendo em conta que todo acordo com eles pode se transformar rapidamente em submissão. Este aspecto externo, assim como a conservação da ditadura e da orientação do poder por parte do proletariado e não dos capitalistas, é o mais importante para a organização interna da produção.
Qual é a situação atual? Bastante triste. Propõe-se às massas proletárias que sejam consideradas unicamente como operários no sentido profissional e técnico da palavra. Preocupam-se acima de tudo com trabalhar. Penetram-se dos mandatos pequeno-burgueses; estas são agora as principais consignas. Não é necessário molestá-los para que dirijam as empresas e sua atividade. Estes senhores organizadores da produção os “ensinarão”. O centro decidirá tudo. Sua tarefa social será reduzida a participar nas eleições dos dirigentes que defenderão seus interesses, e auxiliar passivamente para que a “disciplina do trabalho” seja introduzida e reine a ordem sobre a Terra. Assim, desde cedo, o que se coloca em evidência é que inclusive a centralização da produção tem seu caráter autocrático. Os diretores enviados às fábricas têm plenos poderes e o direito de exigir obediência absoluta: assim como devem fazer com que reine a disciplina e a ordem (veja-se o decreto sobre a direção das ferroviárias).
Por acaso os dirigentes operários participarão na direção das indústrias junto aos homens de negócios? Os capitalistas deixarão o proletariado ficar com algo de poder real sobre a produção? Temos direito de duvidar, sobretudo se o proletariado como classe se transforma num elemento passivo, em objeto e não sujeito da organização do trabalho à frente da produção. Os chefes operários só podem ser fortes mediante sua relação direta com as massas ativas. Assim, esta burocracia operária irá desempenhar o papel de um aluno passivo antes estes senhores representantes do capital, e será a mais solícita ante os requerimentos “empresariais” dos Smiles. Desta forma, abre-se o caminho para que o capital financeiro recupere as posições perdidas (tanto mais quando existe uma forte pressão exterior).
Por último, é preciso acrescentar um terceiro elemento a esta descrição. Para animar o zelo dos operários pelo trabalho, parecer ser necessário introduzir o salário por peças e a cronometragem (o cálculo do trabalho por hora(10), o sistema Taylor). Já falamos desta forma de salário sobre a unidade da classe e a consciência dos operários. Estas formas foram inventadas pelo capital para romper a solidariedade proletária. Fomentam a concorrência e a divisão entre os operários. Fazem com que imperem os interesses individuais egoístas sobre os interesses comuns de classe. Transformam os operários em pequenos homens de negócios que negociam com sua força de trabalho, são o melhor meio para implantar a psicologia e a influência pequeno-burguesa nas massas operárias e também para transformar os operários mais experientes em simples pequenos proprietários. Obrigam-nos a prestar atenção ao trabalho profissional nas oficinas e desviam-nos de nossas tarefas sociais. O operário tratará de “receber” o máximo por jornada, e já não terá nem tempo nem interesse para pensar em outra coisa. Dada a fadiga e o esgotamento geral dos operários atualmente, é preciso dizer que a implantação de todos estes incentivos capitalistas poderia aumentar enormemente a passividade da classe, a inação do proletariado russo. E tudo isto ocorre, por uma parte, justo quando se desenvolve a ofensiva resoluta do imperialismo mundial e, por outra, na véspera do combate decisivo para o qual devemos estar sempre dispostos!
Não falaremos de como tudo isto influencia a situação dos desempregados e nas relações entre os proletários com trabalho e os desempregados. As perspectivas são dolorosas onde quer que se veja: as diferenças no proletariado, a aparição de uma aristocracia operária indiferente à política, os infelizes, os ansiosos e, enfim, a passividade geral. Em semelhantes condições, a participação dos capitalistas na organização da produção não promete nada de bom.
Em contrapartida, o que nos garante, em geral? Suponhamos que os operários aceitem este novo sistema (ainda que a instauração dos velhos diretores, antigos degoladores e sabotadores nas fábricas, seja pouco provável sob o poder soviético). Antes de tudo, assegura um fortalecimento das posições capitalistas. O fim do “período crítico” da destruição da ordem burguesa significará, no fundo, o início das concessões aos restos da burguesia vencida. Se não supõe o fortalecimento da burguesia russa, pelo menos suporá a entrada do capital internacional. Atualmente, o imperialismo alemão sem dúvida está muito preocupado buscando uma saída semelhante, e para isso emprega centenas de funcionários e “experts”. Dirigimo-nos ao encontro destas previsões. Uma vez colocados nesta via, que utiliza a passividade da classe operária e que se desenvolve através do “trabalho orgânico” típico do bolchevique de direita, o capital estrangeiro irá mais além e começará a restaurar pouco a pouco seu poder de direção.
A forma de organizar as empresas estatais (a formação de trusts, a emissão de obrigações ao portador (debêntures), a centralização burocrática, a forma por ações) facilita para que o capital financeiro estrangeiro se introduza, seja o “malvado” capital alemão ou o “amável” capital norte-americano. O poder absoluto de direção, metade do qual estará nas mãos de conhecidos homens de negócios, evoluirá até o poder do capital. Resumindo, todo o sistema (considerando o resto de circunstâncias que tal linha política implica) suporá uma etapa até o surgimento do capitalismo de Estado na Rússia, que, não podendo emergir no podre terreno da autocracia czarista, agora pode fazê-lo num terreno já livre da servidão, se a revolução russa for dominada por esta tendência decadente (deixando de lado a perspectiva da revolução internacional).
O proletariado deve eleger outro caminho, um caminho que reforce sua energia ativa de classe, sua capacidade de resistência aos saqueadores estrangeiros, sua influência sobre o desenvolvimento e o êxito da revolução internacional, o que pressupõe a grande e definitiva libertação do jugo do capital. O caminho da construção do verdadeiro socialismo com as próprias forças proletárias, sem a tutela de professores capitalistas.
Falaremos disso num próximo artigo.
Notas de rodapé:
(1) A expressão é de Lênin. (retornar ao texto)
(2) Todas essas consignas, assim como o programa em que se apoiam são baseadas nas teses do camarada Lênin, que durante o encontro de 4 de abril entre os membros do Comitê Central e os grupos de comunistas de esquerda prometeu publicá-las rapidamente. E por que estas teses ainda não foram publicadas? (Nota do redator). Finalmente seriam publicadas no folheto “As tarefas imediatas do poder dos sovietes”, que apareceram pela primeira vez no Pravda n° 83, em 28 de abril de 1918. (retornar ao texto)
(3) General de origem cossaca. Em 1917 foi sucessor de Kornilov. Eleito chefe dos cossacos do Don depois de Outubro, foi vencido pelos bolcheviques comandados por Antonov-Ovséyenko em fevereiro de 1918 e se suicidou. (retornar ao texto)
(4) No império czarista, os zemstvos eram assembleias regionais que datam de 1864, sob o governo de Alexandre II. Existiam zemstvos de distrito e de província. (retornar ao texto)
(5) As pessoas “competentes” sabem que estes exemplos não fomos nós quem inventamos, mas que se baseiam nos projetos discutidos pelas instituições responsáveis. Recentemente (quando esse artigo já tinha sido escrito) estes projetos iniciais foram adiados. E assim se “murcha” a consigna de aprender socialismo sob a direção dos organizadores dos trusts. Mas isso não muda nada, pois nós examinamos as expressões mais claras de toda uma tendência política. Estes projetos podem ressurgir em qualquer momento. Os discursos do “comunista” Goukovski demonstram que, no terreno da política financeira, as ideias de Smiles continuam triunfando. (Nota do redator). Smiles era um velho cartista que se converteu num defensor do culto ao esforço individual. Entre seus livros se destaca Autoajuda, ou Como ajudar a si mesmo? [Nota do Passa Palavra] Samuel Smiles (23 dez. 1812 – 16 abr. 1904). Escritor escocês e reformador governamental que fez campanha com base numa plataforma cartista, mas que concluiu que mais progresso adviria de novas atitudes que de novas leis. Seu livro Autoajuda, de 1859, defendeu a moderação e a frugalidade, e afirmou que a pobreza era causada principalmente por hábitos irresponsáveis, ao mesmo tempo em que atacou o materialismo e o governo baseado no laissez-faire. Este livro foi chamado de “a bíblia do liberalismo vitoriano” e transformou Smiles em celebridade do dia para a noite. (retornar ao texto)
(6) Nikolái Vasílyevich Krylênko (russo: Никола́й Васи́льевич Крыле́нко; 2 maio 1885 – 29 jul. 1938). Revolucionário bolchevique russo e político soviético, serviu numa variedade de postos no sistema judiciário soviético, ascendendo até o posto de Comissário do Povo para a Justiça e de Procurador-Geral da República Socialista Soviética Federada da Rússia. Krylenko foi um expoente da chamada “legalidade socialista” e da teoria segundo a qual considerações políticas, mais que a culpa ou inocência criminal, deveriam guiar a aplicação das penas. Apesar de ter participado das farsas judiciais e da repressão política do final dos anos 1920 e começo dos anos 1930, Krylenko terminou ele mesmo preso durante o Grande Expurgo. Em seguida a interrogatório e tortura pelo NKVD, Krylenko confessou extenso envolvimento em sabotagem e agitação antissoviética. Ele foi sentenciado à morte pelo Colegiado Militar da Suprema Corte Soviética num julgamento que durou 20 minutos, e executado imediatamente depois. [Nota do Passa Palavra] (retornar ao texto)
(7) Primeiro número da revista Kommunist. (retornar ao texto)
(8) O resultado é o mesmo se uma parte das ações é transferida aos banqueiros, ou outras coisas do estilo (Nota do redator). (retornar ao texto)
(9) Herdeiro de uma grande família de príncipes, magnata do ferro e do aço, o príncipe V. Mechtcherski era proprietário de uma das principais fábricas de construção de locomotivas e vagões. Como representante de um importante grupo de capitalistas da indústria metalúrgica e maquinista, propôs ao governo soviético em março de 1918 a constituição de um truste original. O grupo deteria a metade das ações do truste metalúrgico e o Estado a outra metade. O grupo se encarregaria da gestão em nome desta associação. O governo decidiu por uma débil maioria negociar sobre esta base, mas finalmente rechaçou a proposta em 14 de abril, decidindo pela completa nacionalização deste setor industrial. O governo supunha que o capital alemão estava por detrás da proposta de Mechtcherski. (retornar ao texto)
(10) É este aspecto do sistema Taylor o que interessa aos partidários desta “nova orientação” e não seu aspecto positivo e organizativo. (Nota do redator) (retornar ao texto)