MFA e Revolução Socialista

César Oliveira


PREFÁCIO
CAPITALISMO, DEMOCRACIA E SOCIALISMO


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1. A burguesia portuguesa pelo seu grau de dependência, pela sua debilidade e fraqueza relativas, não pode dispensar um regime político que assegure, a par de um sistema repressivo sobre os trabalhadores, o processo de reconversão do seu próprio sistema de exploração agora que a descolonização se mostra irreversível e que o seu domínio sobre o aparelho de Estado, sobre o poder político e sobre o M. F. A. é demasiado pequeno, para encarar tranquila a sua continuidade.

2. Com o desmantelamento da máquina repressiva (PIDE, LP, ANP, Censura, etc.), com a democratização relativa das Forças Armadas, com a aliança Povo-MFA relativamente consolidada e com a generalização da implantação das forças políticas democráticas e progressistas o retorno a soluções fascistas ou fascistizantes é, pelo menos a curto prazo, altamente improvável.

3. A única possibilidade aberta à burguesia portuguesa para recuperar o poder, parcialmente perdido, na instância política e no aparelho de Estado consiste, essencialmente e no imediato, numa vitória eleitoral para o que disporá, obviamente, de grande capacidade económica, de apoios internacionais consideráveis, de cumplicidades evidentes em forças políticas ditas democráticas mas que, todavia, não põem em causa a espinha dorsal do sistema: a propriedade privada dos meios de produção e a exploração, ainda que sob novas formas, dos trabalhadores portugueses.

4. Se o processo desencadeado pelo 25 de Abril e cujas perspectivas revolucionárias foram reforçadas pelo 28 de Setembro se resumir à solidificação de uma democracia formal que não põe em causa nem a exploração capitalista, nem as ligações ao imperialismo e ao bloco militar que lhe defende os interesses, tal solidificação terá de passar, necessariamente, pela prática imediata de medidas repressivas sobre os trabalhadores (a maioria da população portuguesa), por limitação de toda a ordem às forças políticas que defendem os interesses dos trabalhadores e que lutam pelo socialismo, pela destruição progressiva do MFA enquanto centro fundamental de decisão aberto para uma prática revolucionária ao serviço «das classes trabalhadoras».

5. As classes dominantes em Portugal só têm uma saída: um regime autoritário, centralizado e fortemente repressivo, capaz de garantir a estabilidade política e uma «paz social» que lhes permita reconverter estruturas económicas dependentes da exploração colonial, da divisão internacional do trabalho, da própria existência do fascismo.

6. As forças políticas cujo projecto não ultrapassa a luta pela democracia burguesa (parlamentar, presidencialista ou em outra qualquer forma) servem de facto os interesses das classes dominantes para quem, na actual conjuntura, é fundamental a instrumentalização dos mecanismos da democracia burguesa como primeiro momento de uma recuperação política vital para a sua própria sobrevivência.

7. Enquanto não for atacado decididamente o «poder económico» das classes dominantes, enquanto permanecerem inalteradas as condições estruturais que permitiram o fascismo, enquanto persistir a actual indefinição e ambiguidade no poder político, a democracia formal, a liberdade como valor abstracto e o pluralismo indiscriminado servirão sempre os interesses da burguesia e da exploração capitalista, pois esta joga sempre na abstracção destes valores.

8. A luta pelo socialismo é, portanto, a única saída consequente para o processo revolucionário em curso na sociedade portuguesa, o único caminho capaz de servir os interesses do povo português, a única forma de assegurar o cumprimento cabal do programa do M. F. A., a luta pelo socialismo não pode pois começar (como pretende a social democracia) por conferir às próximas eleições um carácter de decisão fundamental, encarando-as como o instrumento principal da luta pela democracia socialista pois elas assentarão, necessariamente, em estruturas condicionantes diversas ao serviço dos interesses capitalistas e em «dados» viciados por meio século de fascismo e de obscurantismos de toda a ordem. A liberdade de escolher, a prática efectiva da democracia real não podem caber num sistema de exploração e de dominação que visa, exactamente, mistificar e tornar abstractos conceitos e valores que só «existem» nas necessidades capitalistas ligadas e ao serviço dos interesses das classes dominantes.

9. Sem consolidação das liberdades conquistadas e das vitórias já conseguidas não pode avançar o processo revolucionário. Contudo, sem destruir o poder económico da burguesia, as liberdades conquistadas serão apenas palavras sem conteúdo e as vitórias conseguidas esfumar-se-ão nos mecanismos repressivos e nos instrumentos de conciliação que a burguesia saberá criar para espartilhar em limites convenientes a luta de classes.

A luta pelo socialismo terá pois de traduzir-se imediatamente por medidas concretas nos vários domínios da actividade económica, social, administrativa, cultural e nas próprias instâncias do poder político.

10. No entanto considera-se que a luta imediata por objectivos concretos terá de ser perspectiva da em ordem à construção do socialismo em Portugal entendido como expressão efectiva do poder dos trabalhadores e de uma democracia revolucionária que nada têm a ver nem com conceitos e metodologias provenientes da legalidade burguesa nem com fórmulas totalitárias de um capitalismo de Estado burocratizado, repressivo e que perpetua ele também a desigualdade económica e social a novas formas de domínio e opressão sobre os trabalhadores. Poder dos trabalhadores a todos os níveis e em todos os domínios, democracia revolucionária, sendo expressões cujo conteúdo exclui a liberdade da burguesia e a democracia burguesa, nem por isso deixarão de exigir, como sua condição essencial, a liberdade e a democracia no interior do próprio poder revolucionário. A ditadura do partido opõe-se à democracia revolucionária como esta se opõe à democracia burguesa.

A luta pela construção do socialismo acelerou-se com a queda do fascismo e reforçou-se na experiência que tem mostrado a impossibilidade da democracia burguesa poder resolver os problemas que afectam os trabalhadores portugueses.

No entanto, o socialismo em Portugal terá de ser resultante das condições concretas da sociedade portuguesa, ou seja, será produto das soluções concretas definidas pela especificidade da sociedade portuguesa. Todos os processos revolucionários foram originais e, por isso mesmo, cabe às forças políticas empenhadas na revolução socialista recusar, em Portugal, a aplicação de modelos que nada têm a ver com as estruturas da sociedade portuguesa nem sequer com as condições de luta revolucionária em Portugal e cujo pólo fundamental assentou, desde a manhã do dia 25 de Abril, na aliança das massas populares com o MFA.

11. Cabe pois às forças políticas que lutam pelo socialismo e a todos os revolucionários portugueses criarem a teoria revolucionária adequada para que os objectivos imediatos de luta, ponto de convergência do MFA e das forças progressistas, sirvam simultaneamente para satisfazer as aspirações concretas das massas populares e dos trabalhadores e para serem um novo ponto de partida para a luta pelo socialismo. Graves são as responsabilidades das forças progressistas e dos verdadeiros socialistas portugueses pois defrontam-se com uma situação política que, como todas as situações inseridas num processo revolucionário, não encontra na história do movimento operário e socialista um modelo explicativo que tipifique soluções e muito menos as normas concretas a aplicar. Assim:

  1. a sociedade portuguesa saiu simultaneamente do fascismo e do colonialismo num período de grave crise do capitalismo português que se agudiza dia a dia na presença da crise do capitalismo mundial e nomeadamente das burguesias mediterrânicas.
  2. as forças políticas progressistas são hegemónicas no poder político e no aparelho de Estado enquanto que a desorganização relativa das forças reaccionárias obriga a que a burguesia tenha que apoiar-se, quase exclusivamente, na social-democracia.
  3. o domínio do poder político e dos centros fundamentais de decisão e de poder não é identificável totalmente com o domínio do poder económico.
  4. o MFA e as Forças Armadas deixaram de ser o braço armado da reacção e, só parcialmente, o MFA corresponde aos interesses do projecto reconvertor da exploração capitalista.
  5. a descolonização tal como está a ser realizada pode ser um empate de capital decisivo para a diversificação de apoios internacionais e surgir como sustentáculo para uma aliança entre o povo português e os povos das ex-colónias portuguesas contra o inimigo comum: o imperialismo.

12. Se a revolução socialista é um processo longo construído por objectivos intermédios e fases concretas determinadas pela correlação das forças de classe em presença e se, nas actuais condições, não é possível definir como objectivo exequível a curto prazo a tomada do poder pelos trabalhadores, a actual fase da luta de classes em Portugal terá de ter pois três objectivos principais:

  1. impedir que as forças políticas ao serviço dos interesses da burguesia capitalista recuperem o poder político e os centros fundamentais de decisão no aparelho de Estado e no MFA.
  2. atacar o poder económico das classes dominantes por medidas concretas, em todos os sectores de actividade económica e social, ao serviço das classes trabalhadoras.
  3. promover a criação de uma estrutura revolucionária à escala nacional em ordem à criação de

condições para uma participação organizada das massas populares na luta contra todas as formas de expressão das forças reaccionárias.

13. O processo revolucionário em curso na sociedade portuguesa terá de encontrar expressões globais da sua própria dinâmica, ou seja, deverá exprimir-se quer ao nível do poder político e do aparelho de Estado, quer ao nível dos conceitos concretos, quer ainda na participação efectiva e cuidadosa das massas populares. Só uma articulação destas três instâncias, eficaz e inserida num projecto global, poderá obstar às manobras da reacção e do capitalismo e, simultaneamente, reforçar a aliança do movimento popular de massas com o MFA.

Assim ter-se-á que caminhar rapidamente na construção e na consolidação de uma legalidade revolucionária que possa traduzir a unidade das forças políticas empenhadas na construção do socialismo (que excluirá versões sociais-democratas do domínio da burguesia), mas que permite um leque diversificado de apoio ao MFA como garantia do necessário pluralismo no interior da própria legalidade revolucionária. A unidade da esquerda, porque reflecte um pluralismo real e com incidências específicas na realidade do movimento popular de massas, é indispensável não apenas para o apoio politicamente diversificado ao MFA, mas ainda como travão a quaisquer formas de ditadura contra-revolucionária de cariz militar ou civil.

Só a legalidade revolucionária poderá permitir o acelerar do processo de saneamento nos aparelhos de

Estado e na máquina administrativa, a concretização de medidas claramente anticapitalistas, o desencadear de um processo revolucionário no domínio das actividades culturais, das mentalidades e dos órgãos de comunicação social, da participação popular.

14. As eleições para a Assembleia Constituinte, sendo um momento importante na fase actual do processo revolucionário, só poderão resultar numa vitória das forças reaccionárias e ao serviço da reconversão capitalista — desvirtuando assim o essencial do programa do MFA — se a base social de apoio às forças reaccionárias se mantiver intacta e se a esquerda unida não souber encontrar formas de aproveitar, adequadamente e a seu favor, a sua participação no processo eleitoral.

15. Os próximos dois meses serão decisivos para levar por diante as tarefas inerentes à luta pelo socialismo em Portugal.

A divulgação e a discussão maciça do Programa Económico e Social (Plano Económico), mormente dos seus aspectos progressistas e das concretizações revolucionárias que nele tiverem cabimento; a divulgação imediata, tão cedo quanto possível, de um projecto constitucional que, exprimindo a unidade da esquerda e das massas populares com o MFA, traduza formas jurídicas e institucionais que afirmem claramente a participação popular constitucionalmente consagrada e que definam para o MFA a sua continuidade como garante do processo revolucionário e da democracia socialista; a utilização adequada e eficiente da rádio e da televisão como órgãos de debate, esclarecimento e formação ao serviço das classes trabalhadoras, parecem ser também objectivos fundamentais a concretizar, porque altamente condicionantes do processo eleitoral.

6 de Fevereiro de 75


Inclusão: 23/05/2020