Prefácio ao Segundo Volume de «O Capital» de Marx

Friedrich Engels

05 de Maio de 1885

Transcrição autorizada
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Primeira Edição: Publicado pela primeira vez no livro: Karl Marx, Das Kapital. Kritik der politischen Oekonomie, Zweiter Band. Herausgegeben von Friedrich Engels, Hamburgo, 1885. Publicado segundo o texto da edição de 1893. Traduzido do alemão.
Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Editorial"Avante!"
Tradução: Álvaro PINA.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo, setembro 2008.
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo, 1982.


capa

Leia o texto completo transcrito de O Capital

... Mas que disse então Marx de novo sobre a mais-valia? Como se explica que a teoria da mais-valia de Marx tenha ribombado como um trovão em céu azul, e isto em todos os países civilizados, ao passo que as teorias de todos os seus predecessores socialistas, incluindo Rodbertus, se esfumaram sem deixar efeitos?

A história da Química pode ilustrar-nos o caso com um exemplo.

Ainda em fins do século passado dominava, como é sabido, a teoria flogística, segundo a qual a essência de toda a combustão consistia em que do corpo comburindo se separava um outro corpo, hipotético, um combustível absoluto, que era designado com o nome de flogisto. Esta teoria chegava para explicar a maioria dos fenómenos químicos então conhecidos, ainda que não sem forçar em muitos casos. Ora, em 1774, Priestley obtinha uma espécie de ar

«que ele encontrou tão pura ou tão isenta de flogisto, que em comparação com ela o ar habitual bem parecia viciado».

Deu-lhe um nome: ar desflogistizado. Pouco depois Scheele obtinha na Suécia esta mesma espécie de ar e demonstrava a sua presença na atmosfera. Descobriu também que ela desaparece quando se combusta um corpo nela ou em ar habitual, e deu-lhe por isso o nome de ar de fogo.

«Destes resultados tirou então a conclusão de que a combinação que tem origem com a união de flogisto com uma das partes constitutivas do ar» (portanto, com a combustão) «nada mais é do que fogo ou calor, que escapa através do vidro.»(1*)

Priestley e Scheele tinham obtido o oxigénio, não sabiam porém o que tinham debaixo da mão. «Ficaram presos nas categorias» flogísticas «tal como as encontraram». O elemento que havia de deitar por terra a inteira visão flogística e de revolucionar a Química ficara-lhes na mão acometido de esterilidade. Mas Priestley tinha comunicado logo a seguir a sua descoberta a Lavoisier em Paris, e Lavoisier examinou então, com este novo facto em mão, toda a química flogística, e foi o primeiro a descobrir que a nova espécie de ar era um elemento químico novo, que na combustão não é o misterioso flogisto que sai do corpo comburindo, mas este novo elemento que se combina com o corpo, e deste modo foi o primeiro a pôr em pé toda a Química, a qual tinha estado, na sua forma flogística, de cabeça para baixo. E se bem que não tenha obtido, como mais tarde afirmou, o oxigénio ao mesmo tempo que os outros e independentemente deles, certo é que foi ele o verdadeiro descobridor do oxigénio face aos dois que o tinham tão-só obtido sem ao menos suspeitarem daquilo que tinham obtido.

Assim como Lavoisier para Priestley e Scheele, está Marx para os seus predecessores na teoria da mais-valia. A existência da parte de valor dos produtos, a que agora damos o nome de mais-valia, estava verificada muito antes de Marx; estava igualmente expresso, com maior ou menor clareza, em que é que ela consiste, a saber, no produto do trabalho pelo qual o apropriador não pagou um equivalente. Mas não se ia além disto. Uns — os economistas burgueses clássicos — examinavam quando muito a proporção de grandezas em que o produto do trabalho é repartido entre o operário e o possuidor dos meios de produção. Os outros — os socialistas — achavam injusta esta repartição e procuravam meios utópicos para eliminar a injustiça. Uns e outros ficaram presos nas categorias económicas tal como as tinham encontrado.

Entrou então Marx em cena. E, de facto, em oposição directa a todos os seus predecessores. Onde estes tinham visto uma solução, ele viu apenas um problema. Ele viu que aqui não havia nem ar desflogistizado nem ar de fogo, mas oxigénio — que aqui não se tratava nem da mera constatação de um facto económico nem do conflito desse facto com a justiça eterna e a moral verdadeira, mas de um facto que estava destinado a revolucionar toda a Economia e que oferecia a chave para o entendimento de toda a produção capitalista — para aquele que a soubesse usar. Com este facto em mão examinou todas as categorias já existentes, tal como Lavoisier com o oxigénio em mão examinara as categorias já existentes da química flogística. Para saber o que era a mais-valia ele tinha de saber o que era o valor. A própria teoria do valor de Ricardo tinha antes de tudo de ser submetida à crítica. Marx examinou portanto o trabalho na sua qualidade de criação de valor e verificou pela primeira vez qual o trabalho, e porquê, e como é que cria valor, e que o valor nada é absolutamente senão trabalho coagulado desta espécie — um ponto que Rodbertus até ao fim não compreendeu. Marx examinou depois a relação de mercadoria e dinheiro e demonstrou como e porquê, por força da propriedade de valor que lhe é inerente, a mercadoria e a troca de mercadorias têm de gerar o oposto de mercadoria e dinheiro; a sua teoria do dinheiro, fundada sobre tal base, é a primeira teoria exaustiva, e a agora tácita e geralmente aceite. Ele examinou a transformação de dinheiro em capital e provou que ela assenta na compra e venda da força de trabalho. Ao pôr aqui a força de trabalho, a propriedade criadora de valor, no lugar do trabalho, solucionou de um golpe uma das dificuldades contra que tinha soçobrado a escola de Ricardo: a impossibilidade de pôr em harmonia a troca recíproca de capital e trabalho com a lei de Ricardo da determinação do valor pelo trabalho. Ao constatar a diferenciação do capital em constante e variável, foi o primeiro que conseguiu representar até ao mais ínfimo pormenor, e desse modo explicar, o processo de criação da mais-valia no seu decurso real — o que nenhum dos seus predecessores conseguira; ele constatou portanto uma diferença dentro do próprio capital com a qual Rodbertus, tal como os economistas burgueses, não estava em condições de fazer fosse o que fosse, mas que fornece a chave para a solução dos problemas económicos mais intricados, do que se dá aqui de novo no Livro II — e ainda mais, como se mostrará, no Livro III — a prova mais flagrante. Aprofundou o exame da própria mais-valia, achou as suas duas formas: mais-valia absoluta e relativa, e demonstrou o papel diverso, mas em ambos os casos decisivo, que elas desempenharam no desenvolvimento histórico da produção capitalista. Sobre a base da mais-valia desenvolveu a primeira teoria racional que temos do salário do trabalho, e deu pela primeira vez os traços fundamentais de uma história da acumulação capitalista e uma representação da sua tendência histórica...

Londres, no dia do aniversário de Marx, 5 de Maio de 1885.
Friedrich Engels


Notas de rodapé:

(1*) Roscoe-Schorlemmer: Ausführliches Lehrbuch der Chemie [Compêndio Minucioso de Química], Braunschweig, 1877, I, p. 13, 18. (Nota de Engels.) (retornar ao texto)

Inclusão 07/09/2008