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Fonte: Revista Crítica Marxista, n. 47, p.121-125, 2018.
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Os três artigos aqui publicados ["Os Cartistas"; "As Eleições na Inglaterra - Tories e Whigs" e "Corrupção nas Eleições"] foram redigidos por Karl Marx em agosto de 1852 e têm como objetos aspectos das eleições gerais inglesas daquele ano.(1)
Marx radicou-se em Londres em 1851 e a colaboração regular no estadunidense New York Daily Tribune serviu de base para a subsistência material da família na primeira década de seu estabelecimento na Inglaterra.(2) Porta-voz da esquerda liberal norte-americana e, por certo tempo, órgão oficioso do Partido Republicano, o mais avançado politicamente nos Estados Unidos daquela época, o Tribune contava com cerca de 200 mil leitores, o que fazia dele o periódico mais popular do país. Os artigos, com a remuneração de duas libras cada, eram enviados duas vezes por semana ao editor em Nova York; assim, a família Marx pôde contar, até o início da década seguinte, com cerca de duzentas libras por ano provenientes da atividade jornalística de Marx, um alívio para as dificuldades inerentes à vida de revolucionários no exílio. Além disso, como observou a própria Jenny Marx, responsável por passar a limpo os escritos do marido, a atividade propiciava a ambos a possibilidade de se manterem a par dos fenômenos mais recentes da vida política, econômica e social inglesa e internacional.
Tal relação, no entanto, não esteve isenta de vicissitudes e dificuldades. Os honorários atrasavam com frequência ou, por vezes, não eram pagos, deixando a família Marx em situação de penúria. Em algumas ocasiões, os textos enviados eram descartados sem explicações; em outras, alterados e publicados como editoriais, sem indicação de autoria. Além disso, Mehring observa que as divergências de pensamento entre Charles Dana, editor do jornal e discípulo de Fourier, e Marx e Engels foram se acentuando sistematicamente até o ponto em que o último, num momento de indignação, fez referências às concepções socialistas de Dana como um “frouxo blefe pequeno-burguês” (Mehring, 2013, p.230). Por fim, com o agravamento da crise política e econômica que antecedeu a Guerra Civil norte-americana e sua posterior deflagração, o jornal dispensou Marx de sua função de correspondente na Europa, inaugurando uma nova fase de complicações econômicas na vida pessoal do demiurgo da filosofia da práxis.
Apesar de todos os problemas que cercaram a redação e a publicação dos artigos escritos para o Tribune, eles representam um acervo volumoso (cerca de oitocentos títulos!), pouco conhecido e dotado de algumas particularidades. Nesses escritos, o teórico da luta de classes, o crítico da economia política, o elaborador do materialismo histórico, desempenhou também a função de analista de conjuntura. Os temas mais candentes da realidade britânica, europeia e mundial foram abordados e avaliados por ele com o rigor, a acuidade e a perspectiva revolucionária que lhe eram característicos. Uma dimensão desses escritos tem sido pouco valorizada pelos estudiosos e militantes revolucionários de nosso país e de outros lugares do mundo: o olhar com o qual o Mouro observou e interpretou a dinâmica econômica social e política do mundo dominado pela língua e a cultura anglo-saxãs. A militância revolucionária e a marxologia acadêmica brasileira têm se mostrado atentas aos escritos dedicados por Marx (e Engels) aos processos histórico-políticos e às lutas revolucionárias em lugares como a França e o universo de língua alemã. Pouca atenção, no entanto, tem sido dedicada às elaborações do marxismo clássico sobre os processos em curso nas ilhas britânicas e nos Estados Unidos. Abstraem que o fundador da tradição marxista viveu a maior parte de sua vida no Reino Unido e escreveu durante onze anos para um jornal nova-iorquino.
Não resta dúvida de que Crítica Marxista tem se esforçado para alterar esse aparente desinteresse. A publicação, em seu número 45, de alguns textos de Marx dedicados à escravidão e à Guerra Civil nos Estados Unidos faz parte desse esforço, que prossegue com os textos que agora publicamos. Muitas questões, no entanto, se mantêm em aberto e tais lacunas só serão suprimidas com a publicação persistente e sistemática, nos espaços editoriais brasileiros, da ampla variedade de textos que eles dedicaram aos fenômenos e processos mencionados.
De imediato, algumas indagações podem ser feitas: como o maior estudioso do desenvolvimento capitalista e principal teórico da luta de classes e da revolução proletária apreciou as manifestações concretas daquele modo de produção na primeira nação burguesa, a Inglaterra, e nos Estados Unidos, país que se tornou a principal potência na virada do século XX, mas que, já naquela época, possuía uma dinâmica e vigorosa economia capitalista em processo de expansão? Como Marx avaliou o processo de luta da burguesia britânica para estender seu poder econômico e social ao domínio político num país que, tendo sido pioneiro no desenvolvimento capitalista, não ofereceu a variedade mais clássica da revolução burguesa na esfera das relações políticas? E, mais ainda, como Marx avaliou, na década de 1850, o caráter, a luta e as perspectivas revolucionárias do movimento operário na mais burguesa das nações do mundo, que possuía a economia capitalista mais avançada e o proletariado mais numeroso e organizado?
Sem oferecer respostas definitivas e exaustivas a essas e outras interrogações, os escritos publicados adiantam elementos introdutórios para a investigação de algumas questões aqui esboçadas. Exemplo de contribuição solenemente ignorada pela ciência política praticada hoje nas universidades, o texto “As eleições na Inglaterra — Tories e Whigs” é uma excelente amostra da análise de classe dos partidos políticos. Nele, Marx examina o sistema político burguês-aristocrático inglês, sob o qual os dois partidos mais importantes das classes dirigentes, os Tories e os Whigs, desfrutavam do poder alternadamente, produzindo a aparência de enorme enfrentamento entre forças políticas e sociais contrapostas. É interessante notar alguns aspectos da análise feita nesse texto. Marx concebe a classe dominante fracionada entre proprietários de terra, industriais e comerciantes. Os primeiros também estão fracionados entre os tradicionais, a base dos Whigs, e os mais recentes, que se organizam nos Tories; ele os vê, portanto, como partidos dos proprietários de terra, mas considera que os Whigs abriram mão de lutar pelos interesses específicos dos antigos feudais em troca do monopólio dos cargos de Estado concedido pela burguesia. Foi inspirado justamente nessa análise de Marx que Nicos Poulantzas criou o conceito de classe ou fração detentora (que controla os cargos de Estado), o qual diferencia de classe ou fração hegemônica (aquela cujos interesses são priorizados pela política de Estado).
No artigo “Os Cartistas”, travamos contato com as impressões preliminares de Marx sobre aquele que foi considerado o primeiro partido político da classe operária inglesa. Surpreendentemente, o autor apresenta sua perspectiva acerca da possibilidade de uma transferência pacífica do poder das mãos das classes dirigentes para a classe trabalhadora. Partindo da constatação da inexistência de um aparato burocrático-militar altamente desenvolvido naquela Inglaterra e do proletariado constituir, ali, uma classe muito numerosa, Marx via, na conquista do sufrágio universal, um momento importante para as futuras transformações revolucionárias. Segundo ele, tal conquista poderia abrir o caminho para uma transformação radical do sistema parlamentar existente por meio da democratização de toda a estrutura política. Por essa razão, afirmava que “a realização do sufrágio universal naquele país seria, portanto, uma medida muito mais socialista do que qualquer coisa que tenha sido honrada com esse nome na Europa continental”.
O reconhecimento da representatividade, bem como das promissoras possibilidades revolucionárias produzidas pelo programa e pela atuação dos Cartistas, foi expresso, do ponto de vista prático, na colaboração de Marx com o semanário do movimento, o People's Paper, o qual, além de reproduzir em suas páginas artigos publicados por Marx no Tribune e em outros órgãos, também teve textos elaborados exclusivamente para ele. Não obstante, o futuro veria importantes abalos nessa relação. August Nimtz Jr. afirma sobre essa questão o seguinte:
Já em 1858, Engels começou a elaborar uma segunda opinião acerca do potencial revolucionário da Inglaterra. Quando o líder cartista Ernest Jones tentou manobrar junto à burguesia liberal mandando por água abaixo as reivindicações históricas do programa cartista, Engels escreveu que esse era um sintoma de que “o proletariado inglês está realmente se tornando cada vez mais burguês”. E explicava: “No caso de uma nação que explora o mundo inteiro isso é, certamente, justificável até certo ponto”. A pilhagem realizada pelo imperialismo começara a comprometer os operários britânicos. (Nimtz, 2002, p.71)
A convivência duradoura de Marx com os Cartistas no Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), entre 1864 e 1872, forneceria ainda mais elementos de apreciação crítica sobre o papel da liderança dos operários ingleses no movimento revolucionário internacional. Sua sistemática subordinação ideológica e prática em relação à burguesia britânica, à ambiguidade de seu posicionamento frente ao colonialismo inglês além-mar e à ocupação da Irlanda, e sua vacilação em manifestar uma solidariedade mais ativa por ocasião da Comuna de Paris de 1871, consolidaram o abismo existente entre suas posições e as de Marx, contribuindo para a transferência da sede da AIT de Londres para Nova York em 1872, manobra conduzida pelo Mouro com o objetivo de retirar a entidade da esfera de influência cartista. Ainda de acordo com Nimtz:
Em uma análise das eleições parlamentares de 1874, Engels recuperou o aspecto que ele e Marx assinalaram em 1858 para explicar o atraso dos operários ingleses. “Isso é compreensível em um país no qual a classe operária partilhou, mais que em qualquer outro lugar, as vantagens da imensa expansão da grande indústria. Nem poderia ter sido diferente em uma Inglaterra que domina o mercado mundial.” (Ibid., p.73)
Por último, temos o artigo intitulado “Corrupção nas eleições”. Nele, Marx descreve para os leitores estadunidenses e ingleses a dimensão mais sombria do sistema eleitoral britânico. Sistema de representação indireta baseada no voto censitário, estruturado sob um condomínio político eleitoral entre Tories e Whigs, era também o arcabouço institucional de práticas ostensivas de corrupção, intimidação e suborno, configurando verdadeiras “saturnálias” por ocasião da realização dos pleitos eleitorais. Desconstruindo a imagem de boa disciplina, lisura e sobriedade com as quais, nos dias de hoje, costuma-se identificar o sistema político da Grã-Bretanha, Marx descreve um processo eleitoral viciado, em que imperava o mandonismo local; os votos eram comprados, os eleitores, intimidados, e as grandes massas dos trabalhadores e do povo, excluídas do processo eleitoral. No curso da narrativa de atropelos que nos parecem tão familiares, duas proposições foram apresentadas com a finalidade de fazer da “saturnália eleitoral” aristocrático-burguesa um momento de possível manifestação democrática: a reforma política e o sufrágio universal.
Conhecer ou revisitar esses escritos — redigidos no calor do momento, em que o teórico da luta de classes se faz analista de conjuntura, o demiurgo da filosofia da práxis se converte em comentarista do hic et nunc político eleitoral — significa uma oportunidade a mais para ampliar nossos horizontes e encontrar novas fontes de inspiração para o enfrentamento dos desafios que nos cercam.
Notas de rodapé:
(1*) Professor de história da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E-mail: munfer @ terra . com . br (retornar ao texto)
(1) Os textos foram traduzidos a partir de Marx e Engels (1979). (retornar ao texto)
(2) Sobre a importância da correspondência jornalística de Marx com o periódico de Nova York, ver nossa apresentação dos escritos de Marx sobre a guerra civil nos Estados Unidos, publicada na Crítica Marxista, no 45. (retornar ao texto)
Referências bibliográficas:
MARX, Karl; ENGELS, Frederick. Collected Works. Londres: Lawrence & Wishrt/ Moscou: Progress Publishers, 1979. v.11, p.327-347.
MEHRING, Franz. Karl Marx: a história de sua vida. São Paulo: José Luís e Rosa Sunderman, 2013.
NIMTZ, August. The Eurocentric Marx and Engels and Other Related Myths. In: BARTOLOVICH, Crystal; LAZARUS, Neil (eds.). Marxism, Modernity and Postcolonial Studies. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. p.65-80.