Crítica da Filosofia do Direito de Hegel

Karl Marx


Parte 4 – Legislativo: O Poder de Legislar (§§ 298-303)


4.1 – Legislatura

§ 298. O poder legislativo diz respeito às leis como tais, na medida em que elas necessitam de contínua determinação ulterior, e aos assuntos internos que, em razão de seu conteúdo, são completamente universais (o que é uma expressão bastante geral). Esse poder é, ele próprio, uma parte da constituição, que lhe é pressuposta e que reside, por isso, em si e para si, fora da determinação direta dele, mas que obtém o seu desenvolvimento ulterior no aperfeiçoamento das leis e no caráter progressivo dos assuntos universais do governo.

Antes de mais nada, surpreende que Hegel acentue que “este poder é, ele próprio, uma parte da constituição, que lhe é pressuposta e que reside, por isso, em si e para si, fora da determinação direta dele”, porque Hegel não fez essa observação nem a respeito do poder soberano, nem a respeito do poder governamental, para os quais ela é igualmente verdadeira. Mas somente agora Hegel constrói o todo da constituição, motivo pelo qual ele não poderia tê-lo pressuposto; é precisamente nisso, no entanto, que reconhecemos sua profundidade, no fato de que ele comece, em toda parte, pela oposição das determinações (tal como elas são em nossos Estados) e as acentue em seguida.

O “poder legislativo é, ele próprio, uma parte da constituição”, que “reside, em si e para si, fora de sua determinação direta”. Mas a constituição também não se fez por si mesma; as leis, que “necessitam de contínua determinação ulterior”, têm de ter sido feitas. É preciso que exista ou que tenha existido um poder legislativo antes da constituição e fora da constituição; é preciso que exista um poder legislativo fora do poder legislativo real, empírico, posto. Mas Hegel responderá: nós pressupomos um Estado existente! Acontece que Hegel é filósofo do direito e desenvolve o gênero do Estado. Ele não pode medir a Ideia pelo existente, mas deve medir o existente pela Ideia.

A colisão é simples. O poder legislativo é o poder de organizar o universal. É o poder da constituição. Ele ultrapassa a constituição.

Mas, por outro lado, o poder legislativo é um poder constitucional. Ele está, portanto, subsumido à constituição. A constituição é lei para o poder legislativo. Ela deu leis ao poder legislativo e lhes dá continuamente. O poder legislativo só é poder legislativo no interior da constituição e a constituição estaria hors de loi(23) se estivesse fora do poder legislativo. Voilà la collision(24). Na história francesa mais recente muito se ruminou em torno disso.

Como resolve Hegel essa antinomia?

Primeiramente, ele diz:

A constituição é “pressuposta” ao poder legislativo; ela se encontra, “por isso, em si e para si, fora de sua determinação direta”.

Mas” – mas ela “obtém” “seu desenvolvimento ulterior” “no aperfeiçoamento das leis” e “no caráter progressivo dos assuntos universais do governo”. Quer dizer, portanto: diretamente, a constituição se encontra fora do domínio do poder legislativo, mas, indiretamente, o poder legislativo modifica a constituição. Ele faz, por um desvio, o que ele não pode e não deve fazer pela via direta. Ele a decompõe en détail, porque não pode modificá-la en gros(25). Faz segundo a natureza das coisas e das relações o que não devia fazer segundo a natureza da constituição. Faz materialmente, de fato, o que ele não faz formalmente, legalmente, constitucionalmente.

Hegel não superou, com isso, a antinomia; ele a transformou em uma outra antinomia, pôs a atividade do poder legislativo, a sua ação constitucional, em contradição com sua determinação constitucional. Subsiste a oposição entre a constituição e o poder legislativo. Hegel definiu o agir de fato e o agir legal do poder legislativo como contradição, ou, então, a contradição entre o que o poder legislativo deve ser e o que ele realmente é, entre o que ele crê fazer e o que ele faz realmente. Como pode Hegel fazer essa contradição passar pelo verdadeiro? “O caráter progressivo dos assuntos universais do governo” esclarece muito pouco, tanto mais que é precisamente este caráter progressivo que deve ser explicado.

No Adendo, em verdade, Hegel não contribui em nada para a solução da dificuldade. Mas a faz aparecer ainda mais claramente.

A constituição deve ser, em si e para si, o solo firme, vigente, sobre o qual está assentado o poder legislativo e, por isso, ela não pode, portanto, estar apenas feita. Assim, a constituição é, mas também vem-a-ser essencialmente, quer dizer, ela progride em sua formação. Este progredir é uma modificação, que é não aparente e que não tem a forma da modificação.

Equivale a dizer que a constituição é segundo a lei (a ilusão), mas vem-a-ser segundo a realidade (a verdade). Ela é inalterável de acordo com sua determinação, mas na realidade se modifica; esta modificação é inconsciente, não tem a forma da modificação. A aparência contradiz a essência. A aparência é a lei consciente da constituição e a essência é sua lei inconsciente, que contradiz a primeira. O que é da natureza da coisa não está na lei. É justamente o contrário que está na lei.

Mas o verdadeiro não é que, no Estado – que, segundo Hegel, é a suprema existência da liberdade, a existência da razão autoconsciente – não é a lei, a existência da liberdade, mas sim a cega necessidade natural quem governa? E se for reconhecido que a lei da coisa contradiz a definição legal, por que então não reconhecer também a lei da coisa, da razão, como lei do Estado? Como sustentar conscientemente este dualismo? Hegel quer, em toda parte, apresentar o Estado como a realização do Espírito livre, mas revera(26) ele resolve todas as colisões difíceis mediante uma necessidade natural que se encontra em oposição à liberdade. Assim, também, a passagem do interesse particular ao interesse universal não é uma lei consciente do Estado, mas mediada pelo acaso e executada contra a consciência; e Hegel quer no Estado, por toda parte, a realização da vontade livre! (Aqui se mostra o ponto de vista substancial de Hegel.)

Os exemplos que Hegel oferece sobre a mudança gradual da constituição são mal escolhidos: de bem privado, a fortuna dos príncipes alemães e de suas famílias se converte em domínio público e a jurisdição pessoal dos imperadores se transforma em jurisdição por meio de deputados. Ao contrário disso, a primeira transição se deu apenas com a conversão de toda propriedade estatal em propriedade privada dos príncipes.

Além disso, essas modificações são pontuais. É certo que constituições inteiras se transformaram a partir de necessidades que surgiram paulatinamente, da ordem antiga que desmoronou etc.; mas, para uma nova constituição, sempre se fez necessária uma revolução formal.

“Assim, o aperfeiçoamento de um estado de coisas”, conclui Hegel,

é, aparentemente, tranquilo e imperceptível. Depois de um longo tempo, uma constituição passa a uma condição totalmente diferente da anterior.

A categoria da transição gradual é, em primeiro lugar, historicamente falsa e, em segundo lugar, não esclarece nada. Para que a constituição não apenas sofra a modificação, para que, portanto, essa aparência ilusória não seja finalmente destruída pela violência, para que o homem faça conscientemente aquilo que, de outro modo, ele seria forçado a fazer inconscientemente em razão da natureza da coisa, é necessário que o movimento da constituição, o progresso, torne-se o princípio da constituição; que, portanto, o real sustentáculo da constituição, o povo, torne-se o princípio da constituição. O progresso ele mesmo é, então, a constituição.

Deve, portanto, a própria “constituição” pertencer ao domínio do poder legislativo? Essa pergunta só pode ser formulada 1) se o Estado político existe como mero formalismo do Estado real, se o Estado político é um domínio à parte, se o Estado político existe como “constituição”; 2) se o poder legislativo é de uma outra origem que o poder governamental, etc.

O poder legislativo fez a revolução francesa; lá onde ele, em sua particularidade, apareceu como dominante, ele fez, em geral, as grandes revoluções universais orgânicas; ele não combateu a constituição, mas uma particular constituição antiquada, precisamente porque o poder legislativo era o representante do povo, da vontade genérica. Em contrapartida, o poder governamental fez as pequenas revoluções, as revoluções retrógradas, as reações; ele não fez a revolução por uma nova constituição, contra uma antiga, mas a fez contra a constituição, precisamente porque o poder governamental era o representante da vontade particular, do arbítrio subjetivo, da parte mágica da vontade.

Corretamente posta, a pergunta significa apenas: tem o povo o direito de se dar uma nova constituição? O que de imediato tem de ser respondido afirmativamente, na medida em que a constituição, tão logo deixou de ser expressão real da vontade popular, tornou-se uma ilusão prática.

A colisão entre a constituição e o poder legislativo é apenas um conflito da constituição consigo mesma, uma contradição no conceito da constituição.

A constituição não é senão uma acomodação entre o Estado político e o Estado não político; por isso, ela é, necessariamente em si mesma, um tratado entre poderes essencialmente heterogêneos. É, portanto, aqui, impossível para a lei enunciar que um desses poderes, uma parte da constituição, deva ter o direito de modificar a constituição mesma, o todo.

Se se deve falar da constituição como um particular, ela deve ser considerada, antes, como uma parte do todo.

Se por constituição se entendem as determinações universais, as determinações fundamentais da vontade racional, então se entende que cada povo (Estado) as tem como seu pressuposto e que elas devem formar seu credo político. Isso é mais propriamente matéria da ciência do que da vontade. A vontade de um povo pode transgredir as leis da razão tão pouco quanto a vontade de um indivíduo. Em um povo irracional, não se poderia falar, de modo algum, de uma organização racional do Estado. Aqui, na filosofia do direito, o nosso objeto é, acima de tudo, a vontade geral.

O poder legislativo não faz a lei, ele apenas a descobre e a formula.

Procurou-se resolver essa colisão mediante a distinção entre assemblée constituante e assemblée constituée(27).

§ 299. “Essas matérias” (as matérias do poder legislativo)

se determinam, em relação aos indivíduos, mais precisamente segundo os dois lados: α) aquilo que, por meio do Estado, reverte em seu benefício e que eles têm a usufruir e β) aquilo que eles têm de prestar ao Estado. Naquele, estão compreendidas as leis do direito privado em geral, os direitos das comunas e das corporações e as disposições totalmente gerais e, indiretamente (§ 298), o todo da constituição. Mas aquilo que se deve prestar, somente quando é reduzido a dinheiro, como o valor geral existente das coisas e das prestações, é que pode ser determinado de uma maneira justa e, ao mesmo tempo, de modo que os trabalhos e serviços particulares que o indivíduo pode prestar sejam mediados pelo seu arbítrio.

Sobre essa determinação das matérias do poder legislativo, o próprio Hegel assinala na nota a esse parágrafo:

Qual matéria deve ser remetida à legislação geral e qual à determinação das autoridades administrativas e à regulamentação do governo em geral pode, na verdade, ser diferenciado, em geral, de maneira que, naquela, recaia apenas o inteiramente universal segundo o conteúdo, as determinações legais e, nesta, recaia o particular e o modo de execução. Mas essa distinção não está já plenamente determinada pelo fato de a lei, para que seja lei e não um mero mandamento em geral (como: “não matarás” [...]), ter de ser determinada em si; mas, quanto mais é determinada, mais o seu conteúdo se aproxima da capacidade de ser executado tal como ela é. Ao mesmo tempo, porém, a determinação que fosse até esse ponto daria às leis um lado empírico que, na execução real, teria de se submeter a alterações, o que prejudicaria o seu caráter de leis. Na unidade orgânica dos poderes do Estado se encontra, todavia, que é um espírito que estabelece o universal e que o conduz à sua realidade determinada e o executa.

Mas é precisamente essa unidade orgânica que Hegel não construiu. Os diferentes poderes têm um princípio diferente. Eles são, portanto, realidades fixas. Buscar refúgio de seu conflito real na “unidade orgânica” imaginária, em lugar de desenvolvê-los como momentos de uma unidade orgânica é, por isso, apenas um subterfúgio vazio, místico.

A primeira colisão não resolvida era aquela entre a constituição inteira e o poder legislativo. A segunda é aquela entre o poder legislativo e o poder governamental, entre a lei e a execução.

A segunda definição do parágrafo é que a única prestação que o Estado exige dos indivíduos é o dinheiro.

Para isso, Hegel aduz as seguintes razões:

1. O dinheiro é o valor geral existente das coisas e das prestações;

2. A prestação pode ser determinada de um modo justo somente por meio dessa redução;

3. Somente assim a prestação pode ser determinada de modo tal que os trabalhos e serviços particulares que o indivíduo pode prestar sejam mediados pelo seu arbítrio.

Hegel observa na nota:

ad. 1. À primeira vista, pode parecer estranho que no Estado, dentre as muitas habilidades, propriedades, atividades, talentos, e pelas riquezas infinitamente variadas e vivas que neles se encontram, que ao mesmo tempo são ligadas à disposição, o Estado não exija uma prestação direta, mas pretenda à única riqueza que aparece como dinheiro. – As prestações que se referem à defesa do Estado contra os inimigos pertencem ao dever que será tratado na seção seguinte

(não na seção seguinte, mas, por outras razões, voltaremos apenas posteriormente ao dever pessoal do serviço militar).

Mas, de fato, o dinheiro não é uma riqueza particular ao lado das demais, mas é o universal destas, na medida em que elas se produzem na exterioridade da existência, na qual elas podem ser apreendidas como uma coisa.

Entre nós,

como é dito mais à frente no Adendo,

o Estado compra aquilo de que necessita.

ad. 2. Apenas nesse extremo mais exterior

(ou seja, onde as riquezas se produzem na exterioridade da existência, na qual elas podem ser apreendidas como uma coisa)

é possível a determinação quantitativa e, com isso, a justiça e a igualdade das prestações.

No Adendo, lê-se:

Mediante o dinheiro, a justiça da igualdade pode ser mais bem realizada. De outro modo, o homem talentoso seria mais onerado do que aquele sem talento, se a prestação dependesse da capacidade concreta.

ad. 3. Platão, em seu Estado, faz com que os superiores repartam os indivíduos em estamentos particulares e lhes imponham prestações particulares; na monarquia feudal, os vassalos tinham de prestar, do mesmo modo, serviços indeterminados, mas também em sua particularidade, como, por exemplo, o ofício de juiz etc.; as prestações no Oriente, no Egito, para as imensas obras arquitetônicas etc., são igualmente de qualidade particular etc. Nessas relações, falta o princípio da liberdade subjetiva: que o agir substancial do indivíduo – que em tais prestações é um agir particular segundo seu conteúdo – seja mediado por sua vontade particular; um direito que é possível somente por meio da exigência das prestações na forma do valor geral e que é o fundamento que produziu essa transformação.

No Adendo, diz-se:

Entre nós, o Estado compra aquilo de que necessita, e isso pode parecer, à primeira vista, uma coisa abstrata, morta e inanimada, e pode também parecer que, com isso, o Estado tenha entrado em decadência ao se contentar com prestações abstratas. Mas pertence ao princípio do Estado moderno que tudo o que o indivíduo faça seja mediado pela sua vontade. [...] Ora, o respeito pela liberdade subjetiva é posto à luz precisamente por isso: só se prende alguém que é passível de ser preso.

Fazei o que quiserdes. Pagai o quanto deveis.

O início do Adendo diz:

Os dois lados da constituição se referem aos direitos e às prestações dos indivíduos. No tocante às prestações, elas se reduzem quase todas ao dinheiro. O serviço militar é, nos dias de hoje, praticamente a única prestação pessoal.

4.2 – Elemento Estamental

§ 300. No poder legislativo como totalidade são ativos sobretudo os dois outros momentos: o monárquico, como aquele ao qual compete a decisão suprema – o poder governamental, como o momento consultivo, dotado do conhecimento concreto e da visão geral do todo em seus múltiplos lados e nos princípios reais nele consolidados, assim como com o conhecimento das necessidades do poder do Estado em particular – enfim, o elemento estamental.

O poder monárquico e o poder governamental são... poder legislativo. Mas se o poder legislativo é a totalidade, o poder monárquico e o poder governamental deveriam, antes, ser momentos do poder legislativo. O elemento estamental que se acrescenta é, apenas, poder legislativo ou o poder legislativo em sua diferença com relação ao poder monárquico e ao poder governamental.

§ 301. O elemento estamental tem a determinação de trazer à existência o assunto universal não apenas em si, mas também para si, isto é, o momento da liberdade formal subjetiva, a consciência pública como universalidade empírica dos pontos de vista e pensamentos dos muitos.

O elemento estamental é uma deputação da sociedade civil no Estado, ao qual ela se contrapõe sob a forma dos “muitos”. Os muitos devem, por um momento, tratar com consciência os assuntos universais como seus próprios assuntos, como objeto da consciência pública, que, segundo Hegel, não é outra coisa senão a “universalidade empírica dos pontos de vista e pensamentos dos muitos” (e, em verdade, isto é assim nas monarquias modernas, e também nas monarquias constitucionais). É significativo que Hegel, que tem tão grande respeito pelo espírito do Estado, pelo espírito ético, pela consciência do Estado, solenemente o despreze no momento em que esse espírito se apresenta a ele em forma real, empírica.

É esse o enigma do misticismo. A mesma abstração fantástica, que reencontra a consciência do Estado na forma inadequada da burocracia, de uma hierarquia do saber, e que toma acriticamente essa existência inadequada pela existência real plenamente válida, admite, com a mesma inocência, que o espírito real, empírico, do Estado, a consciência pública, seja um mero pot-pourri dos “pensamentos e pontos de vista dos muitos”. Como essa abstração fantástica imputa uma essência estranha à burocracia, do mesmo modo ela abandona a verdadeira essência à forma inconveniente do fenômeno. Hegel idealiza a burocracia e empiriciza a consciência pública. Ele pode tratar a consciência pública real bem à part, precisamente porque tratou a consciência à part como consciência pública. Ele precisa se ocupar tanto menos com a existência real do espírito do Estado, quanto pensa já tê-lo convenientemente realizado em suas soi-disant(28) existências. Enquanto o espírito do Estado assombrava misticamente no vestíbulo, a ele se faziam muitas reverências. Aqui, onde nós o apanhamos [in] persona, ele mal é visto.

“O elemento estamental tem a determinação de trazer à existência o assunto universal não apenas em si, mas também para si.” E, de fato, o assunto universal chega à existência, para si, como “consciência pública”, como “universalidade empírica dos pontos de vista e pensamentos dos muitos”.

A subjetivação do “assunto universal”, que dessa maneira é tornado independente, é exposta, aqui, como um momento do processo vital do “assunto universal”. Em lugar de os sujeitos se objetivarem no “assunto universal”, Hegel deixa que o “assunto universal” se torne “sujeito”. Os sujeitos não carecem do “assunto universal” como de seu verdadeiro assunto, mas o assunto universal carece dos sujeitos para sua existência formal. Que o “assunto universal” exista também como sujeito, isso é um assunto seu.

Aqui, deve-se atentar particularmente para a distinção entre o “ser em si” e o “ser para si” do assunto universal.

O “assunto universal” já existe “em si” como função do governo etc.; ele existe sem ser realmente o assunto universal; ele nada mais é do que isso, pois ele não é o assunto da “sociedade civil”. Ele já encontrou sua existência essencial, que é em si. Que ele agora se torne também, realmente, “consciência pública”, “universalidade empírica”, isso é meramente formal e chega à realidade, por assim dizer, apenas simbolicamente. A existência “formal” ou existência “empírica” do assunto universal é separada de sua existência substancial. A verdade é: o “assunto universal” em si existente não é realmente universal, e o assunto universal real, empírico, é apenas formal.

Hegel separa conteúdo e forma, ser em si e ser para si, e deixa que este último se acrescente exteriormente, como um momento formal. O conteúdo está pronto e existe sob muitas formas, que não são as formas desse conteúdo; em contrapartida, é evidente que a forma, que ora deve valer como forma real do conteúdo, não tem o conteúdo real como o seu conteúdo.

O assunto universal está pronto, sem que ele seja o assunto real do povo. A causa real do povo se concretizou sem a ação do povo. O elemento estamental é a existência ilusória dos assuntos do Estado como causa do povo. É a ilusão de que o assunto universal seja assunto universal, assunto público, ou a ilusão de que a causa do povo seja o assunto universal. Chegou-se a tal ponto, tanto em nossos Estados quanto na filosofia do direito hegeliana, que a frase tautológica: “O assunto universal é o assunto universal” pode aparecer apenas como uma ilusão da consciência prática. O elemento estamental é a ilusão política da sociedade civil. A liberdade subjetiva aparece em Hegel como liberdade formal (é certamente importante que aquilo que é livre também seja feito livremente, que a liberdade não reine como instinto natural, inconsciente, da sociedade) precisamente porque ele não apresentou a liberdade objetiva como realização, como atividade da liberdade subjetiva. Porque ele deu ao conteúdo presumido ou real da liberdade um portador místico, o sujeito real da liberdade recebe um significado formal.

A separação do em si e do para si, da substância e do sujeito, é misticismo abstrato.

Na nota, Hegel explicita corretamente o “elemento estamental” como um elemento “formal”, “ilusório”.

Tanto o saber quanto a vontade do “elemento estamental” são em parte insignificantes, em parte suspeitos; isto é, o elemento estamental não é nenhum complemento substancial.

1. A representação que a consciência comum costuma ter, antes de tudo, sobre a necessidade ou utilidade da concorrência dos estamentos é particularmente, de modo aproximado, que os deputados do povo, ou mesmo o povo, tenham que compreender da melhor maneira o que melhor convém ao povo, e que este tenha indubitavelmente a melhor vontade para este melhor. No que diz respeito ao primeiro ponto, ocorre, antes, que o povo, na medida em que se designa com essa palavra uma parte especial dos membros de um Estado, significa a parte que não sabe o que quer. Saber o que se quer, e, ainda mais, o que quer a vontade que é em si e para si, ou seja, a razão, é o resultado de um profundo conhecimento

(que, por certo, reside nas repartições)

e discernimento, que não é precisamente assunto do povo.

Mais adiante, diz-se dos próprios estamentos:

Os mais altos funcionários do Estado têm necessariamente um discernimento mais profundo e mais amplo da natureza das instituições e das necessidades do Estado, bem como uma maior habilidade e experiência no exercício dessas funções e podem fazer o melhor sem os estamentos, assim como eles também devem continuamente fazer o bem nas assembleias estamentais.

E é evidente que, na organização descrita por Hegel, isso é plenamente verdadeiro.

2. Mas, no que concerne à vontade especialmente boa dos estamentos para o bem geral, já se notou acima que é próprio da opinião da plebe, do ponto de vista do negativo em geral, supor no governo uma vontade má ou menos boa; – uma suposição que, sobretudo se tivesse que ser respondida de forma igual, teria, por consequência, a recriminação de que os estamentos, uma vez que provêm da singularidade, do ponto de vista privado e dos interesses particulares, são inclinados a empregar a sua atividade em favor destes, em detrimento do interesse universal, enquanto, em contrapartida, os outros momentos do poder do Estado estão, já para si, postos no ponto de vista do Estado e consagrados ao fim universal.

Portanto, o saber e a vontade dos estamentos são em parte supérfluos, em parte suspeitos. O povo não sabe o que quer. Os estamentos não possuem a ciência do Estado na mesma medida dos funcionários, dos quais ela é monopólio. Os estamentos são supérfluos para a realização do “assunto universal”. Os funcionários podem realizá-lo sem os estamentos; com efeito, eles devem fazer o bem, apesar dos estamentos. Quanto ao conteúdo, os estamentos são puro luxo. Sua existência é, por isso, no sentido mais literal, uma mera forma.

Além disso, no que concerne à disposição, à vontade dos estamentos, ele é suspeito, pois os estamentos provêm do ponto de vista privado e dos interesses privados. Na verdade, o interesse privado é seu assunto universal, e não o assunto universal seu interesse privado. Mas que bela maneira de o “assunto universal” ganhar forma, como assunto universal, em uma vontade que não sabe o que quer, que nem ao menos possui um saber específico do universal e em uma vontade cujo conteúdo peculiar é um interesse contrário!

4.3 – Hegel apresenta o que seria a essência do Estado

Nos Estados modernos, assim como na filosofia do direito de Hegel, a realidade consciente, verdadeira, do assunto universal, é apenas formal, ou apenas o formal é assunto universal real.

Não se deve condenar Hegel porque ele descreve a essência do Estado moderno como ela é, mas porque ele toma aquilo que é pela essência do Estado. Que o racional é real, isso se revela precisamente em contradição com a realidade irracional, que, por toda parte, é o contrário do que afirma ser e afirma ser o contrário do que é.

Em vez de demonstrar que o “assunto universal” existe para si, subjetivamente, e que, com isso, existe realmente como tal, e que ele tem também a forma do assunto universal, Hegel demonstra apenas que a ausência de forma é a sua subjetividade, e que uma forma sem conteúdo tem de ser disforme. A forma que o assunto universal assume em um Estado que não seja o Estado do assunto universal pode ser, apenas, uma não-forma, uma forma que engana a si mesma, que contradiz a si mesma, uma forma aparente, que se mostrará como uma tal aparência.

Hegel quer o luxo do elemento estamental apenas por amor à lógica. O ser para si do assunto universal, como universalidade empírica, deve ter uma existência. Hegel não busca uma realização adequada do “ser para si do assunto universal”; ele se contenta em achar uma existência empírica que possa ser resolvida nessa categoria lógica; é, pois, o elemento estamental; e ele próprio não deixa de ressaltar quão deplorável e contraditória é essa existência. Em seguida, ele ainda censura a consciência comum por ela não se contentar com essa satisfação lógica, por ela não querer ver a realidade resolvida na lógica mediante uma abstração arbitrária, mas querer ver a lógica transformada em verdadeira objetividade.

Digo: abstração arbitrária. Com efeito, dado que o poder governamental, que quer, sabe e realiza o assunto universal, emana do povo e é uma pluralidade empírica (o próprio Hegel nos ensina que não se trata de uma totalidade), por que ele não poderia ser determinado como o “ser para si do assunto universal”? Ou por que não poderiam os “estamentos” serem determinados como seu ser em si, já que somente no governo a coisa ganha clareza, determinidade, execução e autonomia?

Mas a verdadeira oposição é: o “assunto universal” deve, porém, ser representado de algum modo no Estado como “assunto universal real” e, portanto, “empírico”; ele tem de aparecer em algum lugar com a coroa e o manto do universal; com o que o universal se torna por si mesmo um papel a ser protagonizado, uma ilusão.

Trata-se, aqui, da oposição: o “universal” como “forma”, na “forma da universalidade”, e o “universal como conteúdo”.

Na ciência, por exemplo, um “indivíduo” pode realizar o assunto universal, e são sempre os indivíduos que o realizam. Porém, o assunto só se torna realmente universal quando não é mais assunto do indivíduo, mas da sociedade. Isso modifica não apenas a forma, mas também o conteúdo. Mas se trata, aqui, do Estado em que o próprio povo é o assunto universal; trata-se, aqui, da vontade, que tem a sua verdadeira existência como vontade genérica apenas na vontade popular autoconsciente. E, aqui, trata-se, além disso, da ideia do Estado.

O Estado moderno, no qual tanto o “assunto universal” quanto o ato de ocupar-se com ele são um monopólio, e no qual, em contrapartida, os monopólios são os assuntos universais reais, realizou o estranho achado de apropriar-se do “assunto universal” como uma mera forma. (A verdade é que apenas a forma é assunto universal.) Com isso, ele encontrou a forma correspondente ao seu conteúdo, que somente na aparência é o assunto universal real.

O Estado constitucional é o Estado em que o interesse estatal, enquanto interesse real do povo, existe apenas formalmente, e existe como uma forma determinada ao lado do Estado real; o interesse do Estado readquiriu aqui, formalmente, realidade como interesse do povo, mas ele deve, também, ter apenas essa realidade formal. Ele se transformou numa formalidade, no haut goût(29) da vida do povo, numa cerimônia. O elemento estamental é a mentira sancionada, legal, dos Estados constitucionais: que o Estado é o interesse do povo ou o povo é o interesse do Estado. Essa mentira será revelada no conteúdo. Ela se estabeleceu como poder legislativo precisamente porque o poder legislativo tem como seu conteúdo o universal, é algo que diz mais respeito ao saber do que ao querer, é o poder metafísico do Estado, enquanto a mesma mentira como poder governamental etc. deveria dissolver-se imediatamente ou transformar-se numa verdade. O poder metafísico do Estado era a sede mais apropriada da ilusão metafísica, universal, do Estado.

A garantia, que reside nos estamentos para o bem universal e para a liberdade pública, encontra-se, se refletirmos um pouco, não em seu discernimento particular, mas reside, em parte, num discernimento suplementar (!!) dos deputados, especialmente no que tange à ocupação dos funcionários que se encontram mais distantes dos olhares dos postos mais altos, e particularmente às necessidades e falhas mais urgentes e especiais, das quais (eles) têm a visão mais concreta diante de si, e, em parte, naquele efeito que a esperada censura de muitos, na verdade uma censura pública, traz consigo, qual seja, o de empregar antecipadamente o melhor discernimento nas funções e nos projetos a serem propostos e de organizá-los apenas segundo os motivos mais puros – uma obrigação que se impõe igualmente aos membros dos estamentos.

No que concerne à garantia em geral, que deve residir particularmente nos estamentos, todas as outras instituições do Estado também partilham com eles o fato de ser uma garantia do bem público e da liberdade racional, e há, entre elas, instituições como a soberania do monarca, a hereditariedade da sucessão ao trono, a organização judiciária etc., nas quais essa garantia reside, ainda, num grau muito mais decisivo. A determinação conceitual peculiar aos estamentos deve, por isso, ser procurada no seguinte fato: neles, vem à existência, em relação ao Estado, o momento subjetivo da liberdade universal, o discernimento próprio e a vontade própria da esfera que, nessa exposição, foi denominada sociedade civil. Que esse momento seja uma determinação da Ideia desenvolvida até a totalidade, essa necessidade interna, que não se deve confundir com necessidades e utilidades externas, decorre, como em toda parte, do ponto de vista filosófico.

A liberdade pública, universal, está pretensamente garantida nas outras instituições do Estado; os estamentos são pretensamente sua autogarantia. Pois o povo confere mais importância aos estamentos nos quais ele crê assegurar a si mesmo do que às instituições que, sem a sua ação, devem ser a garantia de sua liberdade, confirmação de sua liberdade sem ser confirmação de sua liberdade. A coordenação que Hegel consigna aos estamentos, ao lado das outras instituições, contradiz a sua essência.

Hegel soluciona o enigma ao encontrar a “determinação conceitual peculiar aos estamentos” no fato de que, neles, “vem à existência, em relação ao Estado, o discernimento próprio e a vontade própria da sociedade civil”. É o reflexo da sociedade civil no Estado. Assim como os burocratas são delegados do Estado na sociedade civil, do mesmo modo os estamentos são delegados da sociedade civil no Estado. São sempre, portanto, transações entre duas vontades opostas.

No Adendo a esse parágrafo, lê-se:

A posição do governo em relação aos estamentos não deve ser essencialmente hostil, e a crença na necessidade dessa relação hostil é um triste erro,

é uma “triste verdade”.

O governo não é um partido, ao qual se oponha outro partido.

Ao contrário.

Os impostos que os estamentos aprovam não devem, além disso, ser considerados como uma dádiva ao Estado, mas sim como consentidos para o bem daqueles mesmos que os aprovam.

No Estado constitucional, a aprovação do imposto é, de acordo com a

opinião corrente, necessariamente uma dádiva. O que constitui o significado próprio dos estamentos é que o Estado entra, por esse meio, na consciência subjetiva do povo, e que o povo começa a tomar parte no Estado.

A última coisa que foi dita é plenamente correta. Nos estamentos, o povo começa a tomar parte no Estado e, do mesmo modo, o Estado entra na consciência subjetiva do povo como algo transcendente. Mas como Hegel pode fazer passar este começo pela realidade plena?

§ 302. Considerados como órgão mediador, os estamentos se encontram entre o governo em geral, de um lado, e o povo, dissolvido nas esferas particulares e nos indivíduos, de outro. A determinação dos estamentos exige neles tanto o sentido e a disposição do Estado e do governo, quanto os interesses dos círculos particulares e dos singulares. Ao mesmo tempo, essa posição tem o significado de uma mediação comum com o poder governamental organizado, mediação que faz com que nem o poder soberano apareça como extremo e, com isso, apenas como simples poder dominante e como arbítrio, nem também os interesses particulares das comunas, corporações e dos indivíduos se isolem, ou, ainda mais, os indivíduos venham a se apresentar como uma multidão e uma turba, como uma opinião e um querer inorgânicos, como um simples poder de massa contra o Estado orgânico.

Estado e governo são sempre colocados do mesmo lado, como idênticos; do outro lado, é colocado o povo, dissolvido nas esferas particulares e nos indivíduos. Os estamentos situam-se como órgão mediador entre os dois. Os estamentos são o meio em que “o sentido e a disposição do Estado e do governo” devem se encontrar e se unir com “o sentido e a disposição dos círculos particulares e dos singulares”. A identidade desses dois “sentidos e disposições opostas”, identidade na qual deveria propriamente residir o Estado, recebe uma representação simbólica nos estamentos. A transação entre Estado e sociedade civil aparece como uma esfera particular. Os estamentos são a síntese de Estado e sociedade civil. Não é demonstrado, porém, por onde os estamentos devem começar a unir, neles mesmos, duas disposições contraditórias. Os estamentos são a contradição entre Estado e sociedade civil, posta no Estado. Ao mesmo tempo, eles são a pretensão da solução dessa contradição.

Ao mesmo tempo, essa posição tem o significado de uma mediação comum com o poder governamental organizado etc.

Os estamentos não fazem mediação apenas entre povo e governo. Eles impedem que o “poder soberano” apareça como “extremo” isolado e, com isso, como “simples poder dominante e como arbítrio”; do mesmo modo, impedem o “isolamento” os interesses “particulares” etc., bem como “que os indivíduos venham a se apresentar como uma multidão e uma turba”. Essa mediação é comum aos estamentos e ao poder governamental organizado. Em um Estado, no qual a “posição” dos “estamentos” impede que os indivíduos “venham a se apresentar como uma multidão ou uma turba, como uma opinião e um querer inorgânicos, como um simples poder de massa contra o Estado orgânico” – o “Estado orgânico” existe fora da “multidão” e da “turba”, ou a “multidão” e a “turba” pertencem à organização do Estado; apenas que sua “opinião e querer inorgânicos” não devem chegar a se pôr como “opinião e querer contra o Estado”, sob cuja orientação determinada eles se tornariam opinião e querer “orgânicos”. Do mesmo modo, esse “poder de massa” deve permanecer apenas “de massa”, de modo que o entendimento esteja fora da massa e, com isso, ela não coloque a si mesma em movimento, podendo ser posta em movimento apenas pelos monopolistas do “Estado orgânico” e ser explorada como poder de massa. Lá onde “os interesses particulares das comunas, corporações e dos indivíduos” não se isolam contra o Estado, mas onde os “indivíduos venham a se apresentar como uma multidão e uma turba, como uma opinião e um querer inorgânicos, como um simples poder de massa contra o Estado”, é aí precisamente que se mostra que nenhum “interesse particular” contradiz o Estado, mas que o “real pensamento orgânico universal da multidão e da turba” não é o “pensamento do Estado orgânico”, que não encontra naquele a sua realização. Onde, então, aparecem os estamentos como mediação desse extremo? Apenas em “os interesses particulares das comunas, corporações e dos indivíduos se isolem”, ou em que seus interesses isolados ajustem suas contas com o Estado por meio dos estamentos, ao mesmo tempo em que a “opinião e o querer inorgânicos da multidão e da turba” ocupou sua vontade (sua atividade) na criação dos estamentos e empregou sua “opinião” na apreciação da atividade dos estamentos e saboreou a ilusão de sua própria objetivação. Os “estamentos” protegem o Estado da turba inorgânica apenas por meio da desorganização dessa turba.

Mas os estamentos devem, ao mesmo tempo, fazer a mediação “de tal forma que os interesses particulares das comunas, corporações e dos indivíduos” não “se isolem”. Ao contrário, eles fazem a mediação: 1) transigindo com o “interesse do Estado”, 2) sendo eles mesmos o “isolamento político” desses interesses particulares; esse isolamento como ato político, já que, por meio dos estamentos, esses “interesses isolados” alcançam o grau de interesse “universal”.

Finalmente, os estamentos devem fazer a mediação contra o “isolamento” do poder soberano como um “extremo” (que, assim, apareceria “como simples poder dominante e como arbítrio”). Isto está correto na medida em que o princípio do poder soberano (o arbítrio) é limitado pelos estamentos, ou, ao menos, pode mover-se apenas dentro de entraves, e enquanto os próprios estamentos se tornam membros e cúmplices do poder soberano. Com isso, ou o poder soberano deixa realmente de ser o extremo do poder soberano (e o poder soberano existe apenas como um extremo, como uma unilateralidade, porque ele não é um princípio orgânico), tornando-se um poder aparente, um símbolo, ou, então, ele perde apenas a aparência do arbítrio e do simples poder dominante.

Eles fazem a mediação contra o “isolamento” dos interesses particulares, pois expressam esse isolamento como ato político. Eles fazem a mediação contra o isolamento do poder soberano como um extremo, em parte porque eles se tornam uma parte do poder soberano, em parte porque eles fazem do poder governamental um extremo.

Nos “estamentos” convergem todas as contradições da moderna organização do Estado. Eles são os “mediadores” em todos os sentidos, porque são “termos médios” em todos os sentidos.

É digno de nota que Hegel desenvolve menos o conteúdo da atividade estamental, o poder legislativo, do que a posição dos estamentos, sua estatura política.

Também é de notar que, enquanto, segundo Hegel, os estamentos se encontram “entre o governo em geral, de um lado, e o povo dissolvido nas esferas particulares e nos indivíduos, de outro”, a sua posição, tal como foi desenvolvida acima, “tem o significado de uma mediação comum com o poder governamental organizado”.

No que se refere à primeira posição, os estamentos são o povo contra o governo, mas o povo en miniature(30). É a sua posição oposicional.

No que se refere à segunda, eles são o governo contra o povo, mas o governo ampliado. É a sua posição conservadora. Eles mesmos são parte do poder governamental contra o povo, mas de maneira que, ao mesmo tempo, têm o significado de ser o povo contra o governo.

Hegel qualificou, acima, o “poder legislativo como totalidade” (§ 300). Os estamentos são realmente essa totalidade, o Estado no Estado, mas precisamente neles se evidencia que o Estado não é a totalidade, mas um dualismo. Os estamentos representam o Estado em uma sociedade que não é um Estado. O Estado é uma mera representação.

Na nota, Hegel diz:

Que um momento determinado, o qual, estando em oposição, ocupa a posição de um extremo, deixe de sê-lo e se torne um momento orgânico, quando ao mesmo tempo é termo médio, isso é algo que se encontra entre as mais importantes intuições lógicas.

(Então, o elemento estamental é 1. o extremo do povo contra o governo, mas 2. ao mesmo tempo, termo médio entre povo e governo, ou a oposição no próprio povo. A oposição entre governo e povo se concilia pela oposição entre estamentos e povo. Os estamentos têm, em relação ao governo, a posição do povo e, em relação ao povo, a posição do governo. Ao se tornar imagem, fantasia, ilusão, representação, o povo representado – ou seja, os estamentos, que se encontram imediatamente, como poder particular, separados do povo real – suprime a oposição real entre povo e governo. Aqui, o povo já é preparado, como ele o deve ser no organismo considerado, para não ter um caráter decidido.)

No objeto aqui considerado, é tanto mais importante salientar esse aspecto, porque ele pertence ao preconceito, frequente mas altamente perigoso, de conceber os estamentos principalmente do ponto de vista da oposição perante o governo, como se essa fosse sua posição essencial. Organicamente, isto é, considerado na totalidade, o elemento estamental se mostra apenas por meio da função de mediação. Com isso, a própria oposição é reduzida a uma aparência. Se ela, enquanto tem sua manifestação, não ficasse apenas na superfície, mas se tornasse realmente uma oposição substancial, então o Estado estaria em vias de perecer. – O sinal de que o antagonismo não é dessa espécie decorre, segundo a natureza da coisa, disto: que os objetos desse antagonismo não dizem respeito aos elementos essenciais do organismo do Estado, mas a coisas mais especiais e mais indiferentes, e a paixão que, porém, se vincula a esse conteúdo, torna-se partidarismo em vista de um mero interesse subjetivo, tal como os mais altos cargos do Estado.

No Adendo está dito:

A constituição é essencialmente um sistema de mediação.

§ 303. O estamento universal, que se dedica mais de perto ao serviço do governo, tem imediatamente em sua determinação o universal como fim de sua atividade essencial; no elemento estamental do poder legislativo, o estamento privado alcança um significado e uma eficácia políticos. Ora, este não pode aparecer, aqui, nem como simples massa indiferenciada, nem como uma multidão dissolvida nos seus átomos, mas, antes, como aquilo que ele já é, a saber, diferenciado no estamento que se funda na relação substancial e no estamento que se funda nas necessidades particulares e no trabalho que as mediatiza. Somente desse modo, levando-se isso em consideração, o elemento particular, real no Estado, liga-se verdadeiramente ao universal.

Temos, aqui, a solução do enigma. “No elemento estamental do poder legislativo, o estamento privado alcança um significado político”. Compreende-se que o estamento privado alcance esse significado de acordo com o que ele é, de acordo com sua posição na sociedade civil (Hegel já qualificou o estamento universal como aquele que se dedica ao governo; o estamento universal é, portanto, representado no poder legislativo pelo poder governamental).

O elemento estamental é: o significado político do estamento privado, do estamento não político, uma contradictio in adjecto(31). Ou, no estamento descrito por Hegel, o estamento privado (e, em geral, a distinção do estamento privado) tem um significado político. O estamento privado pertence ao ser, à política desse Estado. Hegel também dá àquele, por conseguinte, um significado político, ou seja, um significado diferente de seu significado real.

Na nota, é dito:

Isto vai contra outra concepção corrente, segundo a qual, como o estamento privado é alçado, no poder legislativo, à participação na coisa universal, ele deve aparecer na forma dos indivíduos, seja que eles escolham representantes para esta função, ou que cada um deva exercer, por si mesmo, o voto no poder legislativo. Essa opinião atomística, abstrata, desaparece já na família, assim como na sociedade civil, onde o indivíduo só vem a aparecer como membro de um universal. Mas o Estado é, essencialmente, uma organização de tais membros, que são círculos para si, e, nele, nenhum momento deve se mostrar como uma multidão inorgânica. Os muitos como singulares, o que de bom grado se entende por povo, são certamente um conjunto, mas apenas como a multidão – uma massa disforme, cujo movimento e agir seria, precisamente por isso, apenas elementar, irracional, selvagem e terrível.

A concepção que dissolve novamente, em uma massa de indivíduos, as comunidades já existentes nesses círculos – nos quais elas adentram o campo político, isto é, o ponto de vista da mais elevada universalidade concreta –, mantém precisamente nisso a vida social e a vida política separadas uma da outra e coloca esta última, por assim dizer, no ar, pois a sua base seria apenas a singularidade abstrata do arbítrio e da opinião, por conseguinte o acidental, e não um fundamento firme e legítimo em si e para si.

Embora na concepção de tais teorias os estamentos da sociedade civil em geral e os estamentos em sentido político se encontrem distantes uns dos outros, a linguagem conservou, ainda, essa união que, aliás, existia anteriormente.

“O estamento universal, que se dedica mais de perto ao serviço do governo”. Hegel parte do pressuposto de que o estamento universal se encontra no “serviço do governo”. Ele supõe a inteligência universal como “estamental e estável”.

“No elemento estamental etc.” O “significado e eficácia políticos” do estamento privado são um significado e eficácia particulares dele. O estamento privado não se transforma em estamento político, mas ele se põe como estamento privado em sua eficácia e significado políticos. Ele não tem eficácia e significado políticos pura e simplesmente. Sua eficácia e significado políticos são a eficácia e significado políticos do estamento privado como estamento privado.

O estamento privado pode, portanto, entrar na esfera política apenas segundo a distinção estamental da sociedade civil. A distinção estamental da sociedade civil se torna uma distinção política.

A própria linguagem, diz Hegel, expressa a identidade dos estamentos da sociedade civil e dos estamentos em sentido político, uma “união” “que, aliás, existia anteriormente” e que, portanto, dever-se-ia concluir, já não existe mais.

Hegel acha que, “levando-se isso em consideração, o elemento particular, real no Estado, liga-se verdadeiramente ao universal”. A separação da “vida política e da vida social” deve, desse modo, ser suprimida, e sua “identidade” deve ser posta.

Hegel se baseia nisto:

“Naqueles círculos” (família e sociedade civil) “já existem comunidades”. Como se poderia querer dissolvê-las, “novamente, em uma massa de indivíduos”, no momento em que “elas adentram o campo político, isto é, o ponto de vista da mais elevada universalidade concreta”?

4.4 – Na Idade Média não haviam ‘fronteiras’ entre a sociedade civil e o meio político: eram esferas idênticas

É importante seguir de perto esse desenvolvimento.

O ponto culminante da identidade hegeliana era, como ele mesmo o confessa, a Idade Média. Lá, os estamentos da sociedade civil em geral e os estamentos em sentido político eram idênticos. Pode-se exprimir o espírito da Idade Média desta forma: os estamentos da sociedade civil e os estamentos em sentido político eram idênticos porque a sociedade civil era a sociedade política; porque o princípio orgânico da sociedade civil era o princípio do Estado.

Mas Hegel parte da separação da “sociedade civil” e do “Estado político” como de dois opostos fixos, duas esferas realmente diferentes. De fato, essa separação é, certamente, real no Estado moderno. A identidade dos estamentos civil e político era a expressão da identidade das sociedades civil e política. Essa identidade desapareceu. Hegel a pressupõe como desaparecida. Se a identidade dos estamentos civil e político expressasse a verdade, ela não poderia ser, portanto, mais do que uma expressão da separação das sociedades civil e política! ou ainda: somente a separação dos estamentos civis e dos estamentos políticos exprime a verdadeira relação entre as modernas sociedades civil e política.

Em segundo lugar: Hegel trata, aqui, dos estamentos políticos em um sentido completamente diferente daquele dos estamentos políticos na Idade Média, sobre os quais é afirmada a identidade com os estamentos da sociedade civil.

Toda a sua existência era política; a sua existência era a existência do Estado. Sua atividade legislativa, sua aprovação do imposto para o reino, era apenas uma emanação particular de seu significado e de sua eficácia política universal. Seu estamento era seu Estado. A relação com o reino era apenas uma relação transacional desses diferentes Estados com a nacionalidade, pois o Estado político, diferentemente da sociedade civil, não era senão a representação da nacionalidade. A nacionalidade era o point d’honneur(32), o sentido político χατ’ εξοχην(33) dessas diferentes corporações etc., e somente a ela se reportavam os impostos etc. Tal era a relação dos estamentos legislativos com o reino. De modo semelhante se comportavam os estamentos no interior dos principados particulares. O principado, a soberania, era um estamento particular que tinha certos privilégios, mas que era, igualmente, importunado pelos privilégios dos outros estamentos (Entre os gregos, a sociedade civil era escrava da sociedade política). A atividade legislativa universal dos estamentos da sociedade civil não era, de modo algum, um acesso do estamento privado a um significado e eficácia políticos, mas, antes, uma mera emanação de seus reais e universais significado e eficácia políticos; sua aparição como força legislativa era meramente um complemento de sua força soberana e governamental (executiva); era, antes, seu acesso ao assunto totalmente universal como uma coisa privada, seu acesso à soberania como um estamento privado. Os estamentos da sociedade civil eram, na Idade Média, como tais, ao mesmo tempo estamentos legislativos, porque não eram estamentos privados ou porque os estamentos privados eram os estamentos políticos. Os estamentos medievais, como elemento político-estamental, não alcançavam uma nova determinação. Eles não se tornavam político-estamentais porque tomavam parte na legislação, mas sim tomavam parte na legislação por que e na medida em que eram político-estamentais. Ora, o que isso tem em comum com o estamento privado hegeliano, que, como elemento legislativo, alcança um aspecto de bravura política, um estado de êxtase, um significado e eficácia políticos a parte, surpreendentes, excepcionais?

Nesse desenvolvimento, encontram-se reunidas todas as contradições da exposição hegeliana.

1) Ele pressupôs a separação da sociedade civil e do Estado político (uma situação moderna) e a desenvolveu como momento necessário da Ideia, como verdade absoluta racional. Apresentou o Estado político na sua forma moderna da separação dos diferentes poderes. Ao Estado real e agente, ele deu a burocracia como seu corpo e colocou esta, como o espírito que sabe, acima do materialismo da sociedade civil. Opôs o universal em si e para si existente do Estado aos interesses particulares e à necessidade da sociedade civil. Em uma palavra, ele expõe, por toda parte, o conflito entre sociedade civil e Estado.

2) Hegel opõe a sociedade civil, como estamento privado, ao Estado político.

3) Ele qualifica o elemento estamental do poder legislativo como o mero formalismo político da sociedade civil. Qualifica-o como uma relação reflexiva da sociedade civil no Estado e como uma relação reflexiva que não altera o ser do Estado. Uma relação reflexiva é, também, a mais alta identidade entre coisas essencialmente diferentes.

Por outro lado, Hegel quer:

1) fazer com que a sociedade civil não apareça, em sua constituição de si como elemento legislativo, nem como uma simples massa, indiferenciada, nem como uma multidão decomposta em seus átomos. Ele não quer nenhuma separação entre vida social e vida política.

2) Ele esquece que se trata de uma relação reflexiva e faz dos estamentos da sociedade civil, como tais, estamentos políticos, mas apenas, novamente, segundo o lado do poder legislativo, de tal forma que sua própria atividade seja a prova da separação.

Ele faz do elemento estamental expressão da separação, mas, ao mesmo tempo, esse elemento deve ser o representante de uma identidade que não existe. Hegel conhece a separação da sociedade civil e do Estado político, mas ele quer que no interior do Estado seja expressa a sua própria unidade, e, em verdade, isso deve ser realizado de maneira que os estamentos da sociedade civil constituam, ao mesmo tempo, como tais, o elemento estamental da sociedade legislativa (cf. XIV. X)(34).


Notas de rodapé:

(23) “fora da lei”. (retornar ao texto)

(24) “E nisso está a contradição”. (retornar ao texto)

(25) Decompõe “minuciosamente” (no varejo) porque não pode modificá-la por atacado. (retornar ao texto)

(26) “na realidade”. (retornar ao texto)

(27) “assembleia constituinte e assembleia constituída”. (retornar ao texto)

(28) “assim chamadas”. (retornar ao texto)

(29) “requinte”. (retornar ao texto)

(30) “em pequena escala”. (retornar ao texto)

(31) “contradição na determinação do conceito”. (retornar ao texto)

(32) “ponto de honra”. (retornar ao texto)

(33) “principal, por excelência”. (retornar ao texto)

(34) Neste ponto, Marx interrompe o comentário ao § 303, para retomá-lo depois da transcrição do § 307: “O mais profundo em Hegel”... Os números XIV e X identificam a numeração das folhas manuscritas de Marx. (retornar ao texto)

Inclusão 17/09/2016