Crítica da Filosofia do Direito de Hegel

Karl Marx


Parte 3 – Executivo: O Poder Governamental (§§ 287-297)


3.1 – A Burocracia

§ 287. Diferentes da decisão são a execução e a aplicação das decisões do soberano e, em geral, o prosseguimento e a manutenção do que foi decidido anteriormente, das leis, das disposições, das instituições existentes para fins comuns etc. Esta função de subsunção em geral compreende o poder governamental em si, no qual estão, do mesmo modo, compreendidos os poderes judiciário e policial, que têm mais diretamente relação com a particularidade da sociedade civil e fazem valer nestes fins o interesse universal.

A explicação ordinária do poder governamental. O que se pode indicar como peculiar a Hegel é, apenas, que ele coordena poder governamental, poder policial e poder judiciário, enquanto geralmente os poderes administrativo e judiciário são tratados como poderes opostos.

§ 288. Os interesses particulares em comum que recaem na sociedade civil e que se encontram fora do universal em si e para si do Estado (§ 256) têm a sua administração nas corporações (§ 251) das comunas e demais ofícios e estamentos, em suas autoridades, diretores, administradores e semelhantes. Na medida em que estas questões, das quais eles se ocupam, são, por um lado, a propriedade privada e o interesse dessas esferas particulares e que, segundo este lado, sua autoridade repousa na confiança de seus colegas de estamento e concidadãos e que, por outro lado, esses círculos têm de ser subordinados aos mais altos interesses do Estado, a ocupação destes cargos resultará, em geral, de uma mistura de eleição pública desses interessados e de uma confirmação e determinação superiores.

Simples descrição da situação empírica em alguns países.

§ 289. A manutenção do interesse universal do Estado e da legalidade nestes direitos particulares e a recondução destes àquele exige uma gestão da parte dos delegados do poder governamental, dos funcionários estatais executivos e das superiores autoridades consultivas enquanto colegialmente constituídas, que convergem para as instâncias supremas que tocam o monarca.

Hegel não desenvolveu o poder governamental. Mas mesmo supondo-se que o tenha feito, ele não demonstrou que esse poder é mais do que uma função, uma determinação do cidadão do Estado em geral; considerando-o como um poder particular, separado, ele deduziu apenas que ele considera os “interesses particulares da sociedade civil” como interesses “que se encontram fora do universal em si e para si do Estado”.

Como a sociedade civil é o campo de batalha do interesse privado individual de todos contra todos, então tem lugar, aqui, o conflito desse interesse com as questões comuns particulares e o conflito destas, juntamente com aquele, contra os mais elevados pontos de vista e disposições do Estado. O espírito corporativo, que se produz na legitimação das esferas particulares, converte-se em si mesmo, simultaneamente, no espírito do Estado, visto que ele tem, no Estado, o meio de conservação dos fins particulares. Este é o segredo do patriotismo dos cidadãos no sentido de que eles sabem o Estado como sua substância, porque ele conserva as suas esferas particulares, a sua legitimidade e a sua autoridade, assim como o seu bem-estar. No espírito corporativo, na medida em que ele contém imediatamente o enraizamento do particular no universal, encontra-se, portanto, a profundidade e a força que o Estado tem na disposição.

Isso é estranho

1) pela definição da sociedade civil como bellum omnium contra omnes(19);

2) porque o egoísmo privado é revelado como o “segredo do patriotismo dos cidadãos” e como “a profundidade e a força do Estado na disposição”;

3) porque o “cidadão”, o homem do interesse particular em oposição ao universal, o membro da sociedade civil, é considerado como “indivíduo fixo”, do mesmo modo que o Estado se opõe, em “indivíduos fixos”, aos “cidadãos”.

Hegel, pode-se dizer, teria de conceber a “sociedade civil”, assim como a “família”, como determinação de cada indivíduo do Estado, do mesmo modo, portanto, as ulteriores “qualidades estatais” como determinação do indivíduo do Estado em geral. Mas não é o mesmo indivíduo que desenvolve uma nova determinação da sua essência social. É a essência da vontade quem desenvolve suas determinações pretensamente a partir de si mesma. As presentemente diversas e separadas existências empíricas do Estado são consideradas encarnação imediata de uma dessas determinações.

Como o universal como tal é tornado independente, ele é imediatamente confundido com a existência empírica e, logo a seguir, o finito é tomado de maneira acrítica pela expressão da Ideia.

Hegel contradiz a si mesmo, aqui, somente enquanto ele não considera o “homem de família”, na mesma medida que o cidadão, como uma raça fixa, excluída das qualidades restantes.

§ 290. Nos negócios do governo se encontra, igualmente, a divisão do trabalho. A organização das autoridades tem, nessa medida, a tarefa formal, porém difícil, de fazer com que a vida burguesa, lá onde ela é concreta, seja governada concretamente a partir de baixo, mas de fazer com que essa função seja dividida em seus ramos abstratos, que são geridos pelas autoridades próprias como centros distintos, cuja atividade voltada para baixo, assim como no supremo poder governamental, converge novamente para uma visão global concreta.

O Adendo a essa parte será considerado posteriormente.

§ 291. As tarefas governamentais são de natureza objetiva, para si já decidida segundo a sua substância (§ 287) e devem completar-se e realizar-se por meio de indivíduos. Entre os dois não há qualquer enlace imediato, natural; por isso, os indivíduos não são destinados a elas por meio da personalidade natural e do nascimento. O momento objetivo para a sua destinação àquelas tarefas é o conhecimento e a demonstração de sua aptidão – demonstração que assegura ao Estado aquilo de que ele necessita e, como única condição, assegura simultaneamente, a cada cidadão, a possibilidade de se dedicar ao estamento universal.

§ 292. Como aqui o lado objetivo não reside na genialidade (como, por exemplo, na arte), o lado subjetivo, por meio do qual este indivíduo, dentre vários, e há necessária e indeterminadamente vários, dentre os quais a preferência não é, em absoluto, determinável, é escolhido e nomeado para um cargo e é investido na condução de uma função pública, essa conjunção do indivíduo e do cargo, como dois lados sempre acidentais para si um em relação ao outro, compete ao poder do príncipe enquanto poder estatal decisivo e soberano.

§ 293. As funções particulares do Estado que a monarquia outorga às autoridades constituem uma parte do lado objetivo da soberania inerente ao monarca; a sua diferença determinada é dada, do mesmo modo, pela natureza da coisa; e como a atividade das autoridades é o cumprimento de um dever, então sua função é, também, um direito subtraído à acidentalidade.

Cabe apenas chamar a atenção para o “lado objetivo da soberania inerente ao monarca”.

§ 294. O indivíduo que se liga a um cargo oficial por meio do ato soberano (§ 292) está destinado ao cumprimento do seu dever, à substancialidade de sua relação como condição dessa ligação, na qual ele encontra, como consequência dessa relação substancial, o poder e a satisfação assegurada da sua particularidade (§ 264) e a liberação de sua situação externa e de sua atividade oficial em relação a outra dependência e influência subjetivas.

O serviço público, como se lê na nota,

exige [...] o sacrifício da satisfação independente e caprichosa dos fins subjetivos e dá, precisamente por isso, o direito de encontrar satisfação na prestação conforme o dever, mas somente nela. Nisso se encontra, por esse lado, a ligação do interesse universal com o particular, que constitui o conceito e a estabilidade interna do Estado (§ 260). Por meio da satisfação assegurada da carência particular, é suprimida a necessidade externa, que pode levar à procura de meios para sua satisfação às custas da atividade oficial e do dever. No poder universal do Estado, os encarregados de suas funções encontram proteção contra o outro lado subjetivo, contra as paixões privadas dos governados, cujo interesse privado etc. é ofendido fazendo-se valer contra ele o universal.

§ 295. A garantia do Estado e dos governados contra o abuso do poder por parte das autoridades e de seus funcionários reside, por um lado, imediatamente na sua hierarquia e responsabilidade e, por outro lado, na legitimação das comunas, corporações, como aquilo por meio do qual é inibida, para si, a interferência do arbítrio subjetivo no poder conferido aos funcionários e o controle insuficiente do alto, que não atinge a conduta individual, é completado pelo controle de baixo.

§ 296. Porém, que a impassibilidade, a legalidade e a benevolência da conduta se tornem costume, isto depende, em parte, da direta formação ética e de pensamento, que serve de contrapeso espiritual àquilo que a aprendizagem das assim chamadas ciências dos objetos dessas esferas, a prática exigida das funções, o trabalho efetivo etc. têm em si de mecânico e algo semelhante; por outro lado, o tamanho do Estado é um momento capital, por meio do qual tanto o peso dos laços familiares e outros laços privados são enfraquecidos, quanto a vingança, o ódio e outras paixões semelhantes se tornam mais impotentes e, com isso, mais inofensivas; na ocupação com os grandes interesses existentes em um grande Estado, estes lados subjetivos desaparecem para si e produz-se o hábito dos interesses, das opiniões e das funções universais.

§ 297. Os membros do governo e os funcionários do Estado constituem a parte principal do estamento médio (Hauptteil des Mittelstandes), no qual se encontram a inteligência cultivada e a consciência jurídica da massa do povo. Que esse estamento não assuma a posição de uma aristocracia e que a sua cultura e habilidade não se tornem um meio de arbítrio e de dominação, isto é assegurado pelas instituições da soberania, pelo alto, e pelos direitos das corporações, por baixo.

Adendo. No estamento médio, ao qual pertencem os funcionários estatais, residem a consciência do Estado e a cultura a mais eminente. Por isso, ele constitui o pilar fundamental do Estado em relação à retidão e à inteligência. [...] Que esse estamento médio seja cultivado, é um interesse capital do Estado, mas isso só pode acontecer em uma organização como aquela que examinamos, ou seja, mediante a legitimação de círculos particulares que são relativamente independentes e graças a um mundo de funcionários cujo arbítrio se rompe diante de tais círculos legitimados. O agir de acordo com o direito universal e o hábito desse agir é uma consequência da oposição formada pelos círculos para si independentes.

O que Hegel diz sobre o “poder governamental” não merece o nome de desenvolvimento filosófico. A maior parte dos parágrafos poderia figurar, literalmente, no código civil prussiano e, entretanto, a administração propriamente dita é o ponto mais difícil do desenvolvimento.

Como Hegel já reivindicou para a esfera da sociedade civil o poder “policial” e o poder “judicial”, então o poder governamental não é senão a administração, que ele desenvolve como burocracia.

Na burocracia está pressuposta, primeiramente, a “autoadministração” da sociedade civil em “corporações”. A única determinação que a ela se acrescenta é de que a eleição dos administradores, de suas autoridades etc. é uma eleição mista, de iniciativa dos cidadãos e confirmada pelo poder governamental propriamente dito (“confirmação superior”, como diz Hegel).

Sobre esta esfera, para “a manutenção do interesse universal do Estado e da legalidade”, encontram-se os “delegados do poder governamental”, os “funcionários estatais executivos” e as “autoridades colegialmente constituídas” que convergem no “monarca”.

Na “função do governo”, encontra-se a “divisão do trabalho”. Os indivíduos devem demonstrar sua capacidade para as funções governamentais, isto é, prestar exames. A escolha dos indivíduos determinados para os cargos públicos compete ao poder soberano do Estado. A distribuição dessas funções é “dada pela natureza da coisa”. A função pública é o dever, a vocação dos funcionários do Estado. Eles devem ser, portanto, remunerados pelo Estado. A garantia contra o abuso da burocracia é, por um lado, a hierarquia e a responsabilidade dos funcionários e, por outro lado, a legitimação das comunas, corporações; sua humanidade depende, de um lado, da “direta formação ética e de pensamento” e, de outro, do “tamanho do Estado”. Os funcionários constituem a “parte principal do estamento médio”. As “instituições da soberania, pelo alto”, e os “direitos das corporações, por baixo”, protegem contra a transformação desse estamento em “aristocracia e dominação”. O “estamento médio” é o estamento da “cultura”. Voilà tout(20). Hegel nos dá uma descrição empírica da burocracia, em parte como ela realmente é, em parte segundo a opinião que ela tem de seu próprio ser. E, com isso, o difícil capítulo do “poder governamental” está concluído.

3.2 – A separação do Estado e Sociedade Civil

Hegel parte da separação entre “Estado” e sociedade “civil”, entre os “interesses particulares” e o “universal que é em si e para si”, e a burocracia está, de fato, baseada nessa separação. Hegel parte do pressuposto das “corporações” e, de fato, a burocracia pressupõe as “corporações”, ao menos o “espírito corporativo”. Hegel não desenvolve nenhum conteúdo da burocracia, mas apenas algumas determinações gerais de sua organização “formal” e, certamente, a burocracia é apenas o “formalismo” de um conteúdo que está fora dela.

As corporações são o materialismo da burocracia e a burocracia é o espiritualismo das corporações. A corporação é a burocracia da sociedade civil; a burocracia é a corporação do Estado. Por isso, na realidade, ela se defronta, na condição de “sociedade civil do Estado”, com o “Estado da sociedade civil”, com as corporações. Lá onde a “burocracia” é um novo princípio, onde o interesse universal do Estado começa a se tornar para si um interesse “a parte” e, com isso, “real”, ela luta contra as corporações como toda consequência luta contra a existência de seus pressupostos. Em contrapartida, tão logo a vida real do Estado desperta e a sociedade civil se liberta das corporações a partir de um impulso racional, a burocracia procura restaurá-las, pois, desde o momento em que cai o “Estado da sociedade civil”, cai também a “sociedade civil do Estado”. O espiritualismo desaparece com o materialismo a ele contraposto. A consequência luta pela existência de seus pressupostos, tão logo um novo princípio luta, não contra a existência, mas contra o princípio dessa existência. O mesmo espírito que cria, na sociedade, a corporação, cria, no Estado, a burocracia. Portanto, logo que o espírito corporativo é atacado, é atacado o espírito da burocracia; e se, antes, a burocracia combateu a existência das corporações para criar espaço para sua própria existência, agora ela busca manter à força a existência das corporações para salvar o espírito corporativo, seu próprio espírito.

A “burocracia” é o “formalismo de Estado” da sociedade civil. Ela é a “consciência do Estado”, a “vontade do Estado”, a “potência do Estado” como uma corporação (em contraposição ao particular, o “interesse universal” pode se manter apenas como um “particular”, tanto quanto o particular, contraposto ao universal, mantém-se como um “universal”. A burocracia deve, portanto, proteger a universalidade imaginária do interesse particular, o espírito corporativo, a fim de proteger a particularidade imaginária do interesse universal, seu próprio espírito. O Estado deve ser corporação tanto quanto a corporação quer ser Estado), como uma sociedade particular, fechada, no Estado. Mas a burocracia quer a corporação como uma potência imaginária. De fato, também cada corporação tem, como seu interesse particular, esta vontade contra a burocracia, mas ela quer a burocracia contra a outra corporação, contra o outro interesse particular. Portanto, a burocracia traz consigo, como corporação acabada, a vitória sobre a corporação, como burocracia inacabada. Ela rebaixa a corporação a uma aparência e quer rebaixá-la a esta condição, ao mesmo tempo em que pretende que esta aparência exista e creia em sua própria existência. A corporação é a tentativa da sociedade civil de se tornar Estado; mas a burocracia é o Estado que se fez realmente sociedade civil.

O “formalismo de Estado”, que é a burocracia, é o “Estado como formalismo”, e como tal formalismo Hegel a descreveu. Que este “formalismo de Estado” se constitua em potência real e que ele mesmo se torne o seu próprio conteúdo material, isto é evidente na medida em que a “burocracia” é uma rede de ilusões práticas, ou seja, a “ilusão do Estado”. O espírito burocrático é um espírito profundamente jesuítico, teológico. Os burocratas são os jesuítas do Estado, os teólogos do Estado. A burocracia é a république prêtre(21).

Visto que a burocracia é, segundo a sua essência, o “Estado como formalismo”, então ela o é, também, segundo a sua finalidade. A finalidade real do Estado aparece à burocracia, portanto, como uma finalidade contra o Estado. O espírito da burocracia é o “espírito formal do Estado”. Por isso ela transforma o “espírito formal do Estado”, ou a real falta de espírito do Estado, em imperativo categórico. A burocracia se considera o fim último do Estado. Como a burocracia faz de seus fins “formais” o seu conteúdo, ela entra em conflito, por toda parte, com seus fins “reais”. Ela é forçada, por conseguinte, a fazer passar o formal pelo conteúdo e o conteúdo pelo formal. Os fins do Estado se transmutam em fins da repartição e os fins da repartição se transformam em fins do Estado. A burocracia é um círculo do qual ninguém pode escapar. Sua hierarquia é uma hierarquia do saber. A cúpula confia aos círculos inferiores o conhecimento do particular, os círculos inferiores confiam à cúpula o conhecimento do universal e, assim, eles se enganam reciprocamente.

A burocracia é o Estado imaginário ao lado do Estado real, o espiritualismo do Estado. Cada coisa tem, por isso, um duplo significado, um real e um burocrático, do mesmo modo que o saber é duplo, um saber real e um burocrático (assim também a vontade). Mas o ser real é tratado segundo sua essência burocrática, segundo sua essência transcendente, espiritual. A burocracia tem a posse da essência do Estado, da essência espiritual da sociedade; esta é sua propriedade privada.

O espírito universal da burocracia é o segredo, o mistério; guardado em seu interior por meio da hierarquia e, em relação ao exterior, como corporação fechada. Por isso o espírito público do Estado, assim como a disposição política aparecem para a burocracia como uma traição de seu mistério. A autoridade é, portanto, o princípio de seu saber e o culto à autoridade é sua disposição. No seu interior, porém, o espiritualismo se torna um materialismo crasso, o materialismo da obediência passiva, da fé na autoridade, do mecanismo de uma atividade formal, fixa, de princípios, ideias e tradições fixos. Quanto ao burocrata tomado individualmente, o fim do Estado se torna seu fim privado, uma corrida por postos mais altos, um carreirismo. Primeiramente, ele considera a vida real como uma vida material, já que o espírito desta vida tem sua existência separada para si na burocracia. A burocracia deve, assim, tornar a vida tão material quanto possível. Em segundo lugar, a vida é, para o burocrata – quer dizer, na medida em que ela se torna objeto da atividade burocrática –, material, pois seu espírito lhe é prescrito, sua finalidade existe fora dele, sua existência é a existência da repartição. O Estado existe apenas como diferentes espíritos de repartição, imóveis, cuja coesão consiste na subordinação e na obediência passiva. A ciência real aparece como desprovida de conteúdo, assim como a vida real aparece como morta, uma vez que este saber imaginário e essa vida imaginária valem pela essência. O burocrata deve, por isso, proceder de forma jesuítica para com o Estado real, seja este jesuitismo consciente ou inconsciente. Mas é necessário que ele, tendo a ciência como seu oposto, chegue também à autoconsciência e se torne desde já um jesuitismo deliberado.

Enquanto, por um lado, a burocracia é este materialismo crasso, o seu espiritualismo crasso se mostra, por outro lado, no fato de ela querer fazer tudo, isto é, de ela fazer da vontade a causa prima(22), pois ela é mera existência ativa e recebe o seu conteúdo do exterior e, portanto, só pode demonstrar a própria existência ao formar e limitar este conteúdo. Para o burocrata, o mundo é um mero objeto de manipulação.

Quando Hegel chama o poder governamental de lado objetivo da soberania inerente ao monarca, ele está correto no mesmo sentido de que a Igreja católica era a existência real da soberania, do conteúdo e do espírito da Santíssima Trindade. Na burocracia, a identidade do interesse estatal e do fim particular privado está colocada de modo que o interesse estatal se torna um fim privado particular, contraposto aos demais fins privados.

A supressão da burocracia só pode se dar contanto que o interesse universal se torne realmente – e não, como em Hegel, apenas no pensamento, na abstração – interesse particular, o que é possível apenas contanto que o interesse particular se torne realmente universal. Hegel parte de uma oposição irreal e a conduz somente a uma identidade imaginária, ela mesma, em verdade, uma identidade contraditória. Uma tal identidade é a burocracia.

3.3 – Subsunção do individual e particular ao universal

Acompanhemos detalhadamente seu desenvolvimento.

A única determinação filosófica que Hegel apresenta do poder governamental é a da “subsunção” do singular e do particular sob o universal etc.

Hegel se contenta com isso. De um lado: a categoria “subsunção” do particular etc. Ela deve ser realizada. Ele toma, então, uma existência empírica qualquer do Estado prussiano ou moderno (tal como ele é, dos pés à cabeça), e que, dentre outras, realiza também esta categoria, ainda que com esta última seu ser específico não seja expresso. A matemática aplicada é, também, subsunção etc. Hegel não se pergunta se esta é a maneira racional, adequada, de subsunção. Ele se agarra apenas a uma única categoria e se satisfaz em encontrar para ela uma existência correspondente. Hegel dá à sua lógica um corpo político; ele não dá a lógica do corpo político (§ 287).

Sobre a relação das corporações, comunas, com o governo, nós aprendemos, primeiramente, que sua administração (a ocupação de sua magistratura) depende, “em geral, de uma mistura de eleição pública desses interessados e de uma confirmação e determinação superiores”. A eleição mista dos administradores da comuna e da corporação seria, portanto, a primeira relação entre a sociedade civil e o Estado ou poder governamental, a sua primeira identidade (§ 288). Esta identidade é, segundo o próprio Hegel, muito superficial, um mixtum compositum, uma “mistura”. Essa identidade é tanto superficial quanto é aguda a oposição. “Na medida em que estas questões” (a saber, da comuna, da corporação etc.) “são, por um lado, a propriedade privada e o interesse dessas esferas particulares e que, segundo este lado, sua autoridade repousa na confiança de seus colegas de estamento e concidadãos e que, por outro lado, esses círculos têm de ser subordinados aos mais altos interesses do Estado”, isto resulta na referida “eleição mista”.

A administração da corporação encerra, portanto, a oposição:

Propriedade privada e interesse das esferas particulares contra o mais alto interesse do Estado: oposição entre propriedade privada e Estado.

É desnecessário ressaltar que a solução desta oposição por meio da eleição mista é uma mera acomodação, uma transação, uma confissão do dualismo não resolvido, ela mesma um dualismo, uma “mistura”. Os interesses particulares das corporações e das comunas têm, dentro de sua própria esfera, um dualismo que conforma o caráter de sua administração.

Mas a oposição decisiva se manifesta somente na relação entre estes “interesses particulares em comum” etc., que “se encontram fora do universal em si e para si do Estado ele mesmo”, com este “universal em si e para si existente do Estado”. Primeiramente, uma vez mais, o interior desta esfera.

A manutenção do interesse universal do Estado e da legalidade nestes direitos particulares e a recondução destes àquele exige uma gestão da parte dos delegados do poder governamental, dos funcionários estatais executivos e das superiores autoridades consultivas enquanto colegialmente constituídas, que convergem para as instâncias supremas que tocam o monarca (§ 289).

Chamemos a atenção, de passagem, para a construção dos colégios governamentais, que na França, por exemplo, não são conhecidos. “Na medida em queHegel se refere a estas autoridades como “deliberativas”, é “portanto” evidente, sem dúvida, que elas sejam “constituídas em colegiados”.

Hegel faz intervir, no interior da sociedade civil, o “Estado ele mesmo”, o “poder governamental”, para a “gestão” do “interesse universal do Estado e da legalidade etc.”, mediante “delegados” e, segundo ele, precisamente estes “delegados do poder governamental”, os “funcionários estatais executivos”, são a verdadeira representação no Estado”, não “da”, mas “contra” a “sociedade civil”. A oposição entre Estado e sociedade civil está, portanto, consolidada; o Estado não reside na sociedade civil, mas fora dela; ele a toca apenas mediante seus “delegados”, a quem é confiado o “gestão do Estado” no interior dessas esferas. Por meio destes “delegados” a oposição não é suprimida, mas transformada em oposição “legal”, “fixa”. O “Estado” é feito valer, como algo estranho e situado além do ser da sociedade civil, pelos deputados deste ser contra a sociedade civil. A “polícia”, os “tribunais” e a “administração” não são deputados da própria sociedade civil, que neles e por meio deles administra o seu próprio interesse universal, mas sim delegados do Estado para administrar o Estado contra a sociedade civil. Hegel explicita com franqueza esta oposição mais adiante, no comentário supracitado.

As tarefas governamentais são de natureza objetiva, para si já definida (§ 291).

Disso Hegel conclui que elas exigem tão pouco uma “hierarquia do saber”, a ponto de poder ser completamente executadas pela “própria sociedade civil”? Ao contrário.

Ele faz a profunda observação de que elas devem ser realizadas por “indivíduos” e de que “entre os dois não reside qualquer enlace imediatamente natural”. Alusão ao poder do soberano, que é apenas “poder natural do arbítrio” e, por isso, pode “nascer”. O “poder soberano” não é mais do que o representante do momento natural na vontade, do “domínio da natureza física no Estado”.

Por isso, os “funcionários públicos executivos” se diferenciam essencialmente do “príncipe” na aquisição dos seus cargos.

O momento objetivo para a sua destinação àquelas tarefas (a saber, as tarefas do Estado) é o conhecimento (o arbítrio subjetivo carece deste momento) e a demonstração de sua aptidão – demonstração que assegura ao Estado aquilo de que ele necessita e, como única condição, assegura simultaneamente, a cada cidadão, a possibilidade de se dedicar ao estamento universal.

Essa possibilidade de cada cidadão se tornar servidor público é, portanto, a segunda relação afirmativa entre sociedade civil e Estado, a segunda identidade. Ela é de natureza muito superficial e dualística. Todo católico tem a possibilidade de se tornar padre (isto é, de separar-se dos leigos, do mundo). Com isso, o clero, como potência externa, opõe-se menos ao católico? Que cada um tenha a possibilidade de adquirir o direito de uma outra esfera, demonstra apenas que sua própria esfera não é a realidade desse direito.

No Estado verdadeiro, não se trata da possibilidade de cada cidadão dedicar-se ao estamento universal como a um estamento particular, mas da capacidade do estamento universal de ser realmente universal, ou seja, o estamento de cada cidadão. Mas Hegel parte do pressuposto do estamento pseudo-universal, do estamento ilusório-universal, da universalidade estamental, particular.

A identidade, construída por Hegel, entre sociedade civil e Estado, é a identidade de dois exércitos inimigos, em que cada soldado tem a “possibilidade”, por meio da “deserção”, de se tornar membro do exército “inimigo” e, com isso, de fato, Hegel descreve com exatidão a situação empírica atual.

O mesmo ocorre com a sua construção dos “exames”. Em um Estado racional, um exame se faz mais necessário para se tornar sapateiro do que para se tornar funcionário público executivo; pois o ofício de sapateiro é uma habilidade sem a qual se pode ser um bom cidadão do Estado, um homem social; mas o “saber político” é uma condição sem a qual o homem vive, no Estado, fora do Estado, separado de si mesmo, privado de ar. O “exame” não é senão uma fórmula maçônica, o reconhecimento legal do saber cívico como um privilégio.

O exame, o “vínculo” do “cargo público” e do “indivíduo”, este laço objetivo entre o saber da sociedade civil e o saber do Estado, é apenas o batismo burocrático do saber, o reconhecimento oficial da transubstanciação do saber profano no saber sagrado (e é evidente que, em todo exame, o examinador sabe tudo). Nunca se ouviu falar que os homens de Estado gregos ou romanos tenham prestado exames. Mas o que é um homem de Estado romano em face de um homem de governo prussiano!

Ao lado do laço objetivo do indivíduo com o ofício público, ao lado do exame, encontra-se um outro laço, o arbítrio do príncipe.

Como aqui o lado objetivo não reside na genialidade (como, por exemplo, na arte), o lado subjetivo, por meio do qual este indivíduo, dentre vários, e há necessária e indeterminadamente vários, dentre os quais a preferência não é, em absoluto, determinável, é escolhido e nomeado para um cargo e é investido na condução de uma função pública, essa conjunção do indivíduo e do cargo, como dois lados sempre acidentais para si um em relação ao outro, compete ao poder do príncipe enquanto poder estatal decisivo e soberano.

O príncipe é, por toda parte, o representante do acaso. Além do momento objetivo da profissão de fé burocrática (o exame), faz-se necessário ainda, para que a fé dê frutos, o momento subjetivo da graça do príncipe.

“Os negócios particulares do Estado que a monarquia outorga às autoridades” (a monarquia distribui, transmite as atividades particulares do Estado como funções às autoridades, reparte o Estado entre os burocratas; ela as distribui assim como a santa Igreja romana distribui as ordens; a monarquia é um sistema de emanação; a monarquia arrenda as funções do Estado) “constituem uma parte do lado objetivo da soberania inerente ao monarca”. Aqui, Hegel distingue, pela primeira vez, os dois lados da soberania inerente ao monarca: o lado subjetivo e o lado objetivo. Ele os havia confundido anteriormente. A soberania inerente ao monarca é, aqui, considerada de um modo formalmente místico, assim como os teólogos encontram, na natureza, o Deus personalizado. Foi dito, ainda, que o monarca é o lado subjetivo da soberania inerente ao Estado (§ 293).

No § 294, Hegel desenvolve a remuneração dos funcionários a partir da Ideia. É aqui, na remuneração dos funcionários ou no fato de o serviço público garantir simultaneamente a segurança da existência empírica, que está posta a identidade real da sociedade civil e do Estado. O soldo dos funcionários é a mais alta identidade construída por Hegel. É a transformação das atividades do Estado em cargos, o que pressupõe a separação entre Estado e sociedade civil. Quando Hegel diz:

O serviço público exige o sacrifício da satisfação independente e caprichosa dos fins subjetivos

– e isso é exigido em todo serviço –

e dá, precisamente por isso, o direito de encontrar satisfação na prestação conforme o dever, mas somente nela. Nisso se encontra, por esse lado, a ligação do interesse universal com o particular, que constitui o conceito e a estabilidade interna do Estado,

isso 1) vale para cada servidor, 2) é exato que a remuneração dos funcionários constitui a estabilidade interna das grandes monarquias modernas. Somente a existência dos funcionários está garantida, em oposição ao membro da sociedade civil.

Ora, não pode escapar a Hegel o fato de ele ter construído o poder governamental como uma oposição à sociedade civil e, em verdade, como um extremo dominante. Como ele estabelece, agora, uma relação de identidade?

De acordo com o § 295, “a garantia do Estado e dos governados contra o abuso do poder por parte das autoridades e de seus funcionários” reside, por um lado, na sua “hierarquia” (como se a hierarquia não fosse o abuso capital e alguns pecados pessoais dos funcionários não fossem comparáveis de modo algum aos pecados hierárquicos necessários; a hierarquia pune o funcionário na medida em que ele peca contra ela ou comete um pecado que para ela é supérfluo; mas ela o protege, tão logo a hierarquia peque no funcionário; além disso, a hierarquia dificilmente se convence dos pecados dos seus membros) e “na legitimação das comunas, corporações, como aquilo por meio do qual é inibida, para si, a interferência do arbítrio subjetivo no poder conferido aos funcionários e o controle do alto, que não atinge a conduta individual” (como se esse controle não se desse do ponto de vista da hierarquia/burocracia), “é completado pelo controle de baixo”.

A segunda garantia contra o arbítrio da burocracia são, assim, os privilégios da corporação.

Se, portanto, perguntamos a Hegel qual é a proteção da sociedade civil contra a burocracia, ele nos responde:

1) A “hierarquia” da burocracia. O próprio abuso. O controle. O fato de que o adversário se encontra ele mesmo com pés e mãos atados e, se para baixo ele é martelo, para cima ele é bigorna. Ora, onde está a proteção contra a “hierarquia”? O mal menor é certamente suprimido pelo maior na medida em que aquele desaparece quando é confrontado com este.

2) O conflito, o conflito não resolvido entre burocracia e corporação. A luta, a possibilidade da luta, é a garantia contra a derrota. Mais adiante (§ 297) Hegel ainda acrescenta como garantia as “instituições da soberania, pelo alto”, sob as quais a hierarquia está novamente compreendida.

Mas Hegel ainda apresenta dois momentos (§ 296).

No próprio funcionário – e isto deve humanizá-lo e tornar “costume” a “impassibilidade, a legalidade e a benevolência da conduta” –, a “direta formação ética e de pensamento” devem servir como “o contrapeso espiritual” ao mecanicismo de seu saber e ao seu “trabalho efetivo”. Como se o “mecanicismo” do seu saber “burocrático” e do seu “trabalho efetivo” não servisse de “contrapeso” à sua “formação ética e de pensamento”! E o seu espírito real e o seu trabalho efetivo não triunfarão, como substância, sobre o acidental das suas outras capacidades? Seu “cargo” é, de fato, sua “relação substancial” e seu “pão”. O belo é que Hegel contrapõe a “direta formação ética e de pensamento” ao “mecanicismo do saber e do trabalho burocráticos”! O homem, no funcionário, deve proteger o funcionário contra si mesmo. Mas que unidade! Contrapeso espiritual. Que categoria dualística!

Hegel menciona, ainda, o “tamanho do Estado”, que, na Rússia, não garante contra o arbítrio dos “funcionários estatais executivos” e, em todo caso, é uma circunstância que se encontra “fora” da “essência” da burocracia.

Hegel desenvolveu o “poder governamental” como “funcionalismo público” (Staatsbediententhum).

Aqui, na esfera do “universal em si e para si do Estado ele mesmo”, encontramos somente conflitos não resolvidos. O Exame e o pão dos funcionários são as sínteses últimas.

Hegel alega a impotência da burocracia, o seu conflito com a corporação, como consagração suprema.

No § 297 é estabelecida uma identidade, na medida em que “os membros do governo e os funcionários do Estado constituem a parte principal do estamento médio”. Hegel enaltece este “estamento médio” como o “pilar fundamental” do Estado “em relação à retidão e à inteligência”. (Adendo ao parágrafo citado)

Que esse estamento médio seja cultivado, é um interesse capital do Estado; mas isso só pode acontecer em uma organização como aquela que examinamos, ou seja, mediante a legitimação de círculos particulares que são relativamente independentes e graças a um mundo de funcionários cujo arbítrio se rompe diante de tais círculos legitimados.

Certamente, apenas em uma tal organização o povo pode aparecer como um estamento, o estamento médio; mas é uma organização aquilo que se mantém em funcionamento mediante o equilíbrio dos privilégios? O poder governamental é o mais difícil de ser desenvolvido. Ele pertence a todo o povo num grau muito mais elevado do que o poder legislativo.

Hegel exprime mais tarde, na nota ao § 308, o verdadeiro espírito da burocracia, ao qualificá-la de “rotina de funções” e de “horizonte de uma esfera limitada”.


Notas de rodapé:

(19) “a guerra de todos contra todos”. (retornar ao texto)

(20) “Isso é tudo”. (retornar ao texto)

(21) “a república dos frades”. (retornar ao texto)

(22) “causa principal”. (retornar ao texto)

Inclusão 17/09/2016