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Primeira edição: Ensaio datado de 1973. No mesmo ano o autor escreveu um texto complementar, à guisa de post-scriptum, segundo ele "para esclarecer algumas questões e desfazer certos equívocos que o texto tem suscitado."
Tradução: Marcelo Carcanholo, Universidade Federal de Uberlândia — MG. Post-scriptum traduzido por Carlos Eduardo Martins, Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, RJ.
Fonte: Editora Era, México, 1990, 10a edição (Ia edição, 1973). O post-scriptum conforme: Revista Latinoamericana de Ciências Sociales, Flacso, (Santiago de Chile), n° 5, junho 1973. Versão digitalizada conforme publicado em "Ruy Mauro Marini: Vida e Obra", Editora Expressão Popular, 2005. Orgs. Roberta Traspadini e João Pedro Stedile. Este documento encontra-se em www.centrovictormeyer.org.br
HTML: Fernando A. S. Araújo
1. A integração ao mercado mundial
2. O segredo da troca desigual
3. A superexploração do trabalho
4. O ciclo do capital na economia dependente
5. O processo de industrialização
6. O novo anel da espiral
7. Post-scriptum
[...] o comércio exterior, quando se limita a repor os elementos (também enquanto a seu valor), não faz mais do que deslocar as contradições para uma esfera mais extensa, abrindo para elas um campo maior de atuação.
Marx, O Capital
Acelerar a acumulação mediante um desenvolvimento superior da capacidade produtiva do trabalho e acelerá-la por meio de uma maior exploração do trabalhador, são dois procedimentos totalmente distintos.
Marx, O Capital
Em sua análise da dependência latino-americana, os pesquisadores marxistas incorreram, geralmente, em dois tipos de desvios: a substituição do fato concreto pelo conceito abstrato, ou a adulteração do conceito em nome de uma realidade rebelde para aceitá-lo em sua formulação pura. No primeiro caso, o resultado tem sido os estudos marxistas chamados de ortodoxos, nos quais a dinâmica dos processos estudados se volta para uma formalização que é incapaz de reconstruí-la no âmbito da exposição, e nos que a relação entre o concreto e o abstrato se rompe, para dar lugar a descrições empíricas que correm paralelamente ao discurso teórico, sem fundir-se com ele; isso tem ocorrido, sobretudo, no campo da história Econômica. O segundo tipo de desvio tem sido mais frequente no campo da sociologia, no qual, frente à dificuldade de adequar a uma realidade categorias que não foram desenhadas especificamente para ela, os estudiosos de formação marxista recorrem simultaneamente a outros enfoques metodológicos e teóricos; a consequência necessária desse procedimento é o ecletismo, a falta de rigor conceituai e metodológico e um pretenso enriquecimento do marxismo, que é na realidade sua negação.
Esses desvios nascem de uma dificuldade real: frente ao parâmetro do modo de produção capitalista puro, a economia latino-americana apresenta peculiaridades, que às vezes se apresentam como insuficiências e outras — nem sempre distinguíveis facilmente das primeiras — como deformações. Não é acidental portanto a recorrência nos estudos sobre a América Latina a noção de "pré-capitalismo". O que deveria ser dito é que, ainda quando se trate realmente de um desenvolvimento insuficiente das relações capitalistas, essa noção se refere a aspectos de uma realidade que, por sua estrutura global e seu funcionamento, não poderá desenvolver-se jamais da mesma forma como se desenvolvem as economias capitalistas chamadas de avançadas. É por isso que, mais do que um pré-capitalismo, o que se tem é um capitalismo sui generis, que só adquire sentido se o contemplamos na perspectiva do sistema em seu conjunto, tanto em nível nacional, quanto, e principalmente, em nível internacional.
Isso é verdade, sobretudo, quando nos referimos ao moderno capitalismo industrial latino-americano, tal como se tem constituído nas duas últimas décadas. Mas, em seu aspecto mais geral, a proposição é válida também para o período imediatamente precedente e ainda para a etapa da economia exportadora. É óbvio que, no último caso, a insuficiência prevalece ainda sobre a distorção, mas se desejamos entender como uma se converteu na outra é à luz desta que devemos estudar aquela. Em outros termos, é o conhecimento da forma particular que acabou por adotar o capitalismo dependente latino-americano o que ilumina o estudo de sua gestação e permite conhecer analiticamente as tendências que desembocaram nesse resultado.
Mas aqui, como sempre, a verdade tem um duplo sentido: se é certo que o estudo das formas sociais mais desenvolvidas lança luz sobre as formas mais embrionárias (ou, para dizê-lo com Marx, "a anatomia do homem é um a chave para a anatomia do macaco")(1), também é certo que o desenvolvimento ainda insuficiente de uma sociedade, ao ressaltar um elemento simples, torna mais compreensível sua forma mais complexa, que integra e subordina esse elemento. Como assinala Marx:
[...] a categoria mais simples pode expressar as relações dominantes de um todo não desenvolvido ou as relações subordinadas de um todo mais desenvolvido, relações que já existiam historicamente antes de que o todo se desenvolvesse no sentido expressado por uma categoria mais concreta. Só então, o caminho do pensamento abstrato, que se eleva do simples ao complexo, poderia corresponder ao processo histórico real.(2)
Na identificação desses elementos, as categorias marxistas devem ser aplicadas, isto é, à realidade como instrumentos de análise e antecipações de seu desenvolvimento posterior. Por outro lado, essas categorias não podem substituir ou mistificar os fenômenos a que se aplicam; é por isso que a análise tem de ponderá-las, sem que isso implique em nenhum caso romper com a linha do raciocínio marxista, enxertando-lhe corpos que lhe são estranhos e que não podem, portanto, ser assimilados por ela. O rigor conceitual e metodológico: a isso se reduz em última instância a ortodoxia marxista. Qualquer limitação para o processo de investigação que dali se derive já não tem nada relacionado com a ortodoxia, mas apenas com o dogmatismo.
Forjada no calor da expansão comercial promovida no século 16 pelo capitalismo nascente, a América Latina se desenvolve em estreita consonância com a dinâmica do capitalismo internacional. Colônia produtora de metais preciosos e gêneros exóticos, a América Latina contribuiu em um primeiro momento com o aumento do fluxo de mercadorias e a expansão dos meios de pagamento que, ao mesmo tempo em que permitiam o desenvolvimento do capital comercial e bancário na Europa, sustentaram o sistema manufatureiro europeu e propiciaram o caminho para a criação da grande indústria. A revolução industrial, que dará início a ela, corresponde na América Latina à independência política que, conquistada nas primeiras décadas do século 19, fará surgir, com base na estrutura demográfica e administrativa construída durante a Colônia, um conjunto de países que passam a girar em torno da Inglaterra. Os fluxos de mercadorias e, posteriormente, de capitais têm nesta seu ponto de entroncamento: ignorando uns aos outros, os novos países se articularão diretamente com a metrópole inglesa e, em função dos requerimentos desta, começarão a produzir e a exportar bens primários, em troca de manufaturas de consumo e — quando a exportação supera as importações — de dívidas.(3)
É a partir desse momento que as relações da América Latina com os centros capitalistas europeus se inserem em uma estrutura definida: a divisão internacional do trabalho, que determinará o sentido do desenvolvimento posterior da região. Em outros termos, é a partir de então que se configura a dependência, entendida como uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência. A consequência da dependência não pode ser, portanto, nada mais do que maior dependência, e sua superação supõe necessariamente a supressão das relações de produção nela envolvida. Neste sentido, a conhecida fórmula de André Gunder Frank sobre o "desenvolvimento do subdesenvolvimento" é impecável, como impecáveis são as conclusões políticas a que ela conduz(4). As criticas que lhe são dirigidas representam muitas vezes um passo atrás nessa formulação, em nome de precisões que se pretendem teóricas, mas que costumam não ir além da semântica.
Entretanto, e aí reside a debilidade do trabalho de Frank, a situação colonial não é o mesmo que a situação de dependência. Ainda que se dê uma continuidade entre ambas, não são homogéneas; como bem afirmou Canguilhem, "o caráter progressivo de um acontecimento não exclui a originalidade do acontecimento".(5) A dificuldade da análise teórica está precisamente em captar essa originalidade e, sobretudo, em discernir o momento em que a originalidade implica mudança de qualidade. No que se refere às relações internacionais da América Latina, se, como assinalamos, esta desempenha um papel relevante na formação da economia capitalista mundial (principalmente com sua produção de metais preciosos nos séculos 16 e 17, mas sobretudo no 18, graças à coincidência entre o descobrimento de ouro brasileiro e o auge manufatureiro inglês),(6) somente no curso do século 19, e especificamente depois de 1840, sua articulação com essa economia mundial se realiza plenamente.(7) Isto se explica se considerarmos que é com o surgimento da grande indústria que se estabelece com bases sólidas a divisão internacional do trabalho.(8)
A criação da grande indústria moderna seria fortemente obstaculizada se não houvesse contado com os países dependentes, e tido que se realizar sobre uma base estritamente nacional. De fato, o desenvolvimento industrial supõe uma grande disponibilidade de produtos agrícolas, que permita a especialização de parte da sociedade na atividade especificamente industrial.(9) No caso da industrialização europeia, o recurso à simples produção agrícola interna teria bloqueado a elevada especialização produtiva que a grande indústria tornava possível. O forte incremento da classe operária industrial e, em geral, da população urbana ocupada na indústria e nos serviços, que se verifica nos países industriais no século passado, não poderia ter acontecido se estes não contassem com os meios de subsistência de origem agropecuária, proporcionados de forma considerável pelos países latino-americanos. Isso foi o que permitiu aprofundar a divisão do trabalho e especializar os países industriais como produtores mundiais de manufaturas. Mas não se reduziu a isso a função cumprida pela América Latina no desenvolvimento do capitalismo: à sua capacidade para criar uma oferta mundial de alimentos, que aparece como condição necessária de sua inserção na economia internacional capitalista, prontamente será agregada a contribuição para a formação de um mercado de matérias primas industriais, cuja importância cresce em função do mesmo desenvolvimento industrial.(10) O crescimento da classe trabalhadora nos países centrais e a elevação ainda mais notável de sua produtividade, que resultam do surgimento da grande indústria, levaram a que a massa de matérias primas voltada para o processo de produção aumentasse em maior proporção.(11) Essa função, que chegará mais tarde a sua plenitude, é também a que se revelará como a mais duradoura para a América Latina, mantendo toda sua importância mesmo depois que a divisão internacional do trabalho tenha alcançado em novo estágio.
O que importa considerar aqui é que as funções que cumpre a América Latina na economia capitalista mundial transcendem a mera resposta aos requisitos físicos induzidos pela acumulação nos países industriais. Mais além de facilitar o crescimento quantitativo destes, a participação da América Latina no mercado mundial contribuirá para que o eixo da acumulação na economia industrial se desloque da produção de mais-valia absoluta para a de mais-valia relativa, ou seja, que a acumulação passe a depender mais do aumento da capacidade produtiva do trabalho do que simplesmente da exploração do trabalhador. No entanto, o desenvolvimento da produção latino-americana, que permite à região coadjuvar com essa mudança qualitativa nos países centrais, dar-se-á fundamentalmente com base em uma maior exploração do trabalhador. É esse caráter contraditório da dependência latino-americana, que determina as relações de produção no conjunto do sistema capitalista, o que deve reter nossa atenção.
A inserção da América Latina na economia capitalista responde às exigências da passagem para a produção de mais-valia relativa nos países industriais. Esta é entendida como uma forma de exploração do trabalho assalariado que, fundamentalmente com base na transformação das condições técnicas de produção, resulta da desvalorização real da força de trabalho. Sem aprofundar a questão, é conveniente fazer aqui algumas precisões que se relacionam com nosso tema.
Essencialmente, trata-se de dissipar a confusão que se costuma estabelecer entre o conceito de mais-valia relativa e o de produtividade. De fato, se bem constitui a condição por excelência da mais-valia relativa, uma maior capacidade produtiva do trabalho não assegura por si só um aumento da mais-valía relativa. Ao aumentar a produtividade, o trabalhador só cria mais produtos no mesmo tempo, mas não mais valor; é justamente esse fato o que leva o capitalista individual a procurar o aumento de produtividade, já que isso permite reduzir o valor individual de sua mercadoria, em relação ao valor que as condições gerais de produção lhe atribuem, obtendo assim uma mais-valia superior à de seus competidores — ou seja, uma mais-valia extraordinária.
Dessa forma, essa mais-valia extraordinária altera a repartição geral da mais-valia entre os diversos capitalistas, ao traduzir-se em lucro extraordinário, mas não modifica o grau de exploração do trabalho na economia ou no setor considerado, ou seja, não incide na taxa de mais-valia. Se o procedimento técnico que permitiu o aumento de produtividade se generaliza para as demais empresas e, por isso, torna uniforme a taxa de produtividade, isso tampouco acarreta no aumento da taxa de mais-valia: será elevada apenas a massa de produtos, sem fazer variar seu valor, ou, o que é o mesmo, o valor social da unidade de produto será reduzido em termos proporcionais ao aumento da produtividade do trabalho. A consequência seria, então,não o incremento da mais-valia, mas na verdade a sua diminuição.
Isso se deve ao fato de que a determinação da taxa de mais-valia não passa pela produtividade do trabalho em si, mas pelo grau de exploração da força de trabalho, ou seja, a relação entre o tempo de trabalho excedente (em que o operário produz mais-valia) e o tempo de trabalho necessário (em que o operário reproduz o valor de sua força de trabalho, isto é, o equivalente a seu salário).(12) Só a alteração dessa proporção, em um sentido favorável ao capitalista, ou seja, mediante o aumento do trabalho excedente sobre o necessário, pode modificar a taxa de mais-valia. Para isso, a redução do valor social das mercadorias deve incidir nos bens necessários à reprodução da força de trabalho, os bens-salário. A mais-valia relativa está ligada indissoluvelmente, portanto, à desvalorização dos bens-salário, para o que contribui, em geral, mas não necessariamente, a produtividade do trabalho.(13)
Esta digressão era indispensável se desejássemos entender bem porque a inserção da América Latina no mercado mundial contribuiu para desenvolver o modo de produção especificamente capitalista, que se baseia na mais-valia relativa. Já mencionamos que uma das funções que lhe foi atribuída, no marco da divisão internacional do trabalho, foi a de prover os países industriais dos alimentos exigidos pelo crescimento da classe operária, em particular, e da população urbana, em geral, que ali se dava. A oferta mundial de alimentos, que a América Latina contribuiu para criar, e que alcançou seu auge na segunda metade do século 19, será um elemento decisivo para que os países industriais confiem ao comércio exterior a atenção de suas necessidade de meios de subsistência.(14) O efeito dessa oferta (ampliado pela depressão de preços dos produtos primários no mercado mundial, tema a que voltaremos adiante) será o de reduzir o valor real da força de trabalho nos países industriais, permitindo assim que o incremento da produtividade se traduza ali em taxas de mais-valia cada vez mais elevadas. Em outros termos, mediante a incorporação ao mercado mundial de bens-salário, a América Latina desempenha um papel significativo no aumento da mais-valia relativa nos países industriais.
Antes de analisar o outro lado da moeda, isto é, as condições internas de produção que permitirão à América Latina cumprir essa função, cabe indicar que não é só no nível de sua própria economia que a dependência latino-americana se revela contraditória: a participação da América Latina no progresso do modo de produção capitalista nos países industriais será por sua vez contraditória. Isso se deve a que, como assinalamos antes, o aumento da capacidade produtiva do trabalho acarreta um consumo mais que proporcional de matérias primas. Na medida em que essa maior produtividade é acompanhada efetivamente de uma maior mais-valia relativa, isso significa que cai o valor do capital variável em relação ao do capital constante (que inclui as matérias primas), ou seja, que aumenta a composição-valor do capital. Assim sendo, o que é apropriado pelo capitalista não é diretamente a maís-valia produzida, mas a parte desta que lhe corresponde sob a forma de lucro. Como a taxa de lucro não pode ser fixada apenas em relação ao capital variável, mas sobre o total do capital adiantado no processo de produção, isto é, salários, instalações, maquinário, matérias primas etc, o resultado do aumento da mais-valia tende a ser — sempre que implique, ainda que seja em termos relativos, uma elevação simultânea do valor do capital constante empregado para produzi-la — uma queda da taxa de lucro.
Essa contradição, crucial para a acumulação capitalista, é contraposta por diversos procedimentos que, desde um ponto de vista estritamente produtivo, se orientam tanto no sentido de incrementar ainda mais a mais-valia, no intuito de compensar a queda da taxa de lucro, quanto no sentido de induzir uma baixa paralela no valor do capital constante, com o propósito de impedir que o declínio se apresente. Na segunda classe de procedimentos, interessa aqui o que se refere à oferta mundial de matérias primas industriais, a qual aparece como contrapartida — desde o ponto de vista da composição-valor do capital — da oferta mundial de alimentos. Tal como se dá com esta última, é mediante o aumento de uma massa de produtos cada vez mais baratos no mercado internacional, que a América Latina não só alimenta a expansão quantitativa da produção capitalista nos países industriais, mas também contribui para que sejam superados os obstáculos que o caráter contraditório da acumulação de capital cria para essa expansão.(15) Existe, entretanto, outro aspecto do problema que deve ser considerado. Trata-se do fato suficientemente conhecido de que o aumento da oferta mundial de alimentos e matérias primas tem sido acompanhado da queda dos preços desses produtos, relativamente ao preço alcançado pelas manufaturas.(16) Como o preço dos produtos industriais se mantém relativamente estável, e em alguns momentos caí lentamente, a deterioração dos termos de troca está refletindo de fato a depreciação dos bens primários. É evidente que tal depreciação não pode corresponder à desvalorização real desses bens, devido a um aumento de produtividade nos países não industriais, já que é precisamente ali onde a produtividade se eleva mais lentamente. Convém, portanto, indagar as razões desse fenômeno, assim como as do porquê não se traduziu em desestímulo para a incorporação da América Latina na economia internacional.
O primeiro passo para responder a essa interrogação consiste em deixar de lado a explicação simplista que não quer ver ali nada mais do que o resultado da lei de oferta e procura. Ainda que seja evidente que a concorrência desempenha um papel decisivo na fixação dos preços, ela não explica por que, do lado da oferta, verifica-se uma expansão acelerada independentemente de que as relações de troca estejam se deteriorando. Tampouco seria possível interpretar o fenômeno se nos limitássemos a constatar empiricamente que as leis mercantis têm sido falseadas no plano internacional, graças à pressão diplomática e militar por parte das nações industriais. Esse raciocínio, ainda que se apoie em fatos reais, inverte a ordem dos fatores, e não vê que a utilização de recursos extra-econômicos é derivada precisamente do fato de existir por trás uma base econômica que a torna possível. Ambos os tipos de explicação contribuem, portanto, para ocultar a natureza dos fenômenos estudados e conduzem a ilusões sobre o que é realmente a exploração capitalista internacional.
Não é porque foram cometidos abusos contra as nações não industriais que estas se tornaram economicamente débeis, é porque eram débeis que se abusou delas. Não é tampouco porque produziram além do necessário que sua posição comercial se deteriorou, mas foi a deterioração comercial o que as forçou a produzir em maior escala. Negar-se a ver as coisas dessa forma é mistificar a economia capitalista internacional, é fazer crer que essa economia poderia ser diferente do que realmente é. Em última instância, isso leva a reivindicar relações comerciais equitativas entre as nações, quando se trata de suprimir as relações econômicas internacionais que se baseiam no valor de troca.
De fato, à medida que o mercado mundial alcança formas mais desenvolvidas, o uso da violência política e militar para explorar as nações débeis se torna supérfluo, e a exploração internacional pode descansar progressivamente na reprodução de relações econômicas que perpetuam e amplificam o atraso e a debilidade dessas nações. Verifica-se aqui o mesmo fenômeno que se observa no interior das economias industriais: o uso da força para submeter a massa trabalhadora ao império do capital diminui à medida que começam a jogar mecanismos econômicos que consagram essa subordinação.(17) A expansão do mercado mundial é a base sobre a qual opera a divisão internacional do trabalho entre as nações industriais e as não industriais, mas a contrapartida dessa divisão é a ampliação do mercado mundial. O desenvolvimento das relações mercantis coloca as bases para que uma melhor aplicação da lei do valor tenha lugar, mas, simultaneamente, cria todas as condições para que operem os distintos mecanismos mediante os quais o capital trata de burlá-la.
Teoricamente, o intercâmbio de mercadorias expressa a troca de equivalentes, cujo valor se determina pela quantidade de trabalho socialmente necessário que as mercadorias incorporam. Na prática, observam-se diferentes mecanismos que permitem realizar transferências de valor, passando por cima das leis da troca, e que se expressam na forma como se fixam os preços de mercado e os preços de produção das mercadorias. Convém distinguir os mecanismos que operam no interior de uma mesma esfera de produção (tratando-se de produtos manufaturados ou de matérias primas) e os que atuam no marco de distintas esferas que se interrelacionam. No primeiro caso, as transferências correspondem a aplicações específicas das leis de troca; no segundo, adotam mais abertamente o caráter de transgressão delas.
E assim como, por conta de uma maior produtividade do trabalho, uma nação pode apresentar preços de produção inferiores a seus concorrentes, sem por isso baixar significativamente os preços de mercado que as condições de produção destes contribui para fixar. Isso se expressa, para a nação favorecida, em um lucro extraordinário, similar ao que constatamos ao examinar de que maneira os capitais individuais se apropriam do fruto da produtividade do trabalho. E natural que o fenômeno se apresente sobretudo em nível da concorrência entre nações industriais, e menos entre as que produzem bens primários, já que é entre as primeiras que as leis capitalistas da troca são exercidas de maneira plena; isso não quer dizer que não se verifiquem também entre estas últimas, principalmente quando se desenvolvem ali as relações capitalistas de produção.
No segundo caso — transações entre nações que trocam distintas classes de mercadorias, como manufaturas e matérias primas — o mero fato de que umas produzam bens que as outras não produzem, ou não o fazem com a mesma facilidade, permite que as primeiras iludam a lei do valor, isto é, vendam seus produtos a preços superiores a seu valor, configurando assim uma troca desigual. Isso implica que as nações desfavorecidas devem ceder gratuitamente parte do valor que produzem, e que essa cessão ou transferência seja acentuada em favor daquele país que lhes venda mercadorias a um preço de produção mais baixo, em virtude de sua maior produtividade. Neste último caso, a transferência de valor é dupla, ainda que não necessariamente apareça assim para a nação que transfere valor, já que seus diferentes provedores podem vender todos a um mesmo preço, sem prejuízo de que os lucros se distribuam desigualmente entre eles e que a maior parte do valor cedido se concentre em mãos do país de produtividade mais elevada.
Frente a esses mecanismos de transferência de valor, baseados seja na produtividade, seja no monopólio de produção, podemos identificar — sempre no nível das relações internacionais de mercado — um mecanismo de compensação. Trata-se do recurso ao incremento de valor trocado, por parte da nação desfavorecida: sem impedir a transferência operada pelos mecanismos já descritos, isso permite neutralizá-la total ou parcialmente mediante o aumento do valor realizado. Esse mecanismo de compensação pode ser verificado tanto no plano da troca de produtos similares quanto de produtos originados de diferentes esferas de produção. Preocupamo-nos aqui apenas com o segundo caso.
O que importa assinalar aqui é que, para aumentar a massa de valor produzida, o capitalista deve necessariamente lançar mão de uma maior exploração da força de trabalho, seja através do aumento de sua intensidade, seja mediante a prolongação da jornada de trabalho, seja finalmente combinando os dois procedimentos. A rigor, só o primeiro — o aumento da intensidade do trabalho — se contrapõe realmente às desvantagens resultantes de uma menor produtividade do trabalho, já que permite a criação de mais valor no mesmo tempo de trabalho. Factualmente, todos contribuem para aumentar a massa de valor realizada e, por isso, a quantidade de dinheiro obtida através da troca. Isso é o que explica, neste plano da análise, que a oferta mundial de matérias primas e alimentos aumente à medida que se acentua a margem entre seus preços de mercado e o valor real da produção.(18)
O que aparece claramente, portanto, é que as nações desfavorecidas pela troca desigual não buscam tanto corrigir o desequilíbrio entre os preços e o valor de suas mercadorias exportadas (o que implicaria um esforço redobrado para aumentar a capacidade produtiva do trabalho), mas procuram compensar a perda de renda gerada pelo comércio internacional por meio do recurso de uma maior exploração do trabalhador. Chegamos assim a um ponto em que já não nos basta continuar trabalhando simplesmente a noção de troca entre nações, mas devemos encarar o fato de que, no marco dessa troca, a apropriação de valor realizado encobre a apropriação de uma mais-valia que é gerada mediante a exploração do trabalho no interior de cada nação. Sob esse ângulo, a transferência de valor é uma transferência de mais-valia, que se apresenta, desde o ponto de vista do capitalista que opera na nação desfavorecida, como uma queda da taxa de mais-valia e por isso da taxa de lucro. Assim, a contrapartida do processo mediante o qual a América Latina contribuiu para incrementar a taxa de mais-valia e a taxa de lucro nos países industriais implicou para ela efeitos rigorosamente opostos. E o que aparecia como um mecanismo de compensação no nível de mercado é de fato um mecanismo que opera em nível da produção interna. É para essa esfera que se deve deslocar, portanto, o enfoque de nossa análise.
Vimos que o problema colocado pela troca desigual para a América Latina não é precisamente o de se contrapor à transferência de valor que implica, mas compensar a perda de mais-valia, e que, incapaz de impedi-la no nível das relações de mercado, a reação da economia dependente é compensá-la no plano da produção interna. O aumento da intensidade do trabalho aparece, nessa perspectiva, como um aumento da mais-valia, obtido através de uma maior exploração do trabalhador e não do incremento de sua capacidade produtiva. O mesmo se poderia dizer da prolongação da jornada de trabalho, isto é, do aumento da mais-valia absoluta na sua forma clássica; diferentemente do primeiro, trata-se aqui de aumentar simplesmente o tempo de trabalho excedente, que é aquele em que o operário continua produzindo depois de criar um valor equivalente ao dos meios de subsistência para seu próprio consumo. Deve-se assinalar, finalmente, um terceiro procedimento, que consiste em reduzir o consumo do operário mais além do seu limite normal, pelo qual "o fundo necessário de consumo do operário se converte de fato, dentro de certos limites, em um fundo de acumulação de capital", implicando assim em um modo específico de aumentar o tempo de trabalho excedente.(19)
Precisemos aqui que a utilização de categorias que se referem à apropriação do trabalho excedente no marco de relações capitalistas de produção não implica o suposto de que a economia exportadora latino-americana se baseia já na produção capitalista. Recorremos a essas categorias no espírito das observações metodológicas que avançamos ao iniciar este trabalho, ou seja, porque permitem caracterizar melhor os fenómenos que pretendemos estudar e também porque indicam a direção para a qual estes tendem. Por outra parte, não é a rigor necessário que exista a troca desigual para que comecem a operar os mecanismos de extração de mais-valia mencionados; o simples fato da vinculação ao mercado mundial, e a conversão conseguinte da produção de valores de uso em produção de valores de troca que isso acarreta, tem como resultado imediato desatar um afã por lucro que se torna tanto mais desenfreado quanto mais atrasado é o modo de produção existente. Como observa Marx,
"[...] tão logo como os povos cujo regime de produção vinha se desenvolvendo nas formas primitivas de escravidão, relações de vassalagem etc, se vêem atraídos ao mercado mundial, onde impera o regime capitalista de produção e onde é imposto a tudo o interesse de dar vazão aos produtos para o estrangeiro, os tormentos bárbaros da escravidão, da servidão da gleba etc, se vêem acrescentados pelos tormentos civilizados do trabalho excedente".(20)
O efeito da troca desigual é — à medida que coloca obstáculos a sua plena satisfação — o de exacerbar esse afã por lucro e aguçar portanto os métodos de extração de trabalho excedente.
Pois bem, os três mecanismos identificados — a intensificação do trabalho, a prolongação da jornada de trabalho e a expropriação de parte do trabalho necessário ao operário para repor sua força de trabalho — configuram um modo de produção fundado exclusivamente na maior exploração do trabalhador, e não no desenvolvimento de sua capacidade produtiva. Isso é condizente com o baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas na economia latino-americana, mas também com os tipos de atividades que ali se realizam. De fato, mais que na indústria fabril, na qual um aumento de trabalho implica pelo menos um maior gasto de matérias primas, na indústria extrativa e na agricultura o efeito do aumento do trabalho sobre os elementos do capital constante são muito menos sensíveis, sendo possível, pela simples ação do homem sobre a natureza, aumentar a riqueza produzida sem um capital adicional.(21) Entende-se que, nessas circunstâncias, a atividade produtiva baseia-se sobretudo no uso extensivo e intensivo da força de trabalho: isso permite baixar a composição-valor do capital, o que, aliado à intensificação do grau de exploração do trabalho, faz com que se elevem simultaneamente as taxas de mais-valia e de lucro.
Além disso, importa assinalar que, nos três mecanismos considerados, a característica essencial está dada pelo fato de que são negadas ao trabalhador as condições necessárias para repor o desgaste de sua força de trabalho: nos dois primeiros casos, porque lhe é obrigado um dispêndio de força de trabalho superior ao que deveria proporcionar normalmente, provocando assim seu esgotamento prematuro; no último, porque lhe é retirada inclusive a possibilidade de consumo do estritamente indispensável para conservar sua força de trabalho em estado normal. Em termos capitalistas, esses mecanismos (que ademais podem se apresentar, e normalmente se apresentam, de forma combinada) significam que o trabalho é remunerado abaixo de seu valor(22) e correspondem, portanto, a uma superexploração do trabalho.
É o que explica que tenha sido precisamente nas zonas dedicadas à produção para exportação em que o regime de trabalho assalariado foi imposto primeiro, iniciando o processo de transformação das relações de produção na América Latina. E útil ter presente que a produção capitalista supõe a apropriação direta da força de trabalho, e não apenas dos produtos do trabalho; nesse sentido, a escravidão é um modo de trabalho que se adapta mais ao capital que a servidão, não sendo acidental que as empresas coloniais diretamente conectadas com os centros capitalistas europeus — como as minas de ouro e de prata do México e do Peru, ou as plantações de cana do Brasil — foram assentadas sobre o trabalho escravo.(23) Mas, salvo na hipótese de que a oferta de trabalho seja totalmente elástica (o que não se verifica com a mão de obra escrava na América Latina, a partir da segunda metade do século 19), o regime de trabalho escravo constitui um obstáculo ao rebaixamento indiscriminado da remuneração do trabalhador. "No caso do escravo, o salário mínimo aparece como uma magnitude constante, independente de seu trabalho. No caso do trabalhador livre, esse valor de sua capacidade de trabalho e o salário médio que corresponde ao mesmo não estão contidos dentro desses limites predestinados, independentes de seu próprio trabalho, determinados por suas necessidades puramente físicas. A média é aqui mais ou menos constante para a classe, como o valor de todas as mercadorias, mas não existe nesta realidade imediata para o operário individual cujo salário pode estar acima ou abaixo desse mínimo."(24) Em outros termos, o regime de trabalho escravo, salvo em condições excepcionais do mercado de mão de obra, é incompatível com a superexploração do trabalho. Não ocorre o mesmo com o trabalho assalariado e, em menor medida, com o trabalho servil.
Insistamos neste ponto. A superioridade do capitalismo sobre as demais formas de produção mercantil, e sua diferença básica em relação a elas, reside em que aquilo que se transforma em mercadoria não é o trabalhador — ou seja, o tempo total de existência do trabalhador, com todos os momentos mortos que este implica desde o ponto de vista da produção — mas sua força de trabalho, isto é, o tempo de sua existência que pode ser utilizada para a produção, deixando para o mesmo trabalhador o cuidado de responsabilizar-se pelo tempo não produtivo, desde o ponto de vista capitalista. É esta a razão pela qual, ao se subordinar uma economia escravista ao mercado capitalista mundial, o aprofundamento da exploração do escravo é acentuado, já que interessa portanto a seu proprietário reduzir os tempos mortos para a produção e fazer coincidir o tempo produtivo com o tempo de existência do trabalhador.
Mas, como assinala Marx,
"o escravista compra operários como poderia comprar cavalos. Ao perder o escravo, perde um capital que se vê obrigado a repor mediante um novo investimento no mercado de escravos".(25)
A superexploração do escravo, que prolonga sua jornada de trabalho mais além dos limites fisiológicos admissíveis e redunda necessariamente no esgotamento prematuro, por morte ou incapacidade, só pode acontecer, portanto, se é possível repor com facilidade a mão de obra desgastada.
"Os campos de arroz da Geórgia e os pântanos do Mississipi influem talvez de uma forma fatalmente destruidora sobre a constituição humana; entretanto, essa destruição de vidas humanas não é tão grande que não possa ser compensada pelos cercados transbordantes da Virgínia e do Kentucky. Aquelas considerações econômicas que poderiam oferecer uma espécie de salvaguarda do tratamento humano dado aos escravos, enquanto a conservação da vida destes estava identificada com o interesse de seus senhores, foram modificadas ao se implantar o comércio de escravos por outros tantos motivos de espoliação implacável de suas energias, pois tão logo a vaga produzida por um escravo pode ser coberta pela importação de negros de outros cercados, a duração de sua vida cede em importância, enquanto dura a sua produtividade".(26)
A evidência contrária comprova o mesmo: no Brasil da segunda metade do século passado [19], quando se iniciava o auge do café, o fato de que o tráfico de escravos tenha sido suprimido em 1850 fez a mão de obra escrava tão pouco atrativa para os proprietários de terras do Sul que estes preferiram apelar para o regime assalariado, mediante a imigração europeia, além de favorecer uma política no sentido de suprimir a escravidão. Recordemos que uma parte importante da população escrava encontrava-se na decadente zona açucareira do Nordeste e que o desenvolvimento do capitalismo agrário no Sul impunha sua liberação, a fim de constituir um mercado livre de trabalho. A criação desse mercado, com a lei da abolição da escravatura em 1888, que culminava uma série de medidas graduais nessa direção (como a condição de homem livre assegurada aos filhos de escravos etc), constitui um fenômeno dos mais interessantes; por um lado, definia-se como uma medida extremamente radical, que liquidava com as bases da sociedade imperial (a monarquia sobreviverá pouco mais de um ano à lei de 1888) e chegava inclusive a negar qualquer tipo de indenização aos antigos proprietários de escravos; por outra parte, buscava compensar o impacto de seu efeito, por meio de medidas destinadas a atar o trabalhador à terra (a inclusão de um artigo no código civil que vinculava à pessoa as dívidas contraídas; o sistema de "barracão", verdadeiro monopólio do comércio de bens de consumo exercido pelo latifundiário no interior da fazenda etc.) e da outorga de créditos generosos aos proprietários afetados.
O sistema misto de servidão e de trabalho assalariado que se estabelece no Brasil, ao se desenvolver a economia de exportação para o mercado mundial, é uma das vias pelas quais a América Latina chega ao capitalismo. Observemos que a forma que adotam as relações de produção nesse caso não se diferencia muito do regime de trabalho que se estabelece, por exemplo, nas minas chilenas de salitre, cujo "sistema de fichas" equivale ao "barracão". Em outras situações, que ocorrem sobretudo no processo de subordinação do interior às zonas de exportação, as relações de exploração podem se apresentar mais nitidamente como relações servis, sem que isso impeça que, através da extorsão do mais-produto do trabalhador pela ação do capital comercial ou usurário, o trabalhador se veja implicado em uma exploração direta pelo capital, que tende inclusive a assumir um caráter de superexploração.(27) Entretanto, a servidão apresenta, para o capitalista, o inconveniente de que não lhe permite dirigir diretamente a produção, além de colocar sempre a possibilidade, ainda que teórica, de que o produtor imediato se emancipe da dependência em que o coloca o capitalista.
Não é, entretanto, nosso objetivo estudar aqui as formas econômicas particulares que existiam na América Latina antes que esta ingressasse efetivamente na etapa capitalista de produção, nem as vias através das quais teve lugar a transição. O que pretendemos é tão somente fixar a pauta em que há de ser conduzido este estudo, pauta que corresponde ao movimento real da formação do capitalismo dependente: da circulação à produção, da vinculação ao mercado mundial ao impacto que isso acarreta sobre a organização interna do trabalho, para voltar então a recolocar o problema da circulação. Porque é próprio do capital criar seu próprio modo de circulação, e/ou disso depende a reprodução ampliada em escala mundial do modo de produção capitalista:
[...] já que só o capital implica as condições de produção do capital, já que só ele satisfaz essas condições e busca realizá-las, sua tendência geral é a de formar por todos os lugares as bases da circulação, os centros produtores desta, e assimilá-las, isto é, convertê-las em centros de produção virtual ou efetivamente criadores de capital.(28)
Uma vez convertida em centro produtor de capital, a América Latina deverá criar, portanto, seu próprio modo de circulação, que não pode ser o mesmo que aquele engendrado pelo capitalismo industrial e que deu lugar à dependência. Para constituir um todo complexo, há que recorrer a elementos simples e combináveis entre si, mas não iguais. Compreender a especificidade do ciclo do capital na economia dependente latino-americana significa, portanto, iluminar o fundamento mesmo de sua dependência em relação à economia capitalista mundial.
Desenvolvendo sua economia mercantil, em função do mercado mundial, a América Latina é levada a reproduzir em seu seio as relações de produção que se encontravam na origem da formação desse mercado, e determinavam seu caráter e sua expansão.(29) Mas esse processo estava marcado por uma profunda contradição: chamada para contribuir com a acumulação de capital com base na capacidade produtiva do trabalho, nos países centrais, a América Latina teve de fazê-lo mediante uma acumulação baseada na superexploração do trabalhador. E nessa contradição que se radica a essência da dependência latino-americana.
A base real sobre a qual se desenvolve são os laços que ligam a economia latino-americana com a economia capitalista mundial. Nascida para atender as exigências da circulação capitalista, cujo eixo de articulação está constituído pelos países industriais, e centrada portanto sobre o mercado mundial, a produção latino-americana não depende da capacidade interna de consumo para sua realização. Opera-se, assim, desde o ponto de vista do país dependente, a separação dos dois momentos fundamentais do ciclo do capital — a produção e a circulação de mercadorias — cujo efeito é fazer com que apareça de maneira específica na economia latino-americana a contradição inerente à produção capitalista em geral, ou seja, a que opõe o capital ao trabalhador enquanto vendedor e comprador de mercadorias.(30)
Trata-se de um ponto-chave para entender o caráter da economia latino-americana. Inicialmente, há de se considerar que, nos países industriais, cuja acumulação de capital se baseia na produtividade do trabalho, essa oposição que gera o duplo caráter do trabalho — produtor e consumidor —, ainda que seja efetiva, se vê, em certa medida, contraposta pela forma que assume o ciclo do capital. É assim como, em que pese o privilégio do capital pelo consumo produtivo do trabalhador (ou seja, o consumo de meios de produção que implica o processo de trabalho), e se inclina a desestimular seu consumo individual (que o trabalhador emprega para repor sua força de trabalho), o qual lhe aparece como consumo improdutivo,(31) isso se dá exclusivamente no momento da produção. Ao ser iniciada a fase de realização, essa contradição aparente entre o consumo individual dos trabalhadores e a reprodução do capital desaparece, uma vez que o dito consumo (somado ao dos capitalistas e das camadas improdutivas em geral) restabelece ao capital a forma que lhe é necessária para começar um novo ciclo, quer dizer, a forma dinheiro. O consumo individual dos trabalhadores representa, portanto, um elemento decisivo na criação de demanda para mercadorias produzidas, sendo uma das condições para que o fluxo da produção se resolva adequadamente no fluxo da circulação.(32) Por meio da mediação que se estabelece pela luta entre os operários e os patrões em torno da fixação do nível dos salários, os dois tipos de consumo do operário tendem assim a se complementar, no curso do ciclo do capital, superando a situação inicial de oposição em que se encontravam. Essa é, ademais, uma das razões pelas quais a dinâmica do sistema tende a se canalizar por meio da mais-valia relativa, que implica, em última instância, o barateamento das mercadorias que entram na composição do consumo individual do trabalhador.
Na economia exportadora latino-americana, as coisas se dão de outra maneira. Como a circulação se separa da produção e se efetua basicamente no âmbito do mercado externo, o consumo individual do trabalhador não interfere na realização do produto, ainda que determine a taxa de mais-valia. Em consequência, a tendência natural do sistema será a de explorar ao máximo a força de trabalho do operário, sem se preocupar em criar as condições para que este a reponha, sempre e quando seja possível substituí-lo pela incorporação de novos braços ao processo produtivo. O dramático para a população trabalhadora da América Latina é que essa hipótese foi cumprida amplamente: a existência de reservas de mão de obra indígena (como no México), ou os fluxos migratórios derivados do deslocamento de mão de obra europeia, provocado pelo progresso tecnológico (como na América do Sul), permitiram aumentar constantemente a massa trabalhadora, até o início do século 20. Seu resultado tem sido o de abrir livre curso para a compressão do consumo individual do operário e, portanto, para a superexploração do trabalho.
A economia exportadora é, portanto, algo mais que o produto de uma economia internacional fundada na especialização produtiva: é uma formação social baseada no modo capitalista de produção, que acentua até o limite as contradições que lhe são próprias. Ao fazê-lo, configura de maneira específica as relações de exploração em que se baseia e cria um ciclo de capital que tende a reproduzir em escala ampliada a dependência em que se encontra frente à economia internacional.
É assim como o sacrifício do consumo individual dos trabalhadores em favor da exportação para o mercado mundial deprime os níveis de demanda interna e erige o mercado mundial como única saída para a produção. Paralelamente, o incremento dos lucros que disso se deriva coloca o capitalista em condições de desenvolver expectativas de consumo sem contrapartida na produção interna (orientada para o mercado mundial), expectativas que têm de ser satisfeitas por meio de importações. A separação entre o consumo individual fundado no salário e o consumo individual engendrado pela mais-valia não acumulada dá origem, portanto, a uma estratificação do mercado interno, que também é uma diferenciação de esferas de circulação: enquanto a esfera "baixa", onde se encontram os trabalhadores — que o sistema se esforça por restringir —, se baseia na produção interna, a esfera "alta" de circulação, própria dos não-trabalhadores — que é aquela que o sistema tende a ampliar —, se relaciona com a produção externa, por meio do comércio de importação.
A harmonia que se estabelece, no nível do mercado mundial, entre a exportação de matérias primas e alimentos, por parte da América Latina, e a importação de bens de consumo manufaturados europeus, encobre a dilaceração da economia latino-americana, expressa pela cisão do consumo individual total em duas esferas contrapostas. Quando, chegado o sistema capitalista mundial a um certo grau de seu desenvolvimento, a América Latina ingressar na etapa da industrialização, deverá fazê-lo a partir das bases criadas pela economia de exportação. A profunda contradição que terá caracterizado o ciclo do capital dessa economia e seus efeitos sobre a exploração do trabalho incidirão de maneira decisiva no curso que tomará a economia industrial latino-americana, explicando muitos dos problemas e das tendências que nela se apresentam atualmente.
Não cabe aqui entrar na análise do processo de industrialização na América Latina, nem muito menos tomar partido na atual controvérsia sobre o papel que nesse processo desempenhou a substituição de importações.(33) Para os fins a que nos propomos, é suficiente fazer notar que, por significativo que tivesse sido o desenvolvimento industrial no seio da economia exportadora (e, por consequência, na extensão do mercado interno), em países como Argentina, México, Brasil e outros, não chegou nunca a conformar uma verdadeira economia industrial, que, definindo o caráter e o sentido da acumulação de capital, acarretasse em uma mudança qualitativa no desenvolvimento econômico desses países. Ao contrário, a indústria continuou sendo ali uma atividade subordinada à produção e exportação de bens primários, que constituíam, estes sim, o centro vital do processo de acumulação.(34) É apenas quando a crise da economia capitalista internacional, correspondente ao período compreendido entre a primeira e a segunda guerras mundiais, limita a acumulação baseada na produção para o mercado externo, que o eixo da acumulação se desloca para a indústria, dando origem à moderna economia industrial que prevalece na região.
Desde o ponto de vista que nos interessa, isso significa que a esfera alta da circulação, que se articulava com a oferta externa de bens manufaturados de consumo, desloca seu centro de gravidade para a produção interna, passando sua parábola a coincidir, grosso modo, com a que descreve a esfera baixa, própria das massas trabalhadoras. Parecia assim que o movimento excêntrico que apresentava a economia exportadora começava a se corrigir, e que o capitalismo dependente orientava-se no sentido de uma configuração similar à dos países industriais clássicos. Foi sobre essa base que prosperaram, na década de 1950, as diferentes correntes chamadas desenvolvimentistas, que supunham que os problemas econômicos e sociais que afetavam a formação social latino-americana tivessem origem na insuficiência do desenvolvimento capitalista e que a aceleração deste bastaria para fazê-los desaparecer.
De fato, as similaridades aparentes da economia industrial dependente com a economia industrial clássica encobriam profundas diferenças, que o desenvolvimento capitalista acentuaria em lugar de atenuar. A reorientação para o interior da demanda gerada pela mais-valia não acumulada implicava um mecanismo específico de criação de mercado interno radicalmente diferente do que operava na economia clássica e que teria graves repercussões na forma que assumiria a economia industrial dependente.
Na economia capitalista clássica, a formação do mercado interno representa a contrapartida da acumulação de capital: ao separar o produtor dos meios de produção, o capital não só criou o assalariado, isto é, o trabalhador que só dispõe de sua força de trabalho, como também criou o consumidor. De fato, os meios de subsistência do operário, antes produzidos diretamente por ele, são incorporados ao capital, como elemento material do capital variável, e só são restituídos ao trabalhador quando este compra seu valor baixo a forma de salário.(35) Existe, pois, uma estreita correspondência entre o ritmo da acumulação e o da expansão do mercado. A possibilidade que tem o capitalista industrial de obter no exterior, a preço baixo, os alimentos necessários ao trabalhador, leva a estreitar o nexo entre a acumulação e o mercado, uma vez que aumenta a parte do consumo individual do operário dedicada à absorção de produtos manufaturados. É por isso que a produção industrial, nesse tipo de economia, concentra-se basicamente nos bens de consumo popular e procura barateá-los, uma vez que incidem diretamente no valor da força de trabalho e portanto — à medida que as condições em que se dá a luta entre os operários e os patrões tende a aproximar os salários desse valor -na taxa de mais-valia. Vimos que essa é a razão fundamental pela qual a economia capitalista clássica deve se orientar para o aumento da produtividade do trabalho.
O desenvolvimento da acumulação baseada na produtividade do trabalho tem como resultado o aumento da mais-valia e, em consequência, da demanda criada pela parte desta que não é acumulada. Em outras palavras, cresce o consumo individual das classes não produtoras, com o que se amplia a esfera da circulação que lhes corresponde. Isso não só impulsiona o crescimento da produção de bens de consumo manufaturados, em geral, como também o da produção de artigos supérfluos.(36) A circulação tende portanto a se dividir em duas esferas, de maneira similar ao que constatamos na economia latino-americana de exportação, mas com uma diferença substancial: a expansão da esfera superior é uma consequiência da transformação das condições de produção e se torna possível à medida que, aumentando a produtividade do trabalho, a parte do consumo individual total que corresponde ao operário diminui em termos reais. A ligação existente entre as duas esferas de consumo é distendida, mas não se rompe.
Outro fator contribui para impedir que a ruptura se realize: é a forma como se amplia o mercado mundial. A demanda adicional de produtos supérfluos que cria o mercado exterior é necessariamente limitada, primeiro porque, quando o comércio se efetua entre nações que produzem esses bens, o avanço de uma nação implica no retrocesso de outra, o que suscita, por parte da última, mecanismos de defesa; e depois porque, no caso da troca com os países dependentes, essa demanda se restringe às classes altas, e se vê assim constrangida pela forte concentração de renda que implica a superexploração do trabalho. Portanto, para que a produção de bens de luxo possa se expandir, esses bens têm de mudar o seu caráter, ou seja, converter-se em produtos de consumo popular no interior mesmo da economia industrial. As circunstâncias que permitem elevar ali os salários reais, a partir da segunda metade do século 19, às quais não é estranha a desvalorização dos alimentos e a possibilidade de redistribuir internamente parte do excedente subtraído das nações dependentes, ajudam, na medida em que ampliam o consumo individual dos trabalhadores, a se contrapor às tendências desarticuladoras que atuam no nível da circulação.
A industrialização(37) latino-americana se dá sobre bases distintas. A compressão permanente que exercia a economia exportadora sobre o consumo individual do trabalhador não permitiu mais do que a criação de uma indústria débil, que só se ampliava quando fatores externos (como as crises comerciais, conjunturalmente, e a limitação dos excedentes da balança comercial, pelas razoes já assinaladas) fechavam parcialmente o acesso da esfera alta de consumo para o comércio de importação.(38) É a maior incidência desses fatores, como vimos, o que acelera o crescimento industrial, a partir de certo momento, e provoca a mudança qualitativa do capitalismo dependente. A industrialização latino-americana não cria, portanto, como nas economias clássicas, sua própria demanda, mas nasce para atender a uma demanda pré-existente, e se estruturará em função das exigências de mercado procedentes dos países avançados.
No início da industrialização, a participação dos trabalhadores na criação da demanda não joga portanto um papel significativo na América Latina. Operando no marco de uma estrutura de mercado previamente dada, cujo nível de preços atuava no sentido de impedir o acesso do consumo popular, a indústria não tinha razões para aspirar uma situação distinta. A capacidade de demanda era, naquele momento, superior à oferta, pelo que não se apresentava ao capitalista o problema de criar mercado para suas mercadorias, mas uma situação inversa. Por outro lado, ainda quando a oferta chegue a se equilibrar com a demanda — isso não colocará de imediato para o capitalista a ampliação do mercado, levando-o antes a jogar sobre a margem entre o preço de mercado e o preço de produção, ou seja, sobre o aumento da massa de lucro em função do preço unitário do produto. Para isso, o capitalista industrial forçará, por um lado, o aumento de preços, aproveitando-se da situação monopolista criada de fato pela crise do comércio mundial e reforçada pelas barreiras alfandegárias. Por outro lado, e dado que o baixo nível tecnológico faz com que o preço de produção seja determinado fundamentalmente pelos salários, o capitalista industrial valer-se-á do excedente de mão de obra criado pela própria economia exportadora e agravado pela crise que esta atravessa (crise que obriga o setor exportador a liberar mão de obra), para pressionar os salários no sentido descendente. Isso lhe permitirá absorver grandes massas de trabalho, o que, acentuado pela intensificação do trabalho e pela prolongação da jornada de trabalho, acelerará a concentração de capital no setor industrial.
Partindo então do modo de circulação que caracterizara a economia exportadora, a economia industrial dependente reproduz, de forma específica, a acumulação de capital baseada na superexploração do trabalhador. Em consequência, reproduz também o modo de circulação que corresponde a esse tipo de acumulação, ainda que de maneira modificada: já não é a dissociação entre a produção e a circulação de mercadorias em função do mercado mundial o que opera, mas a separação entre a esfera alta e a esfera baixa da circulação no interior mesmo da economia, separação que, ao não ser contraposta pelos fatores que atuam na economia capitalista clássica, adquire um caráter muito mais radical.
Dedicada à produção de bens que não entram, ou entram muito escassamente, na composição do consumo popular, a produção industrial latino-americana é independente das condições de salário próprias dos trabalhadores; isso em dois sentidos. Em primeiro lugar, porque, ao não ser um elemento essencial do consumo individual do operário, o valor das manufaturas não determina o valor da força de trabalho; não será, portanto, a desvalorização das manufaturas o que influirá na taxa de mais-valia. Isso dispensa o industrial de se preocupar em aumentar a produtividade do trabalho para, fazendo baixar o valor da unidade de produto, depreciar a força de trabalho, e o leva, inversamente, a buscar o aumento da mais-valia por meio da maior exploração — intensiva e extensiva — do trabalhador, assim como a redução de salários mais além de seu limite normal. Em segundo lugar, porque a relação inversa que daí se deriva para a evolução da oferta de mercadorias e do poder de compra dos operários, isto é, o fato de que a primeira cresça à custa da redução do segundo, não cria problemas para o capitalista na esfera da circulação, uma vez que, como deixamos claro, as manufaturas não são elementos essenciais no consumo individual do operário.
Dissemos anteriormente que a uma certa altura do processo, que varia segundo os países,(39) a oferta industrial coincide em linhas gerais com a demanda existente, constituída pela esfera alta da circulação. Surge então a necessidade de generalizar o consumo de manufaturas, o que corresponde àquele momento em que, na economia clássica, os bens supérfluos tiveram de se converter em bens de consumo popular. Isso leva a dois tipos de adaptações na economia industrial dependente: a ampliação do consumo das camadas médias, que é criado a partir da mais-valia não acumulada, e o esforço para aumentar a produtividade do trabalho, condição sine qua non para baratear as mercadorias.
O segundo movimento tenderia, normalmente, a provocar uma mudança qualitativa na base da acumulação de capital, permitindo ao consumo individual do operário modificar sua composição e incluir bens manufaturados. Se agisse sozinho, levaria ao deslocamento do eixo da acumulação, da exploração do trabalhador para o aumento da capacidade produtiva do trabalho. Entretanto, é parcialmente neutralizado pela ampliação do consumo dos setores médios: este supõe, de fato, o incremento das rendas que recebem ditos setores, rendas que, como sabemos, são derivadas da mais-valia e, em consequência, da compressão do nível salarial dos trabalhadores. A transição de um modo de acumulação para outro se torna, portanto, difícil e é realizada com extrema lentidão, mas é suficiente para desencadear um mecanismo que atuará no longo prazo no sentido de obstruir a transição, desviando para um novo meio a busca de soluções para os problemas de realização encarados pela economia industrial.
Esse mecanismo é o recurso à tecnologia estrangeira, destinado a elevar a capacidade produtiva do trabalho.
É um fato conhecido que, na medida em que avança a industrialização latino-americana, altera-se a composição de suas importações, por meio da redução do item relativo a bens de consumo e sua substituição por matérias primas, produtos semielaborados e maquinário destinados para a indústria. Entretanto, a crise permanente do setor externo dos países da região não havia permitido que as necessidades crescentes de elementos materiais do capital constante pudessem ser satisfeitas exclusivamente pela troca comercial. É por isso que adquire singular importância a importação de capital estrangeiro, sob a forma de financiamento de investimentos diretos na indústria.
As facilidades que a América Latina encontra no exterior para recorrer à importação de capital não são acidentais. Devem-se à nova configuração que assume a economia internacional capitalista no período do pós-guerra. Por volta de 1950, ela havia superado a crise que a afetara, a partir da década de 1910, e se encontrava já reorganizada sob a égide estadunidense. O avanço conseguido pela concentração de capital em escala mundial coloca então nas mãos das grandes corporações imperialistas uma abundância de recursos, que necessitam buscar aplicação no exterior. O traço significativo do período é que esse fluxo de capital para a periferia se orienta de forma preferencial para o setor industrial.
Para isso concorre o fato de que, enquanto durou a desorganização da economia mundial, desenvolveram-se bases industriais periféricas, que ofereciam — graças à superexploração do trabalho — possibilidades atrativas de lucro. Mas não será o único fato, e talvez não seja o mais decisivo. No curso do mesmo período, verificara-se um grande desenvolvimento do setor de bens de capital nas economias centrais. Isso levou, por um lado, a que os equipamentos ali produzidos, sempre mais sofisticados, tivessem de ser aplicados no setor secundário dos países periféricos; surge então, por parte das economias centrais, o interesse de impulsionar nestes o processo de industrialização, com o propósito de criar mercados para sua indústria pesada. Por outro lado, na medida em que o ritmo do progresso técnico reduziu nos países centrais o prazo de reposição do capital fixo praticamente à metade,(40) colocou-se para esses países a necessidade de exportar para a periferia equipamentos e maquinário que já eram obsoletos antes de que tivessem sido amortizados totalmente.
A industrialização latino-americana corresponde assim a uma nova divisão internacional do trabalho, em cujo marco são transferidas para os países dependentes etapas inferiores da produção industrial (observe-se que a siderurgia, que correspondia a um sinal distintivo da economia industrial clássica, generalizou-se a tal ponto que países como Brasil já exportam aço), sendo reservadas para os centros imperialistas as etapas mais avançadas (como a produção de computadores e a indústria eletrônica pesada em geral, a exploração de novas fontes de energia, como a de origem nuclear etc.) e o monopólio da tecnologia correspondente. Indo ainda mais longe, pode-se distinguir na economia internacional escalões, nos quais vão sendo recolocados não só os novos países industriais, mas também os mais antigos. É assim como, na produção de aço e na de veículos automotores, a Europa Ocidental e o Japão competem vantajosamente com os mesmos Estados Unidos, mas não conseguem ainda fazê-lo no que se refere à indústria de máquinas e ferramentas, principalmente as automatizadas.(41) O que temos aqui é uma nova hierarquização da economia capitalista mundial, cuja base é a redefinição da divisão internacional do trabalho ocorrida nos últimos 50 anos.
Seja como for, no momento em que as economias industriais dependentes vão buscar no exterior o instrumental tecnológico que lhes permita acelerar seu crescimento, elevando a produtividade do trabalho, é aquele também em que, a partir dos países centrais, têm origem importantes fluxos de capital que se direcionam para elas, fluxos que lhes trazem a tecnologia requerida. Não examinaremos aqui os efeitos próprios das distintas formas que assume a absorção tecnológica, e que vão desde a doação até o investimento direto de capital estrangeiro, já que, desde o ponto de vista que orienta nossa análise, isto não tem maior importância. Ocupar-nos-emos tão somente do caráter dessa tecnologia e de seu impacto sobre a ampliação do mercado.
O progresso tecnológico caracteriza-se pela economia de força de trabalho que, seja em termos de tempo, seja em termos de esforço, o operário deve dedicar para a produção de uma certa massa de bens. E natural, portanto, que, globalmente, seu resultado seja a redução do tempo de trabalho produtivo em relação ao tempo total disponível para a produção, o que, na sociedade capitalista, se manifesta por meio da diminuição da população operária paralelamente ao crescimento da população que se dedica a atividades não produtivas, às que correspondem aos serviços. Essa é a forma específica que assume o desenvolvimento tecnológico em uma sociedade baseada na exploração do trabalho, mas não a forma geral do desenvolvimento tecnológico. É por isso que as recomendações que se têm feito para os países dependentes, onde se verifica uma grande disponibilidade de mão de obra, no sentido de que adotem tecnologias que incorporem mais força de trabalho, com o objetivo de defender os níveis de emprego, representam um duplo engano: levam a preconizar a opção por um menor desenvolvimento tecnológico e confundem os efeitos sociais especificamente capitalistas da técnica com a técnica em si.
Além disso, essas recomendações ignoram as condições concretas em que se dá a introdução do progresso técnico nos países dependentes. Essa introdução depende, como assinalamos, menos das preferências que eles tenham e mais da dinâmica objetiva da acumulação de capital em escala mundial. Ela foi a que impulsionou a divisão internacional do trabalho a assumir uma configuração, em cujo marco foram abertos novos rumos para a difusão do progresso técnico e deu-se a esta um ritmo mais acelerado. Os efeitos daí derivados para a situação dos trabalhadores nos países dependentes não poderiam diferir em essência dos que são consubstanciais a uma sociedade capitalista: redução da população produtiva e crescimento das camadas sociais não produtivas. Mas, esses efeitos teriam de aparecer modificados pelas condições de produção próprias do capitalismo dependente.
É assim como, incidindo sobre uma estrutura produtiva baseada na maior exploração dos trabalhadores, o progresso técnico possibilitou ao capitalista intensificar o ritmo de trabalho do operário, elevar sua produtividade e, simultaneamente, sustentar a tendência para remunerá-lo em proporção inferior a seu valor real. Para isso contribuiu decisivamente a vinculação das novas técnicas de produção com setores industriais orientados para tipos de consumo que, se tendem a convertê-los em consumo popular nos países avançados, não podem fazê-lo sob nenhuma hipótese nas sociedades dependentes. O abismo existente entre o nível de vida dos trabalhadores e o dos setores que alimentam a esfera alta da circulação torna inevitável que produtos como automóveis, aparelhos eletrodomésticos etc. sejam destinados necessariamente para esta última. Nessa medida, e toda vez que não representam bens que intervenham no consumo dos trabalhadores, o aumento de produtividade induzido pela técnica nesses setores de produção não poderia se traduzir em maiores lucros por meio da elevação da taxa de mais-valia, mas apenas mediante o aumento da massa de valor realizado. A difusão do progresso técnico na economia dependente seguirá, portanto, junto a uma maior exploração do trabalhador, precisamente porque a acumulação continua dependendo fundamentalmente mais do aumento da massa de valor — e portanto de mais-valia — que da taxa de mais-valia.
Pois bem, ao se concentrar de maneira significativa nos setores produtores de bens supérfluos, o desenvolvimento tecnológico acabaria por colocar graves problemas de realização. O recurso utilizado para solucioná-los tem sido o de fazer a intervenção do Estado (por meio da ampliação do aparato burocrático, das subvenções aos produtores e do financiamento ao consumo supérfluo), assim como fazer intervir na inflação, com o propósito de transferir poder de compra da esfera baixa para a esfera alta da circulação; isso implicou em rebaixar ainda mais os salários reais, com o objetivo de contar com excedentes suficientes para efetuar a transferência de renda. Mas, na medida em que se comprime dessa forma a capacidade de consumo dos trabalhadores, é fechada qualquer possibilidade de estímulo ao investimento tecnológico no setor de produção destinado a atender o consumo popular. Não pode ser, portanto, motivo de surpresa que, enquanto as indústrias de bens supérfluo crescem a taxas elevadas, as indústrias orientadas para o consumo de massas (as chamadas "indústrias tradicionais") tendem à estagnação e inclusive à regressão.
Na medida em que se realizava, com dificuldade e a um ritmo extremamente lento, a tendência à aproximação entre as duas esferas de circulação, que se havia observado a partir de certo momento, não pode continuar se desenvolvendo. Ao contrário, o que se impõe é novamente o afastamento entre ambas as esferas, uma vez que a compressão do nível de vida das massas trabalhadoras passa a ser a condição necessária da expansão da demanda criada pelas camadas que vivem da mais-valia. A produção baseada na superexploração do trabalho voltou a engendrar assim o modo de circulação que lhe corresponde, ao mesmo tempo em que divorciava o aparato produtivo das necessidades de consumo das massas. A estratificação desse aparato no que se costuma chamar "indústrias dinâmicas" (setores produtores de bens supérfluos e de bens de capital que se destinam principalmente para estes) e "indústrias tradicionais" está refletindo a adequação da estrutura de produção à estrutura de circulação própria do capitalismo dependente.
Mas não se detém aí a reaproximação do modelo industrial dependente ao da economia exportadora. A absorção do progresso técnico em condições de superexploração do trabalho acarreta a inevitável restrição do mercado interno, a que se contrapõe a necessidade de realizar massas sempre crescentes de valor (já que a acumulação depende mais da massa que da taxa de mais-valia). Essa contradição não poderia ser resolvida por meio da ampliação da esfera alta de consumo no interior da economia, além dos limites estabelecidos pela própria superexploração. Em outras palavras, não podendo estender aos trabalhadores a criação de demanda para os bens supérfluos, e se orientando antes para a compressão salarial, o que os exclui de fato desse tipo de consumo, a economia industrial dependente não só teve de contar com um imenso exército de reserva, como também se obrigou a restringir aos capitalistas e camadas médias altas a realização das mercadorias supérfluas. Isso colocará, a partir de certo momento (que se define nitidamente em meados da década de 1960), a necessidade de expansão para o exterior, isto é, de desdobrar novamente — ainda que agora a partir da base industrial — o ciclo de capital, para centrar parcialmente a circulação sobre o mercado mundial. A exportação de manufaturas, tanto de bens essenciais quanto de produtos supérfluos, converte-se então na tábua de salvação de uma economia incapaz de superar os fatores desarticuladores que a afligem. Desde os projetos de integração econômica regional e subregional até o desenho de políticas agressivas de competição internacional, assiste-se em toda a América Latina à ressureição do modelo da velha economia exportadora.
Nos últimos anos, a expressão acentuada dessas tendências no Brasil nos levou a falar de um subimperialismo.(42) Não pretendemos retomar aqui o tema, já que a caracterização do subimperialismo vai mais além da simples economia, não podendo ser levada a cabo se não recorrermos também à sociologia e à política. Limitar-nos-emos a indicar que, em sua dimensão mais ampla, o subimperialismo não é um fenômeno especificamente brasileiro nem corresponde a uma anomalia na evolução do capitalismo dependente. É certo que são as condições próprias da economia brasileira que lhe permitiram levar bem adiante a sua industrialização e criar inclusive uma indústria pesada, assim como as condições que caracterizam a sua sociedade política, cujas contradições têm dado origem a um Estado militarista de tipo prussiano, as que levaram o Brasil ao subimperialismo, mas não é menos certo que esse não é nada mais do que uma forma particular que assume a economia industrial que se desenvolve no marco do capitalismo dependente. Na Argentina ou em El Salvador, no México, Chile, Peru, a dialética do desenvolvimento capitalista dependente não é essencialmente distinta da que procuramos analisar aqui, em seus traços mais gerais.
Utilizar essa linha de análise para estudar as formações sociais concretas da América Latina, orientar esse estudo no sentido de definir as determinações que se encontram na base da luta de classes que ali se desenvolve e abrir assim perspectivas mais claras para as forças sociais empenhadas em destruir essa formação monstruosa que é o capitalismo dependente: este é o desafio teórico que se coloca hoje em dia para os marxistas latino-americanos. A resposta que lhe dermos influirá sem dúvida de maneira não desprezível no resultado a que chegarão finalmente os processos políticos que estamos vivendo.
Inicialmente, minha intenção foi a de escrever um prefácio ao ensaio precedente. Mas é difícil apresentar um trabalho que é por si mesmo uma apresentação. E Dialética da dependência não pretende ser senão isto: uma introdução à temática de investigação que me vem ocupando e às linhas gerais que orientam este trabalho. Sua publicação oferece o propósito de adiantar algumas conclusões a que tenho chegado, suscetíveis talvez de contribuir com o esforço de outros que se dedicam ao estudo das leis de desenvolvimento do capitalismo dependente, assim como com o desejo de oferecer a mim mesmo a oportunidade de contemplar no seu conjunto o terreno que busco desbravar.
Aproveitarei, pois, este post-scriptum para esclarecer algumas questões e desfazer certos equívocos que o texto tem suscitado. Com efeito, apesar do cuidado posto em matizar as afirmações mais conclusivas, sua extensão limitada levou a que as tendências analisadas se traçassem em grandes linhas, o que lhe conferiu muitas vezes um perfil muito destacado. Por outra parte, o nível mesmo de abstração do ensaio não propiciava o exame de situações particulares, que permitissem introduzir no estudo um certo grau de relativização. Sem pretender justificar-me com isso, os inconvenientes mencionados são os mesmos a que alude Marx quando adverte:
"... teoricamente, se parte do suposto de que as leis da produção capitalista se desenvolvem em estado de pureza. Na realidade, as coisas ocorrem sempre aproximadamente, mas a aproximação à tanto maior quanto mais desenvolvida se faz a produção capitalista e mais se elimina sua mescla e entrelaçamento com os vestígios de sistemas econômicos anteriores".(43)
Por conseguinte, uma primeira conclusão a destacar é precisamente a de que as tendências assinaladas em meu ensaio incidem de forma diversa nos diferentes países latino-americanos, segundo a especificidade de sua formação social. É provável que, por deficiência minha, o leitor não se advirta de um dos supostos que informam minha análise: o de que a economia exportadora constitui a transição a uma autêntica economia capitalista nacional, a qual somente se configura quando emerge ali a economia industrial,(44) e que as sobrevivências dos antigos modos de produção que regiam a economia colonial determinam todavia em grau considerável a maneira como se manifestam nesses países as leis de desenvolvimento do capitalismo dependente. A importância do regime de produção escravista na determinação da atual economia de alguns países latino-americanos, como por exemplo Brasil, é um fato que não pode ser ignorado.
Um segundo problema se refere ao método utilizado no ensaio, que se explicita na indicação da necessidade de partir da circulação para a produção, para empreender depois o estudo da circulação que esta produção engendra. Isso, que tem suscitado algumas objeções, corresponde rigorosamente ao caminho seguido por Marx. Basta recordar como, em O Capital, as primeiras seções do livro I estão dedicadas a problemas próprios da esfera da circulação e somente a partir da terceira seção se entra no estudo da produção: do mesmo modo, uma vez concluído o exame das questões gerais, as questões particulares do modo de produção capitalista se analisam de idêntica maneira nos dois livros seguintes.
Mais além da exposição, isso tem a ver com a essência mesma do método dialético, que faz coincidir o exame teórico de um problema com seu desenvolvimento histórico; é assim como essa orientação metodológica não só corresponde à fórmula geral do capital, mas também dá conta da transformação da produção mercantil simples em produção mercantil capitalista.
A sequência se aplica com mais forte razão quando o objeto de estudo está constituído pela economia dependente. Não insistamos aqui na ênfase que os estudos tradicionais sobre a dependência dão ao papel que desempenha nela o mercado mundial, ou, para usar a linguagem desenvolvimentista, o setor externo. Destaquemos o que constitui um dos temas centrais do ensaio: ao começo de seu desenvolvimento, a economia dependente se encontra inteiramente subordinada à dinâmica da acumulação nos países industriais, a tal ponto que é em função da tendência à queda da taxa de lucro nestes, ou seja, da maneira como ali se expressa a acumulação de capital,(45) que dito desenvolvimento pode ser explicado. Somente na medida em que a economia dependente se vá convertendo de fato num verdadeiro centro produtor de capital, que traz incorporada sua fase de circulação(46) — o que alcança sua maturidade ao se constituir ali um setor industrial — é que se manifestam plenamente nela suas leis de desenvolvimento, as quais representam sempre uma expressão particular das leis gerais que regem o sistema em seu conjunto. A partir desse momento, os fenômenos da circulação que se apresentam na economia dependente deixam de corresponder primariamente a problemas de realização da nação industrial a que ela está subordinada para se tornar cada vez mais em problemas de realização referidos ao próprio ciclo do capital.
Haveria de se considerar, ademais, que a ênfase nos problemas de realização somente seria censurável caso se fizesse em detrimento do que cabe às condições em que se realiza a produção e não contribuísse para explicá-las. Portanto, ao constatar o divórcio que se verifica entre produção e circulação na economia dependente (e sublinhar as formas particulares que assume esse divórcio nas distintas fases de seu desenvolvimento) se insistiu:
É nessa perspectiva que poderemos avançar para a elaboração de uma teoria marxista da dependência. Em meu ensaio tratei de demonstrar que é em função da acumulação de capital em escala mundial, e em particular em função de seu instrumento vital, a taxa geral de lucro, que podemos entender a formação da economia dependente. No essencial, os passos seguidos foram examinar o problema desde o ponto de vista da tendência à baixa da taxa de lucro nas economias industriais e colocá-lo à luz das leis que operam no comércio internacional, e que lhe dão o caráter de intercâmbio desigual. Posteriormente, o foco de atenção se desloca para os fenômenos internos da economia dependente, para prosseguir depois na linha metodológica já indicada. Dado o nível de abstração do ensaio, preocupei-me tão somente, ao desenvolver o tema do intercâmbio desigual, do mercado mundial capitalista em seu estado de maturidade, isto é, submetido plenamente aos mecanismos de acumulação de capital. Convém, entretanto, indicar aqui como esses mecanismos se impõem.
A diversidade do grau de desenvolvimento das forças produtivas nas economias que se integram ao mercado mundial implica diferenças significativas em suas respectivas composições orgânicas do capital, que apontam para distintas formas e graus de exploração do trabalho. A medida que o intercâmbio entre elas vai se estabilizando, tende a se cristalizar um preço comercial cujo termo de referência é, mais além de suas variações cíclicas, o valor das mercadorias produzidas. Em consequência, o grau de participação no valor global realizado na circulação internacional é maior para as economias de composição orgânica mais baixa, ou seja para as economias dependentes. Em termos estritamente econômicos, as economias industriais se defrontam com essa situação recorrendo a mecanismos que tem como resultado extremo as diferenças iniciais em que se dava o intercâmbio. E assim como lançam mão do aumento da produtividade, com o fim de rebaixar o valor individual das mercadorias em relação ao valor médio em vigor e de elevar, portanto, sua participação no montante total de valor trocado. Isso se verificada tanto entre produtores individuais de uma mesma nação quanto entre as nações competidoras. Entretanto, esse procedimento, que corresponde ao intento de burlar as leis do mercado mediante a aplicação delas mesmas, implica a elevação de sua composição orgânica e ativa a tendência à queda de sua taxa de lucro, pelas razões assinalas em meu ensaio.
Como se viu, a ação das economias industriais repercute no mercado mundial no sentido de inflar a demanda de alimentos e de matérias primas, mas a resposta que lhe dá a economia exportadora é rigorosamente inversa: em vez de recorrer ao aumento da produtividade, ou mesmo fazê-lo com caráter prioritário, ela se vale de um maior emprego extensivo e intensivo da força de trabalho; em consequência, baixa sua composição orgânica e aumenta o valor das mercadorias produzidas, o que faz elevar simultaneamente a mais-valia e o lucro. No plano do mercado, leva a que melhorem em seu favor os termos do intercâmbio, onde havia se estabelecido um preço comercial para os produtos primários. Obscurecida pelas flutuações cíclicas do mercado, essa tendência se mantém até a década de 1870; o crescimento das exportações latino-americanas conduz, inclusive, a que comecem a se apresentar saldos favoráveis na balança comercial, que superam os pagamentos por conceito de amortização e juros da dívida externa, o que está indicando que o sistema de crédito concebido pelos países industriais, e que se destinava primariamente a funcionar como fundo de compensação das transações internacionais, não é suficiente para reverter a tendência.
É evidente que, independentemente das demais causas que atuam no mesmo sentido e que têm a ver com a passagem do capitalismo industrial à etapa imperialista, a situação descrita contribui para motivar as exportações de capital para as economias dependentes, uma vez que os lucros são ali consideráveis. Um primeiro resultado disso é a elevação da composição orgânica do capital em ditas economias e o aumento da produtividade do trabalho, que se traduzem na baixa do valor das mercadorias que (se não houver a superexploração) deveriam conduzir à baixa da taxa de lucro. Em consequência, começam a declinar intencionalmente os termos do intercâmbio, como se indica em meu ensaio.
Por outra parte, a presença crescente do capital estrangeiro no financiamento, na comercialização e, inclusive, na produção dos países dependentes, assim como nos serviços básicos, atua no sentido de transferir parte dos lucros ali obtidos para os países industriais; a partir de então, o montante do capital cedido pela economia dependente por meio das operações financeiras cresce mais rapidamente do que o saldo comercial.
A transferência de lucros e, consequentemente, de mais-valia para os países industriais aponta no sentido de formação de uma taxa média de lucro em nível internacional, liberando, portanto, o intercâmbio de sua dependência estrita em relação ao valor das mercadorias; em outros termos, a importância, que, na etapa anterior, tinha o valor como regulador das transações internacionais cede progressivamente lugar à primazia do preço de produção (o custo de produção mais o lucro médio, que, como vimos, é inferior à mais-valia, no caso dos países dependentes). Somente então se pode afirmar que (apesar de seguir estorvada por fatores de ordem extraeconômica, como por exemplo, os monopólios coloniais) a economia internacional alcança sua plena maturidade e faz jogar em escala crescente os mecanismos próprios da acumulação de capital.(47)
Recordemos, para evitar equívocos, que a baixa da taxa de lucro nos países dependentes, como contrapartida da elevação de sua composição orgânica, se compensa mediante os procedimentos de superexploração do trabalho, ademais das circunstâncias peculiares que favorecem, nas economias agrárias e mineiras, a alta rentabilidade do capital variável. Em consequência, a economia dependente segue expandindo suas exportações, a preços sempre mais compensadores para os países industriais (com os efeitos conhecidos na acumulação interna destes) e, simultaneamente, mantém seu atrativo para os capitais externos, o que permite dar continuidade ao processo.
É nesse sentido que a economia dependente — e, por consequência, a superexploração do trabalho — aparece como uma condição necessária do capitalismo mundial, contradizendo àqueles que, como Fernando Henrique Cardoso, a entendem como um fenômeno acidental no desenvolvimento deste. A opinião de Cardoso, emitida num comentário polemico ao meu ensaio, é a de que, tendo em vista que a especificidade do capitalismo industrial reside na produção de mais-valia relativa, tudo o que se refere às formas de produção baseadas na mais-valia absoluta, por significativa que seja sua importância histórica, carece de interesse teórico. Entretanto, para Cardoso, isso não implica abandonar o estudo da economia dependente, uma vez que nesta se dá um processo simultâneo de desenvolvimento e de dependência, o que faz que, em sua etapa contemporânea, ela esteja baseada também na mais-valia relativa e no aumento da produtividade.
Assinalemos, inicialmente, que o conceito de superexploração não é idêntico ao de mais-valia absoluta, já que inclui também uma modalidade de produção de mais-valia relativa — a que corresponde ao aumento da intensidade do trabalho. Por outra parte, a conversão do fundo de salário em fundo de acumulação de capital não representa rigorosamente uma forma de produção de mais-valia absoluta, posto que afeta simultaneamente os dois tempos de trabalho no interior da jornada de trabalho, e não somente o tempo de trabalho excedente, como ocorre com a mais-valia absoluta. Por tudo isso, a superexploração é melhor definida pela maior exploração da força física do trabalhador, em contraposição à exploração resultante do aumento de sua produtividade, e tende normalmente a se expressar no fato de que a força de trabalho se remunera abaixo de seu valor real.
Não é esse, entretanto, o ponto central da discussão. O que se discute é se as formas de exploração que se afastam das que engendra a mais-valia relativa sobre a base de uma maior produtividade devem ser excluídas da análise teórica do modo de produção capitalista. O equívoco de Cardoso está em responder afirmativamente a essa questão, como se as formas superiores da acumulação capitalista implicassem a exclusão de suas formas inferiores e se dessem independentemente destas. Se Marx houvesse compartilhado essa opinião, seguramente não teria se preocupado da mais-valia absoluta e não a haveria integrado, enquanto conceito básico, em seu esquema teórico.(48)
Por conseguinte, o que se pretende demonstrar em meu ensaio é, primeiro, que a produção capitalista, ao desenvolver a força produtiva do trabalho, não suprime, e sim acentua, a maior exploração do trabalhador; e, segundo, que as combinações das formas de exploração capitalista se levam a cabo de maneira desigual no conjunto do sistema, engendrando formações sociais distintas segundo o predomínio de uma forma determinada.
Desenvolvamos brevemente esses pontos. O primeiro é fundamental, caso se queira entender como atual a lei geral da acumulação capitalista, ou seja, porque se produz a polarização crescente de riqueza e miséria no seio das sociedades em que ela opera. E nessa perspectiva, e somente nela, que os estudos sobre a chamada marginalidade social podem ser incorporados à teoria marxista da dependência; dito de outra maneira, somente assim esta poderá resolver teoricamente os problemas colocados pelo crescimento da superpopulação relativa com as características extremadas que apresenta nas sociedades dependentes, sem cair no ecletismo de José Nun, que o mesmo Cardoso criticou com tanta razão,(49) nem tampouco no esquema de Anibal Quijano, que, independentemente de seus méritos, conduz à identificação de um polo marginal nessas sociedades que não guarda relação com a maneira como ali se polarizam as contradições de classe.(50) Sem pretender fazer aqui uma verdadeira análise do problema, vamos esclarecer alguns elementos explicativos que derivam das teses acima enunciadas.
A relação positiva entre o aumento da força produtiva do trabalho e a maior exploração do trabalhador, que adquire um caráter agudo na economia dependente, não é privativa dela, mas é inerente ao próprio modo de produção capitalista. Isso se deve à maneira contraditória como essas duas formas fundamentais de exploração incidem no valor da produção e, por consequência, na mais-valia que esta gera. O desenvolvimento da força produtiva do trabalho, que implica produzir mais no mesmo tempo e com um mesmo gasto de força de trabalho, reduz a quantidade de trabalho incorporada ao produto individual e rebaixa seu valor, afetando negativamente a mais-valia. A maior exploração do trabalhador oferece duas alternativas: aumentar o tempo de trabalho excedente (modificando ou não a jornada de trabalho), ou, sem alterar a jornada e o tempo de trabalho, elevar a intensidade do trabalho; em ambos os casos, aumenta a massa de valor e a mais-valia produzidas, mas no último (que se diferencia do aumento de produtividade porque, ainda que se produza mais no mesmo tempo, isso acarreta um maior gasto de força de trabalho(51)), desde que o novo grau de intensidade se generalize, cai o valor individual das mercadorias e, em circunstâncias iguais, diminui a mais-valia.
No marco do regime capitalista de produção, essas tendências opostas que se derivam das duas grandes formas de exploração tendem a se neutralizar, uma vez que o aumento da força produtiva do trabalho não somente cria a possibilidade de uma maior exploração do trabalhador, mas conduz a esse resultado. Com efeito, a redução do tempo total de trabalho que o operário necessita para produzir uma certa massa de mercadorias permite ao capital, sem estender a jornada legal e inclusive reduzindo-a, exigir do trabalhador mais tempo de trabalho efetivo e, portanto, uma massa superior de valor. Com isso, a ameaça que pesava sobre a taxa de mais-valia e de lucro se compensa total ou parcialmente. O que aparece, no plano da produção, como uma diminuição do tempo de trabalho, converte-se, do ponto de vista do capital, em aumento da produção exigida ao trabalhador. Isso se expressa nas condições de produção por meio da elevação da composição orgânica do capital, isto é, na diminuição relativa e absoluta (segundo o ritmo da acumulação) do capital variável; em outras palavras, na redução relativa ou absoluta da força de trabalho empregada e na expansão do exército industrial de reserva.
Entretanto, existe uma estreita interdependência entre o aumento da produtividade, a intensificação do trabalho e a duração da jornada de trabalho. O aumento da força produtiva do trabalho, ao implicar um menor gasto de força física, é o que permite aumentar a intensidade; mas o aumento da intensidade choca-se com a possibilidade de estender a jornada de trabalho e pressiona para reduzi- la. Inversamente, uma menor produtividade limita a possibilidade de intensificar o ritmo de trabalho e aponta para a extensão da jornada. O fato de que, nos países altamente industrializados, a elevação simultânea de produtividade e de intensidade de trabalho não se tenham traduzido desde várias décadas na redução da jornada não invalida o que se disse. Apenas revela a incapacidade da classe operária para defender seus legítimos interesses, e se traduz no esgotamento prematuro da força de trabalho, expresso na redução progressiva da vida útil do trabalhador, assim como em transtornos psicofísicos provocados pelo excesso de fadiga. Na mesma linha de raciocínio, as limitações surgidas nos países dependentes para estender ao máximo a jornada de trabalho têm obrigado o capital a recorrer ao aumento da produtividade e da intensidade de trabalho, com os efeitos conhecidos no grau de conservação e desenvolvimento desta.
O que importa assinalar aqui, em primeiro lugar, é que a superexploração não corresponde a uma sobrevivência de modos primitivos de acumulação de capital, mas que é inerente a esta e cresce correlativamente ao desenvolvimento da força produtiva do trabalho. Supor o contrário equivale a admitir que o capitalismo, à medida que se aproxima de seu modelo puro, converte-se em um sistema cada vez menos explorador e logra reunir as condições para solucionar indefinidamente suas contradições internas. Em segundo lugar, de acordo com o grau de desenvolvimento das economias nacionais que integram o sistema, e do que se verifica nos setores que compõem cada uma delas, a maior ou menor incidência das formas de exploração e a configuração específica que elas assumem modificam qualitativamente a maneira como ali incidem as leis de movimento do sistema e, em particular, a lei geral da acumulação do capital. E por essa razão que a chamada marginalidade social não pode ser tratada independentemente do modo como se entrelaçam nas economias dependentes o aumento da produtividade do trabalho, que deriva da importação de tecnologia, com a maior exploração do trabalhador, que esse aumento da produtividade torna possível.
Não por outra razão, a marginalidade somente adquire sua plena expressão nos países latino- americanos ao desenvolver-se nestes a economia industrial.
A tarefa fundamental da teoria marxista da dependência consiste em determinar a legalidade específica pela qual se rege a economia dependente. Isso supõe, desde logo, situar seu estudo no contexto mais amplo das leis de desenvolvimento do sistema em seu conjunto e definir os graus intermediários pelos quais essas leis se vão especificando. E assim que a simultaneidade da dependência e do desenvolvimento poderá ser entendida. O conceito de subimperialismo emerge da definição desses graus intermediários e aponta para a especificação de como incide na economia dependente a lei segundo a qual o aumento da produtividade do trabalho (e, por consequência, da composição orgânica do capital) acarreta um aumento da superexploração. É evidente que tal conceito não esgota a totalidade do problema.
Como quer que seja, a exigência de especificar as leis gerais de desenvolvimento capitalista não permite, desde um ponto de vista rigorosamente científico, recorrer a generalidades como a de que a nova forma da dependência repousa na mais-valia relativa e no aumento da produtividade. E não permite porque esta é a característica geral de todo o desenvolvimento capitalista, como vimos.
O problema está, portanto, em determinar o caráter que assume na economia dependente a produção de mais-valia relativa e o aumento da produtividade do trabalho.
Nesse sentido, podem ser encontradas em meu ensaio indicações que, ainda que notoriamente insuficientes, permitem vislumbrar o problema de fundo que a teoria marxista da dependência está chamada a enfrentar: o fato de que as condições criadas pela superexploração do trabalho na economia dependente tendem a obstaculizar seu trânsito desde a produção da mais-valia absoluta à mais-valia relativa, enquanto forma dominante nas relações entre capital e trabalho. A gravitação desproporcional que a mais-valia extraordinária assume no sistema dependente é o resultado disso e corresponde à expansão do exército industrial de reserva e ao estrangulamento relativo da capacidade de realização da produção. Mais que meros acidentes no curso do desenvolvimento dependente, ou elementos de ordem transicional, esses fenômenos são manifestações da maneira como incide na economia dependente a lei geral da acumulação de capital. Em última instância, é de novo à superexploração do trabalho que temos de nos referir para analisá-los.
Essas são questões substantivas de meu ensaio, que conviria detalhar e esclarecer. Elas estão reafirmando a tese central que ali se sustenta, isto é, a de que o fundamento da dependência é a superexploração do trabalho. Não nos resta, nesta breve nota, senão advertir que as implicações da superexploração transcendem o plano da análise econômica e devem ser estudadas também do ponto de vista sociológico e político. É avançando nessa direção que aceleraremos o parto da teoria marxista da dependência, libertando-a das características funcional-desenvolvimentistas que se lhe aderiram em sua gestação.
Notas de rodapé:
(1) Introduccion a la critica de la economia politica/1857, Uruguai, Ed. Carabella, s.d., p.44. (retornar ao texto)
(2) Idem, p. 41 (retornar ao texto)
(3) “Até a metade do século 19, as exportações latino-americanas se encontram estagnadas e a balança comercial latino-americana é deficitária; os empréstimos estrangeiros se destinam à sustentação da capacidade de importação. Ao aumentar as exportações, e, sobretudo a partir do momento em que o comércio exterior começa a gerar saldos positivos, o papel da dívida externa passa a ser o de transferir para a metrópole parte do excedente obtido na América Latina. O caso do Brasil é revelador: a partir da década de 1860, quando os saldos da balança comercial se tornam cada vez mais importantes, o serviço da dívida externa aumenta: dos 50% que representava sobre esse saldo nos anos de 1960, se eleva para 99% na década seguinte". (Nelson Werneck Sodré, Formação Histórica do Brasil. Ed. Brasiliense, São Paulo, 1964). "Entre 1902-1913, enquanto o valor das exportações aumenta em 79,6%, a dívida externa brasileira cresce em 144,6%, e representa, em 1913, 60% do gasto público total". (J. A. Barboza-Carneiro, Situation économique et financière du Brésil: memorandum presente à la Conférence Financière Internationale. Bruxelas, setembro-outubro de 1920). (retornar ao texto)
(4) Veja-se, por exemplo, seu artigo "Quién es el ejemplo inmediato", Pensamiento Crítico n° 13, La Habana, 1968. (retornar ao texto)
(5) Georges Canguilhem, Lo normal e lo patológico. Ed. Siglo XI Argentina, Buenos Aires, 1971, p. 60. Sobre os conceitos de homogeneidade e continuidade, veja-se o capítulo III dessa obra. (retornar ao texto)
(6) Veja-se Celso Furtado, Formación Econômica del Brasil. Ed. Fondo de Cultura Ecomomica, México, 1962, pp. 90-91. (retornar ao texto)
(7) Em um trabalho que minimiza enormemente a importância do mercado mundial para o desenvolvimento do capitalismo, Paul Bairoch observa que só "a partir de 1840-1850 começa a verdadeira expansão do comércio exterior [da Inglaterra]; desde 1860, as exportações representam 14% da renda nacional, e é apenas o começo de uma evolução nacional que alcançará seu máximo nos anos que precedem a guerra de 1914-1918, quando as exportações alcançaram ao redor de 40% da renda nacional. O começo dessa expansão marca uma modificação da estrutura das atividades inglesas, como vimos no capítulo da agricultura: a partir de 18401850, a Inglaterra começará a depender cada vez mais do estrangeiro para sua subsistência": Revolución industrialy subdesarrollo, Ed. Siglo XXI, México, 1967, p. 285. Quando se trata da inserção da América Latina na economia capitalista mundial, é à Inglaterra que se deve referir, mesmo naqueles casos (como o da exportação chilena de cereais para os Estados Unidos) em que a relação não é direta. É por isso que as estatísticas mencionadas explicam a constatação de um historiador, no sentido de que "em quase todas as partes [da América Latina], os níveis de comércio internacional de 1850 não excedem em muito os de 1825" (Túlio Halperin Donghi, Historia contemporânea de América Latina. Alianza Editorial, Madrid, 1970, p.158). (retornar ao texto)
(8) "A grande indústria criou o mercado mundial já preparado pela descoberta da América." Manifiesto del Partido Comunista, em Marx e Engels, Obras escogidas, I, p. 21. Cf. também El Capital, t. I, cap. XXIII, 3, p. 536, nota, edição de Fondo de Cultura Econômica. Advertimos aqui que temos procurado referir as citações de O Capital a esta edição, para facilitar ao leitor sua localização; entretanto, por inconvenientes derivados seja da tradução, seja das edições em que ela se baseia, preferimos, em certos casos, recorrer ao texto incluído nas obras de Marx que se editam sob a responsabilidade de Maxim Ilien Rubel (Paris, NRF, Bibliothèque de la Plêiade); em tais casos, damos também a referência que corresponde à edição da Fondo de Cultura Econômica. (retornar ao texto)
(9) "[...] Uma produtividade do trabalho agrícola que supere as necessidades individuais do operário constitui a base de toda sociedade e, sobretudo, a base da produção capitalista, que separa uma parte cada vez maior da sociedade da produção de meios diretos de subsistência e a converte, como disse Steuart, em free heads, em homens disponíveis para a exploração de outras esferas." El Capital, III, XLVII, p, 728. (retornar ao texto)
(10) É interessante observar que, a partir de um certo momento, as mesmas nações industriais exportarão seus capitais para a América Latina, para aplicá-los na produção de matérias primas e alimentos para a exportação. Isso é sobretudo visível quando a presença dos Estados Unidos na América Latina se acentua e começa a deslocar a Inglaterra. Se observamos a composição funcional do capital estrangeiro existente na região, nas primeiras décadas deste século 20, veremos que a origem britânica se concentra prioritariamente nos investimentos de carteira, principalmente títulos públicos e ferroviários, os quais representavam normalmente três quartas partes do total; enquanto que os Estados Unidos destinava a esse tipo de operações a terceira parte de seu investimento, e privilegiavam a aplicação de fundos na mineração, no petróleo e na agricultura. Veja-se Paul R. Olson e C. Addison Hickman, Economia internacional latinoamericana, Ed. Fondo de Cultura Econômica, México, 1945, cap. V. (retornar ao texto)
(11) "[...] ao crescer o capital variavel, tem de crescer também necessariamente o capital constante, e ao aumentar o volume das condições comuns de produção, os edifícios, os fornos etc, têm também de aumentar, e muito mais rapidamente que a quantidade de operários, as matérias-primas." El Capital, I, XII, p. 293. Além disso, qualquer que seja a variação do capital variável e do elemento fixo do capital constante, o gasto de matérias-primas é sempre maior, quando aumenta o grau de exploração ou a produtividade do trabalho. Cf. El Capital, I, XXII, inciso 4. (retornar ao texto)
(12) "O trabalho deve [...] possuir um certo grau de produtividade antes que possa ser prolongado mais alem do tempo necessário ao produtor para garantir sua subsistência, mas não é jamais essa produtividade, qualquer que seja seu grau, a causa da mais-valia. Essa causa é sempre o trabalho excedente, qualquer que seja o modo de extorquí-lo." Tradução literal da passagem incluída em El Capital, I, XVI, pp. 1.008-1.009, Plêiade; essa passagem não aparece na edição da Fondo de Cultura Econômica, onde corresponderia ao tomo I, cap. XIV, p. 428. (retornar ao texto)
(13) Cf. El Capital, I, seções IV e V, e El Capital, Livro I, Capítulo VI (inédito). Ed. Signos, Buenos Aires, 1971. (retornar ao texto)
(14) A participação das exportações no consumo de alimentos da Inglaterra, até 1880, era de 45% para o trigo, 53% para a manteiga e o queijo, 94% para as batatas e 70% para a carne. Dados de M. G. Mulhall, citados por Paul Bairoch, op. cit., pp. 248-249. (retornar ao texto)
(15) Isso é resumido por Marx da seguinte forma: "Quando o comércio exterior barateia os elementos do capital constante ou os meios de subsistência de primeira necessidade em que é investido o capital variável, contribui para fazer que aumente a taxa de lucro, ao elevar a taxa de mais-valia e reduzir o valor do capital constante". El Capital, III, XIV, p. 236. É necessário ter presente que Marx não apenas se limita a essa constatação, mas também mostra o modo contraditório mediante o qual o comércio exterior contribui para a queda da taxa de lucro. Não o seguiremos, entretanto, nessa direção, e tampouco em sua preocupação sobre como os lucros obtidos pelos capitalistas que operam na esfera do comércio exterior podem fazer subir a taxa de lucro (procedimento que poderia ser classificado em um terceiro tipo de medidas para se contrapor à queda tendencial da taxa de lucro, junto com o crescimento do capital em forma de ações: medidas destinadas a burlar a tendência decrescente da taxa de lucro através do deslocamento de capital para esferas não produtivas). Nosso propósito não é o de aprofundar agora o exame das contradições que coloca a produção capitalista em geral, mas apenas o de deixar claras as determinações fundamentais da dependência latino-americana. (retornar ao texto)
(16) Apoiando-se em dados do Departamento Económico das Nações Unidas, Paolo Santi observa, com respeito à relação entre os preços de produtos primários e manufaturados: "Considerando o quinquénio 1876-1980 = 100, o índice decresce a 96,3 no período 1886-90, a 87,1 nos anos 1896-1900 e se estabiliza no período que vai de 1906 a 1913 em 85,8, começando a cair, e com maior rapidez, depois do término da guerra." "El debate sobre el imperialismo en los clásicos del marxismo", Teoria marxista del imperialismo. Cuadernos de Pasado y Presente, Córdoba, Argentina, 1969, p. 49. (retornar ao texto)
(17) "Não basta que as condições de trabalho cristalizem em um dos pólos como capital e no outro pólo contrário como homens que não têm mais nada que vender a não ser sua força de trabalho. Não basta tampouco obrigar estes a se vender voluntariamente. No transcurso da produção capitalista, vai sendo formada uma classe operária que, por força de educação, de tradição, de costume, se submete às exigências deste regime de produção como às mais lógicas leis naturais. A organização do processo capitalista de produção já desenvolvido vence todas as resistências, a existência constante de uma superpopulação relativa mantém a lei da oferta e da demanda de trabalho em concordância com as necessidades de exploração do capital, e a pressão surda das condições Econômicas sela o poder de mando do capitalista sobre o operário. Ainda é empregada, de vez em quando, a violência direta, extra-econômica; mas só em casos excepcionais. Dentro do transcurso natural das coisas, já pode deixar-se o operário a mercê das 'leis naturais da produção', isto é, entregue ao predomínio do capital, predomínio que as próprias condições de produção engendram, garantem e perpetuam." El Capital, I, XXIV, p.627. (retornar ao texto)
(18) Celso Furtado tem comprovado o fenômeno, sem chegar a retirar dele todas as suas consequências: "A queda nos preços das exportações brasileiras, entre 1821-1830 e 1841-1850, foi próxima a 40%. No que diz respeito às importações, o índice de preços das exportações da Inglaterra [...] entre as duas décadas referidas se manteve perfeitamente estável. Pode-se, portanto, afirmar que a queda do índice dos termos de troca foi de aproximadamente 40%, isto é, que a renda real gerada pelas exportações cresceu 40% menos que o volume físico destas. Como o valor médio anual das exportações subiu de 3.900.000 libras para 5.470.000, ou seja, um aumento de 40%, disso decorre que a renda real gerada pelo setor exportador cresceu nessa mesma proporção, enquanto o esforço produtivo realizado neste setor foi o dobro, aproximadamente". Op. cit., p. 115. (retornar ao texto)
(19) El Capital I, XXIV, p. 505. (retornar ao texto)
(20) El Capital, I, VIII, p. 181. Marx acrescenta: "Por isso, nos Estados do Sul dos Estados Unidos, o trabalho dos negros conservou certo caráter suavemente patriarcal, enquanto a produção se circunscrevia substancialmente às próprias necessidades. Mas, tão logo como a exportação de algodão passou a ser um recurso vital para aqueles Estados, a exploração intensiva do negro se converteu em fator de um sistema calculado e calculador, chegando a ocorrer casos de esgotamento da vida do trabalhador em sete anos de trabalho. Agora, já não se tratava de arrancar-lhe uma certa quantidade de produtos úteis. Agora, tudo girava em torno à produção de mais-valia pela própria mais-valia. E outro tanto aconteceu com as relações de vassalagem, por exemplo, nos principados do Danúbio". Ibidem. (retornar ao texto)
(21) Cf. El Capital, I, XXII, pp. 508-509. (retornar ao texto)
(22) "Toda variaçao na magnitude, extensiva ou intensiva, do trabalho afeta [...] o valor da força de trabalho, na medida em que acelera seu desgaste". Tradução literal de El Capital, I, XVII, II, p. 1.017, Plêiade. Cf. El Capital, I, XXVIII. (retornar ao texto)
(23) Um fenômeno similar é observado na Europa, no início da produção capitalista. Basta analisar mais de perto a maneira como se realiza ali a passagem fundamental do feudalismo para o capitalismo para dar-se conta que a condição do trabalhador, ao sair do estado de servidão, se assemelha mais à do escravo que à do moderno operário assalariado. Cf. El Capital, I, XXVIII. (retornar ao texto)
(24) Capítulo VI (inédito), op. cit., pp. 68-69. (retornar ao texto)
(25) El Capital, I, VIII, 5, p. 208. (retornar ao texto)
(26) Cairnes, cit. em El Capital, I, VIII, 5, p. 209. (retornar ao texto)
(27) É assim como Marx se refere a países "em que o trabalho não tenha ainda sido absorvido formalmente pelo capital, ainda que o operário esteja na realidade sendo explorado pelo capitalista", exemplificando com o caso da Índia, "onde o ryot trabalha como camponês independente, onde sua produção não foi ainda, portanto, absorvida pelo capital, ainda que o usurário possa ficar, sob a forma de juros, não só com seu trabalho excedente, mas inclusive também, falando em termos capitalistas, com uma parte de seu salário". El Capital, III, XIII, p. 216. (retornar ao texto)
(28) Marx, Príncipes d'une critique de l'économie politique, em Oeuvres, Plêiade, II, p. 254. (retornar ao texto)
(29) Já assinalamos que isto se dá inicialmente nos pontos de conexão imediata com o mercado mundial; só progressivamente, e ainda hoje de maneira desigual, o modo de produção capitalista irá subordinando o conjunto da economia. (retornar ao texto)
(30) "Contradição do regime de produção capitalista: os operários como compradores de mercadorias são importantes para o mercado. Mas, como vendedores de sua mercadoria — a força de trabalho — a sociedade capitalista tende a reduzi-los ao mínimo do preço." El Capital, II, XVI, III, nota. Marx indica nessa nota a intenção de tratar, na seção seguinte, a teoria do subconsumo operário, mas, como observa Maximilien Rubel (op. cit., t. II, p. 1.715), não chega a concretizá-la. Alguns elementos tinham sido avançados nos Grundrisse; veja-se Príncipes..., pp. 267-268. (retornar ao texto)
(31) De fato, como demonstra Marx, ambos os tipos de consumo correspondem a um consumo produtivo, desde o ponto de vista do capital. Ainda mais, "o consumo individual do trabalhador é improdutivo para ele mesmo, pois não faz mais que reproduzir o indivíduo necessitado; é produtivo para o capitalista e o Estado, pois produz a força criadora de sua riqueza". Tradução literal de El Capital, I, XXIII, p. 1.075, Plêiade; cf. edição Fondo de Cultura Econômica, I, XXI, p. 482. (retornar ao texto)
(32) "O consumo individual do trabalhador e o da parte nao acumulada do produto excedente englobam a totalidade do consumo individual. Este condiciona, em sua totalidade, a circulação do capital." Tradução literal de El Capital, II, p. 543, Plêiade; cf. Fondo de Cultura Econômica, p. 84. (retornar ao texto)
(33) A tese da industrialização substitutiva de importações representou um elemento básico na ideologia desenvolvimentista, cujo grande epígono foi a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e Caribe (Cepal); o trabalho clássico neste sentido é o de Maria da Conceição Tavares, sobre a industrialização brasileira, publicado originalmente em United Nations, "The growth and decline of imput substitution in Brazil", Economic Bulletinfor Latin America, vol. IX, n° 1, março de 1964. Nos anos recentes, essa tese tem sido objeto de discussões que, se não chegam a lhe retirar a validade, tendem a relativizar o papel desempenhado pela substituição de importações no processo de industrialização da América Latina; um bom exemplo disso é o artigo de Don L. Huddle, "Reflexões sobre a industrialização brasileira: fontes de crescimento e mudança estrutural — 1947-1963", Revista Brasileira de Economia, vol. XXIII, n° 2, junho de 1969. Por outro lado, alguns autores se preocuparam em estudar a situação da indústria na economia latino-americana antes que se acelerasse a substituição de importações; é significativo, nesta última linha de pesquisa, o ensaio de Vânia Bambirra, Hacia uma tipologia de la dependência. Industrialización y estruetura socio-econômica, Ceso, Universidad de Chile, Documento de Trabajo, mimeo, 1971. (retornar ao texto)
(34) É interessante observar que a indústria complementar à exportação representou o setor mais ativo das atividades industriais na economia exportadora. É assim como os dados disponíveis para a Argentina mostram que, em 1895, o capital investido na indústria que produzia para o mercado interno correspondia a cerca de 175 milhões de pesos, contra mais de 280 milhões investidos na indústria vinculada à exportação; na primeira, o capital médio por empresa era de somente 10 mil pesos, configurando claramente um setor artesanal, enquanto que, na segunda, montava a 100 mil pesos (cf. Roberto Cortes Conde, Problemas del crecimiento industrial em Argentina, sociedad de masas. Ed. Euseba, Buenos Aires, 1965). (retornar ao texto)
(35) A reprodução ampliada desta relação constitui a essência mesma da reprodução capitalista; cf. particularmente El Capital, I, XXIV. (retornar ao texto)
(36) El Capital, I, XIII, p. 370. (retornar ao texto)
(37) Empregamos o termo "industrialização" para salientar o processo pelo qual a indústria, empreendendo a mudança qualitativa global da velha sociedade, caminha no sentido de se converter em eixo da acumulação de capital. É por isso que consideramos que não se dá um processo de industrialização no seio da economia exportadora, em que pese o fato de que se observa nessa economia atividades industriais. (retornar ao texto)
(38) Um historiador brasileiro, referindo-se à campanha pelo aumento de tarifas alfandegárias desencadeada pelos industriais brasileiros em 1928, destaca com clareza o mecanismo de expansão do setor industrial na economia exportadora: "Sob a pressão de uma recessão da demanda de tecidos de má qualidade nas áreas rurais, como consequência da queda de preços do café — o preço médio da saca de 60 quilos caiu de 215$ 109 para 170$ 719 entre 1925 e 1926 — vários industriais se especializaram na produção de tecidos médios e finos, a partir de meados da década de 1920. Ao penetrar nesta faixa do mercado, passaram a sofrer o impacto da concorrência inglesa, que foi acusada de realizar um 'dumping' para liquidar a produção nacional. Os Centros Industriais se articularam em uma campanha visando o aumento das tarifas de tecidos de algodão e a restrição das importações de maquinado, alegando que o mercado não comportava a ampliação da capacidade produtiva existente". Boris Fausto. A revolução de 1930. Historiografia e historia. Ed. Brasiliense, São Paulo, 1970, pp. 33-34. O episódio é exemplar: a queda dos preços do café restringe o poder de compra dos trabalhadores, mas também a capacidade de importação para atender a esfera alta da circulação, provocando um movimento da indústria no sentido de se deslocar para esta última e se beneficiar dos melhores preços que ali se pode obter. Como veremos, esse tropismo da indústria latino-americana não é privilégio da velha economia exportadora. (retornar ao texto)
(39) Para Argentina e Brasil, por exemplo, isto se apresenta já na passagem da década de 1940 para a de 1950, mais rapidamente para a Argentina do que para o Brasil. (retornar ao texto)
(40) Veja-se Ernest Mandel, Tratado de Economia Marxista, Ed. Era, México, 1969. (retornar ao texto)
(41) A produção estadunidense de máquinas e ferramentas foi duplicada entre 1960 e 1966, enquanto crescia tão só em 60% na Europa Ocidental e 70% no Japão. Por outra parte, desenvolveu-se mais rapidamente nos Estados Unidos a fabricação de conjuntos automatizados, cujo valor alcançou os 247 milhões de dólares em 1966, contra 43,5 milhões na Europa Ocidental e apenas 2,7 milhões de dólares no Japão. Dados disponibilizados por Ernest Mandel Europe versus América? Contradictions of Imperialism. NLR, Londres, 1970, p. 80, nota. (retornar ao texto)
(42) Os trabalhos que se referem a este tema foram reunidos no meu livro Subdesarrollo y revolución, Ed. Siglo XXI, México, 1969. O primeiro deles foi publicado originalmente com o título "Brazilian Interdependence and Imperialist Integration", Monthly Review, Nova York, dezembro de 1965, XVII, n° 7. (retornar ao texto)
(43) O Capital. Ed. Fondo de Cultura Econômica, México, t. III, cap. VII, p. 180. Esta será a edição citada, quando não se indique outra. (retornar ao texto)
(44) Veja-se o tratamento que dá a este tema Jaime Torres, em Para um conceito de "formação social colonial". Ceso, Santiago, 1972, mimeo (retornar ao texto)
(45) Segundo Marx, a tendência decrescente da taxa geral de lucro não é senão "uma maneira própria ao modo de produção capitalista de expressar o progresso da produtividade social do trabalho", sendo que "a acumulação mesma - é o meio material de aumentar a produtividade". Le Capital. Ouvres, NRF. Paris, t. II, pp. 1002 y 1006, sublinhado por Marx; cf. edición FCE, III, pp. 215 e 219. (retornar ao texto)
(46) "No começo a produção fundada no capital partia da circulação; vemos agora como aquela põe a circulação como sua própria condição e põe igualmente o processo de produção, em sua imediatez, enquanto momento do processo de circulação, assim como põe a este como fase do processo de produção em sua totalidade". Marx, Elementos fundamentales para la crítica de la economia política (borrador) 1857-1858. Ed. Siglo Veinteuno, Argentina, Buenos Aires, 1972, vol. II, p. 34. (retornar ao texto)
(47) Para dizer com Marx: "A troca de mercadorias por seus valores ou aproximadamente por seus valores pressupõe ... uma fase muito mais baixa que a troca em base aos preços de produção, o que requer um nível bastante elevado no desenvolvimento capitalista". O Capital, III, VIII, p. 181. (retornar ao texto)
(48) "A produção de mais-valia absoluta é a base geral sobre a que descansa o sistema capitalista e o ponto de arranque para a produção de mais-valia relativa." O Capital, I, XIV, p. 246. (retornar ao texto)
(49) Veja-se: de José Nun, "Superpopulação relativa, exército industrial de reserva e massa marginal", em Revista Latinoamericana de Sociologia n° 2, Buenos Aires, 1969; e de F. H. Cardoso, "Comentário sobre los conceptos de sobrepopulación relativa y marginalidad", Revista Latinoamericana de Ciências Sociales n° 1-2, Santiago, 1971. (retornar ao texto)
(50) Veja-se, de Anibal Quijano, Redefinición de la dependenciay marginalización en America Latina. Ceso, Santiago, 1970, mimeo. (retornar ao texto)
(51) A economia burguesa não permite estabelecer essa diferença, já que privilegia como termo de referência o produto e não a força de trabalho. (retornar ao texto)
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Inclusão | 01/12/2012 |