O caso e a teoria de Ford

José Carlos Mariátegui

24 de dezembro de 1927


Primeira Edição: Publicado em Variedades: Lima, 24 de dezembro de 1927

Fonte: Nova Cultura - https://www.novacultura.info/post/2020/05/14/o-caso-e-a-teoria-de-ford

Tradução: F. Fernandes

Transcrição: Igor Dias

HTML: Fernando Araújo.

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Uma boa parte da confiança de Ramiro de Maeztu (1875-1936) no futuro do capitalismo americano e em seus recursos contra o socialismo depende do experimento do Sr. Henry Ford (1863-1947) e dos resultados que este célebre fabricante de automóveis obteve em um ramo da indústria, no sentido de "racionalizar" a produção. Isso indica, entre outras coisas, que, sem a prática de Ford, a teoria de Maeztu não teria sido possível. Já vimos que o mesmo acontece com Maeztu em relação a Primo de Rivera (1870-1930).(1) Mas sobre esse fato não vale a pena insistir, pois só confirma o conceito marxista do trabalho dos intelectuais, tão propensos a assumir que são mais ou menos independentes da história.

Ford, por outro lado, é muito mais importante e substantivo do que Maeztu para o capitalismo e, consequentemente, para o socialismo. Não, certamente, porque Ford escreveu dois livros (Minha Vida e Minha Obra(2) e O Judeu Internacional(3)) que são literalmente inferiores a alguns dos livros de Maeztu, mas porque, como capitão da indústria, ele representa muito mais especifica e consideravelmente o gênio do capitalismo. Enquanto a ação de Ford pode inspirar os princípios de muitos Maeztu, os princípios do ilustre autor de La Crisis del Humanismo(4) não podem inspirar a ação de qualquer Ford.

O experimento de Ford demonstra, entre outras coisas, que Maeztu estava gravemente equivocado quando, dando por comprovada a tese dos revisionistas alemães, afirma que Marx se enganou ao prever a concentração de capital. A tese dos revisionistas sofreu, por sua vez, uma revisão muito mais grave do que a imposta em seu tempo ao marxismo. Algum tempo depois que Eduard Bernstein (1850-1932)(5) e seus capangas consideraram Marx negado pelas empresas anônimas e outros sistemas de capital associado com uma massa social cada vez mais numerosa, Rudolf Hilferding (1877-1941)(6) analisou o caráter e a função do "capital financeiro", fatalmente destinado a submeter a seu império todas as outras formas de capitalismo. Assim, Hilferding não é, na prática, menos reformista do que Bernstein. Bernstein militou no Partido Socialista Independente, reabsorvido, após a revolução alemã, pela velha e gorda socialdemocracia. Mas sua tese, exposta em um conhecido livro Das Finanzkapital, além de ser um bom arsenal do socialismo revolucionário, interessa aos economistas de hoje muito mais do que a tese ultrapassada de Bernstein, abastecida pelo sensível atraso de Ramiro de Maeztu. Assim, já não é necessário ser um economista, nem mesmo ter lido Hilferding, para ter consciência de que os trustes, os cartéis e os consórcios constituem a expressão característica do capitalismo contemporâneo. E que, por conseguinte, os fundamentos da previsão de Marx - a concentração do capital e a indústria - foram cumpridos. O capitalismo só pode encontrar através da cartelização, da trustificação, isto é do monopólio, o meio de organizar ou "racionalizar", como é dito agora, a produção. Mas importa, portanto, que uma parte do capital das empresas esteja no poder de rentistas de pequeno e médio porte. A coisa substancial é que a cartelização coloca em poucas mãos o gerenciamento dos principais ramos da produção. O capital financeiro, neste período – que com a ruína do princípio da livre concorrência é definido como um período de decadência capitalista - domina e subjuga o capital industrial, transferindo o controle da produção aos banqueiros, com a consequência inevitável de uma retorno da economia a formas usurárias, opostas a lei que condena todo parasitismo e exige que a produção seja governada por seus próprios fatores.

Em uma nação de capitalismo vigoroso e ainda progressista, como os Estados Unidos, Ford representa precisamente o capitalismo industrial, forte, todavia, frente ao capital financeiro. Mas, mesmo que Ford não dependa dos bancos de Wall Street, ante os quais permanece em certo estado de rebelião tácita e, apesar de continuar sendo o chefe absoluto de sua empresa, isso se apresenta esvaziado aos moldes do trust, por seus métodos de produção em larga escala. Ford, que é um advogado veemente da unidade de comando, não só considera a capacidade de subavaliar a própria produção como exclusiva da grande indústria, mas também fala contra o espírito de competição. Um dos seus princípios é o seguinte: "Para desprezar o espírito de concordância, quem faz uma coisa melhor do que os outros deve ser o único que faz isso".

Os métodos que permitiram o desenvolvimento colossal de sua empresa são dois: padronização e taylorismo. Ambos são aplicáveis somente pela grande indústria, pelos cartéis ou trustes, cuja resistente e esmagadora força vem da sua aptidão para a produção em massa, o que permite que a indústria aperfeiçoe seus meios técnicos ao extremo para alcançar a máxima economia de tempo e trabalho. A Ford tem as equipes de trabalhadores capazes de obter os maiores retornos, oferecem-lhes os maiores salários e garantias e obtém os melhores preços no seu fornecimento de matérias-primas. A Ford anuncia a aquisição, no Brasil, de terras que serão dedicadas ao cultivo de borracha, para evitar uma forte dependência dos magnatas ingleses que dominam o comércio deste produto. Esta nova expansão da sua empresa indica sua tendência a assumir o caráter mais avançado da grande indústria: o do truste vertical.

Ford ataca, em nome do capital industrial, o capital financeiro. O seu antissemitismo vem, fundamentalmente, de uma corrente empírica de identificação do banqueiro e do judeu, porém, ele já anunciou sua retratação aos ataques ao "judeu internacional" em seu último livro. Sua atitude só é possível em países como a América do Norte, onde o capitalismo ainda não finalizou seu processo de crescimento, e também não atingiu o período de predominância absoluta e absorvente do capital bancário, o Yankee Bank, além disso, teve uma formação diferente do banco europeia: o tipo financeiro parece menos diferenciado do tipo industrial.

O sucesso da Ford - da qual o recordman de fabricação de automóveis imagina deduzir princípios gerais de felicidade e organização da sociedade, baseado simplesmente em padronização, taylorismo, etc. -, é explicado, como observam os economistas penetrantes, pelo fato Ford de ter efetuado seu experimento em um ramo nascente da indústria, destinado à produção de um artigo de consumo atual, cada dia mais disseminado. Assim, a democratização do acesso ao automóvel é o segredo de sua fortuna e seu trabalho.


Notas:

(1) Militar e ditador espanhol, fundador da União Patriótica, era detentor do título nobiliárquico de Marquês de Estella e de Ajdir. Encabeçou em 1923 um golpe de Estado e governou o país até 1930. (retornar ao texto)

(2) Publicado pela primeira vez em 1922. (retornar ao texto)

(3) Publicado pela primeira vez em 1920. (retornar ao texto)

(4) Publicado pela primeira vez em 1919. (retornar ao texto)

(5) Político e teórico político alemão, primeiro grande revisionista da teoria marxista e um dos principais teóricos da socialdemocracia. (retornar ao texto)

(6) Economista austríaco, teórico revisionista e um dos líderes da socialdemocracia alemã durante a República de Weimar. (retornar ao texto)

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Inclusão: 18/08/2022