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Primeira Edição: Publicado em Mundial, Lima, 22 de maio de 1925
Fonte: Nova Cultura - https://www.novacultura.info/post/2018/03/14/mariategui-a-liberdade-de-ensino
Tradução: Equipe de Traduções Nova Cultura
Transcrição: Igor Dias
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
A liberdade de ensino. Há aqui outro programa ou outra fórmula que conta com muitas adesões e muitos consensos. Mas há ali também outra ideia cujo valor prático deve ser pensado mais profundamente. A liberdade de ensino parece, à primeira vista, esforçar-se para cumprir todos os esforços renovadores. Mas o ideário dos homens que se propõem a transformar nossa América não pode ser alimentada por ficções. Não importa à história o valor abstrato de uma ideia. O que importa é seu valor concreto. Sobretudo para nossa América, que tanto necessita de ideais concretos.
Acerca da significação atual da “liberdade de ensino” não carecemos de fatos instrutivos. Um dos mais consideráveis é, sem dúvida, a entusiasta adesão dada a este princípio por políticos católicos na Itália e na França. O Partido Popular italiano a sustentou como a mais substantiva de suas reivindicações. A Igreja Romana sagaz e flexível nos movimentos, se apresenta como uma das maiores campeãs da “liberdade de ensino”. A escola laica se opõe à escola livre. Sucede, talvez, que no caso do liberalismo, a Igreja Romana, tradicionalmente defensora da autoridade e da hierarquia, torna-se liberal? Não nos entreteremos em sutis averiguações. A política da Igreja frente o Estado democrático-liberal deixou definida à muitos anos na célebre resposta de Veuillot ao maligno liberal que se assombrava ao ver um católico de ortodoxa e rígida estirpe se converter em um seguidor da herética liberdade: “Em nome dos seus princípios, eu a declaro a você, em nome dos meus, eu te nego”. Completamente de acordo com Veuillot, os católicos desta época não reclamam a liberdade de ensino, mas sim onde tiveram que lutar contra a laicidade. Onde o ensino não é laico, mas católico, a Igreja excomunga categoricamente a escola livre.
Naturalmente, o fato não desvaloriza em si a “liberdade de ensino”. Mas nos ajuda a compreender o relativo e o convencional desta fórmula, cuja defesa coincide de maneiras diferentes, os guardiões hieráticos da Tradição e os não poucos cavaleiros andantes da Utopia.
A França nos oferece um interessante caso a este respeito. Quem não sabe algo do movimento dos compagnons(1) da Universidade Nova? Este movimento nasceu nas trincheiras. Foi um fenômeno da desmobilização. Muitos universitários e professores combatentes, sacudidos pela emoção da guerra e da vitória, voltaram da frente animados por um vigoroso afã de renovação. Sentiram-se destinados a construir a Universidade Nova. E nos compagnons da França antiga, nos trabalhadores das catedrais do medievo, buscaram inspiração e modelo. A Universidade Nova designava a seu espírito e a sua intenção o edifício de todo o ensino e de toda a escola. Os compagnons se propuseram a organizar toda a educação pública. E a refazer integralmente, na escola, a democracia francesa. A guerra os fez heroicos e fortes. A guerra os havia dado vontade combativa e élan(2) revolucionário. “É preciso – escreviam – reconstruir a casa dos cimentos ao telhado. Não o faça, professores, com ilusões. É preciso inovar tudo, unir e cimentar tudo. É preciso refazer as ideias, os programas, os métodos e o recrutamento. Vale mais ajudar-nos do que opor-nos à força da inercia: ajudar-nos a organizar nossa reforma do que impor sua experiência sobre nós. Sua experiência é a sua tradição que morre com a grande guerra. Sejamos claros. Não serão os professores de 1900 que farão a França de 1950”.
Como realizar essa reforma? “A nova doutrina, respondiam os “companheiros”, quer uma instituição nova. Entre o Estado onipotente e centralizador, indiferente às vidas anteriores; e aos cidadãos impotentes, isolados e irritados, faz-se necessário apresentar um termo intermediário: a associação, a organização corporativa. É necessário, entre o Estado e o indivíduo, a corporação do ensino, de todo o ensino, primário, secundário, superior, profissional, a corporação em cada região, assim como, entre a capital centralizada e abstrata e os departamentos, e outros. Vamos preparar as novas províncias. Ao lado de um Parlamento político, que é um anacronismo, e de um sindicalismo revolucionário, que é uma incógnita, queremos criar novos poderes. Não queremos esse passado, tampouco esse futuro violento. Não queremos que a vida seja determinada por fórmulas políticas, nem que se precipite em desencadeantes instintivos. Queremos que se organize em uma corporação”.
Este programa dos compagnons, não obstante, que proclamava a falência do parlamento e propagava a reorganização do ensino sobre uma base sindicalista, estava longe de ser um programa revolucionário. Uma desqualificação semelhante do parlamento chegou, sem esforço, a poucos homens de governo da Europa. Walter Rathenaú, por exemplo. Rathenaú precisamente, em seu esquema do novo Estado, levantou a necessidade de criar o Estado educador como um organismo distinto do Estado econômico e do Estado político. Os "companheiros" da Universidade Nova pareciam encontrar tudo de ruim no ensino, mas apenas no ensino. Sua consciência dos problemas da França era muito geral, também corporativa. Educados na escola da democracia, conservaram todas as suas superstições. Eles não conseguiram se livrar de quase nenhum dos seus preconceitos. “Queremos um ensino democrático, o nosso não era realmente, mesmo que se esforçasse para parecê-lo”. Assim, escreviam estes reformadores, evidentemente cheios de boas e sãs intenções, mas não menos evidentemente ingênuos quanto ao meio de traduzi-las em atos. Não averiguaram como, uma vez organizada a corporação do ensino, poderia atuar seu programa. Ficaram satisfeitos em fazer essa constatação: “O Estado fracassou em seus esforços para fazê-lo e centralizar tudo, não perguntaram ao indivíduo, mas sim, exigiram sua obediência e submissão. Sua imensa empresa de gerenciamento ultrapassou suas forças e capacidades, mas ele não cedeu em suas pretensões. É por isso que hoje, em vez de atuar como estimulante, muitas vezes se caracteriza como um obstáculo e os interesses, cuja proteção foi confiada ao Estado, definham. Este é um fenômeno geral”. Aguardavam os compagnons uma abdicação voluntária do Estado em favor do seu sindicato? Acreditavam que o Estado, por amor à democracia, acabaria depositando em suas mãos o poder de reformar o ensino?
A história, em todo o caso, tomou um curso muito diferente. As eleições da vitória deram esse poder aos políticos do bloco nacional em 1919, políticos estes embebidos em chauvinismo e autoritarismo. Esses políticos, já no governo, não levaram em conta os planos generosos dos idealizadores da Universidade Nova, cruzados a priori por sua concomitância com as ideias de homens como Edouard Herriot e Ferdinand Buisson, então em desgraça. León Bérard reformou o ensino secundário sem consultar os simpáticos compagnons, não no sentido democrático que defendiam, mas em um sentido conservador, concordando com os gostos da fauna reacionária e aristocrática. O bloco nacional já estava se preparando para aprovar a reforma da educação primária quando os eleitores, cansados de seu domínio, decidiram expulsá-los do governo. Mas nem as eleições do ano passado inauguraram a era democrática prevista pelos compagnons. Essas eleições elevaram à presidência do gabinete um eminente normalista, um amigo da Universidade Nova, apoiador da escola única. Mas eles o colocaram diante de muitos problemas urgentes. E Herriot não conseguiu dedicar muito tempo ao ensino.
Revisando a batalha dos compagnons, C. Freinet escreveu recentemente em uma revista francesa o seguinte: “Os Companheiros da Universidade Nova não são uma força, isto é, eles não são capazes de impor seus pontos de vista. Não conseguiram organizar a unidade do corpo dos professores, estabeleceram, em todos os seus detalhes, o plano da futura catedral. Contudo, faltam os companheiros que deviam construir pedra sobre pedra, e não poderia ser de outra forma. Pois era em nome de princípios moribundos que chamavam os trabalhadores para a ação”.
Na Alemanha, a revolução criou uma situação favorável para a reforma do ensino. Convidou-se professores e pedagogos – nos quais amadurecia uma nova consciência desde antes da guerra, especialmente quanto ao ensino elementar e pós-elementar -, para ensaiar seus ideais mais audaciosos. A revolução esmagou o antigo regime. Sobre suas ruínas, elevaram um novo edifício. No ensino, como em todos os campos, a renovação podia ser total. A Constituição de Weimar foi inspirada pela mentalidade e ideologia dos reformadores mais notáveis da escola alemã. Estabeleceu o caráter compulsório e a gratuidade da educação popular até a idade de 18 anos. Proclamou o direito dos mais capazes à educação secundária e universitária e admitiu o princípio da liberdade de ensino.
Mas, mesmo em teoria, esse princípio não obteve total aceitação em Weimar. A nova constituição alemã demarcava com cuidado seus limites. Um comentarista, em um capítulo da carta de Weimar, especifica essa limitação: “Na realidade, o que a Constituição afirma no artigo 142 é que o Estado assegurará que todos os cidadãos e todas as crianças tenham garantida a educação, de acordo com seus conceitos filosóficos e com sua religião, ou com o que os pais considerarem necessário, e também, porque os professores educam de acordo com sua ciência e consciência, sem quebrar esses mesmos conceitos particulares. Mas isso também tem um limite, uma vez que a constituição ordena que em todas as escolas os esforços tendem a desenvolver, no espírito da nacionalidade alemã e na reconciliação dos povos, a educação moral, os sentimentos cívicos, a coragem pessoal e profissional. Ou seja, há conceitos filosóficos onde o ensino não se encaixa dentro da constituição, que estabelece fins determinados, e os propósitos estabelecidos por esta disposição coagem, em grande medida, a liberdade de ensino”. (A Reforma Escolar na Alemanha. Edição de A Leitura. Série de "Educação Contemporânea").
Por outro lado, é interessante notar que as maiores inovações da reforma educacional alemã foram as realizadas na educação primária e complementar: “escola de trabalho”, “comunidade escolar”, etc. Neste setor, a vontade de renovação encontrou muitos colaboradores.
E a reforma progrediu, acima de tudo - como aborda o livro que acabei de mencionar - na Saxônia, na Turíngia e em Hamburgo. Ou seja, nos estados onde prevaleceu a influência política dos socialistas e dos comunistas.
Na Universidade, o espírito do antigo regime persistiu. As minorias enérgicas e corajosas de professores e estudantes tentaram substituí-lo pelo espírito da nova Alemanha. Mas a Universidade permaneceu como cidadela da reação. A Universidade e a República não conseguiram se entender. E não faltou quem declarasse indispensável para a saúde do regime republicano um fechamento temporário das universidades do Reich. Tudo isso, apesar do princípio da liberdade de educação, sancionado em Weimar.
A liberdade de ensino é, portanto, apenas uma ficção. É uma utopia que a história destruiu. O Estado, seja lá qual for, não pode renunciar à direção e ao controle da educação pública. Por quê? Pelo notório motivo pelo qual o Estado é o órgão da classe dominante. Tem, portanto, a função de moldar o ensino com as necessidades desta classe social.
A escola do Estado educa a juventude contemporânea nos princípios da burguesia. As confissões religiosas adaptaram seu ensino aos mesmos princípios. Em todos os conflitos entre os interesses da classe dominante e o método ou ideal da educação pública, o Estado intervém para restabelecer o equilíbrio em favor disso. Somente nos períodos em que os objetivos do Estado e da Escola são alcançados de forma intima e regular, é possível a ilusão de uma autonomia, ao menos espiritual e intelectual, do ensino.
Notas de rodapé:
(1) Companheiros (retornar ao texto)
(2) Ímpeto (retornar ao texto)
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