Programa Anarquista

Errico Malatesta

1920


Primeira Edição: Este texto saiu originalmente com o título «Il Nostro Programma» (O Nosso Programa), serializado no jornal «La Questione Sociale» de Peterson em 1899, sendo depois publicado em opúsculo em 1903 e várias vezes reproduzido e traduzido. Em 1920 foi aprovado, com algumas alterações, pela União Anarquista Italiana e então publicado com o título «Programma Anarchico». É esta versão de 1920 que aqui segue.

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/2020/05/14/programa-anarquista-errico-malatesta/

Tradução: João Black

HTML: Fernando Araújo.


Não temos nada de novo a dizer.

A propaganda não é, e não pode ser, senão a repetição contínua e incansável daqueles princípios que nos devem servir de guia na conduta que devemos seguir nas várias contingências da vida.

Repetiremos portanto, com palavras mais ou menos diferentes, mas com fundo constante, o nosso velho programa socialista-anarquista-revolucionário.

[os parágrafos acima pertencem à versão de 1899]

O programa da União Anarquista Italiana é o programa comunista anarquista revolucionário, que já há 50 anos foi defendido na Itália no seio da I Internacional sob o nome de programa socialista, que mais tarde se distinguiu pelo nome de socialista-anarquista, e depois, a seguir e em reação à crescente degeneração autoritária e parlamentar do movimento socialista, se disse simplesmente anarquista.

[o parágrafo acima pertence à versão de 1920]

1. O que queremos

Acreditamos que a maior parte dos males que afligem os homens depende da má organização social; e que os homens, querendo e sabendo, podem destruí-los.

A sociedade atual é o resultado das lutas seculares que os homens travaram entre si. Não compreendendo as vantagens que podiam vir para todos da cooperação e da solidariedade, vendo em cada outro homem (salvo no máximo os mais próximos por vínculos de sangue) um concorrente e um inimigo, procuraram açambarcar, cada um para si, a maior quantidade de gozos possíveis, sem se importarem com os interesses dos outros.

Dada a luta, naturalmente os mais fortes, ou os mais afortunados, tinham que vencer e de várias maneiras submeter e oprimir os vencidos.

Enquanto o homem não foi capaz de produzir mais do que aquilo que bastava estritamente para a sua preservação, os vencedores só podiam pôr em fuga e massacrar os vencidos e apoderar-se dos alimentos por eles recolhidos.

Depois, quando com a descoberta da pastorícia e da agricultura um homem pôde produzir mais do que necessitava para viver, os vencedores encontraram mais conveniente reduzir os vencidos à escravidão e fazê-los trabalhar para si.

Mais tarde, os vencedores aperceberam-se de que era mais cómodo, mais produtivo e mais seguro explorar o trabalho alheio com um outro sistema: reter para si a propriedade exclusiva da terra e de todos os meios de trabalho, e deixar nominalmente livres os espoliados, os quais então, não tendo meios de viver, eram obrigados a recorrer aos proprietários e a trabalhar por conta deles, nas condições que eles queriam.

Assim, pouco a pouco, através de toda uma rede complicadíssima de lutas de toda a espécie, invasões, guerras, rebeliões, repressões, concessões arrancadas, associações dos vencidos unidos para a defesa, e dos vencedores unidos para o ataque, chegou-se ao estado atual da sociedade em que alguns detêm hereditariamente a terra e toda a riqueza social, enquanto a grande massa dos homens, deserdada de tudo, é explorada e oprimida pelos poucos proprietários.

Disto dependem o estado de miséria em que se encontram geralmente os trabalhadores, e todos os males que da miséria derivam: ignorância, delitos, prostituição, deterioração física, abjeção moral, morte prematura. Disto, a constituição duma classe especial (governo), a qual, provida de meios materiais de repressão, tem missão de legalizar e defender os proprietários contra as reivindicações dos proletários; e então serve-se da força que tem, para criar para si mesma privilégios e submeter, se puder, à sua supremacia até a própria classe proprietária. Disto, a constituição duma outra classe especial (o clero), a qual, com uma série de fábulas sobre a vontade de Deus, sobre a vida futura, etc., procura induzir os oprimidos a suportar docilmente a opressão, e tal como o governo, além de fazer os interesses dos proprietários, faz também os seus próprios. Disto, a formação duma ciência oficial que é, em tudo o que puder servir aos interesses dos dominadores, a negação da verdadeira ciência. Disto, o espírito patriótico, os ódios de raça, as guerras e as pazes armadas, às vezes mais desastrosas que as próprias guerras. Disto, o amor transformado em tormento ou em torpe mercado. Daí o ódio mais ou menos velado, a rivalidade, a suspeita entre todos os homens, a incerteza e o medo de todos.

Tal estado de coisas nós queremos radicalmente mudar. E porque todos estes males derivam da luta entre os homens, da procura do bem-estar feita por cada um por sua conta e contra todos, queremos remediá-los substituindo o ódio pelo amor, a concorrência pela solidariedade, a procura exclusiva do bem-estar próprio pela cooperação fraterna para o bem-estar de todos, a opressão e a imposição pela liberdade, a mentira religiosa e pseudo-científica pela verdade.

Portanto:

  1. Abolição da propriedade privada da terra, das matérias primas e dos instrumentos de trabalho, para que ninguém tenha meio de viver explorando o trabalho alheio, e todos, tendo garantidos os meios para produzir e viver, sejam verdadeiramente independentes e possam associar-se aos outros livremente, pelo interesse comum e conforme as próprias simpatias.
  2. Abolição do governo e de todo o poder que faça a lei e a imponha aos outros: portanto, abolição de monarquias, repúblicas, parlamentos, exércitos, polícias, magistratura e toda e qualquer instituição dotada de meios coercivos.
  3. Organização da vida social por obra de livres associações e federações de produtores e consumidores, feitas e modificadas segundo a vontade dos componentes, guiados pela ciência e pela experiência e livres de toda a imposição que não derive das necessidades naturais, a que cada um, vencido pelo próprio sentimento da necessidade inelutável, voluntariamente se submete.
  4. Garantidos os meios de vida, de desenvolvimento e de bem-estar às crianças e a todos que são impotentes para cuidar de si próprios.
  5. Guerra às religiões e a todas as mentiras, mesmo que se escondam sob o manto da ciência. Instrução científica para todos e até aos seus graus mais elevados.
  6. Guerra às rivalidades e aos preconceitos patrióticos. Abolição das fronteiras: irmandade entre todos os povos.
  7. Reconstrução da família de modo que resulte da prática do amor, livre de todo o vínculo legal, de toda a opressão económica ou física, de todo o preconceito religioso.

Este o nosso ideal.

2. Vias e meios

Expusemos em linhas gerais qual é o objetivo que queremos alcançar e qual o ideal pelo qual lutamos.

Mas não basta desejar uma coisa: se se quer realmente obtê-la, é preciso empregar os meios adaptados à sua realização. E estes meios não são arbitrários, mas derivam necessariamente do fim que se tem em mira e das circunstâncias nas quais se luta; pois enganando-se na escolha dos meios, não se atingiria o fim proposto, mas um outro, talvez oposto, que seria consequência natural, necessária, dos meios aplicados. Quem se mete a caminho e toma a estrada errada, não vai onde quer, mas onde o leva a estrada percorrida.

É necessário, portanto, dizer quais são os meios que, segundo nós, conduzem ao objetivo fixado, e que pretendemos aplicar.

O nosso ideal não é daqueles cuja realização depende do indivíduo considerado isoladamente. Trata-se de mudar o modo de viver em sociedade, de estabelecer entre os homens relações de amor e solidariedade, de alcançar a plenitude do desenvolvimento material, moral e intelectual, não para um indivíduo só, não para os membros duma dada classe ou dum dado partido, mas para todos os seres humanos — e isto não é coisa que se possa impor pela força, mas deve surgir da consciência esclarecida de cada um e concretizar-se mediante o livre consentimento de todos.

A nossa primeira tarefa, então, deve ser a de persuadir as pessoas.

É necessário que chamemos a atenção dos homens para os males que sofrem e para a possibilidade de os destruir. É necessário que suscitemos em cada um a simpatia pelos males alheios e o desejo vivo do bem de todos.

A quem tem fome e frio mostraremos como seria possível, e fácil, assegurar a todos a satisfação das necessidades materiais. A quem é oprimido e vilipendiado, diremos como se pode viver feliz numa sociedade de livres e iguais; a quem é atormentado pelo ódio e pelo rancor, apontaremos a via para alcançar, amando os seus semelhantes, a paz e a alegria do coração.

E quando tivermos conseguido fazer nascer no ânimo dos homens o sentimento de rebelião contra os males injustos e evitáveis de que se sofre na sociedade presente, e fazer compreender quais são as causas destes males e como depende da vontade humana eliminá-los; quando tivermos inspirado o desejo vivo, prepotente, de transformar a sociedade para o bem de todos, então os convictos, por impulso próprio e pelo empurrão daqueles que lhes precederam na convicção, unir-se-ão e quererão, e poderão, concretizar os ideais comuns.

Seria — já o dissemos — absurdo e em contradição com o nosso objetivo querer impor a liberdade, o amor entre os homens, o desenvolvimento integral de todas as faculdades humanas, por meio da força. É preciso, portanto, contar com a livre vontade dos outros, e a única coisa que podemos fazer é provocar a formação e a manifestação de dita vontade. Mas seria, no entanto, igualmente absurdo e contrário ao nosso objetivo admitir que aqueles que não pensam como nós nos impeçam de realizar a nossa vontade, sempre que ela não lese o seu direito a uma liberdade igual à nossa.

Liberdade, portanto, a todos de propagar e experimentar as próprias ideias, sem outro limite além daquele que resulta naturalmente da igual libertade de todos.

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Mas a isto opõem-se — e opõem-se pela força bruta — aqueles que são os beneficiários dos atuais privilégios e que dominam e regulam toda a vida social presente.

Eles têm em mãos todos os meios de produção; e então suprimem não só a possibilidade de experimentar novos modos de convivência social, não só o direito dos trabalhadores de viver livremente com o seu trabalho, mas até o próprio direito à existência; e obrigam quem não é proprietário a deixar-se explorar e oprimir se não quiser morrer de fome.

Eles têm polícias, magistraturas, exércitos, criados especialmente para defender os seus privilégios; e perseguem, prendem e massacram aqueles que querem abolir esses privilégios e reclamam os meios de vida e a liberdade para todos.

Zelosos dos seus interesses presentes e imediatos, corroídos pelo espírito de dominação, temerosos do futuro, eles, os privilegiados, são geralmente falando incapazes de um ímpeto generoso, são incapazes até de uma mais larga concepção dos seus interesses. E seria loucura esperar que eles renunciem voluntariamente à propriedade e ao poder, e se adaptem a ser iguais àqueles que hoje têm submetidos.

Deixando de parte a experiência histórica (a qual demonstra que nunca uma classe privilegiada se despojou, no todo ou em parte, dos seus privilégios, e nunca um governo abandonou o poder sem ser obrigado pela força ou pelo medo da força), bastam os factos contemporâneos para convencer qualquer um de que a burguesia e os governos pretendem empregar a força material para se defenderem, não só contra a expropriação total, mas até contra as mais pequenas pretensões populares, e estão sempre prontos para as mais atrozes perseguições e os mais sangrentos massacres.

Ao povo que quiser emancipar-se não resta outra via senão a de opôr a força à força.

Resulta do que dissemos que devemos trabalhar para despertar nos oprimidos o desejo vivo de uma radical transformação social, e persuadi-los de que, unindo-se, têm força para vencer; devemos propagar o nosso ideal e preparar as forças morais e materiais necessárias para vencer as forças inimigas, e para organizar a nova sociedade. E quando tivermos força suficiente deveremos, aproveitando as circunstâncias favoráveis que se produzirem, ou criando-as nós mesmos, fazer a revolução social, derrubando pela força o goveno; expropriando pela força os proprietários; pondo em comum os meios de vida e de produção, e impedindo que novos governos venham impor a sua vontade e colocar obstáculos à reorganização social feita diretamente pelos interessados.

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Tudo isto, porém, é menos simples do que poderia à primeira vista parecer.

Nós temos que lidar com os homens tal como são na atual sociedade, em condições morais e materiais desgraçadíssimas; e enganar-nos-íamos pensando que basta a propaganda para os elevar ao desenvolvimento intelectual e moral que é necessário à concretização dos nossos ideais.

Entre o homem e o ambiente social há uma ação recíproca. Os homens fazem a sociedade como ela é e a sociedade faz os homens como eles são, e daí resulta uma espécie de círculo vicioso. Para transformar a sociedade é preciso transformar os homens, e para transformar os homens é preciso transformar a sociedade.

A miséria embrutece o homem, e para destruir a miséria é preciso que os homens tenham consciência e vontade. A escravidão educa os homens para serem escravos, e para se libertar da escravidão são precisos homens que aspirem à liberdade. A ignorância faz com que os homens não conheçam as causas dos seus males e não os saibam remediar, e para destruir a ignorância é preciso que os homens tenham tempo e meios para se instruírem.

O governo habitua as pessoas a sujeitarem-se à lei e a crerem que ela é necessária à sociedade; e para abolir o governo é preciso que os homens estejam persuadidos da sua inutilidade e do seu dano.

Como sair deste círculo vicioso?

Felizmente a sociedade atual não foi formada pela vontade iluminada duma classe dominante, que tivesse podido reduzir todos os dominados a instrumentos passivos e inconscientes dos seus interesses. Ela é o resultado de mil lutas intestinas, de mil fatores naturais e humanos agindo casualmente sem critérios diretivos; e assim não há divisões nítidas nem entre os indivíduos nem entre as classes.

Infinitas são as variedades de condições materiais; infinitos os graus de desenvolvimento moral e intelectual; e nem sempre — quase diremos, muito raramente — o posto que alguém ocupa na sociedade corresponde às suas faculdades e às suas aspirações. Muito frequentemente alguns indivíduos caem em condições inferiores àquelas a que se habituaram, e outros, por circunstâncias excepcionalmente favoráveis, conseguem elevar-se a condições superiores àquelas em que nasceram. Uma parte notável do proletariado já chegou a sair do estado de miséria absoluta, embrutecedora, ou nunca a ele pôde ser reduzida; nenhum trabalhador, ou quase nenhum, se encontra no estado de inconsciência completa, de completa aquiescência às condições que lhes fazem os patrões. E as próprias instituições, que são produtos da história, contêm contradições orgânicas que são como germes de morte, os quais desenvolvendo-se produzem a dissolução da instituição e a necessidade da transformação.

Daí a possibilidade do progresso — mas não a possibilidade de levar, por meio da propaganda, todos os homens ao nível necessário para que queiram e façam a anarquia, sem uma anterior transformação gradual do ambiente.

O progresso deve caminhar contemporânea e paralelamente nos indivíduos e no ambiente; devemos aproveitar todos os meios, todas as possibilidades, todas as ocasiões que nos deixar o ambiente atual, para agir sobre os homens e desenvolver a sua consciência e o seu desejo; devemos utilizar todos os progressos na consciência dos homens para os induzir a reclamar e impor as maiores transformações sociais que forem possíveis e que melhor sirvam para abrir a via a progressos ulteriores.

Nós não devemos esperar poder fazer a anarquia e entretanto limitar-nos à simples propaganda. Se fizéssemos assim, depressa teríamos esgotado o campo; teríamos convertido certamente todos aqueles que no ambiente atual são suscetíveis de compreender e aceitar as nossas ideias, e a nossa ulterior propaganda ficaria estéril; ou, se transformações de ambiente elevassem novos estratos populares à possibilidade de receber ideias novas, tal aconteceria sem obra nossa, talvez contra a obra nossa, e portanto em prejuízo das nossas ideias.

Devemos procurar que o povo, na sua totalidade ou nas suas frações, exija, imponha e tome para si todos as melhorias e todas as liberdades que deseja, à medida que for sentindo a sua necessidade e tenha força para as impor; e, propagandeando sempre inteirinho o nosso programa e lutando sempre pela sua aplicação integral, devemos empurrar o povo a pretender e a impor sempre mais enquanto não tiver alcançado a emancipação completa.

3. A luta económica

A opressão que hoje mais diretamente pesa sobre os trabalhadores, e que é a causa principal de todas as sujeições morais e materiais a que os trabalhadores estão submetidos, é a opressão económica, vale dizer, a exploração que os patrões e os comerciantes exercem sobre eles, graças ao açambarcamento de todos os grandes meios de produção e de troca.

Para suprimir radicalmente e sem perigo de retorno esta opressão, é necessário que o povo no seu conjunto esteja convencido do direito que tem ao uso dos meios de produção, e que concretize este seu direito primordial expropriando os detentores do solo e de todas as riquezas sociais, e metendo aquele e estas à disposição de todos.

Mas pode-se, agora mesmo, deitar mãos a esta expropriação? Pode-se, hoje, passar diretamente, sem graus intermédios, do inferno em que se acha agora o proletariado ao paraíso da propriedade comum?

Os factos demonstrarão do que os trabalhadores são hoje capazes.

Tarefa nossa é a de preparar o povo, moral e materialmente, para esta necessária expropriação; e de a tentar e retentar, toda a vez que um abalo revolucionário nos apresentar a ocasião, até ao triunfo definitivo. Mas de que modo podemos preparar o povo? De que modo preparar as condições que tornem possíveis, não só o facto material da expropriação, mas a utilização em vantagem de todos da riqueza comum?

Dissemos anteriormente que a propaganda só, falada ou escrita, é impotente para conquistar para as nossas ideias a grande massa popular. É necessário uma educação prática, a qual seja à vez à vez causa e efeito duma gradual transformação do ambiente. É necessário que, à medida que se desenvolvem nos trabalhadores o sentido de rebelião contra os injustos e inúteis sofrimentos de que são vítimas, e o desejo de melhorar as suas condições, eles, unidos e solidários entre si, lutem pela realização do que desejam.

E nós, como anarquistas e como trabalhadores, devemos provocá-los e encorajá-los para a luta e lutar com eles.

Mas são possíveis, em regime capitalista, estas melhorias? São elas úteis, do ponto de vista da futura emancipação integral dos trabalhadores?

Quaisquer que sejam os resultados práticos da luta pelas melhorias imediatas, a utilidade principal está na própria luta. Com ela os operários aprendem a ocupar-se dos seus interesses de classe, aprendem que o patrão tem interesses opostos aos seus e que não podem melhorar as suas condições, e ainda menos emancipar-se, senão unindo-se e tornando-se mais fortes que os patrões. Se conseguirem obter aquilo que querem, estarão melhor: ganharão mais, trabalharão menos, terão mais tempo e mais força para refletir sobre as coisas que lhes interessam, e logo sentirão desejos maiores, necessidades maiores. Se não conseguirem, serão conduzidos a estudar as causas do insucesso e a reconhecer a necessidade de maior união, de maior energia; e compreenderão, enfim, que para vencer de modo seguro e definitivo é necessário destruir o capitalismo. A causa da revolução, a causa da elevação moral do trabalhador e da sua emancipação, só podem ganhar com o facto de os trabalhadores se unirem e lutarem pelos seus interesses.

Mas, uma vez mais, é possível que os trabalhadores consigam, no atual estado de coisas, melhorar realmente as suas condições?

Isso depende do concurso de uma infinidade de circunstâncias.

Apesar do que dizem alguns, não existe uma lei natural (lei dos salários), a qual determine a parte que vai para o trabalhador do produto do seu trabalho; ou, se uma lei se quer formular, ela não poderia ser senão esta: o salário não pode descer normalmente abaixo daquele tanto que é necessário à vida, nem pode normalmente subir tanto que não deixe nenhum lucro ao patrão.

É claro que no primeiro caso os operários morreriam e assim não receberiam mais salário, e no segundo os patrões deixariam de dar trabalho e assim não pagariam mais salários. Mas entre estes dois extremos impossíveis há uma infinidade de graus, que vão das condições miseráveis de muitos trabalhadores agrículas até àquelas quase decentes dos operários das boas profissões nas grandes cidades.

O salário, a duração da jornada e todas as outras condições do trabalho são o resultado da luta entre patrões e empregados. Os primeiros procuram dar aos empregados o menos que puderem e fazê-los trabalhar até ao exaurimento completo; os segundos procuram, ou deveriam procurar, trabalhar o menos e ganhar o mais que puderem. Onde os trabalhadores se contentam com tudo, ou, mesmo estando descontentes, não sabem opor válida resistência aos patrões, são depressa reduzidos a condições animalescas de vida; onde, ao invés, eles têm um conceito um tanto ou quanto elevado do modo como deveriam viver os seres humanos, e sabem unir-se e, mediante a recusa a trabalhar e a ameaça latente ou explícita de revolta, impor respeito aos patrões, aí eles são tratados de modo relativamente suportável. De modo que pode dizer-se que o salário, dentro de certos limites, é aquele que o operário (não como indivíduo, entenda-se, mas como classe) exige.

Lutanto, portanto, resistindo contra os patrões, os trabalhadores podem impedir, até um certo ponto, que as suas condições piorem; e também obter melhorias reais. E a história do movimento operário já demonstrou esta verdade.

É necessário, porém, não exagerar o alcance desta luta travada entre operários e patrões no terreno exclusivamente económico. Os patrões podem ceder, e muitas vezes cedem, perante as exigências operárias energicamente expressas, enquanto não se tratarem de pretensões demasiado grandes; mas quando os operários começassem (e é urgente que comecem) a pretender um tal tratamento que absorveria todo o lucro dos patrões e constituiria assim uma expropriação indireta, é certo que os patrões fariam apelo ao governo e procurariam forçar os operários a ficar na sua posição de escravos assalariados.

E mesmo antes, bem antes que os operários possam pretender receber em compensação do seu trabalho o equivalente de tudo o que produziram, a luta económica torna-se impotente para continuar a produzir a melhoria das condições dos trabalhadores.

Os operários produzem tudo, e sem eles não se pode viver: então poderia parecer que, recusando trabalhar, eles pudessem impor tudo o que querem. Mas a união de todos os trabalhadores, mesmo duma só profissão, mesmo dum só país, é difícil de obter; e à união dos operários opõe-se a união dos patrões. Os operários vivem à jornada e, se não trabalharem, depressa ficam sem pão; enquanto que os patrões dispõem, por meio do dinheiro, de todos os produtos já acumulados, e assim podem tranquilamente esperar que a fome tenha reduzido à discrição os seus assalariados. A invenção ou a introdução de novas máquinas torna inútil o trabalho dum grande número de operários e aumenta o grande exército dos desocupados, que a fome obriga a venderem-se a quaisquer condições. A imigração logo traz, nos países onde os operários conseguem estar melhor, multidões de trabalhadores famélicos que, querendo ou não, oferecem aos patrões o modo de rebaixar os salários. E todos estes factos, derivados necessariamente do sistema capitalista, chegam a contrabalançar o progresso da consciência e da solidariedade operária: muitas vezes caminham mais depressa que este progresso, parando-o e destruindo-o. E, em todo o caso, resta sempre o facto primordial de que a produção, em sistema capitalista, é organizada por cada capitalista para o seu lucro individual e não para satisfazer, como seria natural, do melhor modo possível as necessidades dos trabalhadores. Daí a desordem, o desperdício de forças humanas, a escassez intencional dos produtos, os trabalhos inúteis e danosos, a desocupação, as terras incultas, o pouco uso das máquinas, etc. — tudo males que não se podem evitar a não ser tirando aos capitalistas a posse dos meios de trabalho e assim a direção da produção.

Depressa, portanto, se apresenta aos operários que pretendam emancipar-se, ou mesmo só melhorar seriamente as suas condições, a necessidade de atacar o governo, o qual, legitimando o direito de propriedade e defendendo-o pela força bruta, constitui uma barreira diante do progresso, que é preciso abater pela força se não se quiser ficar indefinidamente no estado atual e pior.

Da luta económica é preciso passar à luta política, isto é, à luta contra o governo; e em vez de opor aos milhões dos capitalistas os magros cêntimos acumulados pelos operários, é preciso opor aos fuzis e aos canhões que defendem a propriedade os melhores meios que o povo puder encontrar para vencer a força pela força.

4. A luta política

Por luta política entendemos a luta contra o governo. Governo é o conjunto daqueles indivíduos que detêm o poder, seja como for adquirido, de fazer a lei e a impor aos governados, isto é, ao público.

Consequência do espírito de domínio e da violência com que alguns homens se impõem aos outros, ele é ao mesmo tempo criador e criatura do privilégio e seu defensor natural.

Erroneamente se diz que o governo cumpre hoje a função de defensor do capitalismo, mas que abolido o capitalismo ele se tornaria representante e gerente dos interesses gerais. Primeiro que tudo, o capitalismo não poderá ser destruído senão quando os trabalhadores, uma vez escorraçado o governo, tomarem posse da riqueza social e organizarem a produção e o consumo no interesse de todos, por si mesmos, sem esperar pela obra dum governo, o qual, mesmo querendo-o, não seria capaz de o fazer.

Mas há mais: se o capitalismo fosse destruído, e se deixasse subsistir um governo, este, mediante a concessão de todo o tipo de privilégios, criá-lo-ia de novo visto que, não podendo contentar a todos, teria necessidade de uma classe economicamente poderosa que o apoiasse em troca da proteção legal e material que recebe.

Por conseguinte, não se pode abolir o privilégio e estabelecer solida e definitivamente a liberdade e a igualdade social senão abolindo o governo — não este ou aquele governo, mas a própria instituição do governo.

Porém, nisto, como em todos os factos de interesse geral, mais do que em qualquer outro, é necessário o consenso da generalidade; e por isso devemos esforçar-nos para persuadir as pessoas de que o governo é inútil e danoso, e que se pode viver melhor sem governo.

Mas, como já repetimos, só a propaganda é impotente para convencer todos — e se nos quiséssemos limitar só a pregar contra o governo, esperando, de outro modo inertes, o dia em que o público será convencido da possibilidade e utilidade de abolir completamente toda a espécie de governo, esse dia nunca chegaria.

Sempre pregando contra toda a espécie de governo, sempre reclamando a liberdade integral, nós devemos favorecer todas as lutas pelas liberdades parciais, convictos de que na luta se aprende a lutar, e que começando a saborear um pouco de liberdade se acaba por querê-la toda. Devemos sempre estar com o povo, e quando não o conseguirmos fazer pretender muito, procurar que ao menos comecem a pretender algo; e devemos esforçar-nos para que aprenda, queira ele muito ou pouco, a querer conquistá-lo por si, e tenha em ódio e desprezo qualquer um que esteja no governo ou para lá queira ir.

Uma vez que o governo tem hoje o poder de, mediante as leis, regular a vida social e alargar ou restringir a liberdade dos cidadãos, nós, não podendo ainda arrancar-lhe este poder, devemos procurar diminuí-lo e obrigar o governo a fazer dele o uso menos danoso possível. Mas isto devemos fazê-lo estando sempre fora e contra o governo, pressionando-o mediante a agitação da praça, ameaçando de tomar à força aquilo que se reclama. Nunca devemos aceitar qualquer função legislativa, seja ela geral ou local, pois assim diminuiremos a eficácia da nossa ação e trairemos o futuro da nossa causa.

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A luta contra o governo resolve-se, em última análise, em luta física, material.

O governo faz a lei. Ele então deve ter uma força material (exército e polícia) para impor a lei, pois de outro modo só obedeceria quem quisesse, e a lei já não seria lei, mas uma simples proposta que cada um é livre de aceitar e de rejeitar. E os governos têm esta força, e dela se servem para poder com leis fortificar o seu domínio e fazer os interesses das classes privilegiadas, oprimindo e explorando os trabalhadores.

Limite à opressão do governo é a força que o povo se mostra capaz de lhe opor.

Pode haver conflito aberto ou latente, mas conflito há sempre, pois o governo não se detém diante do descontentamento e resistência populares a não ser quando sente o perigo da insurreição.

Quando o povo se submete docilmente à lei, ou o seu protesto é fraco e platónico, o governo faz o que lhe aprouver sem se importar com as necessidades populares; quando o protesto se torna vivo, insistente e ameaçador o governo, conforme seja mais ou menos iluminado, cede ou reprime. Mas sempre se chega à insurreição, pois se o governo não cede o povo acaba por se rebelar, e se o governo cede o povo adquire confiança em si mesmo e exige cada vez mais, até que a incompatibilidade entre a liberdade e a autoridade se torne evidente e estale o conflito violento.

É necessário, portanto, preparar-se moral e materialmente para que ao estalar da luta violenta a vitória fique com o povo.

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A insurreição vitoriosa é o facto mais eficaz para a emancipação popular, pois o povo, uma vez sacudido o jugo, torna-se livre de criar as instituições que crê melhores, e a distância que há entre a lei, sempre retardatária, e o grau de civilização a que chegou a massa da população, é atravessada dum salto. A insurreição determina a revolução, isto é, a rápida atuação das forças latentes acumuladas durante a precedente evolução.

Tudo está no que o povo é capaz de querer.

Nas insurreições passadas o povo, incônscio das razões verdadeiras dos seus males, quis sempre muito pouco, e muito pouco conseguiu.

O que quererá na próxima insurreição?

Isso depende em parte da nossa propaganda e da energia que soubermos desenvolver.

Nós deveremos incitar o povo a expropriar os proprietários e a pôr em comum as coisas, e a organizar a vida social por si mesmo, mediante associações livremente constituídas, sem esperar ordens de ninguém e recusando nomear ou reconhecer qualquer governo que seja, qualquer corpo constituído que sob um nome qualquer (constituinte, ditadura, etc.) se atruibua, seja sequer a título provisório, o direito de fazer a lei e impor aos outros pela força a sua vontade.

E se a massa do povo não corresponder ao nosso apelo, nós deveremos — em nome do nosso direito de sermos livres mesmo que outros queiram continuar escravos, e pela eficácia do exemplo — levar a acabo por nós mesmos, o mais que pudermos, as nossas ideias, e não reconhecer o novo governo, e manter viva a resistência, e fazer com que as localidades onde as nossas ideias forem simpaticamente acolhidas se constituam em comunidades anárquicas, rejeitem toda a ingerência governativa, estabeleçam livres relações com as outras localidades e pretendam viver a seu modo.

Deveremos, sobretudo, opor-nos por todos os meios à reconstituição da polícia e do exército, e aproveitar a ocasião propícia para excitar os trabalhadores das localidades não anárquicas a aproveitar da falta de força repressiva para impor as maiores pretenções que nós conseguirmos induzi-los a ter.

E seja como for que as coisas vão, continuar sempre a lutar, sem um instante de interrupção, contra os proprietários e contra os governantes, tendo sempre em mira a emancipação completa, económica, política e moral de toda a humanidade.

5. Conclusão

Queremos portanto abolir radicalmente a dominação e a exploração do homem sobre o homem, queremos que os homens, irmanados por uma solidariedade consciente e desejada, cooperem todos voluntariamente para o bem-estar de todos; queremos que a sociedade seja constituída com o fim de fornecer a todos os seres humanos os meios para alcançar o máximo bem-estar possível, o máximo possível de desenvolvimento moral e intelectual; queremos para todos pão, liberdade, amor, ciência.

E para alcançar este fim supremo nós cremos necessário que os meios de produção estejam à disposição de todos, e que nenhum homem, ou grupo de homens, possa obrigar os outros a submeterem-se à sua vontade nem exercer a sua influência de outro modo que não seja pela força da razão e do exemplo.

Portanto: expropriação dos detentores do solo e do capital em vantagem de todos e abolição do governo.

E enquanto esperamos que isto se possa fazer: propaganda do ideal, organização das forças populares; luta contínua, pacífica ou violenta segundo as circunstâncias, contra o governo e contra os proprietários, para conquistar o mais que se puder de liberdade e de bem-estar para todos.


Inclusão: 19/01/2020