Grande Estética

György Lukács


Volume 2 – Problemas da mimese
10 - Traços gerais da relação sujeito-objeto na estética
10.1 – O homem como núcleo ou como casca


A criação artística é ao mesmo tempo descoberta do núcleo da vida e crítica dela. É impossível acentuar com suficiente energia essa duplicidade. Pois o fenômeno que descrevemos é universalmente conhecido e aparece constantemente nas considerações estéticas. Mas sob as particulares condições ideológicas de diversos períodos, a única verdade autêntica e inteira, a afirmação da totalidade dinâmica de todas as determinações essenciais, se deforma frequentemente em uma meia verdade, isto é, em uma falsidade completa. Pois o mesmo se é eliminado desse complexo da objetividade, o reflexo aproximadamente correto da realidade tal como esta é em si, que se tenta libertar a refiguração estética do mundo de sua referencialidade ao homem (à humanidade), a deformação é sempre inevitável. Em vários estudos tentei mostrar que aqueda ideológica de uma classe, o que chamamos de decadentismo, costuma manifestar-se de modo mais pesado em uma perturbação da relação sujeito-objeto, e precisamente como aparição, frequentemente simultânea, de um equivocado subjetivismo e um objetivismo não menos equivocado.(1) No período anterior à primeira guerra mundial dominou a primeira tendência. Certamente sua expressão mais plástica se encontra na célebre “Carta de Senhor Chando a Bacon de Verulam”, de Hugo von Hofmannsthal. O Senhor se queixa, como é sabido, de que perdeu toda capacidade de pensar coerentemente, de perceber estruturalmente o mundo externo. Como compensação recebeu o dom de estranhas vivências: “Pois é algo sem nome, e provavelmente inominável, que nesses momentos alguma coisa qualquer de meu ambiente cotidiano me anuncia com uma pletora ilimitada de vida superior, como um recipiente repousante, Não posso pretender que tu me entendas sem nenhum exemplo, e tenho de pedir-lhe desculpas pela necessidade de meus exemplos. Um regador, uma grade abandonada no campo, um cachorro ao sol, um pobre cemitério, um inválido, uma pequena oficina de trabalho, tudo isso pode se converter em recipiente de minha revelação. Cada um desses objetos e outros milhares parecidos podem se converter repentinamente em algo cuja produção não está de maneira nenhuma em meu poder, tomar um aspecto sublime e comovedor para cuja expressão me faltam palavras”.(2) É claro que não se trata, em primeiro lugar, da simples inexpressabilidade dessas vivências. Seu objeto está desde o primeiro momento subtraído de toda ligação; e o que produz a vivência não é sua totalidade objetiva. Antes se trata de que uma alma, desorientada, perdida no mundo, entra em uma relação puramente particular, casual e individual, com um momento casual de um objeto casual, e essa relação tem de ser inexpressável por isso mesmo por princípio, não por simples razões psicológicas individuais.

Essa errônea subjetividade hipertrofiada, e por isso orientada ao nada, cede mais tarde seu lugar, já depois da primeira guerra mundial a uma objetividade não menos hipertrofiada e, por isso, não menos errônea. Também a este propósito nos limitaremos a aduzir um exemplo. O escritor francês Alain Robbe-Grillet escreve em um artigo programático sobre o romance do futuro: “Em lugar desse universo de ‘significados’ (psicológicos, sociais, funcionais) seria preciso tentar construir um mundo mais sólido e mais imediato. Seria antes de tudo necessário que os objetos e os gestos atuassem por sua presença, e que essa presença persistisse a seguir dominantemente diante a toda teoria explicativa que quisesse prendê-los em algum sistema de relações sentimentais, sociológicas, freudianas, metafísicas ou de outro tipo. Neste futuro universo de romance os gestos e os objetivos ‘existirão’ antes de ser ‘algo’; e continuaram assim, presentes para sempre, duramente, imutavelmente, zombando de seu sentido, que em vão quer rebaixá-los a precárias utilidades, entre um passado sem forma e um futuro indeterminado”.(3) Aqui se vê claramente o polo oposto do enfeitiçamento, da relação sujeito-objeto por Hofmannsthal. No caso deste, tudo se convertia em ocasiões puramente casuais da libertação de forças anímicas irracionais; no caso de Robbe-Grillet, os objetos e até os modos de manifestação do homem (os gestos) tem de perder todo vínculo com a vida social e até com a vida interior do homem como um todo; é uma tendência à desumanização total da realidade, presentes já antes em conhecidos escritores (que se recorde, por exemplo, o lugar central do “fálico” em D. H. Lawrence).

Depois dessa digressão, necessária para determinar precisamente nosso fenômeno, para separá-lo claramente dos que somente abstratamente e imediatamente, quase só verbalmente, se assemelham, voltamos à própria coisa, e recordemos como a passagem de uma vivência de Goethe da natureza, da viagem para Itália. Goethe contempla em Veneza diversos animais marinhos, ostras, caranguejos, e exclama entusiasmado: “Que coisa deliciosa e magnífica é um ser vivo! Quanto adequado à sua situação que verdadeiro, com quanto ser!”.(4) Este assombro de Goethe tem naturalmente, de acordo com a personalidade do escritor, dois aspectos: pode se interpretar como ponto de partida de investigações científico-naturais – e sem dúvida esse comportamento, essa maneira de olhar, desempenha importante na metodologia científica de Goethe –; mas manifesta ao mesmo tempo sua atitude artístico-poética diante da realidade; é um fato universalmente conhecido, e documentado inclusive por numerosas confissões de Goethe, que os traços convergem intensamente em seu pensamento. Não é nossa tarefa aqui estudar sua metodologia cientifica; a única coisa que nos interessa é indicar como se torna visível, a propósito de uma ocasião aparentemente tão irrelevante, o ponto de unidade entre a vida, a arte e a ciência, a identidade dos mundos refletidos por elas, e precisamente em um estado de “espanto” no qual não se separaram mesmo os caminhos da ciência e da arte. Sumamente importante nisto para o reflexo artístico que o objeto desencadeador apareça já com uma determinação clara e que, consequentemente, quando – como nos dois exemplos polarmente opostos que acabamos de aduzir – o posterior trabalho artístico se esforça por eliminar subjetivamente ou objetivamente a riqueza de relações, tem lugar a deformação do fenômeno, sua feitização.

Mas precisamente essa riqueza de relações constitui o fundamento da captação do objeto em sua inteira concretude e do autêntico e fecundo desempenho do sujeito que se constitui em portador, organizador, concentrador da objetividade percebida em um “mundo”. Na sentença de Goethe essa unidade se encontra ainda em um nível pré-científico e pré-artístico. Por isso, é tão instrutiva sobre a analogia e a diferença de ambos os níveis. Pois para o comportamento científico se afirma como decisiva e dominante a entrega incondicional à objetividade do objeto; o fundamental desta afirmação em nada se altera no essencial pelo fato de que para a elaboração e explicitação verazes dessa objetividade seja preciso muito mais do que a entre em apreço, isto é, o talento criativo que afasta de toda subjetividade, que permite destacar clara, articuladamente, em clara legalidade a riqueza infinita do objeto. Mas a objetividade que aparece em Goethe também pré-artisticamente tem, relacionada com a arte, uma personalidade completamente diferente: a subjetividade tem de se superar a si própria até ao pleno desaparecimento, para ser um espelho na qual apareçam sem deformar todas as determinações importantes do objeto, e tem de se identificar simultaneamente no interior até o extremo, se é que a refiguração não deva ser rígida e morta. A duplicidade do objeto estético – que consiste em ser um em-si e, ao mesmo tempo, inseparavelmente, existir sozinho para o homem – impõe esta duplicidade ao sujeito coordenado com ela. Esse vínculo inseparável de superação e intensificação da subjetividade é sem dúvida, em sua concentração em um ato, algo especificamente estético; mas o comportamento que o subjaz do ponto de vista do conteúdo, comportamento que pode se manifestar como unificação posterior, como complemento recíproco de atos de orientação oposta, desempenha também na vida cotidiana dos homens um papel importante e, desde já, frequentemente subestimado. Dito de modo muito geral se trata do fato insuperável de que um desenvolvimento real da personalidade humana não é possível senão que no mundo, em ininterrupta inter-relação com o mundo. De que tanto um homem que se feche tendencialmente em si próprio como um homem que se entregue sem defesa ao seu meio e se adapte incondicionalmente a ele tem de se converter em última instância em inválidos anímicos. O impulso para a completude no humano alenta, mais ou menos, conscientemente na maioria dos homens, na medida na qual a estrutura social de sua época não os deformou intimamente até o ponto de sentir a própria deformação como condição necessária de toda a existência. Certamente que este impulso e a capacidade de realizá-lo são diferentes nas diversas pessoas de uma mesma época e de uma mesma classe; partindo da luta pela eficaz realização, a escala se amplia, passando pela rebeldia impotente, até a adaptação cega e até complacente a um dos falsos extremos do subjetivismo ou o objetivismo.

A arte é sempre pela sua essência uma força contrária a essas tendências degenerativas, é sempre o modelo da resistência contra suas influências, o ideal da saúde interior. O fato de que suas conformações individuais possuam quase sempre também uma concreta personalidade de modelo – positivo ou negativo – em determinado sentido não diminui esse efeito geral, senão que o reforça. Esse efeito consiste em ser modelo de um comportamento digno do ser-homem, um comportamento que capte e dê forma à objetividade do mundo de tal modo que nela se manifeste a relação sujeito-objeto. Mas isto acarreta para o sujeito criador a necessidade de formar em si o comportamento correspondente para o mundo. Também nisto é possível – de acordo com o período, a classe, a nação, a individualidade – uma infinita variabilidade concreta, e até imprescindível; mas a forma sumamente criadora é o único caminho que leva à válida vitalização de tais formações estéticas. O que com justiça se chama uma personalidade artística se baseia precisamente nessas relações com a realidade. É verdade que formalmente ocorre ser possível produzir obras de arte em base a outro fundamento psíquico; o predomínio excessivo de uma subjetividade sem mundo ou da repressão sem alma e desumana da subjetividade, comunica, entretanto inevitavelmente a problematicidade humana deste estado à própria obra, e levanta nela um problema insuperável. O vínculo real entre a obra e a personalidade criadora é, evidentemente, muito complicado, e mostra as formas mais diversas de mutação dialética. Mas nesse cambio alternante subsiste sempre – se é tratado de autênticas obras de arte – um ponto médio que sempre retorna: a relação descrita com a própria realidade, cujas linhas de movimento definimos como estranhamento do sujeito no mundo em mundo objetivo e retrocaptação do assim conseguido no sujeito. As presentes descrições não superam essas feitas em outros contextos mais que por duas circunstâncias: porque a substancialidade do sujeito criador aparece agora como pressuposto necessário da alcançada substancialidade da obra e porque aquela substancialidade repousa, segundo agora sabemos, em uma relação com a realidade na qual o sujeito, pela sua entrega ao mundo externo, pelo reflexo dais principais determinações deste, se encontra a si própria como substância, se enriquece e se aprofunda.

De tudo isso se conclui uma necessidade absoluta para a posição estética: a necessidade de encontrar, sobre a base de um reflexo dialético da realidade, a relação com esta. Como pudemos ver em muitos casos, essa dialética é também claramente perceptível, naturalmente, na prática cotidiana: também nesta seria impossível existir e atuar com sucesso se o reflexo animicamente relevante para o homem tivesse uma personalidade simplesmente fotográfica. A intervenção ativa do sujeito no modo e resultado desse reflexo se corrige, entretanto, mais ou menos espontaneamente no trabalho e na prática restante imediata da cotidianidade, e, na ciência, conscientemente, por meio do comportamento desantropomorfizador. Mas não se deve esquecer que esse fator subjetivo do reflexo contem sem separar e em sua imediação, dois elementos da relação com a realidade: em primeiro lugar, os momentos do mundo aparente que constituem simples acréscimos subjetivos ao reflexo (efeito dos órgãos específicos dos sentidos humanos, etc.); em segundo lugar, a participação objetiva do gênero humano (e dos indivíduos que o formam) na natureza, na estrutura, etc., da própria realidade, sua referência essencial ao ser-homem do homem. O reflexo desantropomorfizador elimina essa unidade imediata e a decompõe em suas componentes verdadeiramente objetivas, com objetivo de poder conceber e fixar em uma nova síntese as ligações puramente objetivas e em si.

O segundo motivo desempenha um papel importante no comportamento ético dos homens. De fato: uma decisão humana não pode se separar do nexo causal do decurso histórico-social, mas apesar disso possui, contemplada eticamente, um particular acento de realidade, o da responsabilidade do indivíduo que a toma. Sem dúvida pode nascer essa responsabilidade das causas produtoras e das consequências produzidas, mas sempre apresenta então uma diferença qualitativa em relação da responsabilidade propriamente dita: nesta a decisão é seu próprio objeto; naquela, o objeto é o reconhecimento de certas obrigações subjetivas, a previsão de certas tendências da realidade. Isto não é, naturalmente o lugar adequado para estudar mais de perto a dialética que assim se produz. Mas é certo que os falsos extremos antes indicados são também – mutatis mutandis [mudando o que deve ser mudado - ndt] – de importância decisiva no terreno da ética: a ignorância plena do mundo externo objetivo pode transformar em quixotada as intenções morais mais puras e generosas, enquanto que a aceitação sem resistência dos dados do mundo circundante rebaixa o sujeito à vulgaridade mais filisteia. E eticamente não constitui nenhuma diferença decisiva que esse envilecimento se produza como adaptação sem critério ao mundo dado em cada caso ou como passiva reação emocional, que às vezes pode chegar até a indignação íntima, mas sem se transformar em atos; há dentro do filisteismo uma ampla gama, desde o refinamento sem essência até a torpe grosseria, desde a vibrante sensibilidade sem norte até ao endurecimento insensível, etc. Não nasce no homem uma real substância ética – ou, para dizer melhor: o homem não cresce até uma substancialidade ética – mais do que quando consegue realizar a correta proporção entre o interno e o externo, a necessidade e a liberdade, realizando-a em suas decisões e seus atos. O problema do lugar ocupado por essa substancialidade da pessoa no âmbito total da ética supera o marco destas considerações.

Mas agora essas linhas muito gerais mostram que o comportamento ético e estético se encontram em relação recíproca íntima, embora complicada e contraditória. A base das diferenças – que são até oposições – se encontra em seus aspectos fundamentais: a ética se dirige praticamente à própria realidade humana; a estética aspira contemplativamente a um reflexo de mundo essencial para o homem. A dialética do reflexo estético – que decide sobre a fidelidade e profundidade, a verdade e a riqueza, a mundanidade e o poder evocador das obras de arte – parte ante de mais nada da intenção aqui analisada entre a objetividade e a subjetividade. Somente quando o sujeito criador é capaz de conceber a referência dos objetos ao homem (ao gênero humano) como síntese das próprias determinações intrínseca destes e, ao mesmo tempo, capaz de fazer se desenvolver organicamente as relações do homem a seu mundo circundante de uma substância ativa unitária que abrange tudo isso, somente então pode surgir este equilíbrio de tensão da subjetividade e objetividade como nova síntese unitária e imediata, substancial e evocadora. E por mais complicado que seja a sua gênese a partir do sujeito criador, por muito que um salto qualitativo separe e vincule a criação e a obra, tem de haver nos pressupostos subjetivos tendências que convirjam com a estrutura da obra de arte, tendências que correspondam muito amplamente a esta, se é que o salto há de dar realmente lugar a uma autêntica obra de arte. Esta correspondência, esta comunidade se baseia precisamente na correta relação do sujeito com o mundo objetivo, tanto na realidade quanto na arte. O caráter não mecânico, dialético, do reflexo estético se impõe no fato de que este reflexo depende da natureza do sujeito. Uma arte autêntica e rica – afirmou Gorki em certa ocasião – não pode nascer senão de uma vida rica. Esta riqueza, como é óbvio, não tem porque se revelar necessariamente na agitação externa da vida, mas sim que tem de estar vivamente presente na vivência do mundo e, em consequência da proporcionalidade correta entre a subjetividade e a objetividade, tem de formar com o sujeito algo substancial para que a obra possua a substância imprescindível para sua autenticidade. A pergunta: Quem reflete a realidade? Não pode de modo algum se separar do problema do que é refletido e como se reflete; esta inseparabilidade é um problema de princípio. A obra aparentemente mais fantástica, mais distanciada do mundo, pode ser neste sentido autêntico reflexo da realidade; e se a realidade histórico-social obscurece e confunde a relação da subjetividade com a objetividade, também o mundo das obras tem de perder toda substância.

A confusão que acabamos de mencionar costuma se manifestar como negação total ou parcial do caráter de reflexo próprio da arte. O fato tem sem dúvida remotas tradições histórico-filosóficas. Como, até Marx, o materialismo não conheceu outro reflexo senão o mecânico, é claro que lhe eram insolúveis os complicados problemas da estética. Materialistas importantes, como Diderot, o ultrapassara introduzindo de contrabando e sem sabê-lo, em considerações isoladas, momentos dialéticos que corrigiam a noção mecanicista do reflexo; dialéticos idealistas, como Hegel, introduziram frequentemente – não menos inconscientemente –, nas concepções como a do sujeito-objeto idêntico, aplicações da doutrina dialética do reflexo. Mas isto é apenas o que se pode dizer dos pensadores mais importantes. Por isso é compreensível que nos últimos decênios tenha predominado uma recusa da teoria do reflexo. Tendências como o expressionismo ou o surrealismo tentam deduzir a arte inteira de uma autoatividade enigmática de um sujeito sem mundo, e inclusive pensadores tão penetrantes como Caudwell, ao qual já criticamos, querem salvar lírica ao menos tal subjetividade pura que se supõe apelar a sobrevivências mágicas. Diante de tudo isto é digno de consideração sempre que artistas reflitam sobre seu próprio ofício terminam por voltar à ideia de reflexo da realidade. Não falaremos de Tolstoi, o qual, embora sempre que tenta pensar filosoficamente o faz sob a influência do idealismo subjetivo, quando dá forma a uma autêntica personagem de artista (como o pintor Mirrailov em Anna Karenina) sempre reconduz corretamente a teoria e prática de tal personagem à doutrina do reflexo. Mas inclusive um escritor como Proust tem de apelar para o reflexo para esclarecer a lírica de um poeta tão modernamente subjetivista como Mallarmé, que representa nas recentes teorias o protótipo da subjetividade “pura” que nada reflete. Em uma carta juvenil Proust escreveu sobre Mallarmé: “(...) queria dizer (...) em geral deste poeta que suas imagens obscuras e iluminadoras são sem dúvida alguma reproduções de coisas, pois não podemos imaginá-las de qualquer outro modo; mas, por assim dizê-lo, se trata de coisas refletidas pela superfície lisa e obscura do mármore preto”.(5) É importante neste caso não somente o reconhecimento da doutrina do reflexo, imposto pela lógica própria das coisas, senão também da penetrante e acertada imagem do meio subjetivo do reflexo. E com isto nos encontramos no centro de nosso presente problema. A teoria dialético-materialista do reflexo, assim como suas aplicações aos terrenos nos quais o homem surge como sujeito, está muito longe de superar o papel e significado da subjetividade, e ainda mais longe de negá-la. Pode inclusive se afirmar, pelo contrário, que ela precisamente é capaz de captá-la com concretude ainda maior que qualquer teoria moderna do subjetivismo radical. Pois estas teorias da subjetividade aparecem como algo tão abstratamente imediato que nela desaparecem ou tendem a envelhecer todas as autênticas determinações e diferenças; que a subjetividade exige, abstrata e enfaticamente, um peso monstruoso que não lhe corresponde nem pode aguentar; que se põe declaradamente, em sua unicidade particular, à altura de demiurgo único de todo processo criador. Por isso não pode em tais casos se dizer nada essencialmente concreto sobre a subjetividade. Por outro lado, o materialismo dialético, precisamente porque parte da função correta da subjetividade no reflexo estético (e também na ética, na prática histórica, etc.), pode iluminar a subjetividade com uma diferença muito mais rica e profunda do que a accessível a estas teorias. Atentando-nos ao reflexo estético e levando em conta as grandes e complicadas tarefas que esse reflexo impõe ao sujeito criador, fica claro que uma análise sobre essa base posiciona problemas de diferença nos quais a adequação estética do sujeito a tal reflexo da realidade abrange ao homem criador em sua movimentada totalidade, em sua inteira personalidade, ou seja, também sua inteligência, sua moral, etc. Gorki posicionou este problema pouco depois que Proust escrevera as linhas antes citadas. Ele escreveu em seu ensaio A destruição da personalidade: “São qualidades típicas dos velhos escritores uma ampla capacidade de captação, uma harmoniosa visão do mundo, uma intensa sensação da vida; em seu campo visual se encontrava o mundo inteiro. A ‘personalidade’ do escritor presente não passa de ser seu modo de escrever; o outro, a totalidade de seus sentimentos e suas ideias, se faz cada vez mais imperceptível, nebuloso e, para dizer a verdade, pobre. O escritor deixou já de ser o espelho do mundo; é um pequeno caco desse espelho; a camada social do amalgama se erodiu, o escritor já não tem, na poeira da rua da grande cidade, a capacidade de refletir com seus fragmentos a grande vida do mundo, e se limita a dar pedaços da vida da rua, pequenos restos das almas deslocadas”.(6)

Não é preciso muita profundidade para se perceber certa semelhança de princípio dos dois posicionamentos: aceito enquanto tal o fato do reflexo, os dois escritores citados se interessam em saber como tem de ser este espelho no qual há de poder aparecer uma reelaboração poética, artística, do mundo. Mas, enquanto Proust fica parado uma vez formulado com sutil profundidade um fato curioso, isto é, que a superfície do mármore negro permite ao sujeito humano apenas uma reprodução interessante e apagada, muito tonal, mas sem corpo nem figura, do mundo ao redor, Gorki aponta diretamente ao problema central, caminha em direção a ele e mostra que a destruição do vínculo subjetivo do homem de sua época com a vida social e os problemas desta destrói no sujeito o instrumento do reflexo estético e lança à poeira das ruas as pedaços quebrados. Esta diferença de concepção em nada diminui a importância que tem o fato de que os representantes tão destacados de concepções diametralmente opostas da literatura coincidam enquanto ao dado do caráter de reflexo que esta tem, e inclusive em que a particularidade específica do sujeito poético atua decisivamente sobre a qualidade do próprio reflexo. Como vimos, Gorki põe, além disso, claramente o pano de fundo social dessa qualidade. Mas o vínculo consciente com a sociedade ou a imaginária independência absoluta do sujeito não simples diferenças “sociológicas” – como pensa a maioria dos filósofos burgueses –, senão que, ao contrário, afetam diretamente a essência humana, ao ser do homem e, portanto, a suas capacidades estéticas. Em outro contexto tangenciamos já este problema e afirmamos filosoficamente, com Aristóteles, a natureza primariamente social do homem. A importância dessa decisão filosófica consiste em que se a diferença fosse apenas “sociológica”, o homem poderia isolar-se à vontade dos problemas sociais de sua época, viver como “átomo” sem prejudicar nem deformar por isso seu ser nem, portanto, sua capacidade de reproduzir corretamente o mundo interno e externo. Mas se, por outro lado, o homem é social por sua essência “ontológica”, então essa existência como “átomo” não passa de imaginária, é internamente incorreta, contradiz sua própria base objetiva, e essa discrepância não pode durar indefinidamente sem ferir seriamente ao sujeito enquanto tal.(7) Robert Musil, que se distingue vantajosamente da maioria dos escritores da vanguarda pela sinceridade frequentemente heroica sobre a própria personalidade e a própria produção, escreveu sobre si mesmo: “Zaratustra, O Solitário, na montanha, contradiz de algum modo meu pensamento. Mas como se situar-se para entender com um mundo que não tem qualquer ponto firme? Não o sei, e se trata disso”.(8)

A contraditoriedade que aqui se manifesta para a esfera inteira do reflexo estético pode se formular brevemente assim: por um lado, toda análise detalhada da estrutura de categorias desse mostra uma atmosfera de jogo extraordinariamente grande – e até ilimitada, se é comtemplado de modo imediato – para as várias possibilidades expressivas. Precisamente a concepção correta do lugar da causalidade no sistema de categorias liberta o reflexo estético de uma servil dependência em relação à realidade dada, concebida como aparência imediata, e a respeito do modo de explicação – também imediato – que a transforma em uma rede sempre acabada de leis causais. A penetração estética rumo à essência, para leis da vida humana, rumo à substância do ser-homem, pode ter assim – formalmente e do ponto de vista do conteúdo – uma variedade ilimitada, pode se separar quanto radicalmente se queira da superfície imediatamente percebida da vida cotidiana, pode parecer, comparada com ela, o quanto fantástica ou grotesca que se queira, sem ter de perder por isso sua essência de reelaboração verdadeira da realidade. Mas, por outro lado, precisamente essa liberdade, essa recusa a toda rega pré-estabelecida, dá lugar a uma seleção extraordinariamente rigorosa que elimina do reino da arte uma enorme massa de tentativas estéticas. É essencial ao reflexo estético que nele as categorias não decidam o êxito ou o fracasso da totalidade de conteúdo e de sua conformação específica nasce à estrutura estética das obras singulares de cuja natureza depende aquilo que na obra possa pertencer à arte ou fique reprovada, fora dela. Todas os problemas relativos a essa constelação indicam (como pode se provar pela sua detalhada investigação) que o primado da unidade e a totalidade em relação da análise dos detalhes e das individualidades não suprime de modo algum a racionalidade estética; antes dá o fundamento de sua estrutura particular.

Até a segunda parte deste livro não se poderão posicionar nem se resolver concretamente esses problemas. Assim não podemos nem devemos senão tocar antecipadamente o problema do papel da subjetividade como elo particular da mediação entre uma realidade objetiva esteticamente neutro e uma obra pura e exclusivamente baseada em categorias esteticamente transformadas. O sujeito tem, naturalmente, um papel parecido mediador também na vida cotidiana e na ciência: um dos preconceitos mais vulgares e infundados contra o materialismo consiste em lhe atribuir a negação de tais mediações. O alcance, a intensidade, a significação, etecetera, dessa mediação nos diversos campos de atividade humana são, desde já, sumamente diversos, e não pode ser nossa tarefa discutir aqui sequer, resumidamente, a multiplicidade de problemas resultantes. Limitar-nos-emos em indicar que tanto em uma grande parte da vida cotidiana – sempre que se trate de rendimentos ou conquistas – como na ciência, o sujeito tem de desempenhar um papel de mediação no mais literal sentido da palavra. Pois mesmo nem o produto do trabalho nem o reflexo científico se poderiam produzir sem a intervenção decisiva do homem integral, esta sua função aparece quase apagada na subjetividade consumada, na objetividade que funciona na vida. Isto é: podemos, por exemplo, saber – e é importante que o saibamos – que enormes energias intelectuais, morais, etc., foram necessárias para produzi a obra científica de Galileu ou de Newton; mas, essas próprias obras cumprem sua missão na vida da humanidade mesmo não se recorra a sua gênese. (Por exemplo: quando utilizamos o calculo diferencial, nos é indiferente que seu inventor seja Newton ou Leibnitz). Mas, a obras de arte, o resultado do reflexo estético, é também como algo pessoal: é uma individualidade-de-obra. Mesmo que não conheçamos seu autor (ou seus autores), esse caráter de personalidade está indelevelmente impresso na obra. Por isso o problema do sujeito criador é ineliminável inclusive da análise mais temático-objetiva das obras de arte.

Esta afirmação tão geral se confirmou já antes na análise do reflexo; as respostas de Proust e Gorki, a deste sobretudo, mostram os amplos horizontes que abre esse posicionamento dos problemas objetivos da estética relativos à obra, e até para os da sua gênese social. Mas, tal posicionamento reconduz, além disso, constantemente, ao que antes expusemos como problema da substancialidade na obra e como sua inevitável fundamentação na substancialidade humana do criador. Somente por este caminho a arte pode cumprir sua missão humana: toda obra de substância autêntica se converte para o receptor em um chamamento que apela à sua própria substancialidade ou sublinha evocadoramente em sua consciência a distância que internamente o separa de tal substancialidade. Como sempre, também aqui o problema particularmente estético é a culminação – qualitativamente acentuada, como é natural – de um problema geral da vida. Goethe o disse essencialmente em seu poema “Ultimato”, no qual o problema aparece como centro desta controvérsia:

E assim te digo pela última vez:

A natureza não tem núcleo nem casca;

Mira-te tu melhor

Se casca ou núcleo és.

Esses verso se referem diretamente ao conhecimento da natureza, e por isso a exortação pessoal dos últimos se dirigem imediatamente aos cientistas da natureza. Mas, em parte pela íntima ligação entre a investigação naturalista e a prática artística de Goethe, em parte pela sua concepção das ciências naturais, que, como mostramos em seu tempo, é historicamente uma escaramuça defensiva e em retirada contra o vitorioso avanço dos métodos desantropomorfizadores, cremos justificado aplicar o epigrama sobretudo a nosso problema do sujeito estético. A justificativa é grande sobretudo porque a conclusão do poema, ainda contem o credo filosófico-natural de Goethe , e se refere objetivamente ao reflexo estético da natureza, não ao científico (...). Pois esses verso finais afirmam: “Não está o núcleo da natureza / No coração dos homens?”

O pensamento de Goethe se aparta assim realmente – contra sua intenção ideológica – da natureza em si, e se orienta decididamente ao estético. Pois essa natureza cujo núcleo está no coração do homem não poderia ser acessível filosoficamente senão por uma construção idealista que era completamente alheia ao pensamento de Goethe. Por outro lado, e como já mostramos várias vezes, a coincidência entre a objetividade e o centro mais essencial e íntimo do humano é a característica decisiva do reflexo estético da realidade. A participação justificada e fecunda da subjetividade humana nessa mimese consiste precisamente na posição dessa referencialidade, não, certamente, como acréscimo subjetivo a um mundo objetivo estranho em si ao sujeito, senão de tal modo que essa orientação ao homem apareça como propriedade inerente e em si dos objetos refletidos. A distinção de Goethe entre o núcleo e a casca tem uma importância decisiva precisamente neste ponto. Antes mencionamos as relações com a ética no desenvolvimento do homem para a substancialidade, ao papel que desempenham nisto a atitude e o papel que desempenham nisto a atitude e a relação corretas na recepção e elaboração do mundo externo. Agora, no sentido da divisão de Goethe dos homens entre núcleos e cascas, por sua natureza, aparece mais claramente o apelo a ética: não se trata tanto das categorias éticas em seu sentido próprio – que são, em princípio e em geral, igualmente restringidoras para todos os homens – quanto de um resultado produzido pela ética – tornada carne e sangue dos homens em apreço – e pela vida levada em rica interação com o mundo: se trata do modo geral de comportamento dos homens, de sua constituição interna como homens integrais. Esta concepção se exprime no Wilhem Meister [Guilherme Mestre – ndt] e nas carta de Goethe e Schiller sobre este romance, do modo mais claro como uma ética dos homens segundo seu ser, oposta aos rigorosos postulados morais de Kant. E se a riqueza nuclear do homem se vincula às vezes nesses textos, de maneira demasiada estreita, à harmonia da individualidade, de qualquer forma se alcança o ponto central dessa sua determinação. Sem poder considerar aqui as ramificações éticas desse escopo de problemas, pode de toda maneira se dizer sobre seu aspecto estético, que é aquele que sobretudo nos interessa: o problema de se o homem é núcleo ou casca significa se é – dito humanamente – digno e, portanto, capaz de refletir adequadamente o mundo, se sua personalidade é adequada para ser o “espelho do mundo” (segundo a frase de Heine sobre Goethe). Logo nos ocuparemos detalhadamente do comportamento receptivo em relação às obras de arte. Aqui é preciso dizer somente – antecipando o assunto – que também no receptor aparece necessariamente o problema do vínculo entre o núcleo do homem e sua capacidade de refletir adequadamente o mundo, e que pertence, mesmo em formas modificadas, à essência de sua vivência estética.

Com isto propomos uma nova concepção do gênio, a qual se manifesta essencialmente – e negativamente de imediato – na negação de todo irracionalismo do gênio. Aqui é impossível um desenvolvimento dessa ideia que descreva as características necessárias do gênio e conte ou enumere suas propriedades decisivas, fixe suas proporções imprescindíveis, etc. Todo gênio (e todo talento) representa uma relação única irrepetível inclusive por analogia entre o homem e a época, o homem e a realidade social, o homem e seu semelhante, o homem e a natureza. Mas essa unicidade completamente insuperável pode, entretanto, elevar-se em conceito se não a considera, como tão frequentemente ocorre, em sua simples presença isolada, senão como aqui propomos, nesta inter-relação com seu meio ambiente histórico-social. A incomparável unicidade do gênio (e do talento) aparece em uma ligação histórica concreta, com a qual é possível descobrir e enunciar determinações muito gerais, que retornam apenas – e com variantes – nessa generalidade. O problema não pode ser tratado aqui com toda profundidade e amplitude; mas, no caso em que o que neste contexto chamamos de personalidade nuclear do homem constitui uma base importante, imprescindível, do gênio (e do talento) no homem. Conhecemos as amplas e ramificadas mediações que têm de se por na obra para que nas obras de arte se faça evocadoramente evidente, autenticamente, sem erros, a etapa correspondente da humanidade. (Trata-se de mediações entre o homem individual e a espécie humana). Nossas discussões anteriores mostram agora que o que chamamos o nuclear do homem é precisamente o elo mediador mais importante entre a personalidade humana e a humanidade nela, entre sua emanações internas e as externas, enquanto que as tendências que chamamos o cortical no homem, pelo domínio dos errôneos extremos na subjetividade e a objetividade, dos centro à periferia, levam â simples particularidade e à abstração que a complementa polarmente. Com isso ligamos simplesmente com nossas considerações anteriores, mesmo elevando-as, naturalmente a um nível humano superior de acordo com a essência da estética. Já antes relacionamos o que agora estamos tratando com a alienação e retrocaptação no sujeito; agora podemos distinguir uma ligação análoga com a missão desfeitizadora. Deste ponto de vista o sentido dos versos de Goethe pode se resumir dizendo que o ser nuclear do homem fica simultaneamente posto com uma visão desfeitizadora sobre o mundo, e o ser cortical com uma inclinação diante os preconceitos enfeitiçadores. Assim nos introduz Goethe, no centro de todo este complexo de problemas. Quanto mais profundamente entendamos que o reflexo estético é capaz de captar e reproduzir o mundo dos homens libertos dos preconceitos enfeitiçados, que esse ato não tem porque se dar necessariamente vinculado a uma penetração consciente e pensada nos aspectos científicos ou filosóficos deste complexo, tanto mais essencial nos parecerá a genial indicação de Goethe. Mas com isso se concretiza mais a concepção de Goethe. Em suas confissões sobre sua própria concepção da natureza aparece cada vez mais energicamente, junto com a oposição subjetiva entre o núcleo e a casca, a oposição entre o interno e o externo, a qual vai ocupando o primeiro plano de seu pensamento pelo lado da estrutura objetiva, da relação sujeito-objeto. Assim escreveu Goethe: “Nada está dentro, nada está fora; / Pois o que dentro, está fora”. E mencionando ao sujeito: “Pensamos: lugar após lugar / estamos no interno”. Finalmente reconduz o problema ao ponto de partida, aos polos núcleo e casca, dizendo, como citamos: “Não está o núcleo da natureza/ No coração dos homens?”. Somente esta última sentença de Goethe alude – sem intenção, mas sem dúvida objetivamente – ao estético. De modo imediato é possível que o pensado por Goethe fora a unidade última, no sentido de Spinoza, do pensamento e o ser na relação do homem à natureza, cujo produto e parte precisamente é ele. Esteticamente, o interno se concretiza no fato de que a natureza penetrada pela atividade do gênero humano – a natureza no intercâmbio com a sociedade – realiza tal relação entre o interno e o externo que todos os fenômenos da natureza se encontram em ligação íntima com a existência do homem, e que portanto – literalmente, não metaforicamente –, o núcleo desses fenômenos toca imediatamente a alma do homem, se assenta dentro dela: o artista autêntico tem “simplesmente” que intensificar até chegar à substancialidade estética essa unidade do interno e o externo que objetivamente está presente em todas as partes, e levar evocadoramente à consciência sua unidade absoluta.

Deste ponto de vista e retrospectivamente exige seu sentido correto a frase de Goethe segundo a qual “a natureza não tem nem núcleo nem casca”: a unidade do interno e o externo na natureza significa para ela mesma a caducidade de uma distinção entre esses dois momentos; essa distinção entre esses momentos; essa distinção é um problema puramente humano que não pode achar solução senão no comportamento do homem para com seu mundo, para com a natureza, e precisamente no sentido de que o caráter nuclear do homem se manifesta em sua capacidade de perceber, pensar e sentir o interno e o externo em sua unidade, e em que essa personalidade nuclear seja pressuposto e consequência de tal visão, enquanto, ao contrário, a natureza do homem como casca se encontra em uma relação não menos necessária com o desgarramento do vínculo entre o interno e o externo.

Entretanto, como afirmamos repetidas vezes, as complicadas relações entre conteúdo e forma apenas poderão ser estudadas na segunda parte, já aqui temos de mencionar de novo a convergência estética desse par de categorias com as do interno e externo. O copertencimento absoluto do interno e do externo, sua tendência à identidade, é um fato da vida, exatamente igual ao de sua relativa divergência e em casos limites, a exacerbação desta até a oposição. Mas, se no primeiro momento não fosse dialeticamente dominante ou abrangente, seria impossível por princípio o intercâmbio entre os homens. Este intercâmbio pressupões, com o axioma implícito, por assim dizer, da vida social, uma essencial ligação entre o interno e o externo. A isso se acrescente que em muitos casos não existe entre ambos senão a aparência de uma tensão, porque o sujeito concreto não reconhece sua essencial unidade objetiva e vê uma discrepância entre a exterioridade incorretamente interpretada e a interioridade por conseguinte obscura. A única coisa que importa pelo que faz ao mundo da natureza é essa forma de autocontradição. Hegel escreveu: “Segundo esta determinação, não se trata unicamente de que o externo seja, por seu conteúdo, igual ao interno, senão que ambos são Uma Coisa única (...) a própria coisa não é senão a unidade de ambos”.(9) Este é um desses fatos da vida tão elementares, a dúvida entre eles está tão escassamente justificada, que, quando nos encontramos com a dúvida ou negação dessa íntima ligação do interno e o externo, um se moveu a buscar os fundamentos sociais de uma confusão tão evidente. Na ciência se trata de um fato extremamente simples. Pois quando, por exemplo, o idealismo subjetivo põe uma “interioridade” que não se pode conhecer, como a coisa em si de Kant, mantendo ao mesmo tempo a correta relação entre o interno e o externo (com o acréscimo de projetar na cabeça por trás dessa totalidade uma interioridade sem relações), a tese filosófica carece de todo relevância para o conhecimento concreto real; aqui nos interessa estudar as consequências dessa posição para a concepção do mundo.

A negação da identidade última do interno e o externo é muito mais importante para a estética, porque com ela se obscurece a relação entre o homem e o gênero humano. Pois por mais que a unidade do interno e o externo seja um fato básico da vida humana, ao nível da particularidade apenas se manifesta tendencialmente. Quanto mais intensamente se tornam visíveis em cada sociedade dada as formas entitativas tendentes à generalidade (a classe, a nação, etc.), tanto mais claramente aparece esta tendência. A crescente importância da individualidade não suprime essa situação, embora sem dúvida a complica cada vez mais. Têm de apresentar-se condições particulares sociais para o desenvolvimento da vida pessoal exija também uma tendência ao fechamento, à exclusão, obscureça o vínculo do homem com as forças gerais da vida e suscite assim a aparência de que a particularidade seja a potência onipotente e determinante de toda existência humana. Assim irrompe essa tendência no pensamento moderno sob a forma de doutrina de Kiekegaard do incógnito insuperável do homem, baseada em uma polêmica sofística com a concepção de Hegel que acabamos de recordar. A importância estética dessa teoria – que é em troca insustentável do ponto de vista filosófico objetivo, porque contradiz todos os fatos objetivos da vida humana- consiste em que o próprio ser social que mandou adiante, como pioneira, a filosofia de Kierkegaard, se converteu, extendendo-se e se aprofundando, em fundamento geral e ideológico da prática artística de personalidades muito dotadas e de tendências influentes. A feitização do mundo circundante humano até fazer dele um “sistema” irracional de poderes absurdos e desumanos, a feitização da interioridade humana em uma mônada sem janelas, hermeticamente fechada e encerrada em si, cuja manifestação tem de ser necessariamente mal entendida pelos demais homens e que, por seu lado, não pode tampouco entender a manifestação deste, empobrece o conteúdo e desfigura as formas de tal modo que resulta inclusive impossível expressar artisticamente a reelaboração do modelo, a desumanidade do capitalismo contemporâneo, o total absurdo da vida humana nele. Pois do mesmo modo que na realidade social objetiva o home não pode se isolar senão em sociedade, assim também, a concreta inexpressabilidade de um estado anímico pressupõe objetivamente a relação normal, embora perturbada em casos dados, entre o interno e o externo. Isto distingue, por exemplo, O processo de Kafka de Molloy de Beckett; no processo o desconhecido absoluto para o homem particular aparece como uma anormalidade indignante, evocadora de indignação, da existência humana, ou seja, embora negativamente, sobre a base do destino e da sorte da espécie, enquanto que Beckett se instala autosatisfeito na particularidade enfeitiçada e absolutizada. Como nesse reconhecimento espontâneo da identidade do interno e do externo se tem um pressuposto elementar da vida do homem, da convivência do homem em geral, esta oposição volta a renovar a concepção de Goethe do núcleo e da casca. A aparente profundidade de Beckett nada mais é senão um estático apegar-se a certos sintomas da superfície imediata que oferece o capitalismo de nossos dias. E o que é isso senão o que Goethe chama de casca?

Conteúdo e interioridade não convergem somente esteticamente; também neste ponto a relação estética expressa algo objetivo, contudo, como sempre, referindo-se ao homem. Em sua reflexões antes citadas Hegel afirma que a totalidade do externo e o interno é “conteúdo e totalidade, que é o interno, e se faz não menos externo”.(10) Essa identidade exige uma posterior intensificação no reflexo estético, em consequência da função da forma artística, orientadora e evocadora das vivencias receptivas. O estético de cada conteúdo tem, na época da gênese do estético a partir da unidade indiferenciada e caótica das manifestações mágicas da vida e do choque com o mundo circundante destas, um modo de manifestação puramente espontâneo. Os homens acreditavam estar realizando finalidades mágicas quando em mais de um terreno e de vários pontos de vista realizavam já uma arte superior. É óbvio que nesse período não podia de maneira nenhuma aparecer-lhes na consciência uma separação conceitual de conteúdo e forma, uma reflexão separada sobre a forma artística. Como é natural. Também então pensaram os criadores sobre a perfeição técnica de suas produções, e a lógica das coisas tem de levá-los assim para problemas artísticos formais, sem que por isso tivessem nem pudessem se dar conta da passagem. Nossas experiências de estados evolutivos muito posteriores mostram o frequentemente que importantes artistas formulam decisivos conhecimentos sobre problemas da forma considerando-os simples inovações técnicas, preocupações dessa ordem, etc. A passagem gradual entre técnica e forma é essencial ao comportamento criador – algo menos pronunciadamente na literatura do que nas artes plásticas e na música –, e sua precisa distinção conceitual é uma tarefa da estética.

Essa tendência se reforça mesmo pelo fato de que a forma estética, como se mostrou já várias vezes, é sempre forma de um conteúdo determinado. Esta peculiaridade dificultou decisivamente sua passagem estética a consciência. Para o criador, a técnica e a forma se vão confundindo paulatinamente do ponto de vista de sua atividade, e o mesmo ocorre, do ponto de vista da tarefa concreta de cada caso, com o material, o conteúdo, a matéria temática, etc., como objetos do processo de elaboração. Sobretudo: enquanto a estrutura social dá à obra de arte preceitos muitos precisos sobre o conteúdo e a forma, é natural que não se desenvolva nenhuma reflexão estético-filosófica sobre a relação entre a forma e o conteúdo, inclusive quando a arte se converteu já em um fenômeno social independente. O materialismo e a dialética espontâneos do pensamento arcaico se fundem aqui com estas tendências também necessariamente ativas na prática estética. O domínio da filosofia idealista move, por último, a divisões mais precisas, a tomadas de posição mais resolutas. O antimaterialismo militante de Platão e, especialmente, a evolução dessa sua tendência filosófica para o mistico-teologico por seus sucessores, dão lugar a uma gritante separação do conteúdo e da forma. Quanto mais se desmaterializa a forma que se ergue em ponta mística do sistema, tanto mais impõe um gritante dualidade em relação dos conteúdos concretos, materiais e terrenos. Como estas concepções da forma (e suas consequências teóricas) estão em íntima relação com a alegoria, as trataremos detalhadamente no último capítulo. Para a atual situação de nosso problema, é, ademais, da maior importância a nova forma do idealismo filosófico difundida especialmente sob a influência de Kant. Por intensamente que costuma diferenciar-se Kant em outros pontos do idealismo antigo e medieval, tem em comum com ele a tendência de abrir um abismo profundo entre a forma e o conteúdo. Schiller, que, como tentou mostrar o autor dessas linhas em outros estudos, era tão pouco ortodoxamente kantiano que sua estética abre já caminho para Schelling e Hegel, disse sobre a filosofia transcendental que nela “tudo tende a libertar a formado conteúdo” , no qual vê caracteristicamente uma separação entre a necessidade e o acaso; Schiller vê claramente que com isso está vinculada a tendência “a pensar o material como simples obstáculo” e a “apresentar a sensibilidade em uma contradição necessária com a razão”. E que, segundo Schiller, essa atitude corresponda somente à letra do sistema de Kant, mas não ao espírito, não elimina a grande influência que teve, inclusive na estética de Schiller.(11)

Por isso é muito instrutivo lançar um olhar ao ponto de vista de Schiller sobre a relação forma-conteúdo, para observar as confusões teóricas que nessa questão pode provocar o idealismo filosófico inclusive em um pensador que era ao mesmo tempo grande poeta e podia portanto – apesar de suas concepções teóricas básicas – conseguir visões muito profundas, inclusive na teoria, do centro do problema. Escreve Schiller sobre a relação entre a forma e o conteúdo da obra poética: “Em uma obra de arte verdadeiramente bela, o conteúdo nada importa, a forma é tudo; pois somente pela forma se atua em todo o homem, enquanto que pelo conteúdo somente se influencia em algumas de suas forças. O conteúdo, por sublime e amplo que seja, embora contenha o mundo, atua sempre limitativamente sobre o espírito, e somente da forma pode se esperar verdadeira liberdade estética. Nisto consiste pois o autêntico segredo artístico do mestre, em que anula a matéria mediante a forma; e quanto mais imponente, orgulhosa e tentadora seja a matéria, tanto mais imperiosamente se imponha com seu efeito, ou quanto mais se incline o contemplador a abandonar-se imediatamente a ela, tanto mais triunfa a arte que recusa e afirma o domínio sobre ela. O ânimo do contemplador e do ouvinte tem que ficar de todo livre e intacto; ele tem de sair do círculo mágico do artista puro e perfeito, como das mãos do Criador”.(12) A argumentação de Schiller mostra claramente que está limitada pela filosofia transcendental, e inclusive pelo que ele disse que é simples letra dessa filosofia, oposta a seu espírito. Quando afirma que somente a forma atua sobre o homem integral, enquanto que o conteúdo não desperta senão suas forças isoladas, que todo conteúdo, inclusive o mais amplo, atua limitantemente sobre o espírito, está se refugiando na separação de Kant do conteúdo e da forma porque com uma intensidade de visionário pouco frequente em sua época, sentiu como atuam sobre a vida anímica dos homens, destrutivamente, os conteúdos e as formas enfeitiçadas da sociedade burguesa. As ilusões de curar esta doença, alimentadas por Schiller em consequência do florescimento pré-revolucionário e revolucionário da literatura alemã, se concentram compreensivelmente na missão educadora da forma artística, e exigem um apoio filosófico – sumamente problemático, como é natural – no pensamento de Kant e do jovem Fichte.

Mas isto não explica senão que historicamente a atitude de Schiller e, relação ao problema de conteúdo-forma, sem nos dizer nada sobre a correção ou o erro temáticos de sua resposta. Não nos será difícil ver que o homem integral da vida cotidiana não resta fragmentado porque assimile primariamente conteúdos (os quais desde já – contra o que afirma Kant – são sempre elaborados , contudo, não seja artisticamente) e reaja praticamente a eles, senão antes pela estrutura particular de determinadas formações sociais, as quais influenciam deformadoramente sobre a relação conteúdo-forma na imediatidade da vida cotidiana. Não menos óbvio é que – fora do âmbito da filosofia transcendental – a cotidianidade e a arte não se diferenciam como domínio, uma, do conteúdo e da forma o outro, senão que se distinguem pela diversidade qualitativa que exige em cada um deles a relação forma-conteúdo.

O próprio Schiller se deu conta de que algo falha nessa dedução, pois sem mediação alguma salta da contraposição geral entre a forma e o conteúdo à oposição particular entre a forma e o material temático na arte. Este material é todavia um modo já muito particularizado e diferenciado de se apresentar o conteúdo em amplo sentido geral: o material temático é a parte do conteúdo vital experimentado e vivido que um poeta ou artista toma para transformá-lo em conteúdo de sua obra concreta. Essa eleição nunca é casual nos poetas autênticos; o material temático tem de possuir algo que corresponda de algum modo a suas finalidades, tonalidades anímicas concretas e poéticas, etecetera. Por este motivo já no simples fato da eleição do material temático se contem uma espécie de pré-elaboração artística. Ainda mais: o trabalho poético ou criador em geral (no sentido artístico) consiste essencialmente em explicitar, partindo do material temático, esse conteúdo essencial para o poeta, e em lhe dar forma temática, esse conteúdo, seu decurso, suas proporções e intensificações cresceram organicamente ele, como se a forma eleita e executada pelo poeta estivesse desde sempre no material temático. O pintor Mirrailov de Anna Karenina de Tolstoi, personagem que sem dúvida disto é o porta-voz de seu criador, expressa o ponto de vista desse dizendo que o pintor tem de eliminar de figura os revestimentos que ainda as encobrem, porém sem ferir as próprias figuras; e que se cometem erros quando não se tem a precaução ao eliminar aqueles véus dissimuladores. O próprio Schiller era enquanto poeta muito consciente e violento enquanto para aplicar um método tão orgânico; mas suas cartas da época do Wallenstein documentam que o princípio último e mais geral de seu procedimento o orientava apesar de tudo em uma direção parecida.

Com isso fica esboçado o escopo do correto e o errado que contém a célebre fórmula de Schiller. O elemento errôneo é o mais fácil de mostrar: se Schiller não houvesse pensado realmente senão no que constitui o sentido literal de sua frase, seria certamente – como não poucas vezes pretendeu – o teórico da arte formal “pura”, um antepassado da l´art pour l´art [ a arte pela arte – ndt]. Esta errônea aparência se deve entretanto à terminologia da filosofia transcendental de Kant que o poeta usa, e da que entretanto nesta temática consegue se libertae; e se o mundo dos conteúdos fosse verdadeiramente algo amorfo em si – segundo a concepção de Kant – ao qual somente a forma pudesse outorgar uma objetividade diferente, e se todo sentido verdadeiro – teórico, ético ou estético – fosse coisa contida exclusivamente nas fórmulas, a célebre sentença de Schiller seria integralmente verdadeira ao pé da letra. Mas como na realidade objetiva, e, portanto, em todos seus reflexos corretos, domina uma unidade indivisível do conteúdo e forma, sua mutação recíproca ininterrupta, a tese de Schiller perde toda base, como todas as demais proposições da filosofia transcendental sobre a realidade. Pois de fato o material temático da poesia, como de todo conteúdo, já está dotado de forma, embora não em sentido estético. O trabalho poético não consiste pois em erguer a forma algo informe em si, apenas em romper a elaboração vital imediata de um material e achar, para o núcleo assim posto a descoberto, a forma estética que lhe é especificamente adequada, a forma desse determinado conteúdo, a forma de uma nova imediação evocadora. Na determinação desta forma destina-se, naturalmente, uma importância decisiva o conteúdo do material temático; mas, não segundo uma objetividade abstrata, senão no sentido da intenção do poeta ao eleger o material e a intencionalidade objetiva desse material e da intencionalidade objetiva desse material a tal elaboração. (Isto é o que quer dizer o Mirrailov de Tolstoi quando fala de uma cuidadosa e cautelosa eliminação dos revestimentos). O trabalho pelo qual o criador dá forma é portanto contraditório: tem, por um lado, que descobrir formas de um determinado sentido, pois a própria verdade é esteticamente neutra, a ordenação e hierarquia de suas categorias é profundamente estranha à estética, a objetividade dos objetos, seus sistemas de referências, etc., são de todo diversos do que exigem as leis das várias artes à objetividade, suas ligações, etc. Por outro lado, o reflexo estético é apesar disso uma reprodução da realidade tal como esta é objetivamente, em si, e tal como aparece determinada e concretamente em cada fragmento da realidade convertido em material temático. A destruição de formas imediatamente dadas da realidade leva já pois em si o momento da fidelidade a essa própria realidade; já essa destruição é uma superação dialética que não pode descuidar, sob pena de fracasso, a preservação e a elevação do superado. O jogo complicadíssimo dessas tendências opostas, sua extrema exacerbação é o que, finalmente pode levar à identidade do conteúdo e da forma na obra realizada. Por isso a proposição de Schiller segundo a qual a matéria fica aniquilada pela forma teria de se completar, com outra proposição, polarmente oposta a esta, segundo a qual a matéria temática elaborada aniquila por sua parte a forma: assim se daria realmente com a verdade. Pode inclusive se dizer que em um sentido originalmente estético, a segunda proposição – se ambas são tomadas isoladas – é a que mais se aproxima dos autênticos fatos estéticos, dos quais se afasta a primeira. Pois a forma artística, como forma de um determinado conteúdo, cria sempre um “mundo” para-si chamado a evocar ativamente seu para-si próprio. Por isso, aparece necessariamente um “mundo” no efeito evocador sobre o receptor, ou seja, aparece a unidade ligada de conteúdos, fechada em si, organizada e orgânica. De modo imediato, em ação autenticamente imperiosa sobre o receptor, este vive tal “mundo” concreto, relevante em si e para ele, Esta absorção total da forma pelo conteúdo ao que elabora se baseia, dentre outras coisas, e assinaladamente, na convergência, já analisada, dos pares opostos conteúdo-forma e interioridade-exterioridade. Pois, a mundanidade intensivamente infinita da obra pressupõe tal identificação do externo e o interno: a unidade tendencial de ambos já na própria vida se impõe agora enquanto transparência realizada de todo objeto, de cada figura, de cada situação, etc. Cada uma dessas entidades irradia sem sobra, imediata e evocadoramente, por sua aparência externa, sua adequada interioridade. O reconhecimento de que esse “mundo” deve sua existência estética à força vitoriosa das formas é uma reflexão subsequente, sem dúvida construída sobre essa própria força, e a pressupondo.

Schiller dá com a verdadeira ligação das categorias na medida na qual o processo criador é efetivamente um caminho que leva do material temático dado a sua realização elaborada: a relação conteúdo-forma do material temático, ao princípio simplesmente vital, se transforma pelo trabalho artístico no sentido de se encontrar o conteúdo puro e essencial do material temático uma forma que seja verdadeiramente a desse conteúdo de modo unívoco. Por isso não é mais do que a determinação do processo criador. Seu êxito se exprime no nascimento de uma obra realizada e fechada em si, cujo efeito evocador sobre o receptor tem já, como vimos repetidamente, um caráter de conteúdo: o espectador arrebatado pelo Wallenstein não admira primariamente a sabedoria com que Schiller articulou adequadamente esse duro material temático, construindo-o e intensificando-o, etc., senão que o impressiona o destino de Wallenstein, o pano de fundo histórico-humano de sua tragédia. O fato de que esse tipo de efeito seja ainda mais intenso em Shakespeare tem sua relevância à hora de estabelecer uma hierarquia entre os dois poetas; pode observar-se em geral que esse tipo de efeito costuma se apresentar entre os maiores – Homero, Shakespeare, Cervantes, Tolstoi –, enquanto que um efeito instantâneo e espontaneamente predominante da forma – Hofmannsthal, Valéry, etecetera – costuma ser um sinal de sua menor capacidade de abarcar substancialmente o mundo. E com isto a presente análise confirma a ordenação de Goethe dos homens segundo seu ser em núcleos e cascas; dentro desses polos se encontra uma inesgotável variabilidade fundamental da anterior determinação.


Notas de rodapé:

(1)G. Lukács, Marx e Engels como historiadores da literatura, Berlim, 1952, p. 110 e ss. (retornar ao texto)

(2) HUGO von HOFMANNSTHAL, Obras completas, Berlim, III, p.196. (retornar ao texto)

(3) ALAIN ROBBE-GRILLET, “Uma apreciação do romance futuro”, La Nouvelle Revue Française [A nova revista francesa – ndt], 1956, p. 82 e ss. (retornar ao texto)

(4) GOETHE – Italianische Reise [Viagem a Itália - ndt], anotação: Veneza, 9 de outubro de 1786. (retornar ao texto)

(5) Carta a Reinaldo Hahn, Paris, Agosto de 1896. Neue Rundschau 1957, II, p. 316. (retornar ao texto)

(6)M. GÓRKI, Die Zerstörung der Persölichkeit [ A destruição da personalidade], ed. Alemã, s/d., p. 112. (retornar ao texto)

(7) Marx mostrou claramente, em A Sagrada Família a inveracidade e a fragilidade dessas representações do homem como “átomo”. Cf. Werke [Obras], cit. III, 296. (retornar ao texto)

(8) R. MUSIL, Tagebücher, etc. [Diários, etc.], cit., p. 303. (retornar ao texto)

(9)Hegel, Logik [Ciência da Lógica], Werke [Obras], cit. IV, p. 172. https://www.marxists.org/portugues/hegel/1812/logica/index.htm (retornar ao texto)

(10) Ibid. (retornar ao texto)

(11) SCHILLER, Brife über die ästhetische des Menschen [Cartas sobre a educação estética do homem, carta XIII. Sobre minha crítica à concepção de Kant e Schiller cfr. meu livro Contribuição à história da estética, Berlim, 1954, p. 11 e ss. (retornar ao texto)

(12) Ibid., carta XXII. (retornar ao texto)

Inclusão: 24/10/2021