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Ao determinar a arte como autoconsciência da evolução de humanidade situamos no centro o momento da continuidade. Por um lado, pelo fato de que apenas assim se pode evitar a hipótese estática e idealista de algo “universalmente humano”: não se trata da realização de uma humanidade dada a priori [antes –ndt] (na ideia), nem tampouco do desempenho dialético de tal ideia ao modo do sistema hegeliano, no qual o final contém, como consumação concreta, tudo o que ao princípio existia já em forma abstrata. A continuidade aqui pensada nada tem desse caráter teleológico. É, em estrito sentido literal, uma evolução real, factualmente ocorrida, em suas reais ascensões e descenso, com seus reais desvios, ramificações, arrancadas, recaídas, etc. Por outro lado, é preciso levar em conta que se trata sobre tudo da continuidade da autoconsciência do gênero humano, isto é, do aspecto subjetivo – mesmo não particular-individual – do factualmente ocorreu. Esperamos que as análises anteriores hajam mostrado com suficiente clareza que o momento subjetivo da autoconsciência, a “re-cordação” de Hegel, não significa qualquer subjetivismo, qual independência “imaginária” idealista em relação ao decurso real, nem muito menos a atividade criadora demiúrgica de um sujeito de misteriosa constituição. O correto reflexo da realidade que existe independente da consciência, a imersão do sujeito nela, é antes o pressuposto imprescindível de toda autoconsciência dessa natureza. A subjetividade limita-se, pois, como vimos, ao fato de que a imagem refletida produzida se dispõe a reproduzir a realidade em si, mas orientada ao homem (a sua atividade, a suas relações, etc.). A continuidade da evolução da humanidade constitui o substrato último de todo reflexo dessa natureza e tem portanto de estar contida em todo reflexo individual, mesmo, geralmente, cada um deles, considerado em si mesmo, põe como objetivo o concreto hic et nunc de um dado momento.
Com isto fica dada a dialética normal da continuidade e a descontinuidade (pontualidade). Em toda linha real ou geometricamente abstraída se encontra essa contradição insuperável e sumariamente fecunda para o conhecimento. E, naturalmente, também se encontra na consideração da evolução objetiva da humanidade; as formas concretas de manifestação dos dois polos dessa contradição, assim como suas leis, são os objetos cuja descoberta e representação é tarefa da ciência da história razão pela qual não teremos porque nos ocupar disso aqui. Mas a dialética que se apresenta em nosso caso supera essa temática. Mencionamos já várias vezes aquela natureza essencial da posição estética segundo a qual a forma originária desta pode apenas ser a maior pontualidade do artista individual (e sua recepção pelo sujeito também singular que é o receptor). Todos os resumos, todas as condensações generalizadoras, já como arte de um período, como gênero artístico, etecetera, levam ao conceito essa estrutura originária e sem falsificar, os põem em uma esfera diferente que é nova para ela; até a segunda parte desta obra não poderemos provar com exatidão filosófica, ao estudar a tipologia do comportamento estético, que esse comportamento não acarreta necessariamente uma falsificação ou uma deformação do autenticamente estético, mesmo que também isso ocorra com frequência. De todos os modos, já agora podemos dizer que afirmações como essa contêm nem mais nem menos tanta verdade quanto conteúdo da estrutura originária estética de seus objetivos sejam capazes de transpor, sem dano nem deformação, conceitualmente. À primeira vista isto soa como um truísmo e até trivial. Pois uma existência análoga há que dirigir ao conteúdo verídico de cada conceito (juízo, inferência, etc.). Mas quando a realidade se reflete cientificamente sua formulação conceitual pode e deve superar generalizadamente a estrutura objetiva imediata; ao exprimir adequadamente as situações, relações, legalidades, etc., o único problema que se apresenta ao indivíduo é o da subordinação concreta e sem erros sob a ligação geral. Este é também o caso para as ciências sociais, mesmo seja em condições mais complicadas.
Mas a generalização de um fato originariamente estético não pode superar a singularidade da obra dada em cada caso mais do que na medida em que essa singularidade se preserva o mais intactamente possível em sua superação conceitual. Esta exigência contem implicitamente muito mais do que as generalizações descritivo-morfológicas de outras ciências da natureza ou da sociedade. Chamamos já a atenção para o motivo capital da diferença: a autêntica obra de arte – e somete isto pode converter-se em base de uma fecunda generalização histórica ou estética – satisfaz as leis estéticas ampliando-as e aprofundando-as ao mesmo tempo; nem se pode falar de uma simples subordinação do singular sob o universal, de uma “cair” sob esta ou aquela lei. A possibilidade de um regresso da lei ao caso particular caracteriza, naturalmente, toda generalização científica. Mas a descida eficaz até o caso particular é frequentemente absurdo ou supérfluo, como, por exemplo, ocorreria se, partindo de tendências estatisticamente expressas, alguém se dedicasse ao problema de saber porque Pedro se casou com Maria. Mas os conceitos generalizados de uma história da pintura da Renascença, por exemplo, tem de ser capazes de concretizar e promover o reconhecimento da particularidade de Rafael ou de Ticiano, ou de qualquer particular quadro deles.
Era necessário indicar essa estrutura da generalização para por em manifesto a essência específica da dialética, aqui dominante, da continuidade e da pontualidade. Voltando agora ao originariamente estético vemos, por um lado, que o representante do princípio pontual na obra não manifesta apenas um “ponto” mais ou menos abstrato da evolução, mas um “ponto” que constitui um mundo qualitativamente próprio, que leva em si um sistema fechado das determinações decisivas, um mundo cuja vivência concreta e aprofundada, imediata e intensiva, forma a essência do comportamento estético. Por outro lado, o princípio da continuidade se manifesta nas obras e em sua recepção de um modo apenas indireto, e, geralmente, muito indireto. Qualquer que seja o objeto de uma vivência estética – Homero ou Moll Flandres de Defoe, a Nossa Senhora de Castel Franco de Giorgione, uma paisagem de Van Gogh, etc. –, o acento da vivência recai na recepção sem resto e a assimilação do concretamente expresso pela obra concreto – e somente nela –, sobre o quê e o como dos elementos da realidade objetiva refletidos nela com particularidade irrepetível. Aparentemente, pois, o momento da continuidade desapareceu totalmente da estrutura imediata e do efeito adequado da obra. Mas isso é somente uma aparência da timidez fixada como tal. Pois o simples fato de tal vivência não possa em absoluto se realizar sem o momento de nostra causa agitur. E com isso está posto ao mesmo tempo o momento da continuidade da evolução da humanidade, independentemente de que o criador ou o receptor se apercebam disso. Esta existência da continuidade é ao mesmo tempo mais intensa e mais inextirpável que a presente continuidade do histórico, mesmo sem dúvida mais oculta e menos imediatamente evidente do que esta. É em si possível separar metodologicamente da evolução global um determinado fragmento histórico e considerá-lo por si mesmo. Sem dúvida pode originar esse procedimento numerosos erros, mas muitas vezes é inevitável, se é que há de investigar com exatidão determinados detalhes. Por outro lado, na relação originariamente estética com a realidade e de sua mediação evocadora pela imediação das obras de arte, essa relação à continuidade do processo histórico está sempre dada objetivamente, mesmo sem ter de ser sempre consciente. Sua passagem à consciência – se é que o fenômeno há de continuar sendo estético – não pode saltar o momento da espontaneidade do nostra causa agitur; a continuidade está vinculada precisamente à profundidade dessa assimilação imediata. Em uma impressão superficial – na qual a distância espacial, de tempo e social costuma tomar o caráter do exótico – pode se produzir uma simples atitude, tematicamente correta, de recepção isolada de notícias; neste compartilhamento a continuidade está contida apenas em si, não para nós, e ainda menos, naturalmente, como um para-si. Neste ponto se manifesta com especial clareza a oposição, já destacada, entre “consciência sobre...” e “autoconsciência de...”; no exótico nos confrontamos com uma realidade em relação à qual, apesar de todo interesse e talvez saber, com a consciência de outro insuperável, não temos relação humana interna, enquanto que a autoconsciência, mesmo que careça de saber temático à respeito se baseia precisamente nessa relação interna. Esta não implica qualquer identificação, pois a diversidade do objetivo vivenciado enquanto ao conteúdo, estrutura, etc., em relação ao sujeito da vivência é um dos pressupostos das relações que levantam a autoconsciência. Mas apesar disso, ou talvez por sua causa, se atinge do modo mais profundo o centro da especialidade humana, como algo que pertence de alguma maneira ao próprio passado ou que está aparentado de algum modo com o assunto desse passado. Em certas condições, o que parece simplesmente exótico pode se converter em elemento de autoconsciência e reciprocamente. A possibilidade de tais mutações dependerá sobretudo da altura artística da elaboração, mas desde já, a evolução histórica objetiva e a difusão e aprofundamento da cultura, etc., que dependem dela, desempenham nisso um papel importante. O primeiro e principal ponto de vista volta a mostrar o lugar central que ocupa a essência do estético o momento de humanidade.
Mas com isto chegamos apenas ao umbral da dialética da continuidade e da descontinuidade na esfera estética. Pois prescindindo da constelação básica recém-descrita, toda obra de arte, e precisamente o que determina sua decisiva particularidade estética, se encontra na continuidade do gênero artístico ao que pertence. O que antes dizíamos da lei e o modo específico de seu cumprimento na estética deve se entender sobretudo no sentido deste contexto, como relação, por exemplo, de uma tragédia com as leis da dramaturgia, etc. É impossível repetir com excesso que tampouco aqui a relação de uma obra com seu gênero e as leis deste jamais é uma relação de subordinação do caso singular sob uma universalidade essencial, ou seja, que com o nascimento de uma obra que mereça esteticamente este nome o conteúdo e a forma das leis válidas para elas experimentam ao menos uma modificação, quando não uma transformação decisiva, que costuma ocorrer com as criações artísticas que fazem época. É preciso acrescentar, naturalmente, que – pelo que torna mais gerais seus princípios básicos – os gêneros estão submetidos à mudança histórica, mas se mantêm nessa mudança, de tal modo que tais “revoluções” os enriquecem e aprofundam internamente como gêneros. (É um mérito teórico destacado de Lessing o tornar esclarecido conceitualmente este ponto para o drama antigo e o de Shakespeare).
Mas, a um nível superior, esta dialética da continuidade e da pontualidade atua em todo campo da estética. Os diversos gêneros são muito mais independentes uns dos outros que as diferentes ciências entre si no reflexo desantropomorfizador da realidade, e constituem campos muito mais fechados que neste outro setor. Tampouco é o caso, certamente, de levar esta diferença a uma errônea rigidez metafísica. Pois, por um lado, é também um fato indiscutível a relativa independência de seu substrato material; a diferença das ciências se baseia pois na diferença da realidade objetiva. Mas esta diferença é necessariamente relativa. Do mesmo modo que as diferenças das coisas subjazem à diferença metodológica entre as diversas ciências, assim também as diversas inter-relações e interações entre elas estabelecem novos vínculos. Em última instância, certamente, a unidade da natureza material do mundo reproduz necessariamente o ideal de uma ciência unitária. Ainda que este ideal nunca se tenha realizado, a tendência à unificação conseguiu, especialmente nas ciências exatas da natureza, progressos gigantescos; campos científicos que durante séculos se consideraram independentes ganharam muito conhecimento precisamente pela condução de fenômenos que pareciam divergentes a princípios unitários. Isto não exclui a independência – hoje já relativa inclusive conscientemente – dos diversos campos de investigação; mas, com a aproximação à unidade material da realidade objetiva se reforça toda integração razoável, emanada da essência da própria coisa. A tendência parcialmente oposta por muitas ciências sociais do século XIX provou a correção científica daquela orientação. A separação “pura” – socialmente condicionada – entre economia, sociologia, história, etc., foi extremamente prejudicial para todas essas disciplinas. Sua pertinência correlata, condicionada pela unidade de seu substrato, não exclui, certamente, investigações muito especializadas, mas nenhum problema essencial dessas ciências pode se resolver sem o apelo constante e detalhado às ligações resultantes da matéria comum. O sistema unitário resultante das ciências – pois esta é a forma que toma o ideal da ciência unitária – mostra assim saltos de separação, que não são tampouco absolutos, nos pontos em que os apresenta o fundamento material próprio. (O orgânico e o inorgânico, etc., sempre com passagens e relativizações). A articulação sistemática continua também da essência do Em-si espiritualmente reproduzido. A teoria da ciência do século XIX, que tinha de construir a metodologia partindo de interesses subjetivos – sob a influência do idealismo subjetivo –, sobretudo a escola de Windelband e Rickert, nada conseguiu criar, apenas confusão. A existência da ciência que se habituou chamar aplicada, com o método teleologicamente condicionado, na questiona nada contra esta recusa da fundamentação subjetivista do sistema das ciências. Pois as finalidades econômicas das ciências naturais, por exemplo, são tão objetivas se baseiam em um substrato tão real como os conhecimentos (químicos, físico, etc.) que utilizam nessa aplicação e até ajudam a desenvolver.
Tínhamos de recordar tudo isso mesmo que fora brevemente, para deixar claro que a “diferença” da arte em diversas artes, gêneros, etc., é algo qualitativamente diverso da diferenciação real do conhecimento em distintas ciências particulares. Estas, apesar de toda sua diferenciação, constituem, em última instância uma real unidade epistemológica, enquanto que a arte, mesmo em geral é uma reunião sintética do comum à várias artes, apresenta um tipo de ligação entre as artes particulares e a arte em geral, como veremos em seguida, se diferencia qualitativamente da relação existente entre as ciências particulares e a ciência unitária ou de conjunto. Por isso pusemos entre aspas a palavra “diferença”, porque como ficou já dito, é um preconceito nocivo das estéticas idealistas o conceber o sistema das artes como “diferença” da “ideia estética”, “da beleza”, etc. Cada arte, até cada gênero, é em realidade um mundo próprio, tem como fundamento um princípio estético originário que não se identifica com nenhum princípio de outra arte nem gênero, apenas que é qualitativamente diferente deste entre muitas relações. Esta compreensão, opinião geral e antiga entre os próprios artistas, em sua prática e na formulação teórica de suas experiências, chegou frequentemente na segunda metade do século XIX a se converter em fundamento do conhecimento estético. Mencionamos já as concepções de Konrad Fiedler à respeito, muito difundidas desde então, segundo as quais não existe a arte, apenas as artes. Mais tarde, sob a influência dessas teses, nasceu junto à estético da chamada teoria geral da arte. Não necessitamos nos deter agora para criticar os fundamentos metodológicos desta ciência. Observemos somente que , por haver concebido a estética ao velho modo idealista, separando dela metafisicamente aquela ciência ou teoria da arte, esta, por falta de princípios estéticos gerais adquiriu forçosamente um caráter empirista-positivista, com o qual o campo geral da estética se dividiu inevitavelmente em duas partes metodologicamente heterogêneas.
Ao mesmo tempo em que comprovamos a existência autônoma das diversas artes, dos gêneros, etc., temos de observar o seguinte com objetivo de concretizar um pouco mais a dialética da continuidade neste âmbito. É claro, sobretudo, historicamente que algumas artes particulares apresentam, às vezes, uma evolução tão contínua – lógica se poderia dizer –, com desenvolvimento dos próprios problemas em soluções próprias, o que levanta a tentação de ver em seus problemas artísticos internos a força motora de seu desenvolvimento; tal é o caso da pintura florentina ou a veneziana dos séculos XIV-XV, ou do romance francês ou russo do século XIX, etc. Porém uma observação mais atenta permite por outro lado descobrir – para nos expressar exageradamente, com objetivo de conseguir a maior clareza – às vezes nascem de um nada artístico ou desembocam nele. Isto prova, por um lado, que também aqui domina uma dialética da continuidade e da descontinuidade e, por outro, que essa dialética própria está condicionada histórico-socialmente: a continuidade, o entrelaçamento genético-orgânico dos problemas sociais, sua influência contínua – como tarefa social – sobre a gênese das diversas obras d arte, tudo isso é o princípio real básico da referida dialética (e não podemos analisar aqui as contradições de natureza objetiva que se depreendem da evolução social, nem as de natureza subjetiva que se produzem na reação das personalidades a esses dados objetivos). Nesses casos, essa arte de desenvolvimento tão “lógico”, tão “histórico-filosófico” – ou o gênero nas mesmas condições – costumam ser precisamente o dominante, o representativo de seu período. A base é também aqui objetiva: a evolução global baseada no desenvolvimento das forças produtivas é o fundamento que explica porque em um determinado período é uma arte ou um gênero aquele que desempenha tal papel dominante, e porque em outro período se trata de uma arte diferente. Esta determinação histórico-social é tão intensa que pode levar a extinção de determinados gêneros (a epopeia clássica) ou ao nascimento de outros novos (o romance). A dialética da continuidade e descontinuidade e descontinuidade tem, pois, neste campo da esfera estética uma fisionomia própria, a qual, entretanto, não pode se impor senão no marco da dialética geral histórico-social.
Por mais importante que seja o fato da possibilidade e da realidade de nascimento de gêneros novos e o desaparecimento de outros já estabelecidos, a contemplação da totalidade do caminho evolutivo da arte oferece outro aspecto: o de uma extraordinária estabilidade de gêneros artísticos. Sem dúvida, como já mostramos, não houve uma gênese unitária de uma arte unitária a seguir diferenciada, apenas que as diversas artes e os diversos gêneros artísticos nascem com recíproca independência histórica, determinados pelas necessidades concretas histórico-sociais que lhes dão vida. Mas é um fato não menos indiscutível que, uma vez constituídos, apresentam, apresentam uma tenacidade gigantesca, resistência e, ao mesmo tempo, capacidade evolutiva de seus princípios fundamentadores. A literatura, as artes figurativas, a música, a música, a dança, a arte do ato compõem desde remotíssimos tempos o mundo que nos habituamos resumir com a expressão arte. E dentre das artes os gêneros tem uma assombrosa vitalidade. Não nasceu qualquer novo gênero literário junto ao lírico, a epopeia e ao drama, nem arte plástica nova junto à pintura, a escultura e a arquitetura. (A única arte realmente nova é o cinema). Esta afirmação não anula de modo algum a que antes fizemos sobre o repetido nascimento do gênero em cada obra importante. Pelo contrário. O fato que realmente nos interessa é que o drama, por exemplo, haja podido se manter como gênero na ininterrupta mudança que vai de Ésquilo até Tcherrov, Brecht e O´Neill. Nisso se pode agarrar a vida dialética da continuidade e descontinuidade na esfera estética. Se em toda grande mudança histórica se produzisse um gênero completamente novo, ou se a forma estética mostrasse uma estabilidade coo a que tem, apesar de todos as novas descobertas, a geometria euclidiana, não poderíamos falar de um problema de novidade qualitativa do fato de que determinados comportamentos em relação à realidade, os quais determinam a particularidade das artes e dos gêneros, mostram essa unidade dialética de estabilidade dos princípios e evolução infinita das determinações essenciais e superficiais.
O problema da estética é neste ponto dúplice. Em primeiro lugar, deveria conceituar e analisar a essência desta própria unidade dialética. E isso, por sua vez, segundo um dúplice aspecto, único precisamente nessa duplicidade. Por um lado, como reação necessária a determinadas necessidades nascidas em consequência da evolução da sociedade e da evolução, condicionada por ela dos homens e de suas relações recíprocas e com a natureza, etc. Por outro lado, e de acordo com o que já sabemos, como formação de categorias especificamente estéticas que, como meios adequados dessa satisfação de necessidades, permitem, ao mesmo tempo, que o caráter especificamente estético dos diversos modos de comportamento e das obras produzidas pela transposição desses comportamentos em prática se converta em fecho e substantividade estéticas. Pelo que faz a investigação desses fatos e de suas ligações, nossa ciência se encontra ainda no início do começo. Existem, sem dúvida, tentativas isoladas, algumas muito brilhantes, de compreender o caráter essencial, determinador de gêneros, de tais modos de comportamento. Neste ponto há de citar, sobretudo, a contribuição de Goethe e Schiller, resumida pelo primeiro, que consiste em ver nas figuras da rapsódia e o mimo dos elementos básicos para uma descrição das atitudes imprescindíveis para o nascimento artístico dos “mundos” da epopeia e do drama, respectivamente(1). Aqui é necessário citar também os esforços do círculo de Marées (Fiedler, Hildebrand) em relação às artes plásticas e contribuições à teoria da música etecetera. Além da estreiteza que criticamos em Fiedler e ainda criticaremos, é preciso reconhecer que essas investigações costumam se limitar a tomar como objeto a essência estética dos modos de comportamento relacionados com os gêneros artísticos, enquanto falta em seu horizonte a necessidade social, ou não se apresenta nela senão de um modo sumamente abstrato. A coisa não pode assustar. Pois até o marxismo não havia posto em relação o modo específico de um reflexo da realidade com a evolução da sociedade. Hegel, que buscava por seu turno vínculos análogos entre a validade e historicidade, tinha de basear a primeira na fábula do sujeito-objeto idêntico, e conseguir a segunda de um modo tão geral que sua sucessão, na medida em que houve, teve que desembocar no beco sem saída da história do Espírito. A isso se acrescentou o fato de que na continuação dos geniais estímulos de Marx dominou durante muito tempo um método que se contentava com a dedução social (até “sociológica”) dos fenômenos ideológicos, sem ampliar essa gênese até conseguir uma investigação temática de sua natureza essencial específica, etc. Com Lenine, por último, a copertinência indissolúvel e a colaboração do materialismo histórico e materialismo dialético se converte em um dos aspectos centrais do método marxista. Mas por razões cuja discussão nos levaria muito longe de nosso tema atual, esta unidade postulada por Lenine cedo se esqueceu, e outra vez se passou no citado juízos estéticos inorgânicos subjetivistas e dogmáticos para vulgarizadas exposições sociológicas da gênese.
Tudo isso tem como consequência necessária que o complexo das ligações aqui relevantes se encontre mesmo praticamente sem estudar. Mas o problema que na história da estética costuma aparecer sob o rótulo de Sistema das Artes não se pode resolver satisfatoriamente senão mediante este tipo de investigação. Era e continua sendo um problema real, um problema central da estética, pois, é um fato que diversas artes estão inter-relacionadas, se complementam uma a outra muitas vezes, entram em interação, etecetera, e porque essas correspondências e vínculos não são de natureza causal, sequer no sentido de que fenômenos simplesmente históricos, possam mostrar uma personalidade mais ou menos casual em comparação com um sistema teórico como a estética. A ligação antes de natureza sistemática, com a precisão de que seu principium differetiationis [as diferenciações – ndt] não se pode deduzir da “ideia” estética (da beleza), senão do sistema de necessidades, em última instância sociais, que determinam o nascimento e a subsistência das artes. Por isso, as artes constituem um sistema que não se pode deduzir simplesmente do ser antropológico do homem, senão de sua evolução histórico-social. Este sistema de artes tem, pois, uma estrutura histórico-sistemática. O nascimento e a morte dos gêneros artísticos são histórico-sociais, o que quer dizer que não se encontram em contradição com essa sistemática; a coisa é ainda mais clara se se tem presente que vários gêneros nascentes ou em vias de desaparecer – recordemos de novo o romance e a epopeia – estão intimamente relacionados em decisivas polêmicas de princípio; no caso do exemplo, os dois modos de comportamento determinantes podem se reconduzir sem violência alguma a concepção de Goethe da rapsódia.
A segunda polêmica de importância que se apresenta neste contexto é o da unidade do estético. O fundamento desta unidade é a clara e essencial convergência das necessidades, tão extraordinariamente diversas no imediato, que subjazem ao nascimento e a eficácia da arte. O esclarecimento de sua particularidade genética, de conteúdo e formal, tem de por em manifesto os princípios de sua unidade. Trata-se, sobretudo, de um dúplice problema de ordem do conteúdo: por um lado, cada uma das reações artísticas diferenciadas individual ou geneticamente é reação a uma mesma realidade; e esta não deve ser entendida vagamente como realidade em geral, senão como momento extremamente concreto da evolução histórico-social, com inclusão da época, do lugar, das circunstâncias, etc. Por outro lado, cada uma dessas reações é obra de homens (e para homens) formados por essa realidade, homens cujas qualidades de pensamento, sensibilidade, vivência, etc., estão ligadas por inumeráveis fios a essa realidade, procedem dela e nela desembocam. Com isto não se pretende negar nem desmanchar as extraordinárias diferenças existentes, que às vezes são oposições abertas. Ninguém negará que um rico aristocrata da província e um sansculotte [patrão moderno. Literalmente: sem calça comprida, porque usavam bermudas para economizar pano – ndt] dos subúrbios de Paris tiveram vivências diversas na grande Revolução Francesa e tiveram que pensar diversamente sobre ela. Apesar disso, os reflexos desses acontecimentos em ambos os indivíduos mostrarão, de vários modos, alguns traços comuns, os quais – sem romper por isso com a diversidade individual e de classe – se devem a que a unidade e totalidade dialéticas de uma mesma sociedade operaram poderosamente nesse sentido sobre sua psicologia no mesmo momento histórico. Isto se refere a todas manifestações da vida social e privada, ou seja, também àquelas necessidades que em uma dada sociedade e em um dado tempo determinam o nascimento da nova produção artística, a classe, a predominância, a subordinação, etc., dos diversos gêneros artísticos e determinam em cada caso a escolha que leva a atualidade e eficácia obras ou tendências históricas o localmente distantes, etc. O fato de que em uma mesma sociedade a arte das diversas classes apresente traços muito diferentes não refuta esta recente afirmação. Pois a unidade da sociedade, assentada em sua base econômica contraditoriamente unitária, se impõe também através desta contraditoriedade, mesmo prescindindo do fato de que as classes não possam estar separadas umas das outras hermeticamente como que para excluir interações das classes mais diferentes entre elas. Já o simples fato da dura luta exige a presença de territórios comuns de uma “linguagem” comum porque a vitória de uma classe a submissão de outra, não pode prescindir dos meios ideológicos de influência. Isto não se refere somente à literatura, senão que pode se apreciar exatamente igual na eficácia da arquitetura ou da música.
Com isso se indica, sem dúvida, algo comum em geral aos fundamentos das diversas artes. E que se pense em todas ela – mesmo de diferentes modos – são reflexos da mesma realidade objetiva, reações desencadeadas pela ação desta sobre os homens, e que se compreenda as diversas artes que fixam estas reações, e lhes dão forma com a finalidade de exercer sobre os próprios homens diversas classes de efeitos evocadores, sua comunidade se apresenta logo como abstração evidente, mas sumamente tênue. Essa personalidade abstrata é, desde já, um fato ineliminável. Em comparação com a rica, inabarcável plenitude de conteúdo e forma com a qual se revela o estético na obra de arte concreta, seja o gênero, e mais ainda a arte, aparecem em geral como uma magra generalização. Mas não se deve esquecer que a universalidade aqui manifesta em cada caso não é uma simples fixação conceitual de traços, propriedades, ligações, etc., comuns, ou seja, que não é um abandono da esfera estética para passar à abstração lógico-científica. O que unifica determinadas obras em um determinado gênero é algo de aspecto estético. Ou seja: a generalização não consiste em transpor simplesmente ao plano conceitual um conteúdo estético – isto ocorre em toda generalização, e nenhuma pode ser correta se não conserva os traços, etc., realmente comuns aos fenômenos –, apenas que a própria generalização parte do estético está contida imanentemente na estrutura da própria obra, assim como no comportamento estético em relação a ela; sua forma lógico-conceitual não supera a simples proteção contra contradições sem dialética; mas seu conteúdo é de fundamentação puramente estética.
Esse fato, que a primeira vista parece contraditório, pode se interpretar cedo negativamente. A estética academicista tratava sua matéria segundo um modelo de uma ciência natural descritiva; se limitava a catalogar as propriedades comuns, à Lineu, por assim dizê-lo; Como consequência disso, seu resultado ignora todas os problemas estéticos decisivos do gênero: importantes empréstimos artísticos saem foram do marco que ela impõe, enquanto que por outro lado, pseudo reações triviais cumprem todas as exigências enumeradas no catálogo das notas do gênero. De um ponto de vista positivo o fato pode por outro lado se entender assim: toda subjetividade estética, toda subjetividade esteticamente consciente, posta acima da espontaneidade de simples impressão, de simples afeição evocadora passivam vive na recepção da obra de arte individual, ao mesmo tempo em que a individualidade desta, seu pertencimento a um gênero determinado; essa subjetividade percebe não somente o quadro individual, senão também sua natureza concreta de quadro, sua essência como pintura, seu pertencimento à pintura; e o mesmo ocorre com a literatura, a música, etecetera. Chamamos a essa consciência de estética porque se baseia em uma generalização sensível, não em um abstrair conceitual; não significa distanciamento algum em relação da vivência da obra individual dada (ou seja, não significa a contemplação da obra como exemplar de uma espécie). Essa consciência não supera a impressão espontânea evocadora apenas na medida em que nesta a força evocadora da formação artística se limita a fazer vivenciável o conteúdo artístico enquanto tal, enquanto que aqui a estrutura estética, a eficácia estética da própria formação se converta em momento importante da vivência artisticamente evocada. Por isso a consciência estética não se afasta da obra individual, somente que se aproxima dela, ao contrário, ainda mais intensamente que a vivência puramente espontânea, pois insere organicamente na vivência estética a estrutura objetiva da obra, a dinâmica, a dinâmica dialética que impera nela. Por isso a consciência estética se fundamenta no ser próprio da obra. É tão originariamente estética como a própria vivência, mas isto é, além disso, uma aproximação maior ao complexo objetivo conteúdo-forma que representa em si a obra.
Análoga, ainda que talvez um pouco mais complicada, é a relação das obras e os gêneros a arte em geral. Também nisto há de partir de que os gêneros estão longe de ser exemplares ou subespécies de espécie arte como estão das obras individuais de sê-lo do gênero; com cada gênero em sua particularidade e precisamente nesta, no vínculo orgânico indissolúvel, está posta a arte em geral, como – e este ponto de vista é aqui decisivo – que aquele está com o se posicionar qualquer obra de arte individual. Trata-se de uma relação de inerência, não de subordinação. A inerência é uma categoria escassamente estudada pela lógica moderna. Não é, desde já, nossa tarefa nesta obra tentar preencher de algum modo esta lacuna. Contentar-nos-emos com uma breve remissão à lógica de Hegel, na qual estão ao menos mencionados estes problemas tão importantes para nós. É impressionante que esta categoria se apresente sempre no pensamento de Hegel no começo das análises que tenham por objeto as formas de juízo e a inferência. Na Propedêutica filosófica as duas secções correspondentes começam com o estudo qualitativo como os juízos ou inferências da inerência. Afirma Hegel sobre o predicado: “A universalidade, o predicado, não significa aqui senão uma universalidade imediata (ou sensível) e a simples comunidade com outros”(2). E a segunda secção termina coerentemente com a “superação do qualitativo”, com a passagem às “inferências da quantidade, ou reflexão”.(3) Na grande Lógica a inerência perde sua relevância para a inerência, pois caracteriza o “juízo de existência” no qual toma “o predicado a forma de algo dependente que tem seu fundamento no sujeito”.(4) A inferência da existência, como prelúdio da investigação da inferência em geral, se base, por outro lado, já na dupla subordinação do singular sob o universal sob o singular.(5) E no que se segue chega inclusive a reprovar a Aristóteles o haver se “atentado mais à simples relação de inerência”.(6) Não é este o lugar adequado para estudar atentamente até que ponto é justa essa reprovação. Lembraremos, pelo menos, que Prantl declara que Aristóteles distingue entre a “diferença constitutiva de espécie” e “a simples inerência”.(7)
Essa discussão, imprópria deste contexto, alude ao problema do gênero, a espécie e o indivíduo, problema importante para nós e que, como vimos, tem certa e até ampla analogia estrutural com o problema da arte, o gênero artístico e a obra. Não somente pudemos estabelecer, nas observações anteriores, que no comportamento originariamente estético (e, em seu fundamento objetivo, a obra de arte) atua uma relação de inerência; já a reflexão sobre a fundamentação da obra e seu efeito no especificamente humano indicou tal estrutura relacional com o que faz com a existência do homem como indivíduo, como membro de um grupo social, como participante da evolução do gênero humano. Assim, pois, o expresso pela categoria lógica da inerência é o reflexo de um fato do ser, fato que se apresenta em diversos níveis e de diversos modos, na natureza e na sociedade. A justificativa da atitude de Hegel à respeito deste complexo problemático se baseia no necessário objetivismo de todo reflexo desantropomorfizador da realidade. Consideradas deste ponto de vista as relações que se concretizam na categoria de inerência, mesmo como fatos, como relações indescritivelmente presentes, pertencem à realidade, o fazem a título de simples modos imediatos de manifestação desta. A ciência tem de proceder concretamente e realmente, e a lógica tem de continuar avançando na descoberta das ligações mais gerais, se é que querem se aproximar intelectualmente à dialética objetiva da realidade. A superação da inerência no pensamento de Hegel, sua superação pelo filósofo, tende a complementar ou substituir essa primeira determinação imediata e, portanto, logicamente primitiva, por outras mais complicadas que se expressem melhor o movimento, a mudança, o desenvolvimento. Por isso se introduzem na Enciclopédia [também conhecida como A Pequena Lógica – ndt], ao tratar da vida, e para compreender o genérico, categorias cada vez mais concretas, superiores no sentido da universalidade, mais históricas(8), junto às quais a inerência tem de se apresentar forçosamente como uma pobre abstração imediata praticada sobre os começos, mesmo que nunca se negue que ela é também uma das muitas determinações do problema. (Certamente não será necessário recordar que as concretas categorias da ciência presente superam enormemente as possibilidades de concretização de Hegel; mais isso não altera em nada o aspecto metodológico correto deste problema).
É claro que uma categoria que reflita as relações reais da realidade objetiva pode e tem de se apresentar também no reflexo estético. A particularidade do estético se manifesta em casos assim na circunstância de que a situação da categoria na totalidade do reflexo e de sua função na dinâmica deste ficam submetidas a uma alteração que não deve, entretanto, falsear nada da personalidade básica da categoria de que se trate. Indicamos já isto – e o estudaremos ainda com maior detalhe – à propósito da aplicação da analogia; discutimos também com detalhe a propósito da categoria da particularidade, e no curso das próximas considerações falaremos de uma alteração funcional deste tipo também em outras categorias. O problema de inerência não contem, pois, nada que seja por princípio novo para nossas considerações. Certo que uma vez dito isso é preciso acrescentar em seguida, como introdução de novo problema, que não há nem pode haver nenhum esquema de transposição entre as categorias da lógica e as da estética. Ademais, não se trata sequer de uma categoria lógica se transponha na estética, senão única e exclusivamente de que, em consequência da identidade da realidade objetiva que a ciência e a arte refletem cada uma a seu modo, os mesmos fatos, as mesmas formas objetivas, as mesmas determinações, etc., exigem em cada campo uma função adequada, de acordo com o método específico de aproximação à realidade que tem cada um deles. O estudo da analogia e da diferença no funcionamento das diversas categorias particulares tem, pois de se realizar separadamente para cada uma delas. Somente realizada essa tarefa para todas as categorias, somente quando, desse modo, se hajam iluminado as novas ligações entre as novas funções e as entidades relativamente alteradas por essa mudança, somente quando essas conexões deem de si um sistema, somente neste caso poder-se-á dizer que se cumpriu plenamente a peculiaridade do reflexo estético. Como dissemos ao início, estas considerações não pretendem tal plenitude. Dada a situação atual da filosofia da arte, seria, além disso, inútil prendê-la. O que nos interessa aqui é apenas mostrar, por ocasião de alguns decisivos, o caminho, o método que poderia e teria de levar a tal captação da particularidade do estético.
Ao atentar agora à categoria de inerência, devemos repetir mais uma vez que esta categoria – considerada logico-cientificamente – se encontra em um nível de desantropomorfização muito baixo, ou seja, que é uma das categorias que refletem momentos imediatamente captáveis do mundo externo, cuja natureza essencial continua sendo perceptível, como cadeia de subjetividade, de íntimo vínculo com o sensível. Vimos que Hegel sublinha essas duas faces da inerência; a primeira na Propedêutica filosófica, a segunda na Lógica. O mais interessante disso é que essa natureza essencial da categoria ilumina seu próprio tornar-se consciente. A inerência contém momentos de participação que ainda desempenham um papel em nada desprezível na filosofia platônica. Mas a origem desses momentos remonta a épocas pré-históricas. Lévy-Bruhl viu precisamente na participação a essência central do que chama pensamento “pré-lógico”. “Eu diria”, escreve, “que nas representações coletivas do pensamento primitivo os objetos, as essências, os fenômenos, que deu um modo geral nos apresentam incompreensíveis, podem ser eles próprios, ao mesmo tempo e outras coisas diferentes”.(9) Independentemente das consequências muito problemáticas que Levy-Bruhl infere dessa “lei da participação”, não há dúvida de que tocou aqui um elemento básico da concepção mágica do mundo, um fato que durante o período mágico costuma se referir a ligações que depois à luz de uma experiência mais rica e racional, ocorrem ser muitas vezes absurdas totalmente, mas que em alguns casos podem constituir reflexos parcialmente corretos da realidade. A categoria inerência nasceu da observação das ligações entre realidades de natureza diversa, após progressiva eliminação do absurdo mágico, e cristalizou como denominação caracterizáveis de outro jeito. Não é casual que seja tão importante na classificação dos fenômenos (espécie, gênero, etc.), pois é preciso uma longa evolução histórica para que a classificação possa se transformar em uma operação causal, etc., em uma determinada doutrina da evolução.
A gritante oposição que apresenta esta evolução consiste em que no estético a inerência, como categoria de ligações externa e internas, nunca sofre tal superação, apenas que, pelo contrário, se fixa como meio imprescindível da conformação e se desempenha enquanto tal cada vez mais ampla, profunda e ricamente. Bastará recordar de novo a relação entre o indivíduo, o grupo social e a humanidade. Como é natural, sempre houve teorias que tentaram conceber essas relações no sentido de cientificidade inclusive para a prática artística e que pretenderam substituir por uma dedução puramente causal a relação, por exemplo – e exemplo simples – que apresenta o indivíduo como membro de uma classe ou uma nação. (Adiante falaremos do papel real da causalidade na formação artística). O resultado dessas teorias foi uma feitização das relações humanas, pois a ativa totalidade destas acabou cristalizando uma imagem errônea, talvez “fabulosa” e antipoética, do chamado “millieu” [meio ambiente – ndt]. Como categoria de formação, a inerência significa uma unidade orgânica indissolúvel do indivíduo, na qual e em torno dela atuam forças sociais que, apesar de tudo, aparecem de modo imediato como momentos de sua psicologia. Mas, essas forças não se equivalem nem pelo conteúdo, nem pela importância nem pela orientação, e essa estrutura não se manifesta por um equilíbrio estático nem por um estado de perturbação, apenas como luta interrompida das diversas tendências, como produção interrompida ou supressão do equilíbrio psíquico das pessoas. A heterogeneidade dinâmica, aqui evidente, de momentos anímicos que no imediato aparecem como homogêneos mostra precisamente a eficácia da categoria da inerência, pois a participação das pessoas em relações de diversas ordens, de acordo com a verdade da vida, se apresenta como uma componente de sua psicologia, inerente ao reflexo dessa situação. Sem prejuízo de sua existência como forças do ser objetivo da sociedade, independentes da consciência, são imanentes à psicologia do indivíduo. Domina, pois, na formação artística a unidade imediata originários da personalidade; as relações com as tendências objetivas da sociedade aparecem, entretanto, na categoria da inerência. Esta unidade pode se manifestar concretamente, como é natural, como conflito, como desregulamentação, etc. Mas, se a plasmação há de ser artística, tem de se exprimir, inclusive em maior desagregação, a unidade de substância do homem, e precisamente para isso é imprescindível a aplicação da categoria de inerência. Quando se rompe com ela se produz uma rutura também com a verdade da vida e da arte, como ocorre quando, de acordo com o moderno preconceito, a patologia oferece o “modelo” para a compreensão do homem normal, e, por exemplo, cisões esquizofrênicas da consciência se representa não como exceções patológicas, senão como “condition humaine” [a condição humana – ndt].
Esse fato fundamental do reflexo científico da realidade provocou muita confusão tanto na teoria da arte como na ciência. Na primeira, é frequente que se exagere este modo categórico “primitivo”, “originário”, “arcaico” da reprodução da realidade até arrancar dele (elevando-o ao absurdo) a tese de que a arte reproduz um regresso à magia. Indicamos já a radical falsidade dessas concepções, e mostramos que elas deforma o fato verdadeiro da magia e o fato real da arte (Worringer, Caudwell, etc.). A “primitividade” presente na categoria da inerência (e analogamente na aplicação artística da analogia) se enlaça, por um lado, com uma etapa evolutiva que superou faz muito tempo o mágico e opera exclusivamente com determinações de inerência realmente presentes na vida; uma etapa na qual a fantasmagórica subjetividade da magia – ou, falando melhor, sua incapacidade de distinguir entre o subjetivo e o objetivo – pertence já a um passado superado. Por outro lado, a evolução artística não fica fixada para sempre na simples concepção da inerência sem analisar, e ainda menos se move dela para trás, para o passado; nas situações e relações que podem se condensar generalizadamente como categoria de inerência se encontra um material autêntico da vida humana, na qual se desenvolve incessantemente com a evolução histórica da humanidade, e em cujo esclarecimento e explicitação com forma própria desempenha na arte um papel de pioneiro. Já no momento em que esta categoria aparece nas obras da Antiguidade tem nada a ver com os começos mágicos, e precisamente em relação a estes problemas a arte posterior percorreu um longo caminho de ampliação, aprofundamento e enriquecimento.
Podemos apenas mencionar brevemente às consequências de confusão que se produzem nas ciências pela má compreensão metodológica destes fatos. Trata-se, sobretudo método da psicologia como ciência. A psicologia idealista do positivismo entrou em crise no final do século; sua impotência para captar concretamente os fenômenos se fez desde então cada vez mais visível. Mas, em vez de criticar seus fundamentos idealistas, que não permitiam, por exemplo, passar das associações para seus fundamentos materiais fisiológicos, e aproximar-se melhor aos fenômenos com a ajuda das leis que assim se descobrissem, surgiu a angustia de uma psicologia que se aproximava à concretização e a personalidade sensível da formação artística, da poética, sobretudo, e tratasse os problemas ao modo desta. Do postulado diltheyano de uma “psicologia descritiva” em lugar de uma psicologia simplesmente “analítica” (ou seja, científica), esse movimento está cada vez mais inflado. Não pode ser a nossa tarefa discutir aqui essas diversas correntes. Limitando-nos a uma observação metodológica, podemos dizer que essas tendências propõem à psicologia tarefas somente pode satisfazer a arte, o reflexo artístico da realidade; se a ciência empreende a caminhada por essas veredas, renuncia a sua essência mais própria, à descoberta das legalidades e ligações objetivas que determinam objetivamente o objeto da psicologia e que não podem se contentar se captar senão mediante um modo de reflexo desantropomorfizador. O materialista Pavlov mostrou importantes linhas diretoras de tais investigações, mesmo, infelizmente, não haja encontrado até agora muitos sucessores no terreno psicológico. Em um capítulo posterior tentaremos indicar a direção na qual ode se aproveitar este método para nossos problemas.
Nossas observações anteriores – referidas ao afirmado sobre a personalidade excepcionalmente humana da arte – indicaram que o primitivamente estético se vê obrigado a trabalhar em pontos importantes com a categoria de inerência. Isto permite compreender que a categoria de inerência tem de desempenhar também um papel importante nas relações entre a obra de arte, o gênero e a arte em geral. A coisa fica desde o início sumamente verossímil porque a relação formal entre essas entidades mostram-se muito parecidas com a que media entre o indivíduo singular, a espécie e o gênero. Mas, aqui importam mais as diferenças. Seria deformar em momentos essenciais a simples analogia com relação entre o ser individual, a espécie e o gênero. O problema da inerência volta a se situar aqui no centro. Pois vimos já que, mesmo essa categoria é imprescindível para a captação inicial dos conceitos relacionados com o gênero humano, entretanto, uma consideração científica desenvolvida tem de superá-la. Por outro lado, o propriamente característico da situação estética é a fixação e o desempenho imanente da inerência. Já indicamos isto em relação da representação do objeto central da arte, o homem, mas também nossas considerações sobre a alienação e sua retrocaptação no sujeito giram em torno deste problema. O que agora interessa é inferir as consequências relevantes para o problema que nos ocupa. Sempre no estético se tem certa substancialidade do sujeito, ou, melhor dizendo, a evocação da vivência de sua substancialidade. Isto nada tem a ver com a transformação de Hegel da substância no sujeito; a fabulosa essência dessa doutrina não tem porquê ocupar-nos aqui, menos quanto que no curso dessas reflexões nos esforçamos para descobrir seu núcleo racional, que é estético, não filosófico ou científico. A substancialidade em apreço se refere, sobretudo, à profundidade, à organicidade da unidade do sujeito. E se antes, de outro ponto de vista, acentuávamos a íntima co-pertinência, a imbricação da essência e da aparência é que este fato aponta no mesmo sentido. Enquanto que cientificamente a essência e aparência tem de se separar limpamente, com intenção de que o conhecimento das leis possa se projetar sobrea as aparências que elas esclarecem, a obra de arte estatui, em troca, uma inseparabilidade sensível e significativa da aparência e da essência; a essência não se dá esteticamente senão na medida em que se funde sem sobras com o mundo da aparência, sem dúvida com uma generalização sensível e significativa que manifesta a essência ao mesmo tempo como ser-par-si e como imanente aos fenômenos.
Esta estrutura originária estética das obras tem de se preservar nas generalizações criadas pela própria coisa, como o gênero e a arte em geral, se não se quer que estas generalizações violentem a essência do estético, deformando a inerência estética, deformando a inerência estética para fazer dela uma subordinação lógica. Somente assim se tornam claramente visíveis o semelhante e a diferença com a espécie e o gênero. Como afirmamos já a simples classificação de base subordinadora, artificial e rígida, representa um nível de cientificidade superior ao do registro imediato da inerência. E inclusive quando esta categoria se apresenta a um nível superior, como, por exemplo, em ensaios morfológicos comparativos com a intenção de ordenar sistematicamente os fenômenos, existem categorias de ordens mais complicadas e desenvolvidas que dominam sobre a simples inerência. Em troca, na esfera estética a inerência segue vigente sem superação possível: trate-se da estrutura objetiva das obras ou dos modos de comportamento criadores ou receptivos delas, põem-se sempre e necessariamente um ato a obra individual e o gênero ao qual pertence. Nem na criação, nem na recepção nem na própria reflexão estética sobre elas pode se traçar uma linha divisória clara. Inclusive na análise de uma obra de arte – análise que por sua forma é conceitual – a vivência e o pensamento se movem constantemente naquele fluido comum que unifica a obra a seu gênero. Quando se fala, por exemplo, das qualidades pitorescas de uma paisagem, já na captação da particularidade específico-individual desse quadro determinado se contem o problema do pitoresco enquanto tal, e ao contrário. O modo de cumprimento da legalidade do gênero por uma obra de arte, no sentido, já indicado, de que esse cumprimento inclui ao mesmo tempo uma extensão das leis, é prova inequívoca de que essa relação de inerência recíproca entre a obra de arte individual e o gênero pertence a essência do estético. O mesmo ocorre com relação entre a obra e o gênero e a arte em geral. Por isso o gênero e a arte não são conceitos universais comparados com a obra, única que existe por si própria.
É inevitável, dentro de certos limites, e se produz, além disso, constantemente, certa transposição ao conceitual. Mas se essa transposição tem lugar precipitada e rigidamente, se trata, como frequentemente ocorre no curso da história, de regras mortas, as quais, no melhor dos casos, correm às cegas sem acertar no estético, mas frequentemente exercem, além disso, efeitos letais sobre o sentido e a criação. As transposições corretas são – repetimos – generalizações sensíveis e significativas que, de acordo com essa sua essência, servem ao processo estético já conhecido que supera a simples particularidade do sujeito criador ou receptor em cada caso para que a subjetividade atinja ao específico, ao humano, sem aniquilar totalmente a particularidade nem eliminar dela mais do que aniquilar totalmente a particularidade nem eliminar dela mais do que o imprescindível que seja possível nessa ascensão. A inerência se expressa, pois no fato de que em cada artista, objetiva e subjetivamente, o gênero e a arte em geral estão presentes sempre em simultaneidade. Certamente que com essa presença na subjetividade estética não se quer afirmar uma consciência que se manifeste conceitualmente, mesmo que menos se trata de um inconsciente da “psicologia profunda”. Também aqui vale nosso mote “não sabem, mas o fazem”. Hegel afirmou em seu carregado estilo que compete ao gênero a negação da singularidade imediata, a “morte do indivíduo”. Em nosso caso se produz o contrário: ao constituir-se o que Hegel chama singularidade imediata, a obra de arte, e se constituir, de acordo com a essência do estético, como algo duradouro, permanente, ocorre, também com palavras de Hegel, que o “gênero chegue a si próprio”.(10) Portanto, o processo tem um caráter literalmente contraposto pelo que faz às relações entre o singular individual, a espécie e o gênero. A autoconservação, o crescimento e a evolução do gênero e a arte em geral dependem, com necessidade imediata e restritiva, de uma realização das obras de arte individuais, enquanto as formações agonizantes (antiquadas) ficam excluídas do processo estético do gênero, se convertem em um nada estético. (E não tem nada a ver com este problema o fato de que apesar disso possam ainda ter significação como fenômenos históricos-sociais).
Notas de rodapé:
(1) Carta de Goethe a Schiller de 23-12-1797. Texto contido em “Über epische und dramatische Dichtung” [Da poesia épica e dramática]. (retornar ao texto)
(2) HEGEL, Propedêutica filosófica, Begriffslehere [Doutrina do conceito], § 15. (retornar ao texto)
(3) Ibid., §42-43. (retornar ao texto)
(4) Hegel – A ciência da Lógica, Obras, volume V, p. 74. (retornar ao texto)
(5) Ibid., p. 118. (retornar ao texto)
(6) Ibid., p. 120. (retornar ao texto)
(7) PRANTL, Geschichte der Logik [ A historia da Lógica no Ocidente], cit., [vol.] I, p. 233, 263. (retornar ao texto)
(8) Hegel, Enzyclopädie [ Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítomes – ndt], § 370 . (retornar ao texto)
(9) LÉVY-BRUHL, op. cit., p. 58. (retornar ao texto)
(10) HEGEL – Enciclopédia, § 367, Apêndice. (retornar ao texto)