Grande Estética

György Lukács


Volume 2 – Problemas da mimese
7 – O caminho do sujeito para o reflexo estético
7.1 – Problemas preliminares da subjetividade estética


Todas nossas considerações anteriores se concentraram na tentativa de esclarecer o princípio antropomorfizador, inclusive antropocêntrico, de toda posição estética. Com o intento de resumir agora e sistematizar as afirmações dispersas e em parte ocasionais que vínhamos fazendo, tropeçamos a seguir com a contradição entre os atos antropomorfizadores, tanto na criação quanto na criação da arte e sua pretensão absoluta de validade objetiva. Esta contraditoriedade parece aprofundar-se ainda porque não se trata simplesmente de tendências antropomorfizadoras, mas de que a fundamentação do estético no sentido referido põe sempre, em todas as partes e necessariamente no centro o momento subjetivo que alenta nele. Disso de depreende desde já a primeira tarefa: o esclarecimento da essência da subjetividade estética. É preciso assentar, sobretudo uma afirmação já conhecida pelas anteriores considerações: a subjetividade estética não é em absoluto simplesmente idêntica à subjetividade da vida cotidiana. Mas ao mesmo tempo é necessário afirmar (e tampouco pela primeira vez): essa superação da cotidianidade não supõe de modo algum a posição ou o reconhecimento de qualquer potência ou substância transcendente. Esta cismundanidade intrínseca do princípio estético é tão intensa que, por exemplo, extremo, no pensamento de Kant não chega a se apresentar, junto à teórica “consciência em geral” e ao prático “homo noumenon”, qualquer semelhança do sujeito transcendente na estética. A pergunta é como, em resposta a que necessidades, dirigida por quais forças se produz tal intensificação da subjetividade que esta possa valer já como um qualitativo-ser-outro em relação da subjetividade da cotidianidade? E que papel desempenha a esfera estética nesse desenvolvimento? Este questionamento contem já nossa principal pergunta anterior, a da gênese; pois o real conteúdo de tal questionamento consiste em mostrar a estética como um modo de posição ou afirmação humano, produto de determinadas necessidades, em si de crescimento contínuo de sua origem, e presentes sempre a partir de um determinado nível evolutivo.

Nossa reflexão se dirige agora ao núcleo dessas necessidades que é decisiva para a filosofia, isto é, ao momento subjetivo dessa subjetividade, e não por enquanto, à natureza dos objetos que ela se esforça para criar ou receber; assim se põe cronologicamente em último lugar a relação sujeito-objeto, decisiva para nós, com o fim de iluminar melhor a outra face do problema; o fato de ver na imitação o fenômeno estético fundamental bastará para não deixar dúvidas acerca de nossa posição. A necessidade que é subjacente à arte foi expressa por Klopstock com grande clareza e energia, precisamente do ponto de vista que agora nos interessa, sobretudo, o da subjetividade. É verdade que suas palavras se referem diretamente somente à poesia, mas seu sentido mostra claramente que o poeta está pensando para todo o campo da estética: “A essência da poesia reside em que, com a ajuda da linguagem, mostra certo número de objetos que já conhecemos, ou cuja existência suspeitamos, mas por um lado que ocupa em tão alto grau, as maiores energias da alma que a uma obra sobre a outra e assim põe em movimento a alma inteira”. A seguir explica Klopstock os diversos momentos de sua descrição. O que ainda nos interessa desse desenvolvimento é o que diz sobre a palavra “ocupar”: “Os mais profundos mistérios da poesia jazem na ação em que se some a nossa alma. Sempre não é a ação essencial ao prazer. Os poetas vulgares pretendem que vivamos com eles uma existência de plantas”(1).

Do ponto de vista da compreensão da necessidade que é subjacente à arte, o decisivo nessas ideias de Klopstock é a alusão a uma posição em movimento da alma inteira do homem. Certamente que em algum sentido o homem inteiro está também em atividade na vida cotidiana. Por mais que o desenvolvimento de sua atividade se especialize crescentemente, não se pode falar gritantemente de uma fragmentação completa e acabada de suas capacidades com utilização exclusiva de outras. Mas sim que se pode dizer – e cada vez mais à medida que se desenvolve a civilização – que sua atividade desenvolve unilateralmente determinados aspectos de sua personalidade total, seja no físico, seja no intelectual, enquanto descuida temporariamente outras ou até faz que se atrofiem. A necessidade de equilíbrio, de uma orientação compensadora, à harmonia, à proporcionalidade, se apresenta maciçamente chegados a determinados níveis de bem-estar material, de ócio, etc. (As categorias aqui enumeradas são em si as da vida cotidiana segundo sua existência original, fatual e de termo médio, o que quer dizer não estéticas). Se situamos no centro, como universal necessidade social, a saudade da totalidade e integridade do homem, agora temos de distanciar-nos gritantemente – como outras vezes – da crítica romântica-anticapitalista da divisão do trabalho. Esta crítica não vê na divisão mais do que o negativo, a fragmentação e amputação do homem, sem tomar em conta que se trata somente de um escalão necessário da evolução da humanidade para cima, nem da que a própria divisão do trabalho – apesar de seus modos de manifestação no capitalismo, destruidores e aviltantes do homem – desperta ao mesmo tempo ininterruptamente qualidades, capacidades, etc., do homem, e até consegue seu desempenho, e a consequente ampliação e o consequente enriquecimento do conceito da totalidade humana. Por isso, inclusive a etapa do capitalismo mais desfavorável ao homem inteiro não pode acarretar nenhuma renúncia ao próprio homem inteiro. Ao contrário: quanto mais intensamente se atuam as tendências fragmentadoras, tanto mais intenso costuma ser o movimento de reação a elas.

O que diz Klopstock é, pois uma necessidade fundamental do homem. Certamente que essa necessidade não se manifesta somente na vida cotidiana, como também nas objetivações que nascem delas nas mais diversas formas, como a religião, a fábula, a poesia, a filosofia, a ética, etc. Mas essa necessidade não se converte em consciência do esforço senão que quando o desenvolvimento das forças produtivas e sua imposição em relações de produção ofereçam a essa totalidade e integridade da personalidade humana possibilidades máximas e apareçam simultaneamente ameaçá-la subjetivamente de modo mais evidente. Então surge – inclusive conscientemente – a saudade da consumação pela arte, tal como se exprimiu Klopstock. Mas é óbvio que a necessidade existia de muito antes, mesmo que muitas vezes sem a menor expressão objetivada, ou melhor, na medida em que era consciente, se orientava para outros fins. Como vimos isto tem, sobretudo fundamentos sociais, precisamente as crescentes contradições da divisão do trabalho, que acabamos de sublinhar.

Mas uma análise mais cuidadosa tem de mostrar que não se trata somente de motivos limitados a uma etapa histórica da evolução, senão também de outros motivos mais gerais que, naturalmente, apesar de sua universalidade, apesar de seu fundamento imediato e aparentemente antropológico, não deixam por isso de ter caráter social. Mas o que acontece é que sua base não esta ou aquela formação social concreta – pois esta determina somente o modo e o grau de seu aparecimento –, mas a essência do homem em sociedade. Seria, sem dúvida, uma rigidez metafísica querer sempre supor a existência de fronteiras visíveis com toda precisão entre o antropológico e o social; como de qualquer modo, aqui também as fronteiras são frequentemente apagadas, e até ocultas; mas existem sempre. Somente quando a antropologia – como ocorre, por exemplo, no existencialismo – concebe ao homem como “ontologicamente” sozinho, posto excusivamente sobre si próprio, como um ser que somente “depois”, de um modo “ontologicamente” casual ou necessário, “entra” em relações sociais, somente nesse caso pode se apresentar tal separação, metafísica, “pura”, do antropológico e o social. Mencionamos repetidamente ao insustentável fatual e filosófico de tal dualismo. Em nossa opinião, o homem, já em seu se fazer tal e mesmo mais em sua existência como homem, é um ser social. Mas enquanto que com a consumação do processo de sua humanização sua estrutura antropológica se fixa no principal, em suas principais determinações, e não fica já submetida a nenhuma alteração qualitativamente decisiva, a evolução social produz em princípio e ininterruptamente a novidade, e isso não somente pelo que faz às relações dos homens entre si, com a natureza, etc., como também enquanto à estrutura interna do indivíduo humano. Esta última afirmação é de suma importância para nossas atuais considerações, pois sabemos que a relação sujeito-objeto, mesmo que seja em sua forma mais primitiva, não pode aparecer na consciência humana senão que com o trabalho, e que a dissolução do comunismo primitivo cria a base da consciência da personalidade individual, mesmo que seja em um nível muito primitivo, etc., etc. Assim, pois, mesmo que determinadas necessidades nascidas nesse processo evolutivo, assim como seus modos de satisfação, sejam desde sua origem elementos da consciência da humanidade sua gênese é de qualquer forma de caráter social e não de natureza antropológica.

Por trás da exigência de Klopstock se encontra originariamente a separação entre o essencial e o inessencial no próprio homem, em sua subjetividade. O homem tem de praticar essa distinção desde o primeiro momento em relação ao mundo externo, porque caso contrário seria incapaz de dominá-lo em interesse de sua própria existência. O resultado de outros níveis evolutivos mais elevados e aos quais já nos referimos, é que esse próprio problema pode e deve se apresentar em relação a si próprio, e que a questão é propriamente de natureza específica. Vimos que as tentativas de dominar o mundo começam sob o encobrimento mágico, que contem as sementes do reflexo científico da realidade como os primeiros cognatos do reflexo artístico. Também nas reorientações para a interioridade humana desempenham papéis importantes necessidades de várias naturezas, e não somente, como no caso do domínio do mundo externo, enquanto inicial mistura mágico-caótica, senão permanentemente, para toda evolução posterior. Além de que a subjetividade do homem pode ser objeto de uma consideração puramente científica e deve sê-lo – e neste campo, como é natural, o princípio puramente científico do reflexo e a interpretação desantropomorfizadoras da realidade se impõe muito tardiamente e dificilmente –, surge, junto com a separação social relativa da personalidade individual em relação da comunidade, a necessidade de ética, direito, religião, etc. E mesmo que inclusive a este nível a estética se erga até a substantividade de um modo paulatino e laborioso, a diferenciação que aqui começa é já de princípio diversa da original, a do período mágico. É muito particular, por exemplo, que nas culturas antigas melhor desenvolvidas, a historiografia, a retórica, etecetera, ainda continuavam sendo entendidas como atividades essencialmente estéticas quando já existia uma estética em sentido teórico.

Não é tarefa deste lugar o esboçar sequer os desvios deste caminho. O que nos interessa por enquanto é esboçar filosoficamente os princípios mais gerais da separação. Por isso tem tanta importância neste contexto a exigência de Klopstock de totalidade. Pois enquanto as correntes científicas, religiosas, éticas, etc., acarretam distinções terminantes e até oposições no problema, inicialmente mencionada, da relação entre essência e a aparência no próprio homem, a particularidade da orientação estética, oculta naquelas tendências gerais e ativa sem consciência clara, é o desejo de buscar e encontrar a aparência do presente a profunda interioridade do essencial. Basta essa situação para compreender que essas intenções podem apenas conseguir tardiamente uma consciência, uma autonomia intelectual. Que se pense na célebre inscrição do templo de Apolo em Delfos – “Conhece-te a ti mesmo” –, em sua interpretação por Sócrates, no ideal do sábio entre os estoicos e a escola de Epicuro, na rígida separação de Plotino entre o “Uno” e tudo o que recorda a criatura, etc. Já aqui é visível, sem dúvida, uma linha ascendente nessa separação definitiva da essência e a aparência, produzida pela aniquilação da espontânea vida pública da democracia da polis [cidade em grego – ndt]. Mas o único que é consequência das transformações do fundamento social é a radicalidade da diferença. A tendência não pode se estender como totalmente determinada pela época. É óbvio que toda religião tenta impor por necessidade uma separação rígida entre a essência e a aparência. A mesma distinção subjaz à metodologia da ciência, de orientação totalmente contrária à religiosa. Certamente que essa limpa separação nada mais é do que um rodeio empreendido para captar adequadamente o fenômeno em seu em-si, em suas relações e proporções objetivas; mas isso não suprime a distinção imediata, apenas que se limita a mostrar seu lugar no reflexo científico da realidade. Por último, também toda ética tem que começar por tal distinção. E aquele que fica com ela, como faz Kant, ou aspire – com diversas influências estéticas – à reunificação da personalidade inteira, como é o caso de Goethe e Schiller no período de Weimar, é problema que supera nosso atual posicionamento. O importante é que a distinção é sempre qualitativamente mais intensa que no terreno estético. A unidade da aparência e a essência é uma vivência elementar e insuprimível, cujas raízes são ainda mais profundas que a chegada da personalidade a consciência. Quando a magia chamada simpática assenta como ponto de partida o princípio de que tudo o que alguma vez esteve em ligação com um homem – e, na prática mágica, sobretudo o que pertença a sua pessoa física (cabelo, unhas, etc.) – se encontra sem dúvida por trás dessa convicção o sentimento de que o homem está co-determinado – em algum sentido – de um modo essencial por tudo o que se encontra em qualquer relação, por longínqua ou superficial que seja, com sua existência física. Isto se expressa também nas universais crenças mágicas sobre a relação do homem com seu nome. “O indígena contempla seu nome como (...) uma parte exata de sua individualidade, como seus olhos ou seus dentes. Crê que um uso perverso de seu nome lhe fará sofrer indubitavelmente como uma ferida imposta a alguma parte de seu corpo”(2), escreve Levy-Bruhl. Como em todas as questões que se apresentem sob condicionamento mágico, também nesta são ainda muito tênues as fronteiras entre a subjetividade e o mundo objetivo. Os sentimentos aqui descritos, cuja raiz é muito profunda, não exigem uma fisionomia essencialmente mais precisa até que, com a dissolução do comunismo primitivo sobre o fundamento da nova base e de novas formas de consciência que lhe corresponde, a personalidade individual se separa socialmente, mesmo de um modo sem dúvida relativo, tanto objetiva quanto subjetivamente. Não somente se dissolvem então muitas representações mágicas (mesmo algumas outras sigam vivas durante muito tempo em forma de superstição, mas perdendo constantemente influência no posicionamento de problemas de concepção do mundo), senão que, além disso e sobretudo, as novas situações vitais e os novos modos de objetivação que nascem dela atuam intensamente sobre o conteúdo e a forma da tradicional contemplação da subjetividade por si mesma.

Trata-se, pois, da subjetividade. As “causas mágicas” se refutam com relativa facilidade e se supera na condição de superstição. Mas o fato de que o homem, com todas suas propriedades – as centrais como as simplesmente superficiais –, constitui um todo vivo, movido, que se mantem no movimento, é herança na qual a unidade da essência e a aparência se exprime de modos diverso. Seria equivocado pensar que essas novas ligações foram descobertas pela primeira vez pela arte e por ela levadas à consciência. A verdade é o contrário. Se a vida e a prática cotidianas, o costume e o direito nascem delas, a moralidade e a ética não haveriam elaborado e desenvolvido a transformação dessas vivências em reflexão conceitual, dificilmente ocupariam um lugar central na vida intelectual e emocional dos homens, e não poderiam exigir – como necessidades da vida – uma intenção voltada para a arte. Pois o ciclo de problemas de se a personalidade humana constitui um todo, se essa totalidade se mantem no decurso do tempo, que é nela essencial e que simples aparência, reaparece imperiosamente em todas as ocupações dos homens. Eis aqui um exemplo atual: seria impossível falar de responsabilidade do indivíduo sem por este complexo de problemas; como é sabido, a responsabilidade individual se desenvolveu paulatinamente partindo das responsabilidades coletivas, das tribos, etc., mas a seguir se converteu em fundamento do intercâmbio cotidiano dos homens entre si. Sem dúvida – e com isso voltamos a fatos já examinados – na responsabilidade se afirma a continuidade da pessoa, seu manter-se através da mudança dos tempos. Se o homem tem de responder a um ato isolado por ele realizado, e às vezes até de uma determinada ideia, é que seus semelhantes e ele mesmo reconhecem o fato de que a totalidade de sua personalidade se manteve no curso do tempo com certa estável identidade. Exemplos análogos poderiam ainda se enumerar abundantemente.

O reconhecimento implícito da totalidade, da continuidade da individualidade do homem, da coordenação da essência e a aparência na individualidade, contem, por outro lado, uma contradição que o sujeito tem de resolver inapelavelmente. Pois a afirmação, o reconhecimento, é ao mesmo tempo uma negação. Em todos os caos há um momento (uma ação, um fato, uma ideia, etc.) que se isola do fluxo contínuo e da estrutura da totalidade e se opõe ao indivíduo como algo que o representa fundamentalmente – para o bem ou para o mal –, como algo que contem a essência do indivíduo. E todo o demais se deixa de lado como simples aparência, como coisa secundária. Esse comportamento é uma obviedade para a moral e para a regulamentação do mundo da prática. Mas inclusive quando o homem se esforça para satisfazer teoricamente o mandamento de Apolo, o “conhece-te a ti mesmo”, tem de se apelar a um análogo comportamento que decompõe a totalidade humana. E seria uma simplificação inadmissível o ver nessa negação uma simples negação abstrata. Pelo contrário. Essa negação é essencialmente um agarrar, um ato de constituição propriamente dita da personalidade; quando não se apresente, como em períodos nos quais as forças sociais destroem as normas éticas e se ergue diante do saber um ceticismo geral, a personalidade se dispersa por sua vez em uma coapresentação e sucessão de instantes não relatados. Hofmannsthal descreveu precisa e belamente esse estado do Eu:

É algo que ninguém pode pensar do todo,

E muito terrível para chorar por ele:

Que tudo se deslize e se esgueire



E que meu próprio Eu, sem que nada o detenha,

Me escorre desde uma criança pequena

Como um cachorro, misterioso, em silêncio e estranho.

Mesmo que esse tipo de negação, no sentido de Espinosa, é ao mesmo tempo uma determinação, algo positivo, algo que menciona ao essencial, e mesmo que na própria via desempenha uma função insubstituível, entretanto, não pode satisfazer todas as necessidades que suscita a vida ao desenvolver com intensidade crescente a personalidade. A religião desempenha aqui um papel importante. Em um sentido, porque muitas religiões prometem a conservação da personalidade inteira no além, de tal modo que a fé em uma perduração se apresenta como satisfação mais óbvia e popular daquela necessidade; e em outro sentido, porque tendências como a ascética e o êxtase de orientação mística – cada um a sua maneira –, fingem conseguir uma fuga em relação ao individual e seus problemas, uma autodissolução no transcendente ou o cósmico. Sem dúvida nenhuma, se encontra durante muito tempo enlaçada do modo mais íntimo com a primeira das citadas tendências religiosas, e vai desenvolvendo-se escondida nas categorias desta como antes nas da magia. Pelo que faz a diversas espécies e subespécies da segunda tendência, tropeçamos com elas, com sua orientação antiartística, hostil em última instância à arte, já ao falar do período mágico; não necessitamos considerar aqui o fato de que pode haver e houve concretas situações históricas nas quais – como já ocorrera na magia – se tenha uma coexistência e até certa influência recíproca das duas tendências; esse fato não se encontra na linha evolutiva principal. A permanência da personalidade no além cria uma grande superfície de ligação entre a arte e a religião, seja pelo fato de que ambas necessitem alguma espécie de mimese, a reprodução da totalidade humana, para poder satisfazer essa necessidade de duração. (Conscientemente mencionamos aqui a somente um aspecto da vida religiosa; se entende por si que a representação do mundo dos deuses está objetivamente ligada do modo mais íntimo com este complexo de problemas. E é evidente que a valorização desse mundo divino na representação mimética cria também um terreno comum entre a religião e a arte).

Mas a religião promete uma satisfação real, e, precisamente, em um além no qual a existência se eleva a um nível superior, se torna independente da constante auto-reprodução da vida, do devir e do perecer, e experimenta assim uma realização definitiva. Já a filosofia pré-socrática se deu conta de que o meio expressivo dessa segunda realidade é uma espécie de mimese da terrena. Por isso lhe é tão fácil à religião por as artes a seu serviço: a mimese do mundano que criam as artes pode servir como promessa, como uma garantia, como uma reprodução do além. Certamente que já nesse uso da arte pela religião, nessa versão simplesmente instrumental da arte, se encontra conteúdo – de certo modo um ato – o princípio da separação interna dos dois caminhos. Pois muito frequentemente, precisamente quando parece que a arte se haja entregue sem descanso à expressão de conteúdos religiosos, se faz visível nas formações objetivas da mesma sua separação em relação àquele conteúdo: a obra de arte chega a exprimir tão totalmente o conteúdo religioso, que este, chegado a essa perfeição, se dissolve e se apresenta já como etéreo e inacessível, e o conformado, o concebido como meio e mediação para o sobrenatural, exige uma cerrada mundanidade e, fato independente da ocasião que lhe desencadeou, se ergue, perfeito em si, excluindo com seu fechamento formal toda sobrenaturalidade. Esta separação se produziu de modo mais puro na arte clássica grega; mas toda evolução artística, inclusive a oriental conhece essas luta, raras vezes conscientes, assim como as não menos raras consumações da separação(3). Este deslocamento sensível do religioso pela formação artística que se havia tomado como simples instrumento não é um fenômeno casual. Precisamente porque a religião pensa em um deus realmente existente, em um homem salvo verdadeiramente para a bem-aventurança eterna, tem de faltar na representação puramente religiosa o equilíbrio de essência e aparência que é característica da estética. Essa falta se deve sobretudo – independentemente do que o represente como deus, como herói ou como mortal exposto à salvação ou a condenação eternas –, tem de arrancar por força ao homem de seu meio ambiente natural, tem de eliminar de sua personalidade os reflexos anímicos interligados com a interação com o mundo. Se não o faz, como ocorre nos grandes períodos artísticos da in fluência religiosa, isto é, se a representação põe espontaneamente ao homem em um mundo circundante humano – por mais idealizado religiosamente que seja –, então é inevitável a descrita vitória do mundanisno humano sobre o além, como ocorreu na Antiguidade e – no essencial – também inclusive na Idade Média. Mas, acima disso – mesmo sem perder a íntima relação com isso – a conservação e preservação puramente religiosa do humano tenderá a atrofiar o lado fenomênico, a concretude e a riqueza da personalidade. Nunca entendem as representações religiosas que o homem vá receber no além sua imortalidade tal como é na terra. A religião não pratica somente uma rigorosa seleção entre suas qualidades pessoais, apenas converte além disso em um homem solitário: cada qual se encontra sozinho diante de seu juiz transcendente. Se são seus fatos suas obras, as que contam, o fazem rigidamente objetivadas, separadas de seu sujeito imediato; e se – em outras religiões – conta somente a intenção, esta aparece como figura própria separada do resto da vida.

Aparece, pois, como se a personalidade do homem mantida segundo a fé religiosa, salva em um eterno além, tivesse pouco a ver com a de sua atual vida cotidiana. Mas considerada mais de perto, essa personalidade se altera precisamente em seus traços mais essenciais. O que primeiro se depreende ou elimina dela é que o homem fez de si mesmo com suas próprias forças; sua transformação pelo trabalho, a ciência, a arte, a eticidade terrena e mundana, aparece como produto de uma recusável soberba de criatura, na medida em que se concebe pelo homem como obra própria, independente de ajuda do poder transcendente reconhecido em cada caso. No conceito de criatura tudo se funde com a pessoa particular imediatamente dada, salvo que as tendências à independência o façam aparecer como ainda mais condenável que o simplesmente particular. Por outro lado esta particularidade aparece como o ser autêntico do homem, criado por Deus, pelo poder transcendente; o homem não está porventura obrigado a conservar esse particular sem nenhuma alteração – pois também esse ser é de simples criatura –, mas se ao menos desenvolveu-o como o que é, em obediência aos mandamentos transcendentes. Franz Baader escreveu o seguinte sobre este aspecto, ligando-o com antigos místicos:(4) “Do mesmo modo que a arrogância e a vileza, mesmo externamente vão muitas vezes unidas, não são verdadeira e internamente compatíveis nem podem viver senão que numa espécie de amasiamento, no qual a arrogância é a caricatura de um dos elementos do amor, o sublime, e a vileza a caricatura do outro, a humildade, assim somente a religião do amor consegue superar aquele amasiamento e lhe dar a consagração do sacramento, humilhando a arrogância e suspendendo a vileza”. No último capítulo trataremos detalhadamente dessa orientação do comportamento religioso. Aqui será suficiente observar que a necessidade de autoconservação é, especialmente em algumas épocas, tão intensa e, ao mesmo tempo, tão indeterminada, que o problema do como se anula praticamente diante dela. O que certamente nos importa neste ponto é a simples comprovação da convergência e a divergência das tendências básicas estéticas e religiosas: o abismo que se abre entre as respectivas formas de duração da totalidade do homem.

A arte posta a serviço da religião tem em grande medida a tarefa de salvar esse abismo. E muitas vezes a cumpre com grande entrega, capacidade de adaptação e habilidade; muitas vezes inclusive com a consciência de nada mais ser do que um servo da fé. Na verdade – e independentemente das ideias e dos sentimentos pessoais dos vários artistas – trata–se sempre para a arte da fecunda “determinação de fora” de Goethe que já conhecemos. A religião, o sentimento religioso, a necessidade religiosa, universal e socialmente viva, posicionam à arte tarefas concretas que ela, entretanto, não pode resolver senão à sua maneira, com a qual – e independentemente do que pensem os artistas e seu público – conseguem objetivamente se expressar a separação principal, a oposição do religioso e do estético. E isto se aplica não somente a Giotto ou Tiziano, senão como a Fra Angélico ou a Grünewald. A profunda desconfiança que culturas inteiras religiosas e outras culturas oficiais sentem durante certos períodos em relação à formação artística se aferram neste fundamento. (Como é natural, desempenha seu papel nisto os restos de representações mágicas que ficam arraigadas nas obras de arte, e da luta religiosa contra esses resíduos). No último capítulo, como já anunciamos, nos ocuparemos detalhadamente deste complexo de problemas; aqui teremos de nos limitar a mostrar que essa oposição descobre o fundamento de porquê a única satisfação admissível da necessidade indicada na citação de Klopstock é a estética, e, por outro lado, que a plena substantivação da estética não se pode considerar alcançada pela saída do período mágico. Bastam as observações anteriores para mostrar que agora se posicionam problemas de natureza diversa, de ordem muito superior ao dos suscitados pela gênese da arte no seio da magia.

Diante à seleção religiosa, sempre rigorosa, aludimos a uma particularidade da estética, isto é, que o estética se esforça sempre por despertar uma totalidade humana que inclui o mundo sensível aparente, que, portanto, o estético se orienta na mimese a uma ampla e ordenada riqueza da realidade. Também este aspecto do estético se reconheceu e expressou muitas vezes. Hemsterhuis é talvez dos que tenham feito mais decididamente, até o ponto de ver nessa riqueza o traço decisivo do estético: “A alma quer por natureza apropriar-se grande número de ideias no menor tempo possível”. Já essa afirmação sublinha o momento de intensidade; pois, o grande número de ideias não é propriamente o que se põe no centro: se põe no centro a concentração das mesmas, ou seja, a intensidade da vivência, como característica de que o objeto mimeticamente captado – e para Hemsterhuis é evidente que a tarefa capital da arte é o reflexo da realidade – irradia essa riqueza sobre o contemplador. Com isso se enuncia, naturalmente, um critério formal de mimese. Hemsterhuis sublinha ainda mais energicamente esse caráter formal ao analisar detalhadamente a natureza da capacidade receptiva sensível do mundo e de sua reprodução na obra de arte, chegando a resultados que são claros precursores do conhecimento do fato que caracterizamos como divisão do trabalho dos sentidos na vida e como meio homogêneo, na estética, das obras e os gêneros artísticos; ainda mais detalhadamente teremos a seguir que analisar esse fato. Diz Hemsterhuis “que através de uma longa prática e com ajuda do uso simultâneo de todos os sentidos chegamos a distinguir essencialmente os objetos apelando a somente um dos nossos sentidos”(5). Como sempre os problemas estéticos se posicionam acertadamente, o caráter formal é aqui somente aparente. Pois é claro – sem nenhuma dúvida que Hemsterhuis o pensa assim – que não toda riqueza de ideia, nem toda intensidade ou concentração pode provocar os efeitos desejados. Já com um olhar à vida basta para o compreender. Pois, sem dúvida, cada objeto da realidade possui em si aquela infinitude de propriedades e relações cuja reprodução mimética há de produzir o efeito pensado por Hemsterhuis, e indicamos já que para ele a primeira finalidade era a reprodução da possibilidade objetiva. Mas, como ele mesmo acrescenta a seguir, “a segunda é superar à natureza, criando efeitos que esta não possa produzir facilmente ou não”(6). Esta última consideração nos leva – seguindo a nosso autor – ao acontecimento do belo. A tarefa é pois, segundo Hemsterhuis, estudar o como daquela imitação, e depois determinar em que consiste sua superação. O da análise é a concentração e intensificação que afirmamos; o maior número de ideias no menor tempos, coisa que determina para Hemsterhuis o conceito do belo.

Tudo isso descreve bastante bem o lado formal da impressão estética (e, portanto, do que a desperta, da obra de arte), ou, melhor dizendo, um momento decisivamente importante desse fato formal. O que falta em Hemsterhuis é a hierarquia, o princípio supraordenador dessa riqueza; a de terminação dele indica somente a sucessão a co-preferência dos elementos daquela riqueza. Mas, o que faz evitar uma posterior concretização no marco do seu discurso é precisamente seu bom instinto metodológico; pois, essa concretização teria de consistir em uma mutação daquele conceito de intensidade e riqueza de um conceito de conteúdo. E essa mutação não pode proceder de modo espontâneo e direto a partir do lado formal; não representa – dentro de uma estrutura puramente estética – a “determinação de fora” de Goethe como um momento dos conteúdos socialmente condicionados, dominantes da vida cotidiana, que se enfrentam em cada caso à arte como necessidades, como exigências postas pelo povo e às quais têm de dar a resposta adequada, definitiva, facilitadora de duração, precisamente a forma concreta. Mencionamos já antes à natureza especial das necessidades em apreço. Acrescentemos agora simplesmente que a universalidade, de que falamos, dessas necessidades se apresenta sempre em uma forma concreta, determinada histórico-socialmente, e de tal modo que levanta uma unidade imediata e indissolúvel para o artista e o público, na qual – de modo também imediato – a universalidade pareça se dissolver do todo na concreta determinação de época, e até desaparecer. Mas isto ocorre de tal modo que o critério em última instância decisivo do êxito segue consistindo apesar de tudo e exatamente na resposta dada aos problemas postos ao artista, sobre a capa de concretude, por aquela universalidade. (Contemplamos aqui o caso típico, normal, do ponto de vista das categorias eficazes. Como é natural, há também constelações históricas e sociais nas quais a universalidade parece eclipsar o concreto. O problema resultante pertence a parte histórico-materialista da estética). Esta universalidade, além disso, não é universal senão que comparada com a concretude histórico-social que lhe corresponda em relação a ela. Considerada em si é de grande concretude: contém as determinações básicas da relação entre o homem e o mundo, entre o sujeito humano e as forças que decidem segundo leis de seu destino, seu bem e sua dor.

Também esta determinante das necessidades estéticas se conhece desde muito tempo e se exprimiu já com toda clareza. Bacon, um dos primeiros a expor claramente a essência desantropomorfizadora do reflexo científico da realidade, descreveu também corretamente e reconhecido em sua justificativa o conteúdo das necessidades descritas. Bacon escreveu também sobre poesia ,como era corrente na época; mas o essencial de sua exposição vale para a estética em geral. Bacon chama à poesia de “historiografia fingida”. Esta facilita “ao espírito humano uma sombra de satisfação nos pontos nos quais se negou a natureza das coisas; como o mundo está relativamente mais baixo que a alma, é agradável ao espírito humano uma grandeza mais ilimitada, uma bondade mais plena, uma variação mais absoluta as que se encontram na natureza das coisas”. Bacon enumera os traços de tal modo de formar que supere a realidade objetiva normal – de acordo com as diversas necessidades – enquanto grandeza, justiça, variação, etc. “Por isso se acreditou sempre, afirma em conclusão, “que a poesia está ao serviço da grandeza de coração, da moralidade e do deleite, e que os promove”. Por isso se acreditou sempre que participa do divino, pois levanta e alarga o espírito, subordina a aparição das coisas aos desenjos do espírito, enquanto que o intelecto submete ao espírito à natureza das coisas”(7). Muito analogamente deduziram já antes dele Sir Philipp Sidney e outros a justificativa da literatura (da arte) partindo de sua mimese, que supera à natureza, e defenderam sua justificativa diante das ciências. Todas estas ideias, muito diferentes entre si, podem se resumir brevemente na tese de que a arte está chamada a criar um mundo adequado ao homem e à humanidade.

É muito importante o fato de que esse posicionamento se apresenta em suas representações mais coerentes em indissolúvel união com a ideia de imitação. Pois quando a doutrina do reflexo se apresenta de uma forma mecanicista-materialista, se desmancham os limites entre a ciência desantropomorfizadora e a arte, e a particularidade da estética desaparece ou se desmancha pelo menos também inevitavelmente. E quando – de um modo frequentemente justificado do ponto de vista crítico – a oposição idealista a essas “teorias coerentes da imitação” lança fora o reflexo da realidade objetiva, a essência da arte se deforma no idealismo subjetivista até dar uma subjetividade vazia, ou antes se falseia no idealismo objetivo para cristalizar em uma mística unida de sujeito e o objeto. (Breve falaremos dessas duas desfigurações da estética).

Na última etapa evolutiva do materialismo pré-dialético, entre os democratas revolucionários russos, começa a elaboração consciente da ligação indissolúvel entre o reflexo estético da realidade objetiva e a essência antropocêntrica da arte. Tchernichevsqui, o mais enérgico em defender a doutrina do reflexo contra o próprio Hegel e, sobretudo, contra o hegeliano Vischer, escreve sobre o reflexo artístico da realidade: “É preciso acrescentar que o homem contempla em geral a natureza com os olhos do possuidor, e o que lhe parece formoso na terra está relacionado também com a felicidade e bem-estar dos homens”. Tchernichevsqui insiste que também segundo Hegel “o belo natural não tem o significado de belo senão em referência ao homem grande e profundo pensamento! Que belo seria a estética de Hegel se o filósofo tivesse tomado como ideia básica da mesma estes pensamentos que tão magnificamente desenvolve, ao invés de se lançar à quimérica busca da Ideia em sua manifestação perfeita!”(8). Em um capítulo especial falaremos do problema da beleza natural, e ali teremos ocasião nos ocupar das ideias de Hegel e Tchernichevsqui a respeito. Aqui nos limitaremos a indicar que Tchernichevsqui não considera a vinculação da mimese – ele usa ao invés da palavra “imitação”, cujo problema vê claramente, a expressão “reprodução da realidade” – com a essência antropocêntrica do estético como uma novidade que ele deveria introduzir na estética, senão como uma ideia arcaica, ponto de vista natural da consideração do estético. Por isso, além de indicar como vimos, os inconsequentes cognatos de Hegel nesse sentido, afirma com razão que a estética antiga, sobretudo de Platão e Aristóteles, se levantou já sobre esse fundamento. Em seu estudo sobre a Poética de Aristóteles destaca que neste como em Platão nunca aparece a expressão “imitação da natureza”. “Efetivamente, tanto para Platão quanto para Aristóteles, o verdadeiro conteúdo da arte, e especialmente da poesia, não é a natureza, mas a vida do homem. A eles compete a honra de haver pensado sobre o conteúdo da arte exatamente o mesmo que Lessing disse e nenhum de seus continuadores entendeu. Na Poética de Aristóteles não se diz uma só palavra sobre a natureza: como objetos imitados pela arte Aristóteles conta os homens, suas ações, e fatos ocorridos entre os homens”(9). Tchernichevsqui dá uma grande importância ao fato de que quando artistas plásticos da Antiguidade, como Lisipo segundo narrativa de Plínio, falam de imitação da natureza não o fazem no mesmo sentido que os modernos pseudoclássicos, de tal modo que a justificada polêmica contra a chamada teoria da imitação não afeta mais do que a essa deformação, não à doutrina do reflexo. Porém, por outro lado, Tchernichevsqui supera consideravelmente a seus predecessores porque, nas frases antes citadas não se limita a destacar o lugar subjetiva e objetivamente central do homem no reflexo estético da realidade, senão quando afirma que “o homem contempla em geral a natureza com os olhos do possuidor”, com o que – elaborando e concretizando certas intuições de Hegel – Tchernichevsqui empreende o caminho que leva ao materialismo dialético, pois este, como indicamos várias vezes, vê no metabolismo da sociedade com a natureza o objeto do estético e, ao mesmo tempo, o fundamento do qual nascem as necessidades subjetivas da arte e os modos de sua satisfação.

Este importante passo adiante leva entretanto somente até as portas da solução, e não à própria solução, porque Tchernichevsqui, mesmo com mais clareza que Hegel em certos aspectos, se limita a adivinhar, sem reconhecer nem conhecer claramente, o vínculo econômico da humanidade com a natureza. E como não vê com clareza a dialética objetiva da evolução humana, que nasce do desenvolvimento das forças produtivas, a relação estética do homem com a natureza se faz também utópico-aproblemática, anti-dialética. Suas considerações de detalhe e exemplos mostram que ele não vê em geral uma relação estética nem a reconhece senão quando o homem, como dominador da natureza, pode realmente assumir uma atitude aproblemática e positiva em relação à realidade. E quando Tchernichevsqui se vê obrigado, como ocorre a propósito do trágico, a reconhecer e tratar fatos dialéticos, comete simplificações inadmissíveis”(10).

Mostramos repetidamente que todos os critérios e todas as determinações cujo ponto de partida é uma subjetividade a mais pura possível (uma subjetividade que prescinde metodologicamente do mundo dos objetos), têm que desembocar em um formalismo. Se apesar disso analisamos concepções que parecem dessa classe (as de Klopstock, Hemsterhuis, etc.) com cuidadoso detalhe, é que isso era necessário porque nessa análise, apesar do aparente formalismo, se manifestavam algumas das principais determinações da estética. Estas são importantes precisamente do ponto de vista daquelas necessidades que atuam na vida cotidiana dos homens e dão lugar ao nascimento do estético. Por isso está justificado estudar sua natureza, com objetivo de captar concretamente a adequada objetividade da arte para separá-la claramente de uma imaginária subjetividade “pura”, imaginária e abstrata, e, ao mesmo tempo, para reconhecer, diferente do reflexo científico da realidade, a insuperabilidade do momento subjetivo, referido a valores, criador do mundo, no seio da objetividade. Quando falamos de um formalismo no princípio da subjetividade “pura”, o núcleo do problema consiste em que a subjetividade, ao isolá-la, é algo abstrato, uma abstração em relação ao mundo objetivo que a determina, que lhe deu sua riqueza, sua profundidade, etc., e que tem de manter-se junta precisamente da qualidade decisiva da subjetividade, de seu particular e mais individual ser-assim. Não há caminho direto que leve a concretude partindo dessa abstração, porque sua origem está nas impressões do mundo objetivo, porque a abstração em apreço reduz a momentos subjetivo-formais um material tomado do mundo objetivo, e objetivamente elaborado; esse formalismo não pode retransformar-se diretamente em conteúdo. Antes é preciso superar a abstração, fazer que se difunda de novo em uma concreta relação sujeito-objeto, de tal modo que a relação originária e espontânea se converta em consciente. Somente então o realmente essencial das determinações da subjetividade aparece como o que é em si: como momento decisivo e ineliminável da posição estética.


Notas de rodapé:

(1) KLOPSTOCK, Gedanken über die Natur der Poesie [Ideias sobre a natureza da poesia], Leipzig 1830, Werke [Obras], Band [Volume] XVI, p. 36 e ss. (retornar ao texto)

(2) LÉVY-BRUHL, op. cit., p. 34 e ss. (retornar ao texto)

(3) Que em determinados casos a tendência a um cumprimento mundano se apoie conscientemente em uma ideologia sentida também como religiosa, mas discrepante da religião dominante, mostra simplesmente quanto importante é para problemas dessa natureza a teoria de “falsa consciência”. Porém superaria o âmbito desta obra o documentar o assunto com análises concretas, por exemplo, da arte egípcia de O Amarna. [ndt – El Amarna ou Tel El- Amarna é o nome em árabe do local que funcionou como capital da dinastia do faraó Akhenaton, no Egito] (retornar ao texto)

(4) F. BAADER – Schriften zur Gesselschaftsphilosophie [Escritos de filosofia social], Iena, 1925, p. 109. (retornar ao texto)

(5) HEMSTERHUIS, cit., Band [Vol.] I, p. 19 ou 14. (retornar ao texto)

(6) Ibid., p. 14. (retornar ao texto)

(7) BACON, Advancement of Learning [O Progresso do Saber – ndt], Londres, 1906, p. 250. (retornar ao texto)

(8) TCHERNICHEVSQUI, Escritos filosóficos selecionados, ed. Moscou, 1953, p. 374. (retornar ao texto)

(9) Ibid., p. 569 e ss. (retornar ao texto)

(10) Cfr. Sobre este problema meu estudo sobre a estética de Tchernichevsqui em Contribuição à História da Estética, Berlim, 1954, p. 135 e ss., na qual se discutem os fundamentos histórico-sociais dessa sua posição. A correção teórica não se consegue até posicionar-se no terreno do materialismo dialético, mesmo jáem Aristóteles teve complemente nítida que a adequação de princípio do objeto, do “mundo”, ao homem na arte contem em si o problema na íntegra dialética da vida humana, do gênero humano; e mesmo os pontos culminantes do Iluminismo, especialmente Diderot e Lessing, e sobretudo, os do classicismo alemão, como Goethe e Hegel, aprenderam outra vez claramente essa dialética, sem dúvida sem conhecer sua base social. Cfr. sobre este ponto meus estudos sobre o Fausto em Goethe e sua época, Berlim, 1955, p. 186 e ss. (retornar ao texto)

Inclusão: 12/05/2021