Introdução a uma estética marxista
Sobre a particularidade como categoria da estética

Georg Lukács


NOTA EDITORIAL


capa

Dando continuidade ao trabalho de formação político-revolucionária que realiza desde 2012, o Instituto Lukács traz a público mais uma obra de Lukács na sua Coleção Fundamentos. Como já é sabido, as obras que publicamos se insere em um escopo teórico que tem como alicerce os fundamentos teóricos marxianos e marxistas resgatados por Lukács, Mészáros e por outros autores fundamentais que se orientam pela mesma matriz filosófica. Outro de nosso princípio é o trabalho voluntário e a distribuição de nossas publicações pelo valor de custo, razão pela qual o leitor pode adquiri-las a preços bem abaixo daqueles operados no mercado. No caso específico desde livro, o Instituto Lukács contou também com a generosidade de Andréa Teixeira, Natália Coutinho (Viúva e filha de Carlos Nelson Coutinho), Cristina Konder e Carlos Nelson Konder (Viúva e filho de Leandro Konder) que nos cederam gentilmente a tradução desta obra realizada por Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder em meados dos anos de 1960. Tal cessão não somente contribui para o barateamento do valor do livro para os trabalhadores, como, também, coloca à disposição de um público muito mais amplo (como seria desejo de seus tradutores) uma tradução de qualidade.

Dessa maneira, é uma honra dupla para o Instituto Lukács esta publicação. Por um lado por oportunizar o acesso a um dos livros mais lidos de Lukács nas últimas décadas e que se encontra há muito tempo esgotado, por outro lado, por render, através da publicação desta tradução, uma homenagem à Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, filósofos a quem devemos o desenvolvimento de produções teóricas originais, mas também, a divulgação de Lukács e suas obras no Brasil.

Introdução a uma Estética Marxista foi publicada no Brasil em 1968. Lukács iniciou a redação da “grande” Estética na década de 1950, posteriormente à conclusão da A Destruição da Razão, que embora tenha sido redigida em sua maior parte na URSS sob a II Guerra, só recebe redação definitiva em 1954. Já durante os trabalhos de composição da Estética, Lukács sente a necessidade de escrever à parte uma introdução a uma estética marxista. Dessa forma, a obra em questão foi projetada inicialmente por Lukács com o intuito de fazer parte do que seria a “grande” Estética na forma de um capítulo. Todavia, no andamento do projeto vai tomando o escopo de uma introdução à “grande” Estética. Segundo o autor, por se tratar de um dos problemas mais negligenciáveis, porém imprescindível para se entender o campo da arte e do conhecimento, tal obra é publicada em separado. Sobre ela, afirma Lukács em seu prefácio.

O presente estudo, portanto, só em um sentido bastante limitado há de ser considerado como um prolegomenon à minha estética: ele contém, todavia, a abordagem sumária e, no entanto, sempre monográfica de um dos problemas mais importantes de toda a estética. E é isso que pode justificar-lhe a publicação. (p. 19).

Pela importância da temática abordada no que seria “meramente” uma introdução à obra da Estética, o livro Introdução a uma Estética Marxista conquista, em certa medida, uma autonomia em face do formato originário que seria o de uma “simples” apresentação ou de um capítulo de uma obra maior. Essa especificidade que esta obra assume é em larga medida em função do tratamento que aqui recebe a problemática da particularidade estética.

Neste sentido, além de servir de introdução à “grande” Estética, a abordagem acerca da particularidade estética no interior da Introdução a uma estética marxista ganha importância peculiar em relação à “grande” Estética porque a complementa em certos elementos ou a reafirma, em termos sintéticos.

Lukács nos explica no decorrer deste livro que uma das peculiaridades da obra de arte passa pelo modo, e forma, com que as dimensões da singularidade, da particularidade e da universalidade na realidade social são refletidas, e peculiarmente objetivadas numa autêntica obra de arte. Essas dimensões existem e operam objetivamente na realidade natural (regida pela causalidade natural) e na realidade social (regidas pela causalidade social), e se desenvolvem processualmente. As individualidades se movimentam dentro do espaço e tempo denominado de cotidiano. Esse espaço se configura no palco de atuação e de percepção imediata e superficial dessa síntese da realidade social pelos indivíduos; é desse cotidiano que surgem e se desenvolvem os complexos da arte e da ciência, e nele desaguam seus efeitos.

Tanto o primeiro complexo como o segundo têm seu ponto de partida no cotidiano, mas não se limitam a esse espaço e tempo. A arte e a ciência desenvolvem diante das necessidades históricas e sociais sua especificidade e função social na reprodução da humanidade, adquirem sua autonomia relativa ante o complexo fundante do trabalho e da totalidade social. Os dois complexos sociais em questão, a arte e a ciência, partem do cotidiano e retornam a ele enriquecendo-o, compondo esse cotidiano de elementos essenciais para os indivíduos na relação com o gênero humano e sua história.

Por isso, um dos elementos centrais abordado nessa obra é de que a arte se constitui numa autoconsciência fundamental para o desenvolvimento da humanidade. Desse modo, o reflexo estético tem como objeto fundamental o próprio homem, a humanidade, com seus conflitos, seus destinos, suas decisões e, consequentemente, a reflexão dessa humanidade de acordo com o grau de desenvolvimento de cada época histórica. Portanto, cada obra de arte reflete um mundo concreto, determinado historicamente, e assim não há arte fora do mundo. Sobre isso, diz Lukács:

De fato, para o nascimento de qualquer obra de arte, é decisiva precisamente a concreticidade da realidade refletida. Uma arte que pretendesse ultrapassar objetivamente suas bases nacionais, a estrutura classista de sua sociedade, a fase da luta de classe que é nela presente, bem como, subjetivamente, a tomada de posição do autor em face de todas estas questões, destruir-se-ia como arte. (p. 259­260).

Diante desta questão, indaga Lukács à página 262: sendo o objeto imediato da representação artística uma determinada etapa concreta, como essas obras ainda podem provocar na atualidade um prazer estético? E responde:

O que o espectador sente com emoção, no Édipo, é precisamente um destino humano típico, no qual mesmo o homem moderno — ainda que só possa perceber os pressupostos históricos concretos aproximadamente — reconhece com emoção imediata, ao revivê-lo, um mea causa agitur.

A peculiaridade do reflexo estético da obra de arte exerce um efeito e um contraefeito sobre as personalidades dos indivíduos que a produzem e a recepcionam. O prazer estético alcançado pela particularidade da obra de arte, ao refletir o mundo objetivo, cria uma síntese/uma tipicidade de eventos e dramas humanos, e assim o que antes era história da humanidade num passado longínquo pode ser revivido e sentido pelas individualidades do presente.

Mas de onde deriva a força evocativa destes dramas? Acreditamos que resida no fato de que neles é revivido e feito presente precisamente o próprio passado, e este passado não como sendo a vida anterior pessoal de cada indivíduo, mas como a sua vida anterior enquanto pertencente à humanidade. O espectador revive os eventos do mesmo modo, tanto no caso em que assista a obras que representam o presente, como no caso em que a força da arte ofereça à sua experiência fatos que lhe são distantes no tempo ou no espaço, de uma outra nação ou de uma outra classe. (p. 263).

Uma espécie de fruição e de deleite que não passa necessária e primordialmente por uma compreensão racional (científica) da realidade, mas por todos os sentidos, sensibilidades e afetividades humanas, num nível íntimo das individualidades em relação ao mundo. A sua humanidade, o seu pertencimento em relação ao gênero humano contido na obra de arte é colocado em confronto diante de suas experiências adquiridas e forjadas no contato de sua vida singular com o gênero. O fascínio que a arte tem em nos colocar diante de um passado, de um nível de desenvolvimento diferente, mais atrasado que o atual, ou antes, de nos envolver em dramas que são nossos como humanidade, como pertencentes ao gênero humano, mas que apenas pela arte podemos fruir dessa experiência, sentir e vivenciá-la como nossa. Tal fascínio só é possível no interior de uma obra artística.

Do mesmo modo como no ato criativo de uma obra de arte o artista não pode identificar-se direta e simplesmente com sua individualidade cotidiana, já que ele universaliza a si mesmo na objetivação de uma arte que se particulariza, também os indivíduos que a recepcionam elevam-se da mera particularidade do sujeito singular à particularidade estética.

Ele experimenta realidades que de outro modo, na plenitude oferecida pela época, ser-lhe-iam inacessíveis; suas concepções sobre o homem, sobre suas possibilidades reais positivas ou negativas, ampliam-se em proporções inesperadas; mundos que lhe são distantes no espaço e no tempo, na história e nas relações de classe, revelam-se-lhe a experiência de algo que lhe é bastante estranho, mas que ao mesmo tempo pode ser posto em relação com a sua própria vida pessoal, com a sua própria intimidade. (p. 264).

Essa experiência se dá no interior da própria personalidade de cada indivíduo, que é uma personalidade e uma afetividade socialmente construída, e que em contato com uma obra de arte coloca sua individualidade em confronto com as questões sobre o destino e o desenvolvimento da humanidade. Há uma elevação por meio de uma generalização daquela mera individualidade através do mundo da obra de arte; a particularidade estética da obra reflete as grandes questões da humanidade naquele determinado momento histórico.

Diz Lukács: “o conteúdo da obra, e consequentemente o conteúdo de sua eficácia, é a experiência que o indivíduo faz de si mesmo na ampla riqueza de sua vida na sociedade” (p. 265). Essa elevação não se dá para fora de si mesmo, num campo universal puramente subjetivo; ao contrário, dá-se para um aprofundamento da individualidade inserida no particular da obra, num prazer estético, um sujeito que se movimenta no ritmo, no enredo, nos dramas, enfim, que deve subordinar-se ao mundo criado pela arte, inserir-se nele, vivê-lo numa intensidade superior à vivenciada no cotidiano.

Pelo fato de a obra se colocar independente e alheia à sua vontade e desejo, seu único modo de participar desse mundo estético é movimentando-se segundo as leis internas dessa obra. Esta individualidade, assim, não poderá anular, interromper ou impedir o destino dos personagens e dos acontecimentos ali tratados. A totalidade da obra se coloca como um mundo diante do indivíduo, e este sofrerá e sentirá os dramas que são do homem e que são seus, como integrante que é do gênero humano.

Lukács ressalta os limites transformadores dessa experiência em relação à personalidade de cada indivíduo:

Nenhum homem se torna diretamente um outro homem no prazer artístico e através dele. O enriquecimento obtido neste caso é um enriquecimento da sua personalidade, exclusivamente dela. Mas tal personalidade é determinada em sentido classista, nacional, histórico etc. (além de ser, no interior destas determinações, formada por experiências pessoais), sendo também uma vazia ilusão de estetas a convicção de que exista sequer um só homem que possa receber como tábula rasa espiritual uma obra de arte. Não, todas as suas experiências precedentes, que vivem nele sobre a base de sua determinação social, permanecem operantes mesmo durante o prazer estético. (p. 265).

A arte atua sobre a personalidade de cada individualidade, mas essa individualidade, de acordo com Lukács, é forjada por decisões de cada indivíduo diante dos dilemas, conflitos e de situações as mais diversas que ela precisa enfrentar no percurso de sua vida. As possibilidades que se mostrarão como alternativas dessas escolhas encontram-se na objetividade social. Por isso, a determinação histórica se coloca como campo de possibilidades para cada indivíduo tornar-se um este, um tipo, uma personalidade em seu tempo. Uma personalidade que refletirá um tempo histórico, seus limites, suas contradições e suas complexidades.

Nesse sentido, em primeiro lugar, a arte não pode provocar uma transformação que lance um indivíduo para além das possibilidades do seu tempo; tampouco uma experiência catártica ocorre sobre um indivíduo vazio de experiências pessoais anteriores, ou como o autor explica, sobre uma tábula rasa. A experiência catártica, de acordo com Lukács, é o confronto entre duas totalidades: a totalidade das experiências adquiridas por cada indivíduo e a totalidade representada pela obra de arte.

Cada individualidade entrará em luta com a totalidade refletida pela obra de arte, um confronto entre aquilo que compõe suas experiências até então adquiridas diante da vida e aquilo que cada obra de arte revela e expõe sobre os dilemas da vida e o destino dos homens. Dessa maneira, a eficácia da arte será alcançada com a vitória daquilo que a arte põe como significativo perante as velhas convicções daquela personalidade. Há uma ampliação e um aprofundamento das experiências dessa individualidade diante de sua personalidade. Esse enriquecimento normalmente ocorre de maneira indireta e gradual sobre a totalidade de sua conduta, que pode se traduzir (dependendo da obra e da individualidade) numa mudança de ação diante da vida, ou de forma mais relativa e mediada, numa outra concepção ou modelo de conduta perante os fatos da vida.

O elemento comum desse processo é uma transformação do sujeito, um enriquecimento, um aprofundamento, uma comoção dessa individualidade no interior de sua personalidade sobre questões da sua humanidade, da sua relação com o mundo. Pois a arte opera diretamente sobre as questões humanas, suas relações, suas contradições, seus conflitos; e uma obra de arte pode ser experimentada por quem a recepciona, num nível e numa intensidade mais elevada que o mero cotidiano.

A arte

[...] eleva a autoconsciência humana; quando o sujeito receptivo experimenta uma tal realidade em si, nasce nele um para-si do sujeito, uma autoconsciência, a qual não está separada de maneira hostil do mundo exterior, mas antes significa uma relação mais rica e mais profunda de um mundo externo concebido com riqueza e profundidade, ao homem enquanto membro da sociedade, da classe, da nação, enquanto microcosmo autoconsciente no macrocosmo do desenvolvimento da humanidade. (p. 269).

Essa eficácia da arte no final dependerá da qualidade tanto da obra como também daquele que a recepciona. Uma personalidade imatura, ideológica e esteticamente, terá maior dificuldade na receptividade de uma obra de arte. Na mesma medida, uma obra com problemas estéticos em sua forma e no seu conteúdo não possibilitará tal efeito sobre as personalidades. Sob esse aspecto reside a importância fundamental que assume a publicação desta obra pelo Instituto Lukács. Vivemos um período decadente, no qual o capital assume a sua face mais destrutiva, reduzindo o caráter autenticamente humano de todas as relações instituídas pela socialidade e a sombra da barbárie anda sobre os homens, empurrando-os para a direção da regressão do desenvolvimento histórico da humanidade. No campo da arte, esse quadro estimula a produção de obras de arte decadentes e de maneira dialética, os “consumidores”, por sua vez, estimulam a elaboração dessas obras.

A crise que vivenciamos refreia e limita tanto a produção da grande arte hoje, como o conhecimento e a possibilidade do desfrute pelos indivíduos das grandes obras de arte do passado. Há, cada vez mais, um desinteresse dos homens de se aproximarem dos grandes clássicos. A vida rebaixa-se a mera sobrevivência de um cotidiano empobrecedor, em que o futuro incerto e cada vez mais nebuloso incide nas personalidades na forma de apatia em relação às grandes questões da humanidade. Nunca se precisou tanto ler, ouvir, admirar e assistir a uma grande obra de arte, obra esta que lance a individualidade para além do mero isolamento cotidiano. Entretanto, ao mesmo tempo, nunca se viu tanta impossibilidade, resistência etc. ao caminho de tal apreciação. Este obra de Lukács que o IL entrega se torna uma arma teórico-prática contra esse cenário rebaixado da humanidade e empobrecedor dos indivíduos.

Lukács nos ensina aqui, que ao pensarmos sobre o processo de autoconstrução humana em níveis mais elevados, não há como realizarmos isso sem que haja uma apropriação por parte de cada individualidade do que há de mais elevado em relação à ciência e à arte. E mais: se pensarmos na formação de uma personalidade revolucionária, não resta outro caminho que não seja a assimilação dos clássicos da ciência e da arte até então decantados, aliada a uma compreensão e a um domínio da teoria dialética de Marx, Lukács e dos seus principais seguidores. Esse movimento terá sua eficácia e amplitude de acordo com o movimento da totalidade social, da intensificação da luta de classes e da relação dessa luta no tocante às individualidades.

Para Lukács, a arte terá e fará sentido em qualquer forma e modo de produção, tanto a arte do passado como a arte do presente. Sua forma de ver e refletir o mundo dos homens tem como uma de suas características mais essenciais revelar aquilo que não queremos ver. A contradição humana, seja qual for sua forma, sua base social, seu conteúdo, terá sempre na arte um dos seus elementos fundamentais.

A arte, para concluir, para Lukács, é um manual para a vida, pois sempre colocará em contradição e confronto — para aquele que tenha a coragem e o prazer de se aventurar nos seus dramas — a sua estrutura pessoal com os conflitos do mundo, num nível tão íntimo que nenhuma outra forma de reflexo pode desempenhar.

Por esse motivo e por outros que o leitor terá o prazer de descobrir, neste momento de decadência do sistema do capital, faz-se imprescindível a publicação desta obra. Sobretudo porque nela se coloca em relevo a importância do autodesenvolvimento dos indivíduos e da humanidade.

Luciano Accioly Lemos Moreira Talvanes
Eugênio Maceno
Maceió, agosto de 2018


Instituto Lukács
Inclusão: 28/06/2020