A Dança da Morte da ideologia

György Lukács

1933


Fonte: https://medium.com/katharsispodcast/lukacs-musil-decadencia-ideologia-e5a3dbf6297d

Transcrição: Bruno Daniel Bianchi a partir do italiano La danza della morte delle ideologia, presente na coletânea Intellettuali e Irrazionalismo (1987, ETS, editado por Vittoria Franco).

HTML: Fernando Araújo.

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De tudo o que dizemos em geral
Eu não sou bom em nada!
Robert Musil

O grande romance de Robert Musil, ainda inacabado(1), constitui um paradigma da ideologia da elite intelectual alemã que até agora analisamos em geral, ou seja, aquela parte desta intelectualidade que não pretende - pelo menos conscientemente - fazer concessões à fascização geral da vida espiritual na Alemanha. Em sua carreira como escritor, não há concessão ao gosto do público em geral, às tendências dominantes da moda. Ele sempre foi um escritor comprometido para a elite, para os “pouco felizes” stendhalianos. Ele zomba constantemente da forma cultural e literária em que encontra - e que imediatamente conheceremos mais de perto - a maioria das tendências dominantes entre os intelectuais e na literatura. Ele sempre se opôs aos seus contemporâneos também no plano estilístico: ele não participou nem da confusão impressionista nem da afetação expressionista da prosa alemã; escreve num estilo quase cientificamente transparente, claro, simples e equilibrado daqueles que estão familiarizados com os clássicos, apesar da grande plasticidade das suas figuras e descrições. É também por isso que ele nunca se tornou popular. Especialmente com seu último romance, porém, ele se tornou uma celebridade "esotérica" para os iniciados, para a vanguarda espiritual da intelligentsia esquerdista dos anos antes da tomada do poder por Hitler.

A cientificidade do seu estilo não é algo externo. Musil difere da maioria de seus contemporâneos e colegas de classe em que, no período do imperialismo e da fascistização, não participou do crescente desprezo da filosofia de vida pelo intelecto. Recusa-se a aceitar o impraticável, quer ter sempre terreno sólido debaixo dos pés; é um racionalista. A peculiaridade do tema literário e, portanto, do método criativo de Musil consiste antes no fato de que com esta visão de mundo [Weltanschauung] e com este método ele aborda os problemas espirituais da elite intelectual de hoje. Com os métodos de uma ciência exata, como ele a entende, ele quer verificar que coerência íntima e que conteúdo de verdade estes problemas espirituais contêm. Ele é, portanto, um experimentador muito preciso, um engenheiro que racionaliza as emoções mais refinadas da elite intelectual contemporânea. Nada escapa a suas críticas agudas, não há nada que ele considere tão sagrado e indemonstrável a ponto de não o submeter à análise mais exata.

No entanto, este radicalismo intelectual que não se detém em nada, se detém nas questões mais fundamentais. E isto é Musil aceita este objeto de sua investigação sem qualquer crítica, como um fato. Nem sequer lhe ocorre perguntar a si mesmo, em geral, em que base real podem surgir essas emoções espirituais que ele analisa. Segundo ele, eles devem ser assumidos como já dados em indivíduos vivos, como fatos a serem analisados. Não que caia em um empirismo vulgar. Ele compara exatamente estes fatos uns com os outros, e faz emergir o elemento comum, o típico, mesmo em fenômenos aparentemente distantes um do outro. Nunca lhe escapa, como veremos, que os fenômenos espirituais estão ligados ao mundo econômico-social, que entre a atitude espiritual de um homem e as ações sociais existem relações contraditórias, paradoxais e ao mesmo tempo típicas. Mas tudo isso acontece para ele no plano do espírito. O que ele busca, portanto, não é a investigação da verdadeira gênese de tais fenômenos, nem sua real derivação de suas causas reais, mas sim uma exatidão imanente e uma validez das emoções espirituais. Ele busca a "autenticidade" das experiências espirituais da vida interior do homem de nosso tempo, ele destrói com crítica aguda tudo aquilo em que se esconde uma contradição íntima, uma mentira consciente ou inconsciente, uma auto-enganação mais ou menos consciente, etc. Esta crítica, no entanto, é puramente imanente. Quer encontrar exatamente estes mesmos conteúdos e estas mesmas formas de vida espiritual, quer encontrar nesta vida espiritual uma base sólida para os mesmos, ou muito semelhantes, sentimentos, experiências, pensamentos, ações. Ele diz de seu herói ao encerrar a parte publicada até agora: "Ulrich sabia que era realmente obscuro. Não pensava nem numa ‘vida de pesquisador’ nem numa vida ‘à luz da ciência’, mas numa ‘busca do sentimento’, semelhante à busca da verdade, apenas não se trata da verdade”. E precisamente neste sentido, num "diálogo sagrado" com sua irmã, o protagonista diz sobre o propósito de sua pesquisa, sobre sua vida: “Estou-me instruindo sobre os caminhos da vida santa. [...] Não precisa rir. Não sou devoto; analiso o caminho sagrado perguntando se também poderia andar de automóvel sobre ele!”.

Musil, portanto, defende aqui uma nuance particular de ateísmo religioso. O conteúdo imediato das antigas religiões para ele, como para a maioria dos melhores membros de sua classe, não é mais levado a sério. Em contraste, ele, como a maioria desta classe, tem uma experiência muito viva de como a vida interior do homem moderno (que Musil ingenuamente se identifica, inconscientemente, principalmente com o intelectual) se tornou insubstancial, desintegrada, insincera e como a moral das antigas religiões lhe deu grande estabilidade. É, portanto, a nostalgia romântica habitual pela religião do intelectual desarticulado. É uma reação espontânea e imediata, não mais analisada, desta classe à decadência ideológica no período de declínio do capitalismo, que aqui se manifesta de forma obviamente imediata e espontânea na esfera ideológica e especialmente na esfera moral. Os fenômenos resultantes do declínio do capitalismo são vividos de forma muito violenta, suas causas permanecem desconhecidas e, portanto, a reação espontânea é uma fuga para a ideologia pré-capitalista. Socialmente falando, este fenômeno é semelhante ao assalto a lojas de departamento por pequenos comerciantes. E apesar da diferença no nível cultural do argumento, o conteúdo social, o nível da investigação das causas sociais da condição da própria classe, desintegrada pelo capitalismo, permanece o mesmo. E apesar da diferença no nível cultural do argumento, o conteúdo social, o nível da investigação das causas sociais da condição da própria classe, desintegrada pelo capitalismo, permanece o mesmo. Certamente, em Musil o caso é algo diferente da maioria de seus contemporâneos e colegas de classe, que, diante da dissolução da ideologia burguesa na crise geral do capitalismo, retornam a um abismo nas antigas religiões ou nos novos mitos do movimento de fascistização. No entanto, a fuga também está presente em Musil. Somente que ele - como um intelectual subjetivamente honesto - não quer abandonar o terreno instável da ideologia sem encontrar com seu método de medição das disposições mais sutis da alma um solo sólido, uma ponte que resista a todas as evidências sobre tais materiais e tais cargas. O protagonista, que se torna cada vez mais idêntico a ele, portanto, estuda cuidadosamente tanto as antigas experiências "religiosas" de santos e profetas como as de seus contemporâneos que aceitam cegamente os místico-religiosos. Ele [Musil] também, como eles, a partir de prescrições morais religiosas, cria normas morais para a crítica do presente. Então suspira ceticamente: "É uma grande pena que os estudiosos das ciências exatas não tenham perspectivas!". Até agora, enquanto esta questão não estiver clara e até que a "vida santa" seja construída de forma tão sólida que possa ser percorrida de carro, Musil e seu herói permanecem suspensos em uma posição relativista e radicalmente céticos.

Este Musil cético, no entanto, é um cético satírico e batalhador. Ele despreza profundamente os intelectuais modernos que, muito levianamente e sem sentir sua resistência, constroem uma ponte entre a religião e as necessidades dos homens modernos, que para a degradação dos sentimentos ou mesmo para fins egoístas, enganosos ou auto-enganosos, praticam a confusão impura e inexata entre religião e ciência, entre religião e necessidades humanas modernas. Seu ódio mais profundo - e aqui a honestidade pessoal de seu sentimento inconscientemente anticapitalista se manifesta - se concentra naqueles tipos que usam esta confusão entre sentimento e pensamento para fazer apologia do sistema atual, para operar a "síntese" entre negócios e alma, entre capitalismo e religião. Em seu romance Musil retrata este tipo - tomando emprestados traços facilmente reconhecíveis de Walter Rathenau para descrever seu mundo de idéias e destino exterior - como um "comerciante principesco" que quer tecer "negócios e idealismo", "idéias e poder", "alma e economia" em uma unidade harmoniosa. Musil vê muito claramente que a base de tal síntese na visão de mundo é a separação exata na vida. Diz ele sobre Arnheim (assim ele chama a figura de Rathenau em seu romance): “Quando estava sentado em um de seus escritórios de direção, examinando cálculos de faturamento, teria-se envergonhado de qualquer pensamento não-técnico ou comercial; mas, assim que o dinheiro da firma não estava em jogo, teria sentido vergonha de não pensar de maneira oposta, e de não exigir que o ser humano fosse capacitado a ascender na vida por outros meios que não o descaminho da regularidade, regulamento, norma e similares, cujos resultados são tão exteriores e, afinal, tão supérfluos. Não há dúvida de que designamos esse outro caminho por religião; ele escrevera livros sobre o assunto”.

Esta religião é então para Arnheim-Rathenau um excelente meio de ganhar pessoalmente fama mundial como escritor, de brilhar como um homem de renome internacional em alguns salões europeus e, ao mesmo tempo, de usar a glória destas relações para uma diplomacia comercial grandiosa. O olhar satírico aguçado de Musil, que aqui esclarece a ligação entre o irracionalismo imperial-fascista e o comércio do capitalismo monopolista, no entanto, mostra imediatamente como ele se limita à mera ideologia assim que deixa o campo das observações puras e corretas. De fato, sua sátira não se dirige ao belo parasita anímico do capitalismo reacionário monopolista que se dissolve, mas à falta de "honestidade intelectual" de Arnheim; não odeia nele o explorador, o apologista do capitalismo, simplesmente despreza sua confusão de pensamento e sentimento, a baixeza de seus princípios morais. Mas, apesar de tudo, aqui conseguimos uma sátira às vezes brilhante. Musil fornece vários detalhes deste personagem. Ele o representa, entre outras coisas, em uma conversa com seu deus e o faz expressar nestes termos sobre a melhor organização do mundo: “’O capitalismo, como organização do egocentrismo segundo a hierarquia da capacidade de obter dinheiro, é a ordem mais elevada e mais humana que conseguimos criar em Sua honra, Senhor; a atividade não tem critério de medida mais preciso do que esse!’. E Arnheim teria aconselhado o Senhor a organizar o Milênio segundo critérios comerciais, e entregar sua administração a um grande empresário, que naturalmente também teria de ter cultura filosófica universal”. A sátira de Musil deste tipo é portanto - apesar das limitações a que aludimos - sutil, bem sucedida e viva, pois não apenas descreve a separação exata entre comércio e alma na vida e o predomínio da alma no pensamento, mas ao mesmo tempo demonstra, uma e outra vez, como nos sentimentos, ações e pensamentos sublimes de Arnheim, por trás do manto metafísico com o qual é coberto, o cálculo capitalista sempre reaparece. Então ele faz Arnheim dizer, depois de uma grande tragédia amorosa: “Um homem consciente de sua responsabilidade, mesmo quando dá de presente sua alma, deve sacrificar apenas os juros, jamais o capital!”.

Estas duas figuras, cujas constantes escaramuças constituem uma parte importante do romance, estão incluídas em uma ação cuja invenção demonstra as qualidades satíricas não indiferentes de Musil. O romance foi escrito nos anos imediatamente anteriores à guerra e descreve os maiores expoentes intelectuais da alta sociedade austríaca. Trata-se de uma grande "Ação Patriótica" que, concebida por um aristocrata austríaco, é levada a cabo pela alta burocracia e pela intelectualidade. A Ação consiste na preparação de um grande feriado nacional para o 70º aniversário da ascensão ao trono do Imperador Francisco José I. Todos estão entusiasmados com esta "grande festa". É apenas uma questão de encontrar uma ideia concreta, um conteúdo concreto para esta ação. Diante de nós todos os tipos de elite cultural austríaca estão às voltas, cada uma faz propostas "extraordinariamente espirituais" ou "particularmente profundas" e todas elas são discutidas em profundidade e com participação, no mais alto nível da espiritualidade moderna, e toda vez que se conclui que as decisões finais ainda não podem ser tomadas, que um comitê especial deve ser nomeado para elaborar uma proposta final, que uma preparação especial é necessária. Todos dizem que a "ideia central" da grande ação deve nascer imediatamente, mas ninguém pode dizer qual deve ser esta ideia. Todos dizem que algo deve acontecer imediatamente, mas ninguém pode dizer o que é.

A força satírica desta ação principal se expressa antes de tudo no fato de que Musil é capaz de ter todos os círculos da mais alta espiritualidade, do clero à alta burocracia, aos literatos e professores universitários, no fato de que em cada discussão eles colocam em ação toda a frota de suas ideologias, que os torneios espirituais são realizados no mais alto nível em todos os assuntos de interesse dos intelectuais e que nada sai de tudo isso. Já o contraste entre a grande ostentação cultural e o ridículo cortês-burocratismo da ocasião produz fortes efeitos satíricos. Este efeito é ainda maior pelo contraste entre a seriedade dos esforços espirituais e a total improdutividade de seus resultados. A "impotência do espírito", sobre a qual Max Scheler escreveu após a guerra e que teve muita influência, a impotência do espírito intelectual burguês diante dos problemas mais simples da realidade prática talvez em nenhum outro romance moderno tenha sido representado de forma tão eficaz. Musil parece estar acima de todos os seus personagens. Ele é capaz de expressar, da forma mais intelectualmente e culturalmente elevada, todas as nuances ideológicas da atual intelectualidade burguesa, de tal forma que não apenas a tendência ideológica em questão é adequadamente expressa, mas sua dialética imanente também é esclarecida de forma satírica: tão claramente suas contradições internas, assim como suas contradições com respeito à realidade, vêm à tona. Em torno da "Ação Patriótica", igualmente ridícula por fora e por dentro, realiza-se uma verdadeira dança macabra das ideologias burguesas modernas. Cada nuance ideológica persegue a si mesma e seu adversário em uma rotunda entre o sério e o irônico rumo à morte e descobre impiedosamente o vazio, a ausência de conteúdo e a insinceridade íntima de si mesma e de seus adversários.

O ridículo grotesco desta dança macabra é ainda mais acentuado pelo fato de que os participantes fazem todos os seus interesses particulares e comerciais convergir na ação. O "comerciante principesco" Arnheim faz as mais brilhantes preleções sobre o reino da alma nos salões para comprar campos de petróleo galegos para sua empresa, com a ajuda e por trás da tela da Ação, e obter certas ordens do Ministério da Guerra. Um sábio general do Ministério da Guerra participa de todas as discussões de forma muito assídua e desajeitada, ele tenta entender as diferentes orientações culturais, mas também usa a Ação para obter financiamento para o Ministério da Guerra e para aumentar a artilharia. E o aristocrata conservador, que tinha tido a idéia de ação, a usa por outro lado para derrubar, através de intrigas judiciais, o ministro do Interior de quem não gostava. Em torno dessas grandes intrigas, muitas outras intrigas amorosas e de carreira acontecem. A grande queima de ideologias praticamente serve para cozinhar sopas privadas.

A sátira social e a crítica ideológica de Musil seria, portanto, interessante, corajosa e bela. Mas esse limite invisível, do qual falamos em detalhes, ressurge constantemente e quebra precisamente os pontos decisivos de qualquer impulso satírico. Este limite não é o resultado de um compromisso, mas o próprio limite de sua visão de mundo. Ele faz uma ironia afiada sobre a Áustria pré-guerra e sua sátira se estende a todas as questões atuais da intelligentsia alemã durante o período de fascistização. Mas esta ironia é o espírito de quem está dentro da coisa até o fim, de um homem cujo horizonte não vai além daqueles sobre os quais ele é irônico. Ele zomba, por exemplo, do amadorismo político de seu aristocrata no que diz respeito à questão nacional austríaca. Entretanto, quando, como autor, ele quer contrastar essas fantasias amadoras com o estado real das coisas, surgem os clichês dos editoriais liberais dos jornais, apenas ironicamente formulados e autoironicamente disfarçados. E assim em todos os outros assuntos. É, por exemplo, muito engraçado para Musil fazer de um amador de arte histérico a proposta de celebrar o ano jubilar como o ano de Nietzsche. Mas algumas páginas antes ou depois, surgem ideias e métodos nietzscheanos, com ou sem referência explícita a Nietzsche, sobre os quais Musil não ironiza nada, mas considera como uma aplicação séria da conduta ética da vida que ele buscava.

O fato de o autor permanecer enredado dentro de limites invisíveis faz com que toda a obra discorde. E, em particular, o personagem principal. Este (Ulrich) deve ser o adversário intelectual honesto deste cabaré de ideologias, sua busca honesta por uma base sólida deve representar o contraste do qual a nulidade, a estupidez e a desonestidade dos outros são ironicamente iluminadas. Mas o que Ulrich praticamente contrapõe à charada da "Ação Patriótica"? Antes de tudo, ele se vê participando da Ação por várias desventuras pessoais; ele se torna secretário do aristocrata de quem a iniciativa começou e depois secretário de toda a Ação. É claro que ele próprio não leva seu papel muito a sério. Ele coleta todos os arquivos e propostas que chegam e se reporta à sua contagem de forma irônica: “o mundo inteiro parece esperar melhorias de nós, e metade deles começa com as palavras ‘Libertemo-nos de...’ enquanto a outra metade começa com “Avancemos até...!’ Tenho aqui pedidos que vão desde ‘Libertemo-nos de Roma’ até ‘Avancemos até a cultura de legumes!’ Qual deles prefere?”. Mas esta sabotagem irônica, esta participação ridiculamente reservada não significa de forma alguma que as crenças mais sérias de Ulrich estejam em um nível mais elevado de conhecimento de conexões reais do que aquelas de que ele ri e sobre as quais ele ri. De fato, ele pensa e apresenta até mesmo suas crenças mais sérias com uma reserva irônica e que zomba constantemente delas. E, no entanto, este escárnio é amargamente impotente. Musil, de fato, como um verdadeiro artista, uma vez desejado e criado um personagem, ele traz à tona tudo o que está dentro dele e somente isto e é forçado a dar uma certa direção à linha de desenvolvimento do pensamento de seu herói, apesar da contínua autoironia e irônica reserva. E esta direção é muito significativa não só para o personagem, mas também para o próprio Musil, pois expressa claramente os limites de seu pensamento, sua permanência no horizonte do mundo que zomba.

Em uma importante conversa privada entre os mais altos representantes da Ação, Ulrich faz a seguinte proposta: “dar início a um inventário intelectual geral! Temos que fazer mais ou menos o que teríamos que fazer se em 1918 começasse o Juízo Final, com respectivo encerramento do velho espírito, e começo de outro, mais elevado. Funde, em nome de Sua Majestade, um Secretariado Terreno da Precisão e da Alma; antes disso, todas as outras tarefas serão insolúveis ou simplesmente aparentes!” E mais tarde, em um dos "diálogos sagrados" com sua irmã, a única pessoa que ama e leva a sério, ele explica esta proposta nos termos a seguir: “O que se deveria fazer? Em casa de nossa prima, certa vez sugeri ao Conde Leinsdorf que fundasse um Secretariado Universal da Precisão e da Alma, para que também as pessoas que não vão à igreja soubessem o que fazer. Naturalmente, eu disse isso só de brincadeira, pois já há muito tempo criamos a ciência para a verdade, mas se quiséssemos pedir algo semelhante para o resto, hoje em dia quase nos teríamos de envergonhar por estarmos fazendo alguma tolice. Mesmo assim, tudo o que até aqui falamos nos conduziria a esse Secretariado!”. Em uma conversa posterior entre as próprias personalidades da Ação, ele retorna novamente a esta proposta: "Nota, diz ele a seu Conde, que o mundo hoje não se lembra mais do que desejou ontem, que está em estados de ânimo que mudam sem motivo suficiente, e que está sempre existado, que nunca chega a resultado algum e, quando se imaginasse reunido numa só cabeça tudo o que se passa nas cabeças dos homens, ela realmente mostraria uma série de conhecidos sintomas de deficiência mental”.

Vejamos, então, que se trata de dirigir pela estrada sagrada. Ulrich é constantemente irônico sobre a moralidade atual em favor de uma moral mais elevada, de "exatidão fantástica". No entanto, o que você se opõe é, simplesmente, esta "exatidão fantástica". Musil diz de suas intenções: “Moral para ele não era nem tutela, nem sabedoria de pensamentos, mas todo o infinito das possibilidades de vida. Ele acreditava numa capacidade de ascensão da moral. [...] Acreditava na moral sem acreditar numa moral determinada. Habitualmente entende-se por moral uma espécie de exigências policiais que mantêm a vida em ordem; e como a vida não obedece nem mesmo a elas, assumem a aparência de não serem totalmente exequíveis, e dessa maneira precária também a aparência de serem um ideal. Mas não se deve rebaixar a moral a esse ponto. Moral é fantasia. [...] Fantasia não é arbítrio. Se entregarmos a fantasia ao arbítrio, não ficaremos impunes”. Ulrich quer, portanto, trazer ordem à confusão ideológica do período decadente do capitalismo por meio deste " Secretariado Terreno da Precisão e da Alma ", através da moralidade, e esta intuição dele não é apenas sua convicção profunda e honesta, mas também - apesar de toda a autoironia - a de seu autor.

Para onde vai esta estrada? Já vimos que Musil persegue a estupidez confusa das ideologias intelectuais burguesas com a mais amarga ironia. E, em particular, um inimigo declarado do desprezo pelo intelecto e pela exatidão, da dissolução dos sentimentos, do irracionalismo místico, da canonização da raça, em uma palavra de todas aquelas correntes ideológicas que mais tarde fluíram para o fascismo. A julgar por suas intenções, ele é, portanto, tudo menos um reacionário ou obscurantista. E, como um intelectual de nível cultural superior, ele despreza igualmente os remanescentes insignificantes da ideologia liberal-burguesa. Mas, como ele busca seu caminho neste emaranhado e tem apenas sua "exatidão fantástica" como bússola, ele deve necessariamente aproximar-se do misticismo religioso. Que este misticismo é ateu não muda nada na realidade dos fatos. Já ouvimos dizer que o famoso Secretariado Terreno tem a tarefa de substituir, para os homens que se tornaram irreligiosos, os mandamentos da igreja, a sujeição de seus atos a ela. O aristocrata conservador e religioso de quem ele é secretário não se deixa enganar pelos paradoxos irônicos de Ulrich. E com a perfeita consciência de classe de um reacionário convicto ele lhe diz: "Aliás, eu sempre soube que no senhor existe escondido um católico razoável!" E Ulrich responde: “Eu sou um muito mau católico. Não creio que Deus veio, mas que virá. Mas só se lhe encurtarmos mais o caminho do que o temos feito até hoje!” E em uma conversa com sua irmã, ele faz a seguinte confissão: “Você me perguntou em que acredito! Creio que se pode provar mil vezes por razões válidas que uma coisa é boba ou bela, e me será indiferente, e eu só me orientarei segundo os sinais em mim: se sua presença me eleva ou me arrasta para baixo! [...] Mas também não consigo provar nada. E até estou convencido de que um ser humano que cede a isso está perdido. Perde-se na penumbra. No nevoeiro e no palavrório. Em um tédio informe. Se você retirar da nossa vida o que é unívoco, resta um tanque de carpas sem o lúcio que as persiga. [...] Portanto, não creio! Mas especialmente não creio na dominação do mal pelo bem, que forma a nossa confusa cultura: isso me repugna! Portanto, creio e não creio! Mas talvez creia que em algum tempo as pessoas se tomem em parte inteligentes, em parte místicas. Talvez nossa moral já hoje esteja se dividindo nesses dois elementos. Eu também poderia dizer: em matemática e mística. Em melhoria prática, e aventura desconhecida!”.

Para onde esta estrada vai então? Vimos que isso leva ideologicamente a uma relação irônica, de boa vizinhança, com uma reação educada e espiritualmente elevada. Os reacionários inteligentes compreendem muito bem que a nuance matemática do ateísmo religioso de Musil, da criação de Deus como a mais alta ocupação para os intelectuais, é um excelente dispositivo de segurança para o sistema existente. Apesar de todos os seus paradoxos irônicos, este Ulrich (e seu autor) continua sendo um suporte da sociedade. O papel conservador de seu hiperradicalismo intelectual vem à tona ainda mais claramente se dermos uma breve olhada em sua maneira de agir. Já vimos seu papel como secretário da Ação Patriótica. Ao mesmo tempo, ele tem aventuras triviais com as mulheres, motivadas apenas por observações irônicas. O desprezo pela moralidade em vigor o induz a protestar algumas vezes.

O desprezo pela moralidade às vezes torna o crime e o perpetrador atraente. Ele tem a ideia de salvar o assassino de uma prostituta condenado à morte. Mas mesmo esta ação, cuja falta de sentido não precisa de comentários, se dissolve em ironia e até se torna desconfortável e desagradável para ele, quando é empurrado adiante por uma admiradora histérica. Da mesma forma, ele e sua irmã estão brincando com a ideia de vingança contra o odiado cunhado filisteu. Mas quando sua irmã leva a vingança a sério e forja a vontade de seu pai para que seu cunhado seja expulso, esta ação em sua mente também se dissolve em reflexos irônicos e autodepreciativos.

Portanto, nada acontece. Nem mesmo na área restrita da vida privada. Quando um amigo estúpido de sua juventude em uma conversa o reprova de que toda sua filosofia leva à "ganhar a vida" na velha Áustria, ele chega muito perto da verdade. O misticismo cético de Ulrich (e Musil) leva até mesmo a uma sanção teórica de não fazer nada. Seu radicalismo intelectual muitas vezes se concentra na fórmula da "abolição da realidade", ou seja, a necessidade de forjar e viver a realidade como faz a poesia; em outras palavras, sobre o princípio da oposição rígida e irreconciliável entre interpretação e transformação da realidade, em uma rejeição radical da tentativa de transformação como uma atividade vazia e apenas aparentemente importante. (Nos exemplos práticos do mundo que ele faz há, é claro, o julgamento de Musil). O hiperradicalismo de Ulrich opera da maneira mais peculiar e significativa nesta mesma rejeição de qualquer prática. Não apenas na desintegração e dissolução irônicas da atividade vazia dos homens, da falta de sentido de suas ações e de seus impulsos, mas também em seu princípio. “Pois uma pessoa boa não melhora o mundo em nada, não realiza nada com o mundo, apenas se isola dele!”. E depois de uma longa conversa irônico-mística com sua irmã no "Reino Milenar", o seguinte diálogo ocorre entre os dois: “Vivemos num tempo em que a moral está se dissolvendo ou contorcendo-se. Mas por amor a um mundo que ainda está por vir, devemos nos manter puros! – Então você acha que isso tem alguma influência, o fato de esse mundo vir ou não? – objetou Ágata. – Não, infelizmente não creio nisso. Quando muito, acredito que se também as pessoas que vêem isso não agem direito, ele certamente não sobreviverá, e não se poderá deter a decadência! – Mas de que lhe adianta que em quinhentos anos as coisas sejam diferentes ou não? – Ulrich hesitou: ‘eu cumpro meu dever, entende? Talvez como um soldado’”.

Então, para onde vai esta estrada? A resposta não é tão difícil, acreditamos: direto para um bom quarto no Grand Hotel “Abismo”. Todo o desdobramento de energia intelectual, moral e poética de Musil neste romance - que representa a síntese dos esforços ideais e literários de toda sua vida - serve simplesmente para manter os intelectuais desesperados pela crise cultural e o início de sua dissolução pela cultura capitalista, em um desespero narcisista e autocomplacente, para ensiná-los a assentar à beira do abismo e a olhar para aqueles colegas de classe que não conseguem se elevar ao auge deste pessimismo irônico-quietista, que não se contentam em contribuir com seu "permanecer puro" para o advento do "reino milenar", no qual nem mesmo eles acreditam.

É o destino tragicômico de Musil que ele, que odeia tanto a deboche dos sentimentos da intelectualidade desintegrada, que durante toda sua atividade como escritor se recusou tenazmente a oferecer passatempos intelectuais aos fanfarrões, ao invés oferece objetivamente nada mais que diversão aos parasitas. Ele considera a dança macabra das ideologias modernas representadas por ele de uma maneira amargamente séria e amargamente trágica. Não é sua falha pessoal que o que ele descreveu como uma grande "tragédia cômica" do presente se tornou objetivamente uma banda de Jazz intelectual do Grand Hotel “Abismo”. De fato, dentro dos limites invisíveis de sua forma de colocar problemas, Musil está no mais alto nível possível para sua classe, tanto por sua capacidade artística e intelectual de dominar o assunto, quanto pela honestidade e sinceridade de suas convicções pessoais. O caráter relativamente elevado de sua produção faz de seu trabalho um exemplo interessante da situação espiritual de uma certa parte da elite da intelligentsia alemã. E, por outro lado, precisamente esta elevação de seu trabalho dá a medida da profundidade da crise cultural da burguesia de hoje, da profundidade do nível que atingiu o processo geral de decadência de sua classe. Portanto, não é difícil mostrar este processo de decadência na produção média dos escritores contemporâneos; ele é muito evidente. Mas aqui, onde todos os detalhes são realmente elaborados tanto intelectualmente quanto artisticamente, emerge com impressionante clareza aquilo a que este processo de decadência já levou. Não estamos falando de desespero ou da autodissolução das ideologias. A literatura burguesa há muito tempo produziu obras cuja tendência fundamental tem sido a destruição de todas as visões e posições possíveis da classe dominante. Bouvard et Pécuchet e La tentation de Saint Antoine de Flaubert, Wildente de Ibsen são exemplos particularmente significativos de tais tendências ao desespero. Mas Flaubert e Ibsen estavam realmente e sinceramente desesperados por sua classe, eles realmente e sinceramente odiavam sua classe e sua ideologia, eles realmente e sinceramente buscavam uma saída para isso; seu desespero é, portanto, profundo e comovente porque está no final de um esforço desesperado e vaidoso para romper com a classe odiada e elevar-se acima de seu horizonte. A tendência parasitária, que - como Lênin demonstrou - é a tendência geral fundamental da era imperialista, em nosso caso consiste no fato de que, por um lado, a dissolução objetiva da ideologia de classe se tornou muito mais violenta, de modo que assim, para todas as possibilidades objetivas, foi dada uma chance maior de superar os estreitos limites do horizonte burguês. Mas, por outro lado, o parasitismo se manifesta precisamente no fato de que a autocrítica da dissolução, a descrença na ideologia da própria classe, a rejeição e o desprezo por suas formas sociais perdem em veemência e pathos, no fato de que esta tendência se adapta com ironia complacente ao sistema que despreza e concebe uma ideologia que lhes permite, apesar de todo o desprezo pela própria classe, a tolerância pacífica da permanência de sua dominação e a desintegração que ela implica. Você salva sua consciência intelectual e moral com críticas radicalmente irônicas, mas se detém nesta ironia. No início dos anos pós-guerra, Thomas Mann escreveu algo semelhante a um romance ideológico-parasitário, embora não do nível intelectual de Musil, A Montanha Mágica. Também aqui, as várias ideologias burguesas se dissolvem mutuamente em nada. Mas Thomas Mann ainda é um ideólogo consciente da burguesia: à dissolução intelectual geral e total ele contrasta o "comportamento" simples e lacônico de um simples cidadão e faz com que seus personagens sejam moralmente curados, destruídos em infinitas e estéreis discussões, nos "banhos ferruginosos" da Guerra Mundial. Em Musil, o processo de dissolução está em um estágio muito mais avançado. Diante de seus olhos não há mais nada de burguês que tenha um valor positivo, mas é precisamente deste desespero geral que ele tira seus argumentos céticos e místicos sobre o a existência desprezada. Para o mundo burguês que ele vê, e da maneira como ele o vê, ainda há apenas o problema: com que a ideologia crítica ou rebelde se adapta praticamente ao existente; e, portanto, apenas o dilema de se essa adaptação deve ocorrer na forma filisteia ou patológica, em que mistura de autoengano consciente ou inconsciente. A honestidade pessoal e do escritor Musil está fora de questão, mas seu trabalho não passa de um trabalho sofisticado, dominado por instrumentos notáveis: "De tudo o que dizemos em geral, nada vai bem".


Notas de rodapé:

(1) Os dois primeiros volumes do romance apareceram em 1930 e 1933 na editora Rohwolt em Berlim. (retornar ao texto)

Inclusão: 16/02/2021