Sobre a Importância do Ouro agora e depois da Vitória Completa do Socialismo

V. I. Lénine

6-7 de novembro de 1921

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Publicado: em 6 e 7 de Novembro de 1921 no nº 251 do Pravda
Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Edições "Avante!", 1977, t3, pp 551-556.
Tradução: Edições "Avante!" com base nas Obras Completas de V. I. Lénine, 5.ª ed. em russo, t.44, pp. 221-229.
Transcrição e HTML: Manuel Gouveia
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Edições "Avante!" — Edições Progresso Lisboa — Moscovo.

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A melhor maneira de comemorar o aniversário da grande revolução é concentrar a atenção nas tarefas que ela ainda não realizou. Semelhante comemoração da revolução é particularmente oportuna e necessária nos casos em que existem tarefas fundamentais ainda não resolvidas pela revolução, quando há que assimilar algo de novo (do ponto de vista daquilo que a revolução realizou até agora) para resolver estas tarefas.

No momento actual, aquilo que é novo para a nossa revolução é a necessidade de recorrer ao método de acção «reformista», gradual, de prudente rodeio nas questão fundamentais da construção económica. Esta «novidade» suscita uma série de questões, perplexidades e dúvidas, tanto teóricas como práticas.

Uma questão teórica: como explicar a passagem, depois de uma série de acções revolucionárias, a acções extraordinariamente «reformistas» no mesmo terreno, apesar da marcha geral vitoriosa de toda a a revolução no seu conjunto? Não será isso um «abandono de posições», um «reconhecimento de falência» ou algo parecido? Como é natural, os inimigos, começando pelos reaccionários de tipo semifeudal e acabando nos mencheviques ou outros cavalheiros da Internacional II 1/2, dizem que sim. Mas estão no seu papel de inimigos ao gritar declarações desse tipo, a qualquer pretexto ou sem pretexto algum. A comovedora unidade de todos os partidos — desde os feudais até aos mencheviques — nesta questão apenas demonstra uma vez mais que, contra a revolução proletária, todos esses partidos constituem verdadeiramente «uma só massa reaccionária» (como o previu Engels, diga-se entre parênteses, nas suas cartas a Bebel em 1875 e 1884)(N278).

Mas também entre os amigos há uma certa ... «perplexidade».

Restabeleceremos a grande indústria e organizaremos a troca directa dos seus produtos pelos da pequena agricultura camponesa, contribuindo para a socialização desta. Para restabelecer a grande indústria, tomaremos aos camponeses, a título de empréstimo, uma determinada quantidade de víveres e de matérias-primas, através da requisição. Tal é o plano (ou método ou sistema) que aplicámos durante mais de três anos, até à Primavera de 1921. Era uma forma revolucionária de abordar a tarefa, no sentido de uma destruição directa e total da velha estrutura económico-social para a substituir por uma nova.

Desde a Primavera de 1921, colocamos no lugar (ainda não «colocamos» mas apenas estamos a «colocar» e sem ter ainda plena consciência disso) desta abordagem, plano, método ou sistema de acção, um tipo completamente diferente, reformista: não demolir a velha estrutura económico-social, o comércio, a pequena exploração, a pequena empresa, o capitalismo, mas reanimar o comércio, a pequena empresa, o capitalismo, dominando-os prudentemente e de modo gradual, ou obtendo a possibilidade de os submeter à regulação estatal apenas na medida da sua reanimação.

É uma forma completamente diferente de abordar a tarefa. Em comparação com a anterior, revolucionária, esta é uma abordagem reformista (a revolução é uma transformação que destrói o velho naquilo que é mais fundamental e radical, em vez de o transformar com prudência, lenta e gradualmente, procurando demolir o menos possível).

Pergunta-se: se depois de ter experimentado os métodos revolucionários reconhecestes o seu fracasso e passastes aos métodos reformistas, não prova isso que, de modo geral, declarais a revolução um erro? Não prova isso que não se devia, em geral, começar pela revolução, que se devia começar pelas reformas e limitar-se às reformas?

Esta é a conclusão que tiram os mencheviques e os seus semelhantes. Mas esta conclusão é ou um sofisma e uma simples fraude daqueles que em política «passaram por tudo», ou uma puerilidade da parte dos que «não passaram» por uma verdadeira prova. Para um verdadeiro revolucionário, o maior perigo — e talvez mesmo o único perigo — consiste em exagerar o revolucionarismo, em esquecer os limites e as condições da aplicação adequada e eficaz dos métodos revolucionários. É aí que os verdadeiros revolucionários com mais frequência têm partido o pescoço, quando começaram a escrever «revolução» com maiúscula, a erigir a «revolução» a algo de quase divino, a perder a cabeça, a perder a capacidade de compreender, de pesar e de verificar com o maior sangue-frio e lucidez em que momento, em que circunstâncias e em que terreno se deve saber actuar revolucionariamente e em que momento, em que circunstâncias e em que domínio de acção se deve saber passar à acção reformista. Os verdadeiros revolucionários só sucumbirão (não no sentido duma derrota exterior, mas do fracasso interior da sua causa) no caso — mas nesse caso sucumbirão seguramente — de perderem a lucidez e imaginarem que a revolução, «grande, vitoriosa, mundial», pode e deve realizar obrigatoriamente de maneira revolucionária todas e quaisquer tarefas em quaisquer circunstâncias, em todos os domínios.

Quem «imaginar» tal coisa estará perdido, porque terá imaginado uma estupidez na questão fundamental, e durante uma guerra encarniçada (a revolução é a mais encarniçada das guerras), o castigo para uma estupidez é a derrota. Que é que prova que a revolução «grande, vitoriosa e mundial» pode e deve empregar apenas métodos revolucionários? Nada o prova. Isso é absoluta e totalmente falso. A falsidade disto é evidente por si mesmo com base em teses puramente teóricas, se não nos afastarmos do terreno do marxismo. A falsidade disto é confirmada também pela experiência da nossa revolução. Teoricamente: em tempo de revolução cometem-se idiotices como em qualquer outro tempo, dizia Engels(N279), e dizia a verdade. Há que procurar fazê-las o menos possível e corrigir o mais depressa possível as que foram feitas, tendo em conta com a máxima lucidez quais as tarefas e quando se pode, e quais não se pode, resolver com métodos revolucionários. A nossa própria experiência: a Paz de Brest foi um modelo de acção nada revolucionária, mas reformista, ou mesmo pior que reformista, pois foi uma acção de recuo, enquanto as acções reformistas, regra geral, avançam lenta, cautelosa e gradualmente, mas não recuam. A justeza da nossa táctica na altura da conclusão da Paz de Brest está agora tão demons-trada e é tão evidente e reconhecida por todos que não vale a pena continuar a falar deste tema.

A única coisa que está completamente acabada na nossa revolução é o seu trabalho democrático-burguês. E temos o mais legítimo direito a orgulharmo-nos disso. O seu trabalho proletário ou socialista resume-se a três aspectos principais: 1) saída revolucionária da guerra imperialista mundial; desmascaramento e interrupção da carnificina dos dois grupos mundiais de abutres capitalistas. Isto foi completamente feito pela nossa parte; só a revolução numa série de países avançados poderia realizá-lo em todos os aspectos. 2) Criação do regime soviético, forma de realização da ditadura do proletariado. Operou-se uma viragem mundial. Terminou a época do parlamentarismo democrático-burguês. Começou um novo capítulo na história mundial: a época da ditadura proletária. Só uma série de países aperfeiçoará e culminará o regime soviético e todas as formas de ditadura proletária. Resta-nos ainda muito, muitíssimo por fazer neste domínio. Seria imperdoável não o ver. Mais de uma vez teremos que concluir, refazer e recomeçar do princípio. Cada degrau que consigamos avançar, subir, no desenvolvimento das forças produtivas e da cultura, deve ser acompanhado do aperfeiçoamento e da modificação do nosso sistema soviético, e nós encontramo-nos a um nível muito baixo no aspecto económico e cultural. Há muito que refazer, e «perturbar-se» por isso seria o cúmulo do absurdo (senão pior do que absurdo). 3) Edificação económica da estrutura do regime socialista. Neste domínio ainda está por concluir o principal, o fundamental. E esta é a nossa obra mais justa, tanto do ponto de vista dos princípios como do ponto de vista prático, tanto do ponto de vista da RSFSR agora como ponto de vista internacional.

Uma vez que o principal não está concluído na sua base, é preciso fixar aí toda a nossa atenção. E a dificuldade aqui consiste na forma de transição. «Não basta ser revolucionário e partidário do socialismo ou comunista em geral — escrevia eu em Abril de 1918 em As Tarefas Imediatas do Poder Soviético(1*). E necessário saber encontrar em cada momento particular o elo particular da cadeia a que temos de nos agarrar com todas as forças para reter toda a cadeia e preparar solidamente a passagem para o elo seguinte; a ordem dos elos, a sua forma, o seu encadeamento, a diferença entre uns e outros na cadeia histórica dos acontecimentos não são tão simples nem tão rudimentares como uma cadeia vulgar feita pelo ferreiro.»

No momento presente, no domínio da actividade de que estamos tratando, esse elo é a reanimação do comércio interno, regulado (orientado) acertadamente pelo Estado. O comércio — tal é o «elo» na cadeia histórica dos acontecimentos, nas formas transitórias da nossa edificação socialista em 1921-1922, «a que temos de nos agarrar com todas as forças», nós, o poder de Estado proletário, nós, o partido comunista dirigente. Se agora «nos agarrarmos» a este elo com bastante firmeza, dominaremos certamente toda a cadeia num futuro próximo. Doutro modo não poderemos dominar toda a cadeia, não poderemos criar a base das relações económicas e sociais socialistas.

Isto parece estranho. Comunismo e comércio?! É qualquer coisa de incoerente, absurdo e distante. Mas se reflectirmos do ponto de vista económico, um não está mais distante do outro do que o comunismo o está da pequena agricultura-camponesa, patriarcal.

Em minha opinião, quando triunfarmos à escala mundial, faremos latrinas públicas de ouro nas ruas de algumas das mais importantes cidades do mundo. Esse seria o emprego do ouro mais «justo», mais claramente edificante, para as gerações que não esqueceram que, por causa do ouro, foram mortos dez milhões de homens e mutilados trinta milhões na «grande e libertadora» guerra de 1914-1918, na guerra para resolver a grandiosa questão de saber qual dos dois tratados de paz era pior, o de Brest ou o de Versalhes; e que, por causa desse mesmo ouro, se dispõem sem dúvida a matar vinte milhões de homens e a mutilar sessenta milhões de homens, numa guerra que eclodirá por volta de 1925 ou 1928, talvez entre o Japão e a América, talvez entre a Inglaterra e a América, ou qualquer coisa do género.

Mas por mais «justo», útil e humano que pareça o referido emprego do ouro, diremos apesar de tudo: para chegar a semelhante resultado precisamos de trabalhar ainda dez ou vinte anos com a mesma intensidade e os mesmos êxitos com que trabalhámos em 1917-1921, mas sobre um terreno muito mais vasto. De momento, devemos economizar o ouro na RSFSR, vendê-lo mais caro, comprar com ele mercadorias a preços mais baixos. Quem anda com lobos aprende a uivar; mas no que se refere ao extermínio de todos os lobos, como deve ser uma sociedade humana inteligente, ater-nos-emos ao sábio provérbio russo: «Não te vanglories ao partir para a guerra, vangloria-te ao vir da guerra» ...

O comércio é a única ligação económica possível entre dezenas de milhões de pequenos agricultores e a grande indústria, se … se ao lado desses agricultores não existe uma grande indústria mecanizada com uma rede de cabos eléctricos, uma indústria que, tanto pela sua potência técnica como pela sua «superstrutura» organizativa e pelos fenómenos concomitantes, seja capaz de fornecer aos pequenos agricultores os melhores produtos em maior quantidade, com mais rapidez e mais barato do que antes. À escala mundial este «se» já se realizou, esta condição já existe, mas um país isolado, e além disso um dos países capitalistas mais atrasados, que tentou imediata e directamente realizar, tornar realidade, organizar praticamente a nova ligação entre a indústria e a agricultura, não pôde cumprir esta tarefa «de assalto» e deve agora realizá-la mediante uma série de acções de «cerco» lentas, graduais, cautelosas.

O poder de Estado proletário pode dominar o comércio, dar-lhe uma orientação, situá-lo dentro de determinados limites. Um exemplo pequeno, muito pequeno: na bacia do Donets começou uma pequena, ainda muito pequena, mas indubitável reanimação económica, em parte graças à elevação da produtividade do trabalho nas grandes minas do Estado, e em parte também graças à entrega de pequenas minas em arrendamento aos camponeses. Deste modo, o poder de Estado proletário recebe uma quantidade complementar de carvão (miseravelmente pequena do ponto de vista dos países avançados, mas no entanto assinalável em face da nossa miséria) a um preço de custo, digamos, de 100%, e vende-a a diferentes instituições estatais a 120% e a diversos particulares a 140%. (Indicarei, entre parênteses, que estes números são completamente arbitrários, primeiro porque não conheço os números exactos e, segundo, porque se os conhecesse não os teria tornado públicos agora). Isto dá a impressão de que começamos a dominar, ainda que em muito modestas proporções, a circulação de mercadorias entre a indústria e a agricultura, a dominar o comércio grossista, a dominar a tarefa de nos agarrarmos à pequena indústria atrasada existente, ou à grande, mas enfraquecida e arruinada, a reanimar o comércio sobre a base económica existente, a fazer sentir ao camponês médio, ao simples camponês (o homem da massa, o representante da massa, o portador da espontaneidade) a reanimação económica, a aproveitar isto para um trabalho mais sistemático e mais tenaz, mais amplo e mais fecundo de restabelecimento da grande indústria.

Não nos deixaremos dominar pelo «socialismo do sentimento» ou pelo estado de espírito velho-russo, semi-senhorial, semi-mujique, patriarcal, do qual é próprio um incontrolado desprezo pelo comércio. É permissível aproveitar e deve-se saber aproveitar todas as formas de transição, pois que isso é necessário para fortalecer a ligação do campesinato com o proletariado, para reanimar sem demora a economia nacional num país arruinado e extenuado, para impulsionar a indústria, para facilitar medidas posteriores, mais amplas e mais profundas, como a electrificação.

Só o marxismo definiu com exactidão e justeza a relação entre as reformas e a revolução, embora Marx só tenha podido ver esta relação sob um aspecto, a saber: nas condições anteriores à primeira vitória minimamente sólida e minimamente duradoura do proletariado, pelo menos num só país. Em tal situação, a base duma relação acertada era: as reformas são um .produto acessório da luta de classe revolucionária do proletariado. Para todo o mundo capitalista esta relação constitui o fundamento da táctica revolucionária do proletariado, o á-bê-cê, que os chefes venais da II Internacional e os cavaleiros semipedantes, semiafectados da Internacional II 1/2 adulteram e ocultam. Depois da vitória do proletariado, nem que seja num só país, algo de novo aparece na relação entre a reforma e a revolução. Em princípio, o problema permanece o mesmo, mas na forma produz-se uma mudança, que Marx, pessoalmente, não pôde prever, mas que só pode ser compreendida no terreno da filosofia e da política do marxismo. Porque é que pudemos aplicar acertadamente o recuo de Brest? Porque tínhamos avançado tanto que tínhamos para onde recuar. Construímos o Estado soviético, saímos por via revolucionária da guerra imperialista, concluímos a revolução democrático-burguesa com uma rapidez tão vertiginosa, em algumas semanas, de 25 de Outubro de 1917 até à Paz de Brest, que mesmo um movimento de retrocesso tão grande (a Paz de Brest) deixou nas nossas mãos, apesar de tudo, posições plenamente suficientes para aproveitar a «trégua» e avançar vitoriosamente contra Koltchak, Deníkine, Iudénitch, Pilsudski e Wrangel.

Até à vitória do proletariado, as reformas são um produto acessório da luta de classe revolucionária. Depois da vitória (embora à escala internacional continuem a ser o mesmo «produto acessório») constituem além disso, para o país onde a vitória foi alcançada, uma trégua necessária e legítima nos casos em que é evidente que as forças, depois duma tensão extrema, não são suficientes para levar a cabo por via revolucionária determinada transição. A vitória proporciona uma «reserva de forças» que permite manter-se — manter-se tanto no sentido material como moral — mesmo no caso de um recuo forçado. Manter-se no sentido material significa conservar uma superioridade de forças suficiente para que o inimigo não possa derrotar-nos até ao fim. Manter-se no sentido moral significa não se deixar desmoralizar nem desorganizar, manter uma apreciação lúcida da situação, conservar o ânimo e a lucidez de espírito, recuar nem que seja muito para trás, mas na justa medida, recuar de modo a poder cessar a tempo o recuo e passar novamente à ofensiva.

Nós recuámos para o capitalismo de Estado. Mas recuámos na justa medida. Agora recuamos para a regulação estatal do comércio. Mas recuaremos na justa medida. Há já sintomas que indicam o final deste recuo, que indicam que não está demasiado longe a possibilidade de pôr termo a este recuo. Quanto mais conscientes e unidos, com quanto menos preconceitos efectuarmos este recuo necessário, mais depressa poderemos pôr-lhe termo, mais firme, rápido e amplo será depois o nosso avanço vitorioso.


Notas de rodapé:

(N278) Ver F. Engels, Cartas a A. Bebel de 18-28 de Março de 1875 e de Dezembro de 1884. In Karl Marx/Friedrich Engels, Ausgewählte Briefe, Berlin, 1953, S. 344, 453/454. (retornar ao texto)

(N279) Ver F. Engels, Programa dos Emigrados Blanquistas da Comuna. In Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 18, S. 534. (retornar ao texto)

(1*) Ver Obras Escolhidas de V. I. Lénine em 3 Tomos, t. 2, p. 585. (N. Ed.) (retornar ao texto)

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Inclusão: 22/04/2020