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Essa questão, como já vimos, é sobremaneira perigosa para a filosofia de Mach e Avenarius. As ciências naturais afirmam categoricamente que a terra atravessou estados tais que, nem o homem e nenhum outro ser vivo, a habitavam e nem podiam habitá-la. A matéria orgânica é um fenômeno tardio, o produto de uma muito longa evolução. Não havia, pois, em tais épocas, nem matéria dotada de sensibilidade, nem “complexos de sensações”, nem eus de qualquer especie “indissoluvelmente” ligados ao meio, de acordo com a doutrina de Avenarius. A matéria é o que há de primordial; o pensamento, a consciência, a sensibilidade não constituem senão os produtos de uma evolução muito avançada. Tal é a teoria materialista do conhecimento, instintivamente adotada pelas ciências naturais.
Os mais ilustres representantes do empiro-criticismo perceberam essa contradição entre sua teoria e as ciências naturais- Sim e empenharam-se em descobrir com auxilio de quais raciocínios tal contradição poderia ser evitada. Do ponto de vista materialista, três maneiras de tratar a questão a de Avenarius e as de seus discípulos J. Petzoldt e R. Willy - merecem atenção especial.
Avenarius tenta libertar-se dessa contradição com as ciências naturais, através da teoria do fator central “potencial’ da coordenação. A coordenação consiste, como já sabemos, relação “indissolúvel” entre o eu e o meio. Para afastar-se o evidente absurdo dessa teoria, introduziu-se a ideia de um central “potencial”. Como explicar, por exemplo, que o homem é o produto do desenvolvimento de um embrião? O meio (“contra-termo”) existe, se o “fator central” é representado por um embrião? O sistema embrionário C, responde Avenarius, é o “fator central potencial correspondente ao meio individual futuro” (Observações, § 184). O fator central potencial nunca é igual a zero, mesmo quando os pais ainda não existem (elterliche Bestandteile) e quando ainda não existem “as partes constitutivas do meio... suscetíveis de se tornarem pais” (§ 185).
Nessas circunstancias, a coordenação é indissolúvel. O empiro-criticista é obrigado a afirmá-lo para salvar as bases de sua filosofia, as sensações e seus complexos. O homem é o fator central dessa coordenação. E, quando o homem ainda não existe, quando ainda não nasceu, o fator central nem assim é igual a zero: é um fator central potencial! Só pode causar assombro a existência de pessoas capazes de tomar a sério um filosofo que proporciona raciocínios de tal ordem! O próprio Wundt, que diz não ser, absolutamente, inimigo de toda metafísica (isto é, de todo fideísmo), vê-se obrigado a reconhecer que há, aqui, um “obscurecimento mistico da concepção do termo experiência” pela palavra “potencial”, que anula toda especie de coordenação (obra cit., p. 379).
Pode-se, de fato, falar seriamente numa coordenação cuja indissolubilidade consista em que um de seus fatores seja potencial?
Não se trata de uma mistica, não se trata do próprio umbral do fideísmo? Se se pode representar um fator central potencial relativo ao meio futuro, por que não se pode representá-lo em relação ao meio passado, isto é, após a morte do homem? Avenarius, poderão dizer, não deduziu essa conclusão de sua teoria. Sim, mas sua absurda e reacionária teoria não ganhou com isso, muito ao contrário; apenas se tornou mais fraca, nada melhor. Em 1894, Avenarius não expunha a fundo sua teoria ou temia expô-la a fundo, temia levá-la até as últimas consequências. Ora, como veremos mais adiante, era precisamente a essa teoria que von Schubert-Soldern se referia em 1896 e isso para justificar conclusões teológicas. Mach, em 1906, aprovou Schubert-Soldern, que, dizia, seguia “um caminho muito próximo” do seu (Análise das sensações, p. 4). Engels tinha bastante razão em atacar Dühring, que, apesar de seu ateísmo categórico, deixava a porta aberta ao fideísmo. Em diversas oportunidades, e muito justamente, Engels criticava, a esse respeito, o materialista Dühring, que, entretanto, não formulava, pelo menos em 1860-1870, deduções teológicas. E há entre nós pessoas que, desejosas de passar por marxistas, propagam uma filosofia que se confina com o fideísmo!
“Poder-se-ia acreditar — pergunta Avenarius na mesma pagina — que, precisamente do ponto de vista do empiro-criticismo, as ciências naturais não tenham o direito de focalizar os períodos de nosso meio atual, que precederam a existência do homem? (p. 273).
E ele mesmo responde:
“Quem formula essa pergunta não pode evitar de aí, se incluir o eu (sic hinzudenken; literalmente: se representar presente). Realmente, o que o naturalista pesquisa (mesmo que não o perceba muito claramente) é, no fundo, a maneira pela qual deve representar a terra ou o mundo antes da aparição dos seres vivos ou do homem, considerando-se na qualidade de espectador, isto é, na posição de um homem que, de nossa terra, observasse, com auxilio de instrumentos aperfeiçoados, a historia de um outro planeta ou mesmo de um outro sistema solar".
O objeto não pode existir independentemente de nossa consciência; “sempre nos acrescentamos a nós mesmos, como espirito tentando penetrar a natureza do objeto”.
A teoria da necessidade de “acrescentar mentalmente” a consciência humana a toda coisa, a toda a natureza anterior ao homem, é aqui exposta em duas alíneas, a primeira das quais é tomada ao “mais moderno positivista”, R. Avenarius, e a segunda, ao idealista subjetivo J. G. Fichte.(1) A sofistica dessa teoria é de tal modo evidente, que qualquer tentativa nesse sentido pode comprová-la. Desde que “nos acrescentemos mentalmente” nossa presença é imaginaria e a existência da terra antes do homem é real. Na realidade, o homem não pôde, por exemplo, observar, como espectador, a terra incandescente; “conceber” sua presença diante da terra ígnea é fazer obscurantismo do mesmo modo que, se se usasse a seguinte argumentação, para demonstrar a existência do inferno: se “me acrescento mentalmente”, na qualidade de observador, poderia observar o inferno. A “conciliação” do empiro-criticismo com as ciências naturais consiste, em Avenarius, no “acréscimo mental”, obsequiosamente, do que as ciências naturais excluem completamente. Nenhum homem instruído, mesmo pouco são de espirito, duvida de que a terra tenha existido, mesmo quando toda vida, toda sensação e todo “fator central” eram impossíveis. Toda a teoria de Mach e Avenarius, segundo a qual a terra é um complexo de sensações (“os corpos são complexos de sensações”) ou “um complexo de elementos no qual o psíquico é idêntico ao físico” ou “um contra-termo cujo fator central nunca pode ser igual a zero”, constitui um obscurantismo filosófico, um desenvolvimento do idealismo subjetivo levado ao absurdo.
J. Petzoldt percebeu o absurdo da posição de Avenarius e enrubesceu-se. Ele consagra, em sua Introdução à filosofia da experiência pura, t. II, todo um texto (§ 65) à “questão da realidade dos períodos anteriores (frühere) da terra”.
“Na doutrina de Avenarius — diz Petzoldt —, o eu (das Ich) desempenha papel diferente em relação a Schuppe (lembremo-nos de que Petzoldt afirma categoricamente, em diversas oportunidades: Nossa filosofia é obra de três homens: Avenarius, Mach e Schuppe), mas ainda bem considerável para sua teoria (Petzoldt quer fazer aí uma correção). Avenarius disse uma vez: "Certamente, podemos representar um lugar onde o homem nunca pôs os pês, mas, para que possa pensá-lo, É preciso que haja o que designamos por eu (Ich-Bezeichnetes), um eu ao qual pertença esse pensamento” (V. f. wiss. Ph., t. XVIII, p. 146, notas).
Petzoldt acrescenta:
“O importante, do ponto de vista da teoria do conhecimento, não é perguntar-nos se podemos, de modo geral, conceber semelhante lugar, mas se temos o direito de concebê-lo como existente ou tendo existido independentemente de um penamento individual qualquer.”
O que é verdadeiro é verdadeiro. Os homens podem conceber e “acrescentar mentalmente” toda especie de infernos, toda especie de lobisomens; Lunatcharski chegou a “acrescentar mentalmente”... digamos, por eufemismo, ideias religiosas. Mas a teoria do conhecimento tem precisamente por objetivo demonstrar a irrealidade, a fantasia e o caráter reacionário de tais acréscimos mentais.
“Que o sistema C (o cérebro) seja necessário ao pensamento é a evidencia para Avenarius e para a filosofia que defendo”...
Não é verdade. A teoria de Avenarius de 1876 é uma teoria do pensamento sem cérebro. E sua teoria de 1892-1894 não está, absolutamente, como iremos ver, isenta do mesmo elemento de aberração idealista.
“Ora, esse sistema C representa, por exemplo, uma condição necessária no período secundário da terra?”
Citando o já mencionado raciocínio de Avenarius sobre as tendencias das ciências naturais e sobre a possibilidade de “acrescentar mentalmente” o observador, Petzoldt diz ainda:
“Não; queremos saber se temos o direito de pensar que a terra existia, tanto nessa época longínqua, como ontem ou há um instante. Ou, então, é preciso de fato não afirmar a existência da terra senão sob a condição (como o queria Willy) de que tenhamos pelo menos o direito de pensar que existe, ao mesmo tempo que a terra, um sistema C por pouco desenvolvida que seja?” (Voltaremos, por um momento, a essa ideia de Willy.)
Avenarius evita essa estranha conclusão de Willy através da ideia de que a pessoa que se interroga não pode libertar-se a si mesma mentalmente (sich wegdenken: acreditar-se ausente) ou não pode evitar acrescentar-se mentalmente (sich hinzudenken; v. Concepção humana do mundo, p. 130, 1.a edição alemã). Mas Avenarius faz, desse modo, do eu individual, da pessoa que formula a questão ou pensa nesse eu, uma condição, necessária, não do ato simples de pensar na terra inabitável mas do nosso direito de pensar que a terra existiu nesses tempos longínquos.
"É fácil evitar esses falsos caminhos não se conferindo a esse eu um tão grande valor teórico. A única coisa que a teoria do conhecimento deve exigir, tendo em conta as diferentes noções do que está distanciado de nós no espaço e no tempo, é que se possa concebê-lo e sua significação seja bem determinada (eindeutig); tudo o mais é objeto de ciências especiais” (t. II, p. 325).
Petzoldt rebatizou a lei da causalidade como lei da determinação no sentido único e estabeleceu, em sua teoria, como o veremos mais adiante, a aprioricidade dessa lei. Isto é: ele escapa ao idealismo subjetivo e ao solipsismo de Avenarius (que “confere importância exagerada ao nosso eu”, como o disse em seu tom professoral!), graças às ideias kantianas. A insuficiência do fator objetivo na doutrina de Avenarius, a impossibilidade de conciliá-la com as ciências naturais que proclamam que a terra (o objeto) existiu bem antes da aparição dos seres vivos (o sujeito), tudo isso obriga Petzoldt a agarrar-se à causalidade (determinação no sentido único). A terra existiu, porque sua existência anterior ao homem está causalmente ligada à sua existência atual. Mas, primeiramente, de onde veio a causalidade? Existe a priori, responde Petzoldt. Ademais, as ideias do inferno e dos lobisomens e os “acréscimos mentais” de Lunatcharski não estão ligados pela causalidade? Em terceiro lugar, a teoria dos “complexos de sensações” é, em todo caso, destruída por Petzoldt. Esse autor não eliminou a contradição que constatou em Avenarius e caiu numa grande confusão, porque o mundo exterior, refletido em nossa consciência, existe independentemente dela. Somente essa solução materialista coincide efetivamente com os elementos das ciências naturais e afasta a solução idealista da questão da causalidade, proposta por Petzoldt e Mach, de que falaremos mais especialmente.
Num artigo intitulado Der Empiriokritizismus als einzig wissenschaftlicher Standpunk (O empirocriticismo, único ponto de vista cientifico), outro empiro-criticista. R. Willy, foi o primeiro a formular, em 1896, essa pergunta embaraçante para a filosofia de Avenarius. Que atitude adotar diante do universo anterior ao homem? perguntou Willy(2). E começa a responder ao exemplo de Avenarius: “Nós nos transportamos mentalmente ao passado". Mas diz mais adiante que absolutamente não se é obrigado a entender por experiência a experiencia humana.
“Porque, desde que tomamos a vida dos animais em suas relações com a experiência geral, devemos considerar o mundo animal, fosse mesmo o caso do verme mais miserável, como constituído de homens (Mitmenschen) primitivos” (pp. 73-74).
Desse modo, a terra era, antes do homem, a “experiência” do verme, que, para salvar a “coordenação” e a filosofia de Avenarius, atuava como “fator central”! Nada de assombroso que, depois disso, Petzoldt tenha tentado dessolidarizar-se de semelhante raciocínio, que é uma perola de absurdo (uma concepção da terra segundo as teorias dos geólogos é atribuída ao verme) e, aliás, não oferece nenhum recurso à nossa filosofia, porque a terra existia, não somente antes do homem, mas antes de todos os seres vivos.
Willy voltou a esse assunto uma vez mais, em 1905. Dessa vez, o verme desapareceu(3). A “lei do sentido único” de Petzoldt naturalmente não satisfazia Willy, que não via nela senão “formalismo logico”. A questão da existência do mundo antes do homem, colocada à maneira de Petzoldt, “nos conduz, afinal, diz ele, aos objetos em si, tais como os concebe o senso comum" (isto é, ao materialismo! Que horror realmente!). Que significam os milhões de anos em que não houve vida?
"Não é já a coisa em si? Certamente, não(4). Mas, então, os objetos existentes fora do homem não passam de representações, de parcelas de fantasias humanas criadas com auxilio de elementos que encontramos em torno de nós. E por que não? O filosofo deve temer a torrente da vida?... Joga fora, digo a mim mesmo, os sistemas filosóficos e aproveita o momento (ergreife den Augenblick) que vive e procura tão só a felicidade” (p. 178).
Muito bem, muito bem. Das duas coisas uma: ou o materialismo, ou o solipsismo. Eis a que ponto chega R. Willy, apesar de suas frases tonitroantes, na analise do problema da existência da natureza antes do homem.
Façamos um balanço. Acabamos de ver três augures do empiro-criticismo, que, com o suor de suas frontes, se esforçaram por conciliar sua filosofia com as ciências naturais e por preencher as lacunas do solipsismo. Avenarius retomou o argumento de Fichte e substituiu o mundo imaginário pelo mundo real. Petzoldt distanciou-se um pouco do idealismo de Fichte para se aproximar do de Kant. Willy, tendo fracassado com o seu “verme”, pôs tudo a perder e deixou, sem o querer, escapar a verdade das duas coisas uma: ou o materialismo ou o solipsismo e até mesmo a confissão de que nada existe fora do momento presente.
Resta-nos mostrar ao leitor como nossos discípulos russos de Mach compreenderam e expuseram essa questão. Eis o que diz Bazarov nos Ensaios de filosofia marxista (p. 11):
“Resta-nos, agora, descer com nosso fiel vade-mécum (Plerrânov) ao último circulo, o mais terrível, do inferno solipsista, ao circulo onde todo idealismo subjetivo, segundo Plerrânov, esta a pique de representar necessariamente o mundo tal como o contemplaram os ictiossauros e os arqueópterix. Transporte-nos mentalmente, escreve (Plerrânov), à época em que a terra era habitada apenas pelos longínquos ancestrais do homem, à época secundária. Por exemplo. Que eram, então do espaço, do tempo e da causalidade? Para que seres constituíam noções subjetivas? Eram noções subjetivas dos ictiossauros? Que espírito ditava, então, sua leis à natureza? O do arqueópterix? A filosofia de Kant não pode responder a essas perguntas. E deve ser afastada como irreconciliável com a ciência contemporânea. (L. Feuerbach, p. 117)”.
Bazarov interrompe, neste ponto, sua citação de Plerrânov, muito justa diante da frase seguinte, muito importante, como podemos ver:
"O idealismo diz: nada de objeto sem sujeito. A historia da terra demonstra que o objeto existiu bem antes da aparição do sujeito, isto é, bem antes da aparição dos organismos, dotados, por pouco que fosse, de consciência... A historia da evolução demonstra a verdade do materialismo”.
Continuemos com a citação de Bazarov:
“A coisa em si, de Plerrânov, dá-nos a resposta satisfatória? Lembremo-nos que não podemos, segundo o próprio Plerrânov, ter nenhuma ideia dos objetos tais como são em si; não conhecemos deles mais do que as manifestações, conhecemos tão só os resultados de sua ação sobre nossos órgãos dos sentidos. Alem dessa ação, nenhum outro aspecto” (L. Feuerbach, p. 112).
“... Que órgãos dos sentidos existiam, então, na época dos ictiossauros? Evidentemente, os dos ictiossauros e seus contemporâneos. Apenas as representações mentais dos ictiossauros eram, nessa época, as manifestações reais das coisas em si. Desse modo, o paleontologista que não quer abandonar o terreno da realidade deveria, segundo Plerrânov, escrever a historia da era secundaria sob a forma da contemplação do mundo pelos ictiossauros. Ainda aqui, não damos um passo à frente, em relação ao solipsismo”.
Tal é, em sua integridade (pedimos desculpas ao leitor por tão longa citação, que não era possível encurtar), o raciocínio de um discípulo de Mach, raciocínio que se devia imortalizar como o nec plus ultra da confusão.
Bazarov acredita ter tomado Plerrânov ao pé da letra. Se, diz ele, os objetos não apresentam nenhum aspecto além de sua ação sobre nossos órgãos dos sentidos, não existiam, na era secundaria, senão sob os “aspectos’’ percebidos pelos órgãos dos sentidos dos ictiossauros Seria esse o raciocínio de um materialista?
Sendo o “aspecto” o resultado da ação das “coisas em si" sobre os órgãos dos sentidos, concluir-se-ia que os objetos (as coisas) não existiriam independentemente de qualquer órgão dos sentidos?
Admitamos, por um momento, (por incrível que seja), que Bazarov não tenha verdadeiramente compreendido Plerrânov; admitamos que a linguagem de Plerrânov não lhe tenha parecido suficientemente clara. Seja! Mas, perguntamos, Bazarov quer divertir-se às expensas de Plerrânov (que, para os discípulos russos de Mach, é o único representante do materialismo!) ou pretende esgotar a questão do materialismo? Se Plerrânov não é, em vossa opinião, suficientemente claro ou bastante consequente, por que não recorreis a outros materialistas? Será que não os conheceis? Ignorância não é argumento.
Se, realmente, Bazarov ignora que a admissão do mundo exterior, da existência dos objetos fora de nossa consciência e independentemente dela, constitui o postulado fundamental do materialismo, estamos diante de um caso de crassa ignorância verdadeiramente excepcional. Lembraremos ao leitor que Berkeley, em 1710, reprovava nos materialistas a admissão da existência dos "objetos em si" independentemente de nossa consciência, que os reflete. Certamente, cada um é livre de tomar o partido de Berkeley ou de não importa quem seja contra o materialismo. Isso é incontestável. Mas também é incontestável que talar dos materialistas mutilando ou ignorando o postulado fundamental de todo o materialismo é introduzir na questão uma imperdoável confusão.
É verdade, como disse Plerrânov, que não há, para o idealismo, objeto sem sujeito e o objeto existe, para o materialismo, independentemente do sujeito, sendo mais ou menos exatamente representado na consciência desse último? Se isso não é verdade, toda pessoa, tanto mais se pouco respeitosa do marxismo, deveria indicar esse erro de Plerrânov e, no que diz respeito ao materialismo e à existência da natureza anteriormente ao homem, contar, não com Plerrânov, mas com algum outro: Marx, Engels ou Feuerbach. E, se é verdade, ou se, pelo menos, não estais em condições de descobrir aqui um erro, cometeis, do ponto do ponto de vista literário, uma incoerência, tentando misturar tudo e obscurecer na mente do leitor, a noção mais elementar do materialismo e o que o distingue do idealismo.
Citaremos para os marxistas que se interessam por essa questão independentemente das menores palavras de Plerrânov, a opinião de L. Feuerbach, que, como se sabe (como sabem outros que não Bazarov, foi materialista, e graças ao qual Marx e Engels, abandonando o idealismo de Hegel, evoluíram até a sua filosofia materialista. Feuerbach escrevia em sua replica a R. Haym:
"A natureza, que não é o objeto do homem ou da consciência, constitui, para a filosofia especulativa, ou, pelo menos, para o idealismo, uma coisa em si, no sentido desse termo segundo Kant (voltaremos a falar na confusão estabelecida pelos nossos discípulos de Mach entre a coisa em si dos materialistas e a de Kant), uma abstração desprovida de toda realidade; mas é precisamente a natureza que acarreta a falência do idealismo. As ciências naturais, pelo menos em seu estado atual, conduzem- nos fatalmente a um ponto em que as condições necessárias à existência humana ainda não existiam, em que a natureza, a terra, ainda- não era objeto de observação por parte da visão e da consciência humana, em que a natureza era, portanto, um ser absolutamente estranho ao humano (absolut unmenschliche Wesen). A isso, o idealismo pode replicar: Mas essa natureza é uma natureza concebida por ti” (von Dir bedachte)! “Certamente, mas daí não se conclui que ela não tenha existido no tempo, como não se conclui que Sócrates e Platão, porque não existem para mim e apenas posso pensar neles, não tenham tido uma existência real em seu tempo, em mim”(5).
Tais são as reflexões de Feuerbach sobre o materialismo e o idealismo, colocando-se do ponto de vista da natureza anterior ao homem. Sem conhecer o “mais moderno positivismo” Feuerbach, que conhecia muito bem os velhos sofismas idealistas, refutou o sofisma de Avenarius (“acrescentar mentalmente um observador”). Ora, Bazarov não criou absolutamente nada, o que se chama nada; apenas repetiu sofismas idealistas: “Se eu estivesse presente (na terra anterior ao homem), é assim que eu teria visto o mundo” (Ensaios de filosofia marxista, p. 29). p outras palavras: Se eu fizesse essa suposição manifestamente absurda e contrária às ciências naturais (de que o homem pudesse observar o universo anterior a ele), eu uniria as duas extremidades de minha filosofia!
Pode-se, desde então, julgar a informação ou os processos literários de Bazarov, que não se deixa levar pela “dificuldade” em que Avenarius, Petzoldt e Willy se atrapalharam e, trocando os pés pelas mãos, apresenta ao leitor um tal imbróglio, que não se vê mais diferença entre o materialismo e o solipsismo. O idealismo é apresentado como “realismo” e o materialismo passa a negar a existência das coisas fora de sua ação sobre os órgãos dos sentidos! Sim, sim: ou Feuerbach ignorava as diferenças elementares entre o materialismo e o idealismo ou Bazarov & Cia. subvertem a seu modo as verdades elementares da filosofia.
Vejamos ainda Valentinov. Vejamos esse filosofo, naturalmente entusiasta de Bazarov:
Isso não é uma filosofia, senhores discípulos de Mach, é um amontoado incoerente de palavras.
Notas de rodapé:
(1) J. G. Fichte, Die Recension über “idemus”, 1794, Obras Completas, t. I, pág. 19 – N. L. (retornar ao texto)
(2) Vierteljahssch. für wiss. Philos., t. XX, 1896, pág. 72. — N. L. (retornar ao texto)
(3) R. Willy, Gegen die Schulweisheit, 1905, págs. 173-178. — N. L. (retornar ao texto)
(4) Voltaremos ao assunto mais adiante, com os discípulos de Mach. — N. L. (retornar ao texto)
(5) L. Feuerbach, Sämtliche Werke (Obras Completas), ed. Bolin & Jodl, t. VII, Stuttgart, 1903, pág. 510; ou Karl Grün, L. Feuerbach in seinem Briefwechsel und Nachlass, sowie in seiner philosophischen Charakterentwicklung, t. I, Leipzig, 1874, páginas 423-435. — N. L. (retornar ao texto)
Inclusão | 10/03/2014 |