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Na nova crise económica mundial longe de estar dominada o Estado mostra-se novamente um actor económico central. Prova-se que a doutrina neoliberal sempre tinha um núcleo estatista. A estatalidade constitui um momento objectivo da socialização negativa através do capital. E, tal como nas próprias categorias económicas, também na administração estatista da crise os irmãos inimigos keynesianismo e neoliberalismo se revelam como membros da mesma família. Assim, para uma reformulação da crítica da economia política pela crítica da dissociação e do valor, torna-se uma tarefa de primeira ordem a teoria do Estado, em Marx em grande parte ausente e legada apenas em fragmentos. A questão económica fundamental consiste em saber se a valorização do capital é pressuposta indisponível para o Estado ou se ela apenas em “condições normais” funciona autonomamente, podendo no entanto ser substituída pelo Estado em situação de crise. Contudo, esta questão não pode ser esclarecida através de uma simples análise funcional, mas precisa de uma definição conceptual teórica e histórica da estatalidade enquanto tal. Daí que, na primeira parte deste trabalho (EXIT! 7, Teses 1-22), após um esboço introdutório da actual situação e das deficiências da crítica social relativamente ao conceito de Estado, foram em primeiro lugar delineadas as aporias e deformações da teoria do Estado burguesa de Hobbes a Hegel, no contexto do desenvolvimento capitalista. Da definição afirmativa de uma “vontade geral” transcendental resulta um auto-equívoco recíproco dos actores históricos que se manifesta no horizonte de emancipação do movimento operário reduzido ao Estado. A crítica de Marx a este entendimento permaneceu incompleta e, o mais tardar desde o Manifesto Comunista, foi reduzida às necessidades do movimento operário.
Na segunda parte das teses continua a expor-se a história das teorias de esquerda do Estado no contexto do desenvolvimento capitalista. O ponto de partida é a crítica anarquista do Estado, despachada relativamente depressa, a qual tem sido perfeitamente sobrestimada e resolve o problema em tosca ideologia. Em seguida volta a analisar-se criticamente, em retrospectiva, a reflexão fragmentária e conceptualmente inconsistente da teoria do Estado de Marx e Engels entre o Manifesto e o Anti-Dühring, como ela se apresenta na discussão com os bakuninistas e em torno do carácter da Comuna de Paris. Daí resulta uma fraqueza da crítica ao modo capitalista de socialização: falha-se notoriamente o problema da síntese social; as ideias para uma alternativa à relação de capital detêm-se fundamentalmente no plano da empresa individual (percebido de modo sociologicamente redutor), enquanto a questão do planeamento social consciente desemboca, como que por si mesma, nas vias do estatismo. A ideologia de esquerda segue desde então metodologicamente a metamorfose da ciência burguesa que, ao contrário dos seus próprios clássicos, desenvolve uma tendência para individualizar e subjectivar de certa maneira as categorias sociais; as abordagens teóricas ditas da teoria da estrutura de modo nenhum contradizem esta tendência, porque entendem a "objectividade" apenas como "efeito recíproco" e como resultante das acções imanentes, enquanto o carácter apriorístico e transcendental das determinações da forma social total e da "vontade geral" daí derivada já nem sequer aparece. Da parte do marxismo, desde cedo deixou de ser possível qualquer crítica adequada a esta regressão burguesa da teoria social e da teoria do Estado que desemboca no conceito do "estado de excepção" injustificado, reflectindo assim a praxis de crise do capitalismo tardio. É precisamente o "estado de excepção" que constitui desde então o programa secreto de uma "prova de maturidade política" da esquerda que, na sua ideologia democrática, cai simultaneamente em grande parte na miséria do positivismo jurídico. A crença positiva no Estado da social-democracia torna-se a herança não reconhecida também da chamada esquerda radical.
Por razões diversas, entre as quais a riqueza da matéria e a problemática da exposição, que obrigam a uma exigência relativamente grande de argumentação apesar da forma de teses, a série terá de continuar no próximo número da EXIT!
A comprovação das contradições e deficiências quanto à teoria do Estado em Marx e Engels traz necessariamente à memória o anarquismo, o eterno rival da doutrina marxista na crítica social radical. Qualquer criança sabe que o pensamento anarquista coloca como questão central a rejeição por princípio de toda e qualquer estatalidade. Essa é também a razão porque os rebentos de pais marxistas de classe média atravessam frequentemente uma fase anarquista, para fazer ouvir um protesto contra a satisfação ideológica dos seus progenitores, que pode entrar em fricção muito facilmente (e com plena justificação) contra o conformismo cívico burguês em que caíram muitos anteriores e posteriores a 68, como clientela democrática vermelha-verde. A animosidade anarquista contra o Estado pode constituir um emblema provocatório apropriado, com o objectivo de deixar o conflito de gerações fazer-se ouvir no lar dos sentimentos burgueses de esquerda. A questão, no entanto, é saber se assim se pode reclamar uma pretensão teórica que consiga de facto levar para além das deficiências da crítica do Estado, independentemente da motivação edipiana.
À primeira vista a doutrina anarquista parece ser mais consequente que a teoria de Marx na negação da estatalidade, pelo menos no propósito. Evidentemente que, por mais bem intencionado que seja o propósito, ele não vale nada, se não lhe corresponder um contexto de fundamentação suficiente que consiga dar-lhe cumprimento. Pode facilmente afirmar-se um impulso anti-estatal ligado visceral e superficialmente às manifestações e experiências negativas (repressão, burocracia, autoritarismo etc.), sem com isso se conseguir um conceito da coisa, que é negada de modo meramente abstracto. Para evitar mal-entendidos: o contrário da negação abstracta não é uma afirmação concreta pseudo-dialéctica, que tivesse “superado” positivamente (como em Hegel) aquela negação abstracta, mas sim uma negação concreta penetrando a própria coisa, a única que será verdadeiramente aniquiladora. Neste sentido é preciso colocar na balança o anti-estatismo anarquista. Para o efeito pode tomar-se como exemplo a obra principal de Bakunin Estado e anarquia (1873), que muitas vezes é mais conhecida pelo título do que por ter sido de facto lida.
A argumentação de Bakunin surpreende desde logo por consistir grandemente em prolixas exposições e conjecturas sobre a política quotidiana, as estratégias e as personagens mais ou menos sujas dos poderes europeus no século XIX. Trata-se sobretudo de uma mistura de “psicologia étnica” vulgar, de arrazoados sobre diversos acontecimentos políticos, bem como de mexericos e intrigas nas sociedades e círculos de emigrantes das cidades capitais. Em vão se procura uma definição conceptual e uma análise da estatalidade; encontram-se apenas asserções não-conceptuais, ataques e declarações retóricas. Bakunin é obviamente tudo menos um teórico, é antes um “político de café”, como Marx o considerava. Tanto mais patético para o anarquismo que ele seja considerado um dos seus mais importantes representantes na crítica do Estado. Já é preciso algum esforço para conseguir ler em todo o Estado e anarquia algo como uma relação de fundamentação.
A grande questão de uma teoria crítica do Estado, a relação entre capital e estatalidade, nem sequer pode ser seriamente colocada por Bakunin a partir dos seus pressupostos, porque já o conceito de capital é subterrâneo. Para ele a “formação de capital”, que não é objecto de qualquer ulterior definição, consiste essencialmente em “especulação bancária”, e “isso não significa senão o triunfo da dominação judaica (?), da alta finança, com o poderoso apoio do poder financeiro, administrativo e policial”. Para esta “formação de capital” na forma de “especulação bancária, a qual em última instância devora a própria formação de capital”, segundo Bakunin “torna-se necessária a centralização violenta através do Estado… para o seu posterior e completo desenvolvimento”. A estatalidade, portanto, deve consistir desde logo sobretudo em garantir a “dominação judaica” dos especuladores bancários, que são considerados os verdadeiros representantes do capital.
Na realidade já basta verificar esta definição anti-semita de capital e de estatalidade para considerar definitivamente impossível a crítica anarquista do Estado. Esta sentença pode ser pronunciada com consciência tanto mais tranquila quanto o segundo pai fundador do anarquismo, Pierre Joseph Proudhon, também reduz o seu conceito de capital ao capital que rende juros, ou seja, à estatalidade, dada a sua reclamação ao poder, e tenta descrever como contraprograma uma apoteose (“cooperativa”) pós-estatal da forma da mercadoria, com uma “moeda do trabalho”. Também no caso de Proudhon seria um eufemismo falar de “crítica redutora do capitalismo”, uma vez que ele, tal como Bakunin, se perde em invectivas anti-semitas. Ao contrário de Marx, em ambos estes casos se trata não da instrumentalização metafórica parcial de estereótipos antijudaicos (como em A questão judaica), mas sim de marcas estruturais essenciais da imagem do mundo anti-semita como um todo.
O segundo plano conceptual do estatal em Bakunin surge no significado de “psicologia étnica”, enquanto estado de espírito “pangermânico”, porque a orientação estatal seria inerente “ao sangue alemão, ao instinto alemão”. A justa crítica ao desenvolvimento histórico na Alemanha, onde se tinha formado uma crença profundamente enraizada na autoridade do Estado no contexto da razão de Estado absolutista após o final sangrento das revoltas camponesas protomodernas, em Bakunin não só é mistificada como “instinto do sangue” (seguindo aqui a própria “ideologia alemã”, simplesmente numa versão negativa), mas simultaneamente amalgamada com o conceito de Estado em geral.
Consequentemente, Bakunin procura também o contrapolo anti-estatista numa relação de “psicologia étnica” ou “de sangue” e precisamente nas regiões do seu país natal. Os “eslavos” seriam “dominados por paixões completamente contrárias”, “nunca teriam eles próprios criado um Estado por sua iniciativa”, teriam sido sempre “um povo de camponeses amante da paz”. Ao contrário dos “pangermanistas” eles teriam de “procurar a libertação fora do Estado”. Embora Bakunin indique que não se trata também de “pan-eslavismo”, mas sim da “confraternização dos povos” generalizada, ele ainda assim estiliza a polarização abstracta entre estatismo e anti-estatismo numa luta final entre a mentalidade “germânica” e a “eslava”.
Como coroação deste constructo não-conceptual, em Bakunin estatalidade, pangermanismo e “dominação judaica” fundem-se num complexo global; alemães e judeus são designados de uma assentada como imagem do inimigo. A atmosfera de pogrom anti-semita na Rússia e noutros países europeus, ideologicamente assumida de forma aberta por Bakunin, esconde-lhe que ele muito menos que Marx consegue perceber o conteúdo profundamente anti-semita da “ideologia alemã”, de tal maneira que neste ponto ele consuma mesmo inconscientemente uma solidariedade com o odiado “pangermanismo”.
Em todas estas exposições desestruturadas de Bakunin não se consegue descobrir nem pouco nem mesmo nada sobre a relação concreta entre estatalidade e capital. Ocasionalmente ainda se sugere que talvez uma classe estatal burocrática em associação (mal explicada) com os banqueiros judeus pudesse desenvolver um interesse próprio de dominação. Judeus, alemães, burguesia, especuladores, agentes do Estado, cabeças coroadas – para Bakunin tudo isto é mais ou menos a mesma “casta de exploradores”. Assim, a pomposamente proclamada “aniquilação de tudo aquilo que se chama Estado” inclui como objectivo seco e abstracto nada mais que uma “autonomia económica”, ignorando completamente qualquer determinação crítica da forma, mas sobretudo a ideia de fundo da democracia vulgar da “completa organização federativa directa de baixo para cima”.
De facto, todo o programa se reduz a uma pobre contraposição entre a estruturação do social “de cima para baixo” (poder burguês) e “de baixo para cima” (poder popular). A ilusão da “democracia de base”, ruminada até hoje e até à náusea, que abstrai consequentemente da forma fetichista de sujeito e pressupõe um conceito de dominação meramente exterior, tem aqui a sua origem, sem no entanto querer saber nada das implicações nacionalistas e anti-semitas.
Tal e qual como no caso dos irmãos inimigos do marxismo do movimento operário, também no pensamento de Bakunin, Proudhon e Cª é o eterno “trabalho” a realizar “colectivamente” que é pressuposto cegamente como forma fundamental de uma federação pós-estatal de comunidades de base. A fundamentação deste “mundo do homem trabalhador livre” é no entanto ainda pior, pois a “libertação do trabalho” segundo Bakunin, em antecipação da fraseologia da filosofia da vida, deve possibilitar “a poderosa enchente de vida popular”, “para então criar novas formas duma sociedade livre a partir do fundo do ser de um povo”. Hoje ouvimos novamente dos expoentes dum pós-operaismo teoricamente desarmado o mesmo sussurro existencialista/da filosofia da vida, que de outro modo entrou também no pensamento fascista, e que substitui os conceitos por cantigas.
Para cúmulo também já em Bakunin o anti-estatismo abstracto é flanqueado com uma hostilidade fundamental à teoria. A libertação da estatalidade pela “democracia de base” não deve encontrar o seu fundamento em “qualquer teoria erudita”, com a qual Bakunin não consegue lidar, “mas sim na sequência de um desenvolvimento completamente natural (!) de necessidades de todo o tipo que resultam da própria (!) vida”. Delas teriam os trabalhadores alemães sido infelizmente desviados por “líderes de tendência literária e hebraicizante”. Uma vez que o “objectivo principal” de Marx e Lassalle, tal como de Bismarck, seria “o Estado” (nomeadamente o Estado judaico pangermânico), o judeu Marx pretenderia estabelecer-se juntamente com outros “literatos judeus” como chefe de Estado e “ditador alemão”, para submeter e explorar senhorialmente as massas populares através de “uma minoria privilegiada” de intelectuais.
É evidente que uma “crítica do Estado” assim horripilante não é nada apropriada para penetrar e rever criticamente as contradições da teoria do Estado de Marx e Engels. Para isso faltam as determinações conceptuais elementares, que são substituídas por torpes ataques ideológicos. O que aparece como anti-estatismo em Bakunin (bem como em outros representantes do anarquismo) regride muito atrás das formulações de crítica do Estado e da política na polémica do jovem Marx com a filosofia do Estado e do direito de Hegel. Para o pensamento anarquista, a mediação desta crítica da estatalidade com a crítica da economia política e das suas categorias não é apenas uma consequência não realizada, como em Marx, mas sim uma impossibilidade lógica.
As acusações de Bakunin e a retórica anti-estatal e com carga anti-semita a elas associada ocorrem na última década da vida de Marx e na última fase da Primeira Internacional. Elucidativas para o problema de uma teoria crítica do Estado são as polémicas de Marx e Engels com os bakuninistas, justamente cinco anos antes do Anti-Dühring. Aqui se vê quão ténues eram já então as recordações da abordagem inicial de Marx. No espólio de Marx encontra-se uma transcrição do livro de Bakunin Estado e anarquia, escrita no fim de 1874/início de 1875, com alguns comentários. Aí se mostra Marx meio aborrecido, meio irritado com a ausência de conceitos de Bakunin. No entanto irritado talvez também com as próprias deficiências, aqui perigosamente trazidas ao limiar da consciência.
Em primeiro lugar, Marx faz notar que o conceito de estatalidade de Bakunin permanece ligado às obsoletas condições da Europa central e oriental, com as suas monarquias decadentes; em Estado e anarquia, nomeadamente, Bakunin afirma com toda a seriedade que contra isso se teria constituído “na Holanda, na Inglaterra e depois nos Estados Unidos da América… uma nova civilização por natureza anti-(estatal), mas (de economia burguesa)”. Marx anota certeiramente: “Este local é muito característico de Bakunin, o Estado capitalista autêntico para ele é anti-governamental”. Se a democracia capitalista madura (o Estado capitalista autêntico), como consumação da “vontade geral” apriorística e transcendental, já nem sequer é reconhecida por Bakunin como Estado em sentido próprio, em vez de ser concebida inversamente como o modelo da estatalidade em geral, então com isto ele reproduz apenas o redutor horizonte de emancipação que também é o do movimento operário “marxista”. O comentário de Marx pode ser dirigido contra o ingénuo democratismo de esquerda em geral até hoje, o qual por maioria de razão caiu completamente nos procedimentos democráticos formais indiferentes ao conteúdo, com isso no entanto já não se mantendo ligado a uma crítica do Estado mesmo não-conceptual.
É também neste contexto que Marx troça da retórica oca de Bakunin do “vós aí em cima, nós cá em baixo”, ou seja, o postulado da autonomia formal de uma corporação federativa definida de modo igualmente formal: “E na configuração de Bakunin serão (de cima abaixo) todos (de cima)? Não haverá ninguém (de baixo)?” Aqui se refere a falta de lógica e o ridículo do democratismo formal, bem como de um conceito de dominação formal e também subjectivo, que esconde sistematicamente as determinações qualitativas decisivas da socialidade. A questão é a libertação da “riqueza abstracta” autonomizada e do seu automovimento objectivado, e não de uma dominação exterior em sentido formal, cuja mera inversão não mudaria nada.
Igualmente esclarecedor é um outro comentário de Marx, onde chama a atenção para o destaque de Bakunin ao significado de “navegação de alto mar” atribuído ao desenvolvimento social: “Este é o único ponto em que o senhor Bak. fala das condições económicas e reconhece que são condições independentes do (Estado)…” (destaque de Marx). Aqui se esboça mais uma vez, também contra o idealismo de Estado de Hegel, que a condicionalidade recíproca de estatalidade e economia capitalista implica uma indisponibilidade recíproca, estando portanto excluído o comando estatal sobre a dinâmica própria da “riqueza abstracta” e da sua máquina de valorização, pelo que os dois lados só podem ser abolidos em conjunto.
Obviamente que o sentido destes comentários de Marx resulta apenas de uma penetração do contexto do problema que ele próprio não efectuou; são comentários muito sucintos e quase contrariados. O problema revela-se noutro lado, logo que Marx tem de passar à defensiva contra Bakunin, na sua própria rabulice dialéctica relativamente ao conceito de Estado: “Independentemente do insistir no Estado do povo de Liebknecht, que é disparate (!), virado contra o Manifesto comunista etc., isto significa apenas: uma vez que o proletariado, durante o período de luta pela subversão da velha sociedade, ainda age na base da velha sociedade e por isso também se move nas formas políticas (!) que mais ou menos lhe pertencem, durante este período de luta ele ainda não alcançou a sua constituição final e usa na sua libertação meios que desaparecem após a libertação; daí conclui o senhor B. que o melhor é não fazer nada, deve esperar-se pelo dia da liquidação geral – do juízo final” (destaque de Marx).
O “Estado do povo de Liebknecht” e da social-democracia em geral não é senão a democracia formal plenamente implantada com a cidadania “do proletariado”, e só pode ser “disparate” se também o actual movimento ainda “nas formas politicas” for igualmente “disparate”, como o próprio Marx assinalou inicialmente e ainda virado contra Hegel. Marx não consegue escamotear esta ruptura traiçoeira na sua argumentação, caindo na afirmação de que uma crítica da contradição que aí assoma (que de resto Bakunin não consegue apresentar) vai dar na conclusão de que “o melhor é não fazer nada”. Uma acusação de que os bakuninistas se podem facilmente ver livres, já que eles são justamente activistas em alto grau e precisamente por causa da sua falta de ideias teóricas e mesmo hostilidade aberta à teoria.
Sobre o que Marx se pretende iludir, é o que ele deixa escapar mais acima inconscientemente, quando diz que o proletariado na luta com a classe inimiga também “teria de utilizar meios violentos, portanto meios de governo” (destaque de Marx) como “poder governamental”. Como que por si mesmo e sem qualquer fundamentação, aqui são confundidos “meios violentos” com “poder governamental” ou “meios de governo”. O facto de um movimento social contra a “riqueza abstracta” autonomizada e pela libertação dos indivíduos da sua existência coerciva, como meros sujeitos funcionais dela, poder (e certamente dever) perfeitamente usar “meios violentos”, não inclui de modo nenhum a sua determinação como medidas de “governo”, o que já supõe o carácter estatal de toda a acção. Assim seriam desmentidos o conteúdo e o objectivo destes “meios violentos”, pois a estatização da “riqueza abstracta” em litígio, mesmo apostrofada como “proletária”, pressupõe precisamente o objecto da crítica prática como positivo (como o próprio Marx sabe) e portanto conseguiria apenas a já referida reprodução da relação de capital na “classe operária” ou na sua representação formal.
Marx é aqui atingido pela dissimulação da sua dialéctica afirmativa, no sentido de adaptação à ideologia do movimento operário, ocorrida logo no início da abordagem da crítica radical do Estado. As transcrições e comentários a Estado e anarquia de Bakunin ficaram de resto por publicar, mas a mesma argumentação evasiva se pode ler já um ano antes (1873/74) num artigo de Marx contra os bakuninistas publicado em Itália (no Almanacco Repubblicano per l’ anno 1874). Sob o título O indiferentismo político Marx acusa os anarquistas já contrafactualmente de “propaganda da inactividade” e tenta pô-los a ridículo com figuras de retórica a condizer: “A classe operária não deve constituir-se como partido político, não deve assumir uma acção política sob qualquer pretexto, porque a luta contra o Estado equivale ao reconhecimento do Estado e isso está em contradição com os princípios eternos!...”.
Esta tirada, na verdade, tem menos por finalidade debater-se com a óbvia carência teórica dos bakuninistas, visando pelo contrário muito mais apagar as próprias pegadas. A suposta afirmação paradoxal de que “a luta contra o Estado” seria o “reconhecimento do Estado” encobre a diferença de planos conceptuais, a que Bakunin e Cª nem sequer chegam, mas só poderia ser desenvolvida a partir da própria teoria de Marx. Marx escamoteia aqui a diferença entre “Estado em geral” (como conceito da moderna constituição de fetiche) e “Estado da burguesia” (como redução sociológica desse conceito aos seus atributos). No primeiro entendimento, a luta contra o capital, como relação fetichista abrangendo toda a sociedade, é idêntica à luta contra o Estado, como sua forma política imanente; no último, trata-se apenas de uma interpretação diferente da sua “qualificação” social, uma redução teórica começada por Marx já desde o Manifesto Comunista.
A coisa torna-se difícil ao máximo quando Marx, contra os bakuninistas, procura fundamentar de modo obscuro a igualmente obscura relação entre estatalidade e política com a necessidade da luta social “aqui e agora”, portanto no meio do capitalismo. A acusação contrafactual suscitada no comentário ao livro de Bakunin de adiar a acção social “até ao juízo final” encontra-se também no artigo italiano de 1874 e é suportada ou concretizada do mesmo modo esforçadamente irónico. Segundo a doutrina anarquista supostamente: “Os trabalhadores não devem fazer greves, pois desperdiçar forças para conseguir um aumento de salário ou impedir a sua diminuição significa reconhecer o sistema do trabalho assalariado e isso está em contradição com os princípios eternos da libertação da classe operária!... Os trabalhadores não devem desperdiçar forças para conseguir um limite legal da jornada de trabalho… Menos ainda devem os trabalhadores exigir que, como acontece na república americana, o Estado, cujo orçamento é constituído à custa da classe operária, deva ser obrigado a proporcionar ensino básico aos filhos dos trabalhadores…”.
Marx procura desesperadamente reduzir ao mesmo denominador “acções” ou exigências de diversa ordem que se desenrolam necessariamente no interior do capitalismo (aumento do salário, limitação da jornada de trabalho, ensino básico) e a “constituição” como “partido político” ou a forma de “acção política”. Este procedimento, porém, por maioria de razão é abusivo. Exigências imanentes, isto é, que se movem necessariamente ainda em formas capitalistas, de modo nenhum são idênticas ao “reconhecimento” de tais formas na forma da própria organização. Esta é uma diferença perfeitamente decisiva. Quando se está sob o ditame de uma constituição dominante e esta não pode ser imediatamente abolida, trata-se naturalmente de defender e exigir as necessidades vitais através destas formas sociais negativas. Mas exigir as necessidades necessariamente nestas formas não significa nem de longe ligar-se a elas, nem muito menos defender-se apenas nelas. Pelo contrário, é preciso tornar consciente a diferença qualitativa fundamental entre as necessidades materiais e sociais, por um lado, e a sua determinação pela forma dominante, por outro. Marx também faz isso de certa maneira, na medida em que se refere à forma económica, mas não da mesma medida à forma política, embora esta constitua apenas o reverso da mesma relação.
Na realidade, para um movimento social em luta pelas necessidades vitais, é tudo menos obrigatório “constituir-se” em “partido político”, precisamente se se trata de exigências também contra o Estado. Um movimento social autónomo, mesmo se apresenta reivindicações parciais na forma política e até ligadas a regulamentações legais, está longe de ser obrigado ele próprio à forma política (e à respectiva “via oficial” parlamentar) e muito menos a organizar-se na forma política; bem pelo contrário. Tal como exigências salariais perante os representantes do dinheiro ou do capital real não significam automaticamente reconhecer o capital como condição de vida, tão pouco exigências ao Estado de uma determinação legal (por exemplo, de um salário mínimo) significam automaticamente reconhecer a forma politica da mesma “vontade geral” transcendental como forma de existência própria e pressuposto das próprias necessidades, ou seja, expressar-se a si mesmo nessa forma.
O problema pode ser esclarecido precisamente nesta diferença imanente. A ideologia do movimento operário não abandonou a constituição dominante, nem sequer relativamente ao conceito de capital em sentido estrito, na medida em que ontologizou as suas categorias fundamentais (“trabalho abstracto”, forma do valor). O capital, entendido redutoramente no plano dos seus representantes pessoais, aos quais é atribuído o “poder de disposição” subjectivamente explorador como “proprietários privados”, representa de facto a “parte contrária” no plano da manifestação imediata. Mas, entretanto, a organização sindical segue a mesma forma económica e o mesmo entendimento redutor, na medida em que se constitui a si mesma como representante da “propriedade privada” sobre a “mercadoria força de trabalho”. Assim, juntamente com a própria organização, também as necessidades vitais defendidas já estão enclausuradas na forma dominante. Trata-se apenas das condições de venda da “mercadoria força de trabalho” em sentido lato e não da abolição desta relação fetichista em si mesmo, no próprio corpo e nas próprias capacidades.
Marx criticou de facto esta autoconstituição afirmativa com as célebres palavras segundo as quais a questão não seria “Um salário justo para um dia de trabalho justo”; em vez disso, a palavra de ordem devia ser “Abaixo o trabalho assalariado!”. Mas este programa apenas poderia ser encarado se o capital fosse negado no seu contexto formal de base e não apenas como pretenso “poder de disposição” jurídico subjectivo. Então poder-se-ia também reconhecer que a autoconstituição como “partido político” e portanto como agência do Estado só espera constituir o reverso da autoconstituição como representação sindical da “propriedade privada sobre a mercadoria força de trabalho”, e assim reproduz em si precisamente a duplicação hegeliana em “sociedade civil” e Estado, em bougeois e citoyen. Marx não podia rejeitar as consequências do auto-enclausuramento sindical no próprio carácter mercantil e depois propagandear por sua vez a forma política precisamente desta autopercepção ideológica. O que constitui uma indicação de que também relativamente ao primeiro se mantém um momento de ambiguidade.
A tarefa teria sido (e continua a ser até hoje) orientar simultaneamente contra as categorias do capital a necessária luta social pelas necessidades materiais e sociais, mesmo como necessariamente imanentes e até ligadas às categorias do capital, definindo o auto-entendimento daí resultante. Aqui estamos nós perante o mesmo problema que o da liberdade de associação, do direito à greve ou do livre acesso das mulheres ao ensino universitário em todas as áreas. Uma coisa é reivindicar da instância política dominante tais condições, outra coisa completamente diferente é invocar e mesmo obrigar-se à própria cidadania, bem como à forma jurídica civil, na medida em que se fundamentam estas reivindicações não do ponto de vista da sua própria lógica, mas sim do ponto de vista da estatalidade dominante e da forma jurídica geral, para incorporar aquelas reivindicações (e a si mesmo) nesta forma, em vez de fazer delas material explosivo contra a mesma.
A ênfase política de esquerda no “ter de ser politicamente” também por isso é tão ambígua, não só porque reproduz o horizonte de emancipação redutor do velho movimento operário (a luta pelo “reconhecimento” como cidadão e nessa medida como sujeito funcional do “trabalho abstracto”), mas também porque assim apaga a diferença entre a defesa das condições de vida contra o Estado ou penetrando a forma política, por um lado, e a defesa desta mesma forma, por outro. Como regra fundamental podia ser estabelecido: Um movimento social autónomo, que apresenta reivindicações ao Estado, não tem por isso de se constituir como partido político. E tão pouco tem de se constituir como representante da propriedade da mercadoria força de trabalho quando apresenta reivindicações perante os representantes da economia capitalista. A condição para isso, no entanto, é que o contexto da forma capitalista do “sujeito automático” como tal seja no fundo negado, que seja programada a sua abolição e que a auto-organização se constitua precisamente nesse sentido. Apenas deste modo a exigência de condições de vida, mesmo nas formas capitalistas, pode ser percebida como separada destas formas e surgir na sua condicionalidade transitória (“duma maneira ou de outra, queremos em última instância libertar as necessidades desta forma maluca”); e apenas nesta base também a antiga cisão entre organização sindical e organização política será “superada”, isto é, tornada supérflua, porque a crítica se vira finalmente contra a constituição capitalista em si, em vez de apenas contra os seus estados modais. A organização e a acção neste sentido ainda não dispõem de um conceito, porque podem de facto ser pensadas, mas até hoje não têm qualquer existência prática. Mesmo os chamados movimentos sociais não ligados a partidos políticos ainda não ultrapassaram no seu auto-entendimento o deficit elementar do antigo movimento operário nem têm qualquer distanciamento relativamente às determinações da forma basilar do “trabalho abstracto”, de modo que também a velha determinação afirmativa do “político” não foi criticamente transcendida.
Em última análise estamos perante deficits complementares do anarquismo e do marxismo (neste ponto também do próprio Marx) relativamente aos conceitos de estatalidade e de política, no que se refere às polémicas no interior da crítica do capitalismo do século XIX e início do século XX. À negação abstracta pelo anarquismo do Estado e da organização política como partido ligado ao Estado corresponde uma revolta vazia da acção sem transformação mediadora ou, como depois no caso dos anarco-sindicalistas, um mero trade-unionismo militante, com reivindicações reduzidas à forma económica imediata. A estatalidade é externalizada e separada do debate sobre as condições de vida, portanto precisamente deste ponto de vista não é tratada como contraente prático também das reivindicações feitas valer na imanência da forma. O marxismo, pelo contrário, aproveita a reconhecida necessidade das reivindicações como ocasião para pretender “constituir” precisamente na forma de “partido político” o próprio movimento social de resistência e de libertação, enclausurando-o assim numa auto-representação na cidadania em geral. Em ambos os casos não se reconhece que as reivindicações de gratificações sociais e materiais, a erguer numa primeira fase necessariamente imanentes à forma, não têm nada a ver com uma “constituição” ela própria imanente à forma, pelo contrário, excluem-na, se devem ser impostas independentemente dos critérios da valorização, em vez de ficarem dependentes dos seus “favores” como meros subprodutos. Ambos os lados falham o problema decisivo, apenas as consequências são opostas.
A carência fundamental na questão torna-se ainda mais clara quando se trata já não de reivindicações parciais imanentes, mas da ruptura com a relação de capital como um todo. Isso diz respeito particularmente à célebre “ditadura do proletariado”, que não por acaso ainda não aparece nos escritos iniciais de Marx, enquanto nas publicações após a viragem estatista até 1848 se fala antes de “governo dos trabalhadores” ou “Estado dos trabalhadores” etc. Na linguagem de então o conceito de “ditadura”, em todo o caso, não tinha toda a amplitude do significado actual, mas referia-se apenas a medidas de governo particularmente enérgicas, sobretudo no processo das revoluções republicanas burguesas.
Na polémica com os bakuninistas um quarto de século depois do Manifesto Comunista destaca-se, precisamente em ligação com a adopção deste conceito, o carácter deficitário e conceptualmente vago da argumentação sobre a teoria do Estado. A mesma contraditoriedade que Marx expressa no comentário a Bakunin em defesa do Manifesto e referindo-se ao “disparate” do “Estado do povo” de Liebknecht, entretanto já quase congelada como dogma, já passa a vias de facto no artigo para o referido almanaque republicano italiano. Aí se diz: “Se a luta política da classe operária assume formas violentas, se os trabalhadores colocam no lugar da ditadura da burguesia a sua ditadura revolucionária, então eles cometem o horroroso crime de violação dos princípios porque, por amor da libertação das suas necessidades quotidianas miseravelmente profanas, por amor de quebrar a resistência da burguesia, dão ao Estado uma forma revolucionária e transitória, em vez de baixarem as armas e cortarem com o Estado”.
No entanto a ironia mais uma vez algo tensa contra a ausência de conceitos dos anarquistas atinge-os menos a eles do que ao próprio vacilar conceptual. Uma “ditadura revolucionária” bem que está pouco orientada pelo “amor das necessidades quotidianas profanas”, pelo contrário, na prática tem de ir além da constituição capitalista, romper com ela, tanto com a forma económica como com a forma política da “vontade geral” transcendental. O “quebrar da resistência” das máscaras de carácter dominantes e do seu aparelho de poder, portanto, só poderia consistir e ser legitimado pelo facto de também a forma política ser realmente quebrada, sendo também quebrada a estatalidade da relação a ser suplantada em geral, em vez de pretender efectuar a “quebra” precisamente na forma geral daquilo que deve ser quebrado. Mas é precisamente isso o que diz Marx, quando pratica a contradictio in adjecto de pretender “dar ao Estado uma forma revolucionária e transitória”, onde o adjectivo “transitório” aponta para a sua má consciência teórica. “Dar uma forma” particular “ao Estado” exclui justamente o carácter “transitório” deste dar forma.
Marx fala de mais quando diz que “abolir o Estado” seria o mesmo que “depor as armas”. A relação de capital só pode ser suplantada juntamente com a estatalidade enquanto tal que lhe é inerente e, justamente por isso, é preciso pegar em armas para poder abolir esta relação como um todo. Precisamente por se tratar de uma mera “luta política” (ou seja, relacionada positivamente com o Estado, obrigada à forma estatal e jurídica), que assume “formas violentas”, então trata-se também apenas de um “tratamento da contradição” e de uma modificação nas categorias da própria “riqueza abstracta”, ou seja, trata-se do próprio desenvolvimento destas, em vez da sua abolição. Daqui se segue, de resto, que as “formas violentas” por si não podem constituir qualquer critério do carácter libertador do confronto, pois também muitos conflitos puramente no interior do capitalismo se podem descarregar de forma violenta. Isso depende do conteúdo e do objectivo, enquanto as formas de acção são condicionadas pela situação e de modo nenhum são constitutivas.
Bastante mais conhecido que o citado texto de Marx é um inteiramente semelhante de Engels, publicado simultaneamente no mesmo almanaque italiano de 1874. Sob o título Da autoridade Engels exprime-se nas mesmas palavras que Marx contra os bakuninistas e os seus seguidores abstractamente “anti-autoritários”: “Porque não se cansam os anti-autoritários de vociferar contra a autoridade política, contra o Estado? Todos os socialistas partilham a opinião de que o Estado político e com ele a autoridade política desaparecerão na sequência da próxima revolução social, e isso significa que as funções públicas perderão o seu carácter político e se transformarão em funções meramente administrativas, que tratam dos verdadeiros interesses sociais. Mas os anti-autoritários exigem que o Estado político autoritário seja abolido de um golpe, ainda antes de serem destruídas as condições sociais que permitem produzi-lo”.
Aqui o contra-senso da argumentação salta ainda mais claramente à vista do que em Marx na mesma colectânea. Que pretende Engels dizer com isto? Quererá ele dizer que, enquanto as “condições sociais” da relação de capital não forem “aniquiladas”, então igualmente se continuar a ter como objecto de “abolição” o Estado, também ainda não aniquilado? Não é este obviamente o sentido da afirmação. Pelo contrário, trata-se da práxis revolucionária do “movimento de abolição” em si. Se, porém, o Estado político desaparece no decurso da revolução social, então esta última é idêntica à sua abolição “de um golpe”, se não se entender esta afirmação como rabulice no sentido de ponto na ordem do dia, mas sim como o “golpe” que cai juntamente com o agudo processo de revolucionamento. Por outras palavras: a abolição não pode ser entendida como um longo tempo histórico de transição, mas sim apenas como medidas de prazo relativamente curto na execução daquela revolução social cujo conceito de outro modo não teria sentido.
Engels tenta salvar-se escolhendo a formulação “na sequência” da revolução social em vez de “no decurso” da revolução social, o que no entanto continua no mínimo ambíguo. Pois se a revolução social é uma coisa e somente na sua “sequência”, ou seja, temporalmente posterior, vem a abolição do Estado, como outra coisa, então esta última não coincide com o conceito de revolução social. E que há-de ser então esta? Engels diz pouco veladamente que o “Estado político” não desaparece com a execução da revolução social, mantendo-se pelo contrário nesta e através desta, como uma espécie de “instrumento”; ou seja, tal e qual como antes no Manifesto comunista e depois no Anti-Dühring.
Engels tenta encobrir este ponto fraco da sua argumentação, entre o “desaparecimento do Estado político” e a sua mera reconstituição através da própria revolução social, chamando em sua ajuda por assim dizer o mito da militância, contra os “anti-autoritários” posicionados fora de qualquer consciência do problema: “Estes senhores nunca viram uma revolução? Uma revolução é certamente a coisa mais autoritária que há; é o acto através do qual uma parte da população obriga a outra parte a obedecer à sua vontade por meio de espingardas, baionetas e canhões, ou seja, com os meios mais autoritários que se possa imaginar; e o partido vencedor, se não quiser ser combatido, tem de conferir durabilidade a esta dominação através do medo que as suas armas causam aos reaccionários”.
Abstraindo do mau entendimento do conceito de autoridade, em todo o caso oscilando de definições ora meramente formais, ora entre a psicologia social e a sociologia institucional, encontra-se aqui a mesma contradição argumentativa que em Marx: a violência dos meios em si não implica de modo nenhum o prolongamento ou reconstituição da estatalidade e da forma da vontade política, como também Engels postula implicitamente. Canhões ou metralhadoras etc. podem igualmente ser utilizados por indivíduos organizados de forma tudo menos político-estatal.
E se a revolução, na medida em que rebenta realmente a relação de capital, é para “durar”, então à sua segurança, mesmo militar, não tem de se aplicar necessariamente o conceito de “dominação”. Pois este conceito não coincide de modo nenhum com o fenómeno de um embate violento no processo de transformação social, pelo contrário, supõe uma relação social estruturalmente sedimentada a longo prazo e no sentido de formação histórica. Se se toma tal relação de dominação não por si e como momento constituinte, mas sim como forma de manifestação duma relação fetichista, então a “dominação” institucionalizada significaria o prosseguimento desta; e não como mera reversão da relação entre “burguesia” e “proletariado”, mas sim, como já referido, como reprodução da relação de capital no próprio “proletariado dominante” (o que de resto é objecto de reflexão espontânea numa piada do socialismo real: “No capitalismo há exploração do homem pelo homem, entre nós é ao contrário”). Apesar de conclusões parcialmente em contrário (por exemplo, o “desaparecimento” do “Estado político”), nestas formulações faz-se valer inconscientemente um entendimento que em última instância não consegue imaginar algo como um contexto organizado de toda a sociedade de outra maneira senão na forma da estatalidade e da sua irreflectida “vontade geral”.
Está à vista que nas polémicas com os bakuninistas, por um lado, vem à tona novamente o antigo deficit na teoria do Estado, posteriormente não resolvido; por outro lado, fazem-se notar também nuances algo diferentemente moduladas, que em comparação com os textos anteriores apresentam uma formulação mais marcial. A acentuação das formas violentas na polémica, com a qual se guarnece a definição da “ditadura do proletariado”, está também em notório contraste com o simultâneo desenvolvimento real da social-democracia, particularmente da alemã, que não podia estar mais longe disso.
O pano de fundo para a mudança no discurso de Marx e Engels é um acontecimento histórico dramático meia década antes da polémica com os bakuninistas, a célebre “Comuna de Paris” de 1870/71, que soçobrou num massacre sangrento. Este acontecimento foi profundamente gravado na memória colectiva pela vilania e sede de sangue dos agentes do Estado capitalista e da base social burguesmente respeitável que os apoiou. À distância de um século e meio ainda ecoa a raiva contra estas personagens “crocodilos” (como Marx, entre outros, lhes chamou), pelo menos se a revolta contra a situação vigente ainda não foi recolhida no guarda-roupa da história e ainda se reconhecem aqueles antigos crocodilos nos actuais.
No entanto, ou precisamente por isso, a distância temporal também obriga a empreender uma análise da elaboração conceptual da teoria do Estado que então soçobrou sob a emoção da impressão directa do acontecimento ou ficou enredada neste. A base será o texto de Marx A guerra civil em França, escrito em Abril/Maio de 1871 e surgido como comunicado oficial da Associação Internacional dos Trabalhadores (Primeira Internacional).
Marx aponta, por um lado, como não podia deixar de ser, com base no procedimento do aparelho governamental, as passagens do Manifesto Comunista onde escreve que o “poder de Estado” se apresenta agora “cruel e descaradamente como instrumento de guerra do capital contra o trabalho”. Contra isso ele assinala a Comuna como “a forma política finalmente descoberta, com a qual se podia realizar a emancipação económica do trabalho”. O conceito verdadeiramente crítico de “trabalho abstracto” permanece aqui mudo, correspondendo perfeitamente à consciência positiva dos operários, e consequentemente, como reverso da mesma consciência, a Comuna surge também como o que de facto era, ou seja, uma “forma política” pertencente ao “trabalho abstracto”, cuja pretensa “libertação” seria o contrário da emancipação social.
Por outro lado, a inaudita violência do embate leva também Marx a colocar em questão a identidade conceptual directa da “forma política” e portanto da estatalidade como mera mudança de sinal social. Encontra-se a célebre formulação a este respeito: “Mas a classe operária não pode simplesmente tomar a máquina estatal já pronta e pô-la em acção para os seus próprios objectivos”. Por isso seria “esta nova Comuna que destrói o poder estatal moderno”. Nos esboços de Marx para este texto, que não entraram no documento oficial de Primeira Internacional, diz-se também: “Daí que a Comuna não foi uma revolução contra esta ou aquela… forma de poder de Estado. A Comuna foi uma revolução contra o próprio Estado, contra este aborto sobrenatural da sociedade…” (destaque de Marx). Estas formulações lembram as do jovem Marx contra o idealismo de Estado hegeliano.
Mas também agora não era possível levar a coisa até ao fim, pois isso seria uma bofetada na cara da consciência do movimento operário, que se mostrava dominante também entre os actores da Comuna de Paris. Marx também desta vez evita novamente a consequência teórica, saltando para outro plano conceptual, designadamente saltando do conceito geral da estatalidade moderna em geral para as formas de manifestação especificamente históricas do segundo império “bonapartista” francês, segundo Marx um “ajuntamento de vampiros de todos os regimes finados, legitimistas e orleanistas… com uma cauda de republicanos antediluvianos”. Esta fenomenologia de um modo de dominação histórica e concretamente determinado é ligada como de costume à generalidade de uma “dominação de classe” dos “possuidores”, e não à “forma da vontade geral” socialmente abrangente. Assim Marx deixa em aberto a saída de interpretar a “revolução contra o próprio Estado” como revolução simplesmente contra uma determinada forma de Estado. A afirmação de que nunca poderia tratar-se simplesmente de “tomar posse” do “poder de Estado” (pré-encontrado) ou, como Marx diz depois, da “máquina do Estado”, mas sim de “destruí-la como poder de governo centralizado e organizado”, como Marx diz no rascunho, permite perfeitamente manter a conclusão de que a classe operária teria apenas de erigir sobre os escombros da máquina estatal burguesa a sua própria. Com isso, “o próprio Estado” seria apenas o Estado histórica e concretamente pré-encontrado, e não o Estado como tal, correspondente ao conceito de “capital em geral”.
Por isso, tanto no texto oficial como nos rascunhos de A guerra civil em França, também só até certo ponto é discutida a relação entre capital e Estado, no sentido de fim em si fetichista autonomizado. Tratando-se, porém, apenas da relação sociologicamente redutora entre “dominantes” e “dominados”, então está amplamente aberta a porta a todas as ilusões ideológicas do formalismo democrático. Neste sentido, Marx ele próprio não está muito longe do vulgar reducionismo de Bakunin a um “em cima” e um “em baixo”; e isto meia década antes da sua própria polémica contra tal pensamento! Através da redução ao plano na realidade meramente funcional, poder político e económico surgem como imediatamente idênticos, ou o aparelho de Estado, tal como em Bakunin (como de resto também entre os ultraliberais), surge mesmo como uma verdadeira casta dominante. Marx diz neste sentido sobre a “constituição da Comuna” que ela teria “restituído ao corpo social todas as forças até então totalmente absorvidas pelo Estado parasita, que se alimenta da sociedade e lhe estorva o livre movimento”.
Já não encontramos aqui nada da crítica da economia política e das suas categorias, com as quais o conceito de Estado assim exposto não tem qualquer mediação. Nessa medida Marx afirma então também que “o direito de voto universal, até aqui… abusado como um brinquedo nas mãos da classe dominante” (rascunho) iria agora “servir ao povo constituído em comunas”. Esta constituição surge efectivamente como ignorando de todo as determinações da forma económica, como pura relação de vontade de sujeitos colectivos imediatos, em que o suporte da vontade emancipatória não por acaso se confunde com a ambígua categoria “povo”. Compare-se com isto aquela expressão não publicada de 1875 sobre o “Estado do povo de Liebknecht” como um “disparate”! Fica também por reflectir qual a relação entre formação armada e “vontade eleitoral democrática” formal, porque o carácter social desta última surge sem pressupostos.
As formas sociais fetichistas já não determinam a natureza da coisa, mas são escondidas. A “classe operária”, ou até o “povo”, figuram como portadores da vontade per se emancipatórios, em si ontologicamente “bons”, cuja acção, uma vez desencadeada, já será sempre libertadora pela sua “maneira de ser”. Por falar em “forma política”, o simples “direito de voto universal” é consequentemente redefinido sem fundamentação a partir do modus burguês para um modus transcendente, sendo o capitalismo declarado como objecto mais uma vez reelegível; apesar de toda a retórica marcial em contrário. Nestas figuras argumentativas, no entanto, emerge vaga e involuntariamente a autoconstituição do “povo” como reprodução interna da relação de capital não ultrapassada no seu contexto formal. Uma lógica a que também a Comuna de Paris, na sua práxis dirigida por tais ideias, não tinha conseguido furtar-se, como Marx não deixou de registar.
Encontramos o último acto deste drama sobre a teoria do Estado dezassete anos mais tarde, no prefácio de Engels à nova edição de A guerra civil em França datado de 18 de Março de 1891, oito anos após a morte de Marx e quatro anos antes da sua própria. Aqui repete ele em primeiro lugar a afirmação de Marx de “que a classe operária, uma vez chegada à dominação, não podia continuar a administrar com a velha máquina de Estado”, prosseguindo que ela “por outro lado, teria de precaver-se contra os seus próprios deputados e funcionários, ao declarar estes sem qualquer excepção revogáveis a todo o momento. Em que consistia a qualidade característica do Estado até então? A sociedade tinha criado originalmente os seus órgãos próprios, por simples divisão de trabalho, para cuidar dos interesses comuns. Mas estes órgãos, cuja cúpula é o poder de Estado, tinham-se transformado com o tempo, ao serviço dos seus próprios interesses particulares, de servidores da sociedade em senhores dela. Como se pode ver, por exemplo, não só na monarquia hereditária, mas igualmente na república democrática”.
Engels abandona aqui completamente até a mera tentativa de mediação com a crítica da economia política, para em vez disso explicar o Estado em si simplesmente à maneira da sociologia das organizações e transhistoricamente a partir da “simples divisão do trabalho”, em que se teriam tornado necessários “órgãos” específicos para “tratar” de tarefas específicas. Esta definição completamente a-histórica e redutora constitui então o ponto de partida para derivar o carácter de dominação da estatalidade a partir da mera independentização destes órgãos face à sociedade e do desenvolvimento dos seus “interesses particulares próprios”. Qualquer tipo de organização abrangente, no entanto, pode ser desenvolvida a partir de relações constitutivas ou relações fetichistas muito diferentes, não passando assim de ideologia iluminista burguesa o conceito transhistórico de estatalidade. Só houve Estado como momento constituinte da moderna “economia política” e do seu movimento de fim em si da “riqueza abstracta”, sendo que nesta relação a independentização do Estado face à sociedade tem um carácter completamente diferente de instituições de mera “divisão de trabalho” transformadas em função dos “interesses particulares próprios”. Pelo contrário, trata-se à partida de uma determinação da forma transcendental e realmente metafísica, como um aspecto da socialização fetichista pelo capital, que nas suas formas de manifestação institucionais também apenas consegue fazer valer os seus “interesses particulares próprios” como dependentes, nomeadamente como determinados pelo fim em si superior do movimento de valorização.
Ainda mais que Marx na acima mencionada passagem de A guerra civil em França, Engels argumenta aqui incontestavelmente à maneira bakuninista, movido por uma autonomização igualmente ideológica do político, cujo conceito rebaixado transhistoricamente e à maneira da sociologia das organizações sugere um plano completamente independente da “dominação em si”. Consequentemente Engels descreve a suplantação do sistema de dominação estatal no pretenso exemplo da Comuna de Paris também de modo completamente independente de quaisquer condições a priori da forma e da constituição, em falsa imediatidade no plano isolado da política. Contra a “transformação, inevitável em todos os Estados até agora existentes, do Estado e dos órgãos do Estado, de servidores da sociedade em senhores da sociedade, a Comuna aplicou dois meios infalíveis. Em primeiro lugar, ocupou todos os cargos, administrativos, judiciais, docentes, por meio de eleição por sufrágio universal dos interessados, e mais, com revogação a todo o momento por estes mesmos interessados. E, em segundo lugar, ela pagou por todos os serviços, grandes e pequenos, apenas o salário que outros operários recebiam”.
Aqui chegámos definitivamente ao vazio formalismo bakuninista do “em cima” e “em baixo”, de que Marx troçara no seu comentário de 1875, sem no entanto ter penetrado o problema sistematicamente. No fundo Engels supõe, precisamente como a ideologia iluminista burguesa, algo como um instinto inato de poder ou dominação do homem em si, que só poderia ser domado institucionalmente. Porém, se a dominação não representa qualquer relação de vontade autónoma, mas sim uma forma de manifestação de relações fetichistas, então a dominação nem pode ser explicada a partir de si mesma nem pode ser suplantada tomada em si mesma, mas sim apenas através da abolição do contexto da forma social transcendental. Se a dominação não for tornada supérflua deste modo a partir dos seus fundamentos também não servem de nada todos os meios de contenção formais e exteriores.
O único “meio infalível” contra a continuação da eficácia da dominação política dos agentes do Estado consistirá, portanto, em destruir o fim em si autonomizado da “riqueza abstracta”; só então, a partir da “destruição da máquina estatal”, o poder político não voltaria a ressurgir como Fénix das cinzas. E só nisto, neste “destruir” dos próprios pressupostos transcendentais, consistirá então a diferença relativamente à vulgar república democrática.
Mas Engels “esqueceu” aqui todos os pressupostos; ele viu a diferença fundamental do democratismo burguês apenas nos procedimentos formais do próprio democratismo: lá, eleição de representantes sem dependência da vontade dos eleitores; aqui, resseguro desta vontade através da eleição directa e revogável não só de representantes mas de todas as funções do Estado. Em ambos os casos no entanto se desenvolve igualmente uma forma de dominação política na base da reprodução social através do “trabalho abstracto” e do valor, porque a questão não é formas mais ou menos vinculadas de representação da vontade eleitoral, mas sim a representação política do movimento do fim em si autonomizado, abstracto, a que também a “forma de vontade geral” transcendental do próprio eleitor já está ligada a priori, de tal modo que “votar” só pode dar sempre uma forma de desenvolvimento à contradição interna; e é precisamente nisso que consiste a política burguesa.
Os meios descritos por Engels são tudo menos “infalíveis”; mostram apenas o desamparo do trato da “democracia de base” com as categorias fundamentais cegamente pressupostas da reprodução capitalista. Isto aplica-se por maioria de razão ao pagamento aos funcionários públicos de um “salário operário”, que na sua forma monetária volta a pressupor a “riqueza abstracta” e com ela as formas de dominação que refutam aquele igualitarismo formal e com facilidade se livrarão dele. No fundo toda a argumentação de Engels passa ao lado da questão, tal como a de Bakunin. Esta dialéctica da crítica do Estado redutora mostra-se também no fim da referida introdução de Engels, quando ele afirma que “a destruição do anterior poder de Estado” pela Comuna de Paris não significaria senão “a sua substituição por outro, verdadeiramente democrático…”. Assim pôde a consciência social-democrata na verdade sossegar completamente e deitar-se num descanso teórico do qual nunca mais deveria levantar-se.
O socialismo anarquista e qualquer socialismo pequeno-burguês em geral, que abstrai das formas transcendentais da relação social previamente ligadas à vontade empírica, gostaria de reduzir a questão da alternativa sempre a relações de vontade imediatamente empíricas e “simples”. Por isso se lembra sempre de “modelos” pequenos e razoáveis de cooperativas e comunidades com democracia de base. Dentro de cujos limites tudo deve decorrer “livre de dominação” e de acordo com decisões comuns.
Ora assim não se alcança nem a realidade nem o conceito de contexto social e parece que se pretende fazer regredir a humanidade ao nível de aldeolas isoladas entre si com a mais tosca produção de subsistência. Com base nas quais se constituiriam então, por maioria de razão, toscas e primitivas estruturas de dominação. A questão decisiva é a das formas de organização abrangentes das múltiplas produções, infra-estruturas e “comunidades” isoladas, de acordo com o seu relacionamento interno que apenas enquanto todo constitui algo como socialização e com ela uma relação social. Nem podemos contentar-nos em definir a socialidade libertada como mera “soma” exterior daquelas micro-estruturas cooperativas, nem o seu “modelo” é suficiente para uma mediação social global, até transnacional ou planetária, de milhares de milhões de actividades de reprodução isoladas.
O contexto social abrangente constitui uma qualidade própria que tem de encontrar a sua forma própria de mediação e organização. E é este contexto social mediado que, na sua qualidade negativa dominante como movimento fetichista de fim em si mesmo, determina a forma a priori da vontade empírica. É portanto uma ilusão ingénua pretender qualificar esta última de maneira diferente na pequena escala, enquanto o contexto da forma social verdadeiro porque abrangente continua a ser uma “caixa negra” não dominada e francamente não reflectida.
No século XIX era obviamente difícil reconhecer o problema como tal em geral. A consciência social ainda estava muito amarrada a formas de dominação política não amadurecidas, só percebidas na passagem ao “Estado capitalista autêntico” da moderna democracia de massas, enquanto as categorias transcendentais da “riqueza abstracta” já surgiam como pressupostos ontológicos, não mais carecendo de discussão. A tensão e a contradição das relações bem como o problema do contexto social pareciam residir apenas no plano político, e com esses óculos era também percebida a economia capitalista, ou seja, reduzida às empresas individuais e às relações de dominação que aí se viam. Embora, mais de 150 anos depois, a relação de capital se tenha desenvolvido tanto económica como politicamente até ao pleno reconhecimento, a percepção transmitida do século XIX manteve-se ideologicamente determinante, precisamente na esquerda.
Até hoje, o problema da qualidade específica da mediação social abrangente só a custo tem sido objecto de discussão, apesar de entretanto ter obtido um conceito como “síntese social”. Esta “síntese social” é tratada nas ciências sociais sobretudo de modo descritivo e afirmativo. Em meados do século XX Alfred Sohn-Rethel localizou na forma da mercadoria essa “síntese social” à margem do discurso marxista, e apenas mais recentemente Moishe Postone aplicou ao “trabalho abstracto” esse conceito, como forma do contexto social. Mas a questão ainda não fica esclarecida. A organização cooperativa “com democracia de base” no plano empresarial e comunal deve incluir a libertação social, o socialismo e o comunismo – mas em que relação recíproca estão as cooperativas e comunidades? Se este problema permanece na obscuridade e não é reconhecido como ponto decisivo então também a “base” alternativa pretensamente transcendente no plano micro não passa de uma inverdade.
Marx expressa-se sobre isso em A guerra civil em França apenas de modo breve e significativamente vago no que respeita à determinação do conceito: “Ora aqueles membros das classes dominantes que são suficientemente inteligentes para perceber a impossibilidade de continuar o sistema presente – e são muitos – tornaram-se os apóstolos, importunos e de voz cheia, da produção cooperativa. Mas se a produção cooperativa não permanecer uma fraude e uma armadilha, se substituir o sistema capitalista, se a totalidade das cooperativas regular a produção nacional segundo um plano comum, tomando-a assim sob o seu próprio controlo e pondo termo à anarquia constante e às convulsões periódicas que são a fatalidade da produção capitalista – que seria isto, senhores, senão comunismo, o comunismo ‘possível’?”
Marx vê bem o problema, mas responde-lhe, de modo conceptualmente tão insuficiente como Engels, com o problema do Estado, a saber reduzido à sociologia das organizações e referido apenas a uma vontade empírica suposta. Se, quanto ao seu pretenso carácter alternativo, as cooperativas permanecem no seu isolamento, continuando portanto implicitamente a sua mediação recíproca através do mercado (o que Marx, no entanto, não refere nesta passagem), então também permanecem “uma fraude e uma armadilha”, o que se pode dizer do conjunto da práxis e da ideologia do cooperativismo até hoje. Mas em que consiste então a “totalidade das cooperativas”, pela qual deve ser regulada a produção social “segundo um plano comum”? Abstraindo do facto de Marx limitar a “totalidade” à “produção nacional” (embora ele saiba que o capital é por princípio uma relação mundial e assim se desenvolve também empiricamente, tendo a alternativa de ser também transnacional), o conceito de “totalidade” permanece vazio e indeterminado. Tal como Engels na sua introdução vinte anos mais tarde, que sobre isso diz de modo igualmente indeterminado que a nova organização “deveria unir todas estas cooperativas numa grande associação”.
Se se quiser determinar mais de perto a “totalidade” social e consequentemente o carácter de um “plano comum” abrangente, então terá de se formular em traços largos a determinação da forma social qualitativamente diferente, que se veja livre do ditame da “riqueza abstracta”. Trata-se, portanto, não de uma descrição utópica de detalhes nem de uma antecipação da práxis futura, mas sim da determinação geral de diferença em relação à socialização capitalista. Paga-se agora pelo facto de o conceito de “vontade geral” transcendental nunca ter sido analisado criticamente com mais rigor. Na auto-reflexão afirmativa da razão capitalista iluminista, como se viu, ambos os lados da forma da vontade a priori e do contexto social foram determinados como aquela metafísica real da “mão invisível” na forma do mecanismo de mercado, por um lado, e como a correspondente metafísica real da “vontade geral” política ou da forma geral jurídica, por outro, para além de quaisquer expressões empíricas de vontade; no entanto, sem incluir na reflexão a substância abrangente do “trabalho abstracto” e da universal “objectividade do valor” da reprodução social. Marx produziu contra isso o conceito crítico de “trabalho abstracto” e também criticou rudimentarmente a forma da vontade política, no entanto sem juntar estes dois momentos e sem desenvolver consequentemente a crítica da estatalidade e da política.
Quatro anos após A guerra civil em França, na Crítica ao Programa de Gotha (1875), Marx empreende mais uma tentativa quanto a um aspecto da “síntese social” pós-capitalista. Ele diz aí sem ambiguidade que numa socialização socialista ou comunista desaparece à partida a “qualidade objectiva” da objectividade do valor dos produtos e também já não há mais qualquer “troca” (por exemplo, entre as ominosas cooperativas), ou seja, é abolida a “mão invisível” da mediação do mercado e substituída por um plano em categorias puramente materiais ou de conteúdos e de acordo com puros critérios de necessidade. Esta investida ficou historicamente como nota marginal. A questão decisiva seria em que relação está a abolição da forma do valor ou da mercadoria com o “trabalho abstracto”, por um lado, e com a estatalidade, por outro.
É característico que Marx não tenha mencionado antes, quando da determinação de uma “totalidade das cooperativas” em A guerra civil em França, a abolição da objectividade do valor e da “troca” (mediação do mercado) referida já como ponto de partida na Crítica ao Programa de Gotha, sendo que em ambos os textos está igualmente ausente o conceito negativo de substância do “trabalho abstracto”. Em vez disso diz ele sobre o objectivo implícito da Comuna de Paris: “Emancipado o trabalho, todo o homem se torna um trabalhador e o trabalho produtivo deixa de ser um atributo de classe”. Este trecho tornar-se-ia recomendável para os marxistas da ontologia do trabalho, como particularmente susceptível de ser citado no sentido da sua auto-afirmação filológica e do escamoteamento do “outro Marx”. É perfeitamente claro que Marx não pretendeu incomodar nem os actores da Comuna de Paris nem a social-democracia alemã com uma crítica teórica da abstracção “trabalho”. Por isso não formulou o problema no sentido da sua crítica categorial da economia política, mas sim no sentido da inversão ideológica pela consciência do movimento operário. É precisamente no fim em si da “riqueza abstracta” que o “trabalho” se “emancipou” dos indivíduos como abstracção real, e faz parte da totalização do capital que “cada homem se torne um trabalhador” como mero sujeito funcional. No livro primeiro de O Capital também o “trabalho produtivo” já é assinalado como a “má sorte” dos seus “sujeitos” e a sua generalização seria tudo menos libertação social.
Mas se a “síntese social” se fundamenta no “trabalho abstracto”, então os produtos transformam-se necessariamente em “fantasmáticas” objectividades de valor, também necessariamente mediadas pelo mecanismo cego da “mão invisível”, ou seja, pelo mercado e pela concorrência. É cegueira ideológica pretender jogar a abstracção real “trabalho” contra o mecanismo do mercado; nesta base é impossível uma regulação consciente através de um “plano comum”. O que resta então é apenas a estatalidade como a outra face da mesma relação fetichista, cuja capacidade de intervenção, no entanto, tem como seu próprio pressuposto e “base natural” indisponível precisamente as cegas abstracção real e “mão invisível”. Pretender atribuir-lhe algo diferente, como no idealismo de Estado de Hegel e Lassale, é por maioria de razão cegueira ideológica.
Assim se mostra que e porquê a ideologia de base da ontologia do trabalho desmente a ambicionada abolição do mecanismo de mercado e a sua substituição por um “plano comum”, o que então é necessariamente reduzido ao idealismo de Estado, como muleta para a “síntese social” falhada. De resto como também na Crítica ao Programa de Gotha, onde Marx mais uma vez deixa transparecer a argumentação deficitária: “Entre a sociedade capitalista e a comunista fica o período da transformação revolucionária de uma para a outra. Ao qual corresponde também um período político de transição cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado” (destaque de Marx). Passados quatro anos, também a afirmação em A guerra civil em França sobre a “revolução contra o Estado” é libertada de toda a sua exuberância e reduzida positivamente a “o Estado do período de transição”, deixando a crítica de ser crítica da categoria para se tornar mera crítica dos atributos. Também nada se modifica quando Marx poucas páginas abaixo vocifera contra a “crença servil da seita de Lassalle no Estado” da qual o Programa de Gotha estaria “empestado”; pois, tal como na afirmação anterior, também aqui se trata não da “forma Estado” em geral, mas sim apenas do seu “atributo de classe”, concretamente do Estado prussiano (tal como no caso das declarações sobre a Comuna de Paris se tratava do Segundo Império francês). Tanto mais contraditório é o caso se Marx no mesmo contexto faz notar que “apesar de todo o tinido democrático” o programa estaria também empestado “da crença democrática em milagres”, pois essa crença em milagres mantém-se na verdade não “apesar” do tinido democrático, mas justamente enquanto e através dele.
É bem claro que a argumentação sobre a teoria do Estado salta repetidamente da pista, como num CD com defeito; durante décadas dá-se sempre de novo a mesma volta. Não admira que a esquerda impregnada por este deficit habitualmente também recue assustada perante o problema da “síntese social” e se refugie no “modelo platónico” da ideologia cooperativa, que desde o século XIX vem sendo invocado em múltiplas variações, até às ideias alternativas de um “trabalho com sentido e sem chefe” e às comunas da década de 1980. O horizonte limitado à empresa ou à comuna não se perdeu aí; e sempre que a “síntese social” cai no horizonte, a ideia regride de imediato para formas quase ou proto-estatistas, com o ilusório resseguro da “democracia de base”. O anarquismo nunca chegou sequer além de uma estrutura cooperativa micro ou local, imaginada “livre de dominação” e ainda menos ligada à crítica da forma da mercadoria do que no caso dos marxistas; e em situação de aperto, tendo de considerar na prática um contexto social das suas comunidades de base (por exemplo, na hipótese de um desenvolvimento diferente da guerra civil de Espanha), tão-pouco ele poderia renunciar nesse caso a uma natural estatalidade que por si se constitui alienada, como expressão política da “riqueza abstracta” não abolida e do seu contexto formal.
Neste ponto é preciso recordar mais uma vez que, o mais tardar na segunda metade do século XIX, as categorias fundamentais da “riqueza abstracta” foram retiradas da reflexão afirmativa consciente do pensamento burguês e regrediram para pressupostos tácitos e na aparência naturalmente ontológicos, na mesma medida em que foram historicamente impostas como formas de reprodução. A relação de tensão sócio-histórica no interior da “riqueza abstracta” manteve-se apenas no plano da forma política, porque aqui persistiu em muitos aspectos um deficit de imposição da democracia de massas capitalista; particularmente na Alemanha e na Europa Central, sem esquecer as regiões periféricas ou coloniais, mas também na Europa Ocidental.
Tratava-se aqui já não da moderna estatalidade como tal, mas sim das suas consequências. Por isso a discussão deslocou-se do conceito de “vontade geral” transcendental, que também já se tinha sedimentado como fantasma ideológico do “bem comum”, para o alcance e organização concreta desta forma de vontade a priori. Esta redução e, portanto, limitação fez-se valer não só no movimento operário social-democrata, mas também no próprio Marx, como se viu; Marx tornou-se afinal um mero “teórico da modernização”, que permaneceu sem mediação com a sua própria crítica da economia política precisamente no que respeita à forma política e ao contrário da sua primeira linha de argumentação crítica do idealismo de Estado de Hegel.
O processo de sedimentação das categorias até ao interior da consciência quotidiana teve também uma consequência metodológica fundamental, tanto para o pensamento científico como para o pensamento comum. Uma vez que o carácter transcendental e a priori das categorias sociais deixou de ser problematizado na reflexão teórica, mesmo em sentido afirmativo, regredindo pelo contrário ao estatuto quando muito de mero seguro ideológico, os monstros filosóficos da razão iluminista capitalista surgiam como uma espécie de Himalaias majestáticos da reflexão, já meio incompreensíveis, de algum modo merecedores de admiração, mas no entanto também “ultrapassados”, por já não se precisar deles. Pois aquele ominoso contexto da forma transcendental, a cujo estado embrionário a reflexão iluminista se tinha referido com um esforço de pensamento violentamente afirmativo, tinha-se entretanto coagulado na naturalidade quotidiana por Marx designada “forma de ser objectiva” e simultânea “forma de pensar objectiva”.
A montanha da razão capitalista auto-reflexiva acumulada tornou-se assim um lugar santo justamente da teoria marxista dos epígonos, na medida em que esta já pretendia declarar a mera discussão do contexto categorial como “herança” positiva e já quase fazê-la passar por crítica radical, embora apresentasse este sistema de pensamento como rígida afirmação. O conceito de crítica deslocou-se, pois, do plano das categorias para o plano dos atributos, e assim para a “realização” dos ideais iluministas, em vez de para a abolição dos seus reais pressupostos, o que também vinha precisamente ao encontro da consciência histórica do movimento operário.
Para o pensamento burguês oficial, que descera ao nível do positivismo, a filosofia do iluminismo, pelo contrário, já constituía apenas uma espécie de museu de relíquias, ou um panteão na prática tornado inútil do seu pensamento há muito “realizado” de facto, enquanto a exigência real já era apenas pragmática. O carácter ideológico do positivismo e do pragmatismo, no entanto, deixou de poder ser suficientemente criticado, porque o próprio pensamento marxista se tinha tornado num pensamento ideológico em sentido estrito, apenas apresentado de modo invertido, na medida em que, como “ortodoxo”, se limitava ao Marx teórico da modernização e se centrava particularmente no momento da democracia estatista da teoria de Marx. Para o marxismo do movimento operário, portanto, estava ainda por vir a “realização” da pretensa “promessa de felicidade burguesa”, que devia ser efectuada como social-democrata.
O poderoso mainstream do pensamento burguês, que regredira da problemática transcendental para a descrição de factos isolados descontextualizados e para instruções de uso neste mundo dos factos, teve então de inverter francamente o ponto de partida da reflexão em relação ao pensamento do iluminismo até Hegel. Enquanto o problema fora ainda a constituição social transcendental, também o “cálculo subjectivo” fora determinado como algo isolado e acidental face à generalidade social a ser explicada positivamente, e portanto como algo secundário e de menor valor, a que a totalidade positiva não podia ser limitada. A vontade empírica tinha de ser deduzida da “vontade geral” transcendental, da lógica da totalidade, do “princípio racional” a priori. Uma vez que o processo de constituição real estava agora em certa medida consumado, tinha de se tirar a conclusão desta abordagem. De modo precisamente inverso, o “cálculo subjectivo” imanente podia agora surgir como o último e o autêntico da socialidade, para apenas dele deduzir as estruturas objectivas.
Esta inversão impôs-se em primeiro lugar na economia política na segunda metade do século XIX, na passagem da clássica para a chamada neo-clássica. Desapareceu o carácter transcendental da “mão invisível”, como lógica da totalidade capitalista (reduzida à circulação), tal como o conceito de substância do valor reconduzido (apenas formal e incompletamente) ao “trabalho”, e com isso desapareceu também qualquer diferença conceptual entre valor e preço. Extinguiu-se na economia política tudo aquilo que Marx, numa formulação ainda assim equívoca, tinha designado como “científico” nos clássicos por ele criticados no fundamental. Tudo o que restou na escola da utilidade marginal e em geral na chamada “teoria do valor subjectiva” (os desenvolvimentos e diferenças no interior deste paradigma são aqui irrelevantes) foi uma redução ao cálculo do homo oeconomicus, ao qual é atribuída uma “racionalidade” subjectiva como participante no mercado. No lugar da substância transcendental surge uma referência puramente funcional à relação de troca, definida pelas “avaliações” dos actores da circulação.
A economia política, como primeira ciência social burguesa, consumou assim a passagem da reflexão afirmativa da objectivação apriorística real para a subjectivação das categorias aparentemente sem pressupostos e resolvida em mero cálculo. A “objectividade” (económica) não desapareceu simplesmente, mas o seu conceito reduziu-se a uma “lógica de acção” desse cálculo económico; mais ou menos como se cada referência da acção tivesse a sua própria lógica banal, por exemplo, que qualquer pessoa com encargos pesados possivelmente não faz extravagâncias, ou que quem tiver um pomar de macieiras não compra maçãs etc. Por outras palavras: a objectividade económica deixou de ser derivada de uma forma da vontade geral a priori, sendo pelo contrário imediatamente associada aos actos de vontade empíricos. O que restou da objectivação foi a “racionalidade” de um agir empírico e da sua análise, que deixou de reflectir o contexto condicional historicamente produzido, pressupondo-o pelo contrário cegamente e negando qualquer predeterminação transcendental.
Um desenvolvimento perfeitamente semelhante se pode observar na nova ciência burguesa da sociologia; nas primeiras abordagens já na segunda metade do século XIX e reforçadamente na sociologia diferenciada do século XX. As acções dos sujeitos (não percebidos na sua constituição), não apenas económicas em sentido estrito mas sociais no mais amplo sentido, deixaram igualmente de ser derivadas dum contexto transcendental objectivado em estruturas, sendo pelo contrário as estruturas percebidas como tais “infrateoricamente”, apenas no baixo nível de abstracção de “instituições” derivadas das acções dos sujeitos.
O clássico da sociologia Talcott Parsons, por exemplo, na sua obra The structure of social action (1937) fala francamente de um “conceito voluntarista de acção”. O que a filosofia do iluminismo tinha proclamado como “princípio racional” eterno a priori é assim traduzido em acções intencionais, que então se consolidam novamente por diferentes vias em instituições sociais; mas já não existe qualquer instância objectiva apriorística e abrangente, pelo contrário, a “acção” consciente surge como verdadeiro ponto de partida lógico. Tal como o sistema da “riqueza abstracta” se dissolve no “cálculo económico”, o sistema de relações sociais assim determinadas dissolve-se no “agir social” intencional, em última instância na subjectivação. Também aqui a objectividade não desaparece simplesmente, mas é separada da sua constituição a priori e entendida apenas como “efeito recíproco” ou como sua resultante na interacção social, ou seja, o conceito de objectividade social também é curto-circuitado com as acções de vontade empíricas.
O mesmo acontece com a “ciência política” ainda mais recentemente diferenciada da economia política e da sociologia. Uma vez que o problema da “vontade geral” transcendental na forma política, esboçado por Rousseau, foi rebaixado no conceito ideologicamente moralista de “bem comum”, também a constituição da estatalidade se deslocou para o pano de fundo dos pressupostos cegos, como referido. O que restou da problemática da constituição transcendental na primeira metade do século XX foram os momentos residuais da “democratização” e do seu resultado ideológico na forma da “mundivisão” política ou dos respectivos partidos. Mas, após a segunda guerra mundial, o tratamento da contradição feito pela política perdeu a olhos vistos este carácter de mundivisão, deslocando-se no sentido das mesmas e pragmáticas “participação” e “actividade profissional” que no caso da economia e da sociologia. A “organização política” entra como não-conceito da acção dos cidadãos e dos agentes do Estado, juntamente com o “cálculo económico” subjectivo e a “acção social” intencional.
Assim, também a estatalidade foi despida do seu carácter transcendental a priori e caiu de certa maneira na subjectivação. A forma política da “vontade geral” foi pressuposta de modo tão cego e irreflectido como a forma económica. No entanto na política restou ainda menos do conceito de objectividade do que na economia política e na sociologia, pois para a pretensa “organização política” não é possível determinar da mesma maneira uma lógica de acção imanente forçosa. A “objectividade política”, assim, já só pode surgir como resultante directa de acções de vontade empíricas (que se impôs com quaisquer pretensões de organização) enquanto a forma política pressuposta, como “determinação objectiva da existência”, já nem sequer pode ser pensada como distinta.
De resto, a viragem subjectivista viveu depois o seu ponto alto no pensamento pós-moderno, na ideia de um simples “jogo de poder” a todos os níveis. Significativamente a “organização política” das relações, cegamente pressupostas quanto às categorias, é agora traduzida numa “negociação política” de todos e cada um. Já neste modo de expressão se mostra a afinidade da ideologia pós-moderna (incluindo as suas alas de esquerda) com o economismo neoliberal. A subjectivação das categorias corresponde à existência do sujeito burguês da circulação, para o qual também Estado e política acabam por se apresentar ideologicamente como uma espécie de praça do mercado universal.
A esta subjectivação categorial correspondeu uma “individualização” do contexto social estrutural, que na verdade já se podia encontrar nos clássicos da economia. A referência aqui não é, ou não é exclusivamente, ao indivíduo burguês abstracto, ao célebre “indivíduo isolado”. Também sujeitos colectivos ou instituições podem surgir como suportes isolados da acção. O “individualismo” significa aqui um princípio do modo de percepção, ou seja, de reduzir a um acto isolado “típico idealizado” o todo social ou o contexto interno da socialização. Ainda que a filosofia do iluminismo tenha incluído uma reflexão afirmativa do carácter transcendental da socialidade moderna, a sua “razão” apriorística já tinha sido apresentada assim reduzida a uma relação ou acção isolada “ideal”.
Este “individualismo metodológico”, como foi designado mais tarde, pretendia portanto explicar o “princípio racional” transcendental no “caso” exemplar, quase sempre em referência à esfera da circulação (“um possuidor de mercadorias encontra outro”). Também em Marx se encontram ainda elementos deste “individualismo metodológico”, por exemplo no que diz respeito à determinação do valor nas mercadorias (típicas idealizadas) isoladas. Também a referida ideia de modelo da ideologia do cooperativismo se baseia neste método. Mas a síntese social já esboçada, através do “trabalho abstracto” e da forma de mercadoria do capital, institui um contexto total que é mais e algo qualitativamente diferente do caso isolado do agir que surge típico idealizado, ou da sua mera agregação exterior. O “modelo” típico idealizado não pode traduzir o contexto real, porque o agir isolado só pode ser explicado a partir do contexto total e da sua lógica própria e não ao contrário.
No pensamento iluminista do capitalismo originário tinha havido uma certa relação de tensão entre a determinação transcendental de um princípio da forma social objectivo e apriorístico, por um lado, e o “individualismo metodológico”, por outro. Esta tensão, que aponta para um ponto cego na percepção, foi ideologicamente descarregada através da posterior subjectivação das categorias. Uma vez que a objectividade negativa apriorística e determinante da relação total, o problema da “segunda natureza” paradoxal e ela própria criada, tinha sido eliminada da própria socialidade, podiam agora caminhar de mãos dadas o pensamento do modelo metodológico e o cálculo subjectivo ou a “organização política”, isto é, o “negociar”.
Isso também não afecta nada o conflito desde então latente sobretudo no pensamento sociológico entre a teoria da acção e a teoria da estrutura; em ambos os casos se trata apenas de diferentes pontos de partida de um procedimento redutor e que escamoteia a relação fetichista constituída a priori. O conceito de objectividade reduzido da teoria da estrutura apenas acentua mais que o da teoria da acção as resultantes dos diversos “efeitos recíprocos” que se condensam em objectividades temporárias e parciais. O plural já diz que a determinação da “estrutura” reside num plano mais profundo: a reflexão sobre as acções de vontade meramente empíricas não vai além de domínios, esferas ou subsistemas mutuamente extrínsecos no seu entendimento da objectividade, falhando completamente o conceito do todo ou, por exemplo na teoria dos sistemas, deixando-o absolutamente vazio em termos de conteúdo e em termos históricos. Não há qualquer diferença entre o “todo” de todo o mundo, de uma aldeola, de uma relação de vida, ou da economia, da política, da cultura etc. Mas assim também já não há lugar para o conceito de uma formação histórica, ou modo de produção e de vida, para o capitalismo como totalidade concreta. De certa maneira podemos assinalar a transformação de economia política na figura da “teoria subjectiva do valor” e as correspondentes tendências na sociologia e na ciência política como a raiz histórica desta teoria social redutora e afinal também da crítica social redutora.
Obviamente que assim o problema só se resolvera a contento ideologicamente. O mundo dos factos pré-encontrado e pragmaticamente interpretado ou negociado ficou cada vez mais fora da reflexão teórica no que respeita à sua constituição e condicionalidade, ou deslocou-se para o estatuto de naturalidade antropológica, a qual o pensamento iluminista acreditara ter ainda de “provar” como tal e assim a considerando indirectamente tudo menos natural, enquanto agora era transformada num quotidiano pretensamente inquestionável. Mas o pressuposto tácito deste trato com a condicionalidade categorial era o “funcionar” mais ou menos sem atritos do “sujeito automático” e do seu solto movimento de fim em si, que no século XIX pôde de facto dar a impressão de inexorabilidade, como processo de imposição e ascensão do capital. No entanto já nesse tempo as crises por Marx logicamente compreendidas mas então empiricamente reinterpretadas davam a entender que a objectivação entretanto negada e o seu carácter transcendental e apriorístico se manifestariam violentamente na sua negatividade.
Apesar de todas as modificações, a filosofia do Estado absolutista de Hobbes está sempre à espreita como real potencialidade no pano de fundo da constituição capitalista. Isto diz respeito não só ao estado de “natureza” e portanto de guerra latente para com o exterior, mas também à relação interna do Leviatã com os seus próprios cidadãos, e ainda mais com o “material humano” da “riqueza abstracta” e da sua incessante valorização. Leviatã é a metáfora para aquela “soberania” primeiramente pensada como ilimitada; um conceito cujo carácter ideológico essencial se pode agora determinar duma maneira nova. No caso é indiferente a forma concreta em que aparece “o soberano”, se na sua protoforma de monarca absolutista, se como comité revolucionário de bem-estar, como autocrata ou “Führer” da modernização, como ditadura de partido, ou maravilhosa representação democrática. Até se pode imaginar uma larva da “soberania” na “democracia de base”. Essencial aqui é uma relação de força imediata, como núcleo que pode manter-se latente, permanecer escondido ou surgir como metamorfose na forma jurídica, mas constituindo sempre o pano de fundo ou fundamento da relação social; independentemente do facto de isso ser admitido ou não. Prova-se sempre na prática.
O problema agora é a derivação desta “soberania”, como relação de força constitutiva carecendo de um fundamento que já não pode simplesmente pedir ajuda à “vontade de Deus”, embora a protoforma transformadora ainda tenha aparecido como “direito divino”. A derivação e legitimação mitologizante de Hobbes permanece fraca e inconsistente, enquanto a posterior determinação do “princípio racional” a priori por maioria de razão é contraditória em si: se se tratasse de facto de uma consequência da razão comum a todos os seres humanos, porquê então a força bruta como pressuposto e como consequência? O nascimento da razão do espírito da força directa diz muito sobre o carácter da “riqueza abstracta” e da sua forma de reflexão como filosofia do iluminismo, mas com isso não se concebe nem esclarece este contexto. Aqui se mostra já que um esclarecimento suficiente só será possível no modus de uma crítica radical de toda a organização.
Naturalmente que a relação de força constituída não foi nenhuma ideia impossível apriorística, mas sim o resultado de processos históricos cegos que se tinham desenvolvido atrás das costas dos actores e das suas intenções limitadas. A sua mais forte justificação perante a consciência afirmativa foi desde o início a pura facticidade, para a qual se procuraram legitimações sempre ténues no estilo de Hobbes desde os começos protomodernos. O pano de fundo era constituído pela efectiva violência física com que as relações foram revolucionadas desde a revolução militar das armas de fogo e a ética protestante. A submissão, que se estendeu por séculos, dos seres humanos à lógica da “riqueza abstracta” autonomizada teve de destruir sucessivamente todas as tradições, hábitos e normalidades; e de facto de uma maneira completamente heterónoma e repressiva.
Poder-se-ia expressar a situação com um conceito posterior pleno de consequências: o novo sistema de regras nascente, pela primeira vez na história um sistema de socialização geral, abstracto e negativo, assentou num “estado de excepção” sem precedente histórico. Trata-se daquele processo do qual Marx disse no capítulo sobre a acumulação primitiva que foi inscrito “com sangue e fogo” nos anais da humanidade. O que apenas resulta como explicação a partir do entendimento crítico desta história de constituição – nomeadamente que a submissão a um fim em si transcendental, heterónomo e abstruso não pôde consumar-se senão violentamente e teve de permanecer uma relação violenta em processo – surge do ponto de vista desta mesma relação como um mistério; principalmente os actores constitutivos não tinham qualquer consciência do seu papel como parteiros da máquina social capitalista.
O carácter processual da máquina capitalista, que se prolongou por muito tempo, também contribuiu para a mistificação. O estado de excepção coagulado numa nova normalidade repressiva não era obra duma determinada situação temporalmente pontual, mas sim uma história própria diversificada, com muitas situações, momentos de retrocesso, repetidas solidificações e liquefacções da constituição, com fases intermédias de um estado juridicamente codificado aparentemente entrado em sossego. Ora a relação de capital naturalmente nunca entra completamente em sossego, por causa da dinâmica interna da “riqueza abstracta”. Mas é preciso distinguir entre, por um lado, o take off que durou séculos, aquela longa história de tentativas em que as erupções violentas da “colonização interna” (como também foi designada a história da constituição) ficavam frequentemente muito separadas no tempo e, por outro, o desenvolvimento do capital “sobre as suas próprias bases” desde a industrialização.
Também aqui houve novamente um processo de tentativa e imposição, que ocupou a maior parte do século XIX. Após os começos violentos da industrialização, com o novo estado de excepção dos levantamentos (por exemplo dos luditas), do seu esmagamento e das brutais formas de disciplinamento industrial, a “colonização interna” pareceu conduzir a uma certa pacificação durante cerca de meio século, através da expansão capitalista e da absorção crescente de força de trabalho, bem como da internalização do “trabalho abstracto” e dos seus critérios. Assim, apesar de todas as medidas policiais (por exemplo, as leis de Bismarck contra os socialistas), na percepção das relações, cujo carácter transcendental já estava ideologicamente dissolvido em subjectivação e pragmatismo, entraram novamente para primeiro plano as relações contratuais “pacíficas”, nas quais agora também os trabalhadores e trabalhadoras e seus representantes estavam cada vez mais envolvidos pela sua constituição como cidadãos. Embora esta cidadania ainda não estivesse completamente implantada, poderia falar-se de certo modo de uma “época social-democrata”, que tem a ver com o “horizonte de progresso” burguês.
O núcleo de violência da forma jurídica geral e da “soberania” estatal manteve-se latente para o interior, enquanto para o exterior, em luta imperial nacional pela garantia mundial da “vontade geral”, avançava retórica e militarmente para o embate manifesto previsível, no “estado de natureza” ideologicamente postulado dos Leviatãs. A violência descarregou-se na época das guerras mundiais, mas não pôde manter-se limitada à pura relação externa. Não foi apenas o assassínio de massas industrializado que se repercutiu nas relações internas do monstro leviatãnico; pelo contrário, as falhas económicas e sociais de modo nenhum condicionadas somente pela economia de guerra, de uma acumulação da “riqueza abstracta” que pela primeira vez esbarrou em limites internos e já não meramente externos, ameaçavam desfazer o contexto da forma transcendental. Não por acaso pertenceu à época das guerras mundiais também a maior e mais devastadora crise económica mundial ocorrida entre elas.
A objectividade negativa do “princípio racional” a priori, ideologicamente escondido e há muito negado, manifestou-se como uma catástrofe natural. Nesta situação histórica o estado de excepção constitutivo teve de passar novamente à manifestação directa como nua relação de força. Agora, porém, já não repartido por um grande espaço de tempo nem travado por formas residuais de relações anteriores, mas como violência industrializada e burocratizada da “forma da vontade geral” autonomizada contra o seu próprio material humano, numa compressão monstruosa. Mostrou-se que o estado de excepção como aberração da democracia consumada ultrapassou em rudeza, brutalidade e crueldade tudo aquilo que fora feito pelos homens na história dos crimes fundadores do capitalismo. A ditadura de estado de emergência, ou ditadura de crise da “riqueza abstracta” em falha segundo os seus próprios critérios, executa a coacção tanto mais desenfreadamente quanto ela conhece apenas aquele “princípio racional” transcendental não amenizado por qualquer condição pessoal ou social, que passa ao lado das necessidades sensíveis humanas elementares e deve afirmar-se mesmo contra elas.
Não foi de modo nenhum por acaso que o impulso de democratização global na época das guerras mundiais e da crise económica mundial coincidiu com o surgimento de crimes de crise sem precedentes no quadro do estado de excepção, que na crise rompeu por cima da consciência jurídica e democraticamente domesticada. Subjectivação categorial e pragmatismo revelaram-se como momentos de uma relação coerciva e violenta, cujas manifestações deixaram atrás de si um rasto de sangue. Com isto também foi posta em questão a minimização da “soberania” pela teoria do contrato a partir de Locke e tornaram-se novamente visíveis, na sua nudez obscena, as suas antinomias em Hobbes ainda destapadas.
Tão pouco foi por acaso que a ditadura de crise na Alemanha, que só ultrapassara a sua “modernização atrasada” do século XIX com legitimação nacionalista, se fez notar de modo particularmente excessivo. Como teórico do estado de excepção ficou célebre e mal-afamado o jurista e filósofo do direito Carl Schmitt, vindo da teologia e nessa medida próximo do problema da forma da vontade transcendental, sem no entanto atingir o nível de reflexão da teoria do Estado burguesa clássica (nem da sua crítica). Por isso Schmitt também não procurou com seriedade definir conceptualmente o problema nem esclarecê-lo teoricamente. Em vez disso, dum modo até então inaudito, ligou o carácter transcendental da forma cegamente pressuposta directamente com a pura subjectivação no “estabelecimento” arbitrário.
Assim diz a primeira frase frequentemente citada (e não poucas vezes admirada) do seu escrito com o significativo título de Teologia política (1922): “Soberano é quem decide sobre o estado de excepção”. Aqui já nada é derivado nem fundamentado, mas apenas postulado “decidido” ou definido sem pressupostos. Schmitt realça com clareza que é o caso limite que determina a normalidade e não o contrário, mas ele não volta mais a colocar a questão de saber porque é isto assim e o que constitui a questão em geral. Porque ele próprio pensa a partir da normatividade (jurídica), cujo limite não concebido se lhe apresenta como monstruosidade que só pode ser dominada de modo afirmativamente autoritário e sem legitimação, ele tem de chamar em seu auxílio uma imagem a condizer: “O estado de excepção tem para a jurisprudência um significado análogo ao do milagre para a teologia”.
A “forma vazia” do direito de Kant só é aqui negada para afirmar o seu núcleo de força, como decisão subjectiva não mais fundamentável que já não está obrigada a qualquer verdade: “Auctoritas, non veritas facit legem [A autoridade é que faz a lei, não a verdade]”. O legislador divino exterior à sociedade de Rousseau volta a surgir aqui como sujeito sem pressupostos duma força sem pressupostos, a forma da vontade transcendental como “vontade de poder” empírica imediata. Esta “decisão”, a decisão sem fundamento, seria “considerada normativa, nascida do nada”; tratar-se-ia de uma “pura decisão absoluta, não arguível nem discutível, que não carece de justificação, portanto criada a partir do nada”. O que, no entanto, seria “essencialmente ditadura, não legitimidade”.
Schmitt reproduz este postulado fáctico por assim dizer na argumentação da filosofia do direito. A capitulação teórica incondicional chega com a frase oca da “decisão absoluta”, ela própria triunfante como acto de ditadura conceptual “que não é para ser discutida nem justificada”, que não invoca fundamentos, mas sim o puro poder de facto. A força fundadora, tal como a força mais uma vez concentrada do estado de emergência, justifica-se por si mesma a partir da pura realidade da sua existência, que não precisa der ser derivada de lado nenhum. Ela já não consegue invocar necessidades legítimas, nem sequer interesses sócio-económicos subjectivos, pelo contrário, é negativamente pressuposta a estes; mas Schmitt já não pode nem quer explicar ou de algum modo legitimar esta factualidade transcendental com quaisquer figuras de pensamento rebuscadas, como na filosofia do Estado e do direito burguesa clássica, pelo contrário, retira a legitimação precisamente do facto de não ser legitimável nem explicável. Assim é claro que a legalidade formal não tem origem em qualquer legitimidade, mas sim na pura força decisionista do caso limite indeterminado, em que se pode reverter de novo a qualquer momento. O direito formal universal deriva apenas do reconhecimento fáctico desta autoridade da força “vinda do nada” como um “milagre” e do medo das suas armas.
Há aqui duas coisas importantes que são sempre ignoradas e incompreensíveis para o marxismo do movimento operário corrente. Primeiro, esta violência ditatorial, justamente na sua determinação decisionista, não pode ser derivada de qualquer cálculo de interesses de classe subjectivos; ela é por natureza injustificada e irracional. Também neste aspecto aqui aparece o carácter anómico da base de todo o direito. Já foi assim nas erupções sociais, revoluções e golpes de Estado na primeira metade do século XIX, particularmente em França, a mãe da constituição estatal progressista do capital. Marx, no seu célebre 18 do Brumário, embora analise a questão com todo o brilhantismo de modo muito limitado à ideologia das classes, aponta involuntariamente para este carácter da violenta “salvação da sociedade” (como então também era eufemisticamente chamado a regime de “estado de sítio” civil): “Os burgueses fanáticos da ordem são mortos a tiros nas sacadas das suas janelas por bandos de soldados embriagados, a santidade dos seus lares é profanada, as suas casas são bombardeadas como diversão – em nome da propriedade, da família, da religião e da ordem”.
Em segundo lugar, esta forma anómica não constitui por maioria de razão qualquer interesse independente “com racionalidade interna” autónoma do aparelho da força contra as outras máscaras de carácter da sociedade. No entanto Marx, em o 18 do Brumário, cai precisamente nessa ideia ao imputar aos “bandos de soldados embriagados” na sua embriaguez sanguinária e aos seus chefes uma espécie de cálculo de interesses sociológico; ou seja, mais ou menos a lógica de instituir o seu próprio regime imediato no sentido de então poderem possivelmente esperar “melhor pagamento em dinheiro” pela sua actividade de magarefes de pessoas. Uma argumentação correspondente à autonomização da força estatal pretensamente do puro domínio sociológico encontra-se assim em Marx, como já visto, e sobretudo também em Engels décadas depois, nos comentários sobre a Comuna de Paris, ou seja, sobre uma casta estatal em geral (entendida transhistoricamente). No entanto o carácter sociológico da dominação do aparelho de Estado que aparece só pode ser mediado com a crítica da economia política se não for reconduzido ao plano secundário dos pontos de vista dos interesses imanentes das máscaras de carácter num contexto de analogia superficial, mas for derivado da determinação da forma basilar e do seu carácter fetichista. É a irracionalidade do “sujeito automático”, nas costas de todos os seus agentes e produzido por estes como auto-movimento, portanto a irracionalidade da máquina social de fim em si, que se constitui e reconstitui sucessivamente na irracionalidade da força directa anómica.
A inconsciência e em certo sentido “ausência de interesses” desta força e dos seus excessos de ordem anómicos é precisamente a condição da sua funcionalidade. Desde a época das guerras mundiais e das crises mundiais na primeira metade do século XX, a ausência de fundamento do estado de excepção na lógica formal e na lógica dos interesses sociais deixou de facto de poder passar despercebida, mas esta factualidade pôde apenas surgir na figura de reflexão com igual ausência de fundamento da “decisão” que explicitamente nega qualquer fundamento, na formulação de Carl Schmitt, não como teórico, mas sim como abertura bucal do “sujeito automático”.
Schmitt diz assim de uma vez por todas com afirmação certeira que a ditadura não é o contrário da democracia e do Estado de direito, sendo antes seu pressuposto e simultaneamente consequência; portanto um estado de agregação necessário da “liberdade” transcendental, que nunca pode nem deve ser qualquer liberdade empírica dos indivíduos e das suas necessidades. A mistificação decisionista permanece a última palavra do pensamento burguês afirmativo, porque uma fundamentação negativa e um esclarecimento teórico só seriam possíveis por meio da crítica radical. O facto de Schmitt deixar escapar a positiva infundamentabilidade da “vontade geral” e da sua legalidade com base no formalismo contratual não foi ouvido com prazer, mas a democracia desde o início procedeu assim na prática.
Na época de crises da primeira metade do século XX tornou-se óbvio que a estatalidade democrática já vem sempre grávida com o estado de excepção. Se os critérios da “riqueza abstracta” e do seu “sujeito automático” deixarem de poder ser preenchidos, o direito deixa de ser válido juridicamente, as pessoas jurídicas perdem todos os direitos formais e ficam reduzidas a um pedaço de carne, contra o qual a “auctoritas” subjectiva usa a sua “soberania” com brutalidade ditatorial, sem conhecer os seus próprios pressupostos fetichistas. É precisamente este procedimento que constitui o verdadeiro fundamento de todo o direito (e não a fundamentação legitimatória logicamente impossível).
Dez anos após a Teologia política e em plena crise económica mundial publicou Schmitt o seu não menos famoso escrito O conceito do político (1932), em que completa o conceito de forma jurídica definido a partir do estado de excepção com o correspondente conceito de política. Também aqui a tónica é posta na violência insusceptível de fundamentação, como um “pressuposto sem pressupostos” mudo, mas que sempre de novo se torna inevitavelmente manifesto e real “a partir do nada”. Schmitt reconhece que tanto para o “estado de natureza” dos Leviatãs entre si como para o estado de excepção no interior de cada Leviatã é necessário definir um inimigo, ou seja, uma determinada imagem do inimigo. A legitimação do não legitimável resulta apenas negativamente, a partir da existência do inimigo simplesmente, e somente daí pode resultar um contexto positivo da socialidade assim definida, ou seja, a pseudo-fundamentação do sem fundamento. Daí a célebre definição: “A diferença política específica a que se podem reconduzir as acções e motivações políticas é a diferença entre amigo e inimigo” (destaque de Schmitt).
Para que o constructo permaneça coerente, no entanto, a necessária inimizade precisa tão-pouco de ter uma razão definível como a violência decisionista constitutiva. Também aqui Schmitt caracteriza involuntariamente a irracionalidade do “princípio racional” transcendental, que não consegue, não pode nem quer fundamentar-se. É excluída à partida uma inimizade por razões verificáveis, por exemplo do interesse, da cultura, da interpretação do mundo etc. Os conflitos ligados a isso não atingem segundo Schmitt o nível das definições autênticas e constitutivas do inimigo. A “oposição de amigo e inimigo” autêntica e existencial “não deveria ser confundida nem misturada com qualquer outra oposição”, mas teria de permanecer sem fundamento, tal como a “soberania”: “O inimigo político não precisa de ser moralmente mau nem precisa de ser esteticamente feio; não precisa de agir como concorrente económico, pode até ser vantajoso fazer negócios com ele. Ele é simplesmente o outro, o estranho, e basta para a sua essência que ele seja existencialmente algo outro e estranho num sentido particularmente intensivo…”. Este “ser outro do estranho” significaria perante cada conflito concreto e independentemente dele “a negação do próprio tipo de existência”, o qual, como “tipo de vida próprio, correspondente ao ser” terá de ser por sua vez igualmente infundamentável por definição.
De modo puramente afirmativo e mais uma vez de modo “conscientemente inconsciente”, portanto falando a partir da alma do “sujeito automático”, Schmitt revela desta maneira o que é o atributo central da “vontade geral” androcentricamente universalista, a partir de ambos os seus aspectos: tal como a “mão invisível” do mercado precisa da concorrência universal e com ela da luta económica de todos contra todos, também a forma política precisa do inimigo existencial interno e externo, que é definido como o simplesmente outro. Só a democracia plenamente desenvolvida produz também esta definição negativa na sua forma pura. A concorrência económica total, por um lado, e a definição do inimigo político existencial, por outro, cruzam-se paradoxalmente no atributo negativo central do “princípio racional” transcendental, cuja objectiva impossibibilidade de viver é delegada para realização no “feminino” dissociado ou no seu inferior “trabalho de amor”.
A definição do inimigo existencial sem fundamento permanece pelo seu carácter incerta e pode ser colada a todos os possíveis “outros”. Mas não há dúvida que “os judeus” se tornaram de modo particular nos “outros” puros e simples e portanto no inimigo existencial absoluto para a construção ideológica de base. Não por acaso Carl Schmitt foi desde a juventude anti-semita. E tão pouco por acaso a síndrome anti-semita, como explicação irracional da insegurança e da dinâmica cega no mundo capitalista, se articulou sempre de perto com a infundamentável lógica do estado de excepção. Como padrão a partir do iluminismo mais ou menos presente desde o início, sofreu simultaneamente uma modificação para uma ideologia de crise específica, que encontrou o seu ponto alto assassino no nacional-socialismo alemão. Estado de excepção e definição existencial do inimigo, como princípios constitutivos e manifestações periódicas da democracia de massas, não só têm de entrar em cena nesta forma específica de manifestação ou veste ideológica, mas a sua afinidade com padrões de interpretação anti-semitas e com as correspondentes erupções da “alma popular” capitalista são óbvias até hoje.
Verificou-se que toda a normalidade capitalista, mesmo a política democrática ou democracia política, radica na pura irracionalidade da determinação da forma fetichista transcendental. À sua maneira descaradamente maldosa, Carl Schmitt enunciou este ponto fraco de modo puramente factual, sem daí retirar nem um vislumbre de reflexão crítica. No entanto assim se tornou claro que o fundamento anómico deste nomos da modernidade não se compreende sem mais a partir da existência humana pura e simples, como a ideologia burguesa sempre gostou de mentir a si própria. Em primeiro lugar, mesmo com a internalização das categorias capitalistas ou “formas de vida objectivas”, custou algum sacrifício aceitar e consumar em toda a sua brutalidade objectiva a ausência de fundamento do estado de excepção e da definição do inimigo existencial. Segundo, assim fica impiedosamente comprometido o costumeiro cliché democrático, porque tem de ser eliminado não só qualquer sentimento moral, mas também qualquer reflexão intelectual. Carl Schmitt conseguiu isso apenas através de cinismo moral aberto e niilismo intelectual; exactamente por isso se tornou exemplar.
Mas, sendo as coisas assim, então também a política não é simplesmente um campo em que se possa entrar por tempo indeterminado sem o pagamento de um pesado bilhete de ingresso. Isto aplica-se de modo particular quando se trata do “amadurecimento” político duma reflexão de crítica social e dum movimento social que pretenda agir em nome de interesses vitais reais, pretendendo porém executar estes na forma da política (partido político) e da cidadania, como se tornou evidente para o movimento operário e para o seu marxismo desde o início. Tem que se aprender primeiro que a forma política exclui logicamente e em última instância também na prática justamente esta pretensão do primado das necessidades reais. Este facto tanto mais pode surgir como prova de fogo quanto se mantém recalcado em tempos de normalidade aparentemente pacífica e de prosperidade capitalista. Mas a crise trá-lo inevitavelmente à luz do dia: o estado de excepção é a “prova de maturidade” política. Não basta que o movimento social assuma a forma de partido político, mas acabará por ter de passar também por uma prova de fogo em que mostre o seu valor como dura mão visível e braço armado do “sujeito automático”.
Também neste aspecto a social-democracia foi prototípica. Ela não só formou exemplarmente a matriz de um partido político moderno já não baseado nas corporações e de uma classe política da constituição fetichista democraticamente consumada, mas também aperfeiçoou a sua transformação em “mastim” da administração de crise e de emergência. O reverso do Estado social ou de bem-estar é sempre o Estado de promoção da guerra, mesmo para o interior. Uma vez que é o fim em si irracional da valorização do capital que determina a satisfação das necessidades, não é só a valorização que é sacrificada na crise, mas também a satisfação das necessidades de grande parte da população, embora todos os recursos materiais estejam disponíveis. Isto vale não só para o estado de guerra, mas também para qualquer grande paralisação do processo de valorização.
Na mesma medida em que o seu idealismo de Estado hegeliano-lassaleano se tornou prático e a sua representação parlamentar se tornou essencial, já se colocava à social-democracia a questão da “capacidade de governo” na base do capitalismo. Foi o primeiro passo que desde então deveria ser repetido sempre com a precisão de um relógio pelos movimentos sociais “politizados”: Na medida em que a politização de uma pretensa “oposição ao sistema” conduz à constituição de um partido político e assim de um futuro agente do Estado, o partido surge primeiro como simples “partido de protesto”, o que no entanto é logo equiparado a falta de seriedade política. A correspondente mutação de uma crítica intelectual do sistema, pelo menos segundo a pretensão inicial, na circunstância sabe-se em unidade com a consciência das massas democraticamente domesticada, cujo favor verificável nas sondagens se torna de qualquer modo o critério decisivo.
A consequência inevitável parecia ser a vontade de participar no governo, legitimada pela reclamação esfarrapada de uma “organização” humanitária (progressista, social etc.) e positiva precisamente daquilo que antes parecia ser o objecto da crítica e da negação. A cogestão das formas de desenvolvimento do “trabalho abstracto” e da “riqueza abstracta”, no entanto, significava simultaneamente no fundamental apenas assumir a responsabilidade pelo fim em si capitalista e pelo seu “sujeito automático”. A questão da “capacidade de governo” neste sentido é a questão crucial da “capacidade política”, ou seja, da capacidade de conseguir estabelecer-se em geral como parte integrante da esfera política ou da forma política da “vontade geral” fetichista.
No entanto, com isto ainda não se passou a verdadeira prova de maturidade política, mas conseguiu-se apenas a passagem para o nível do ensino secundário da política. Na medida em que a vontade e capacidade de governo e mesmo a participação real no governo ainda se desenvolvem sob condições de normalidade capitalista e de certa maneira de democracia do bom tempo, o evento ainda corre em período experimental. Este concluir-se-á apenas com o segundo passo, ou seja, com a prova do estado de excepção na crise. Agora “organização” é o mesmo que administração de crise e de emergência, ou seja, com restrições duras e duríssimas contra as necessidades vitais, com medidas coercivas e repressão directa do aparelho de Estado contra o material humano. Mas significa sobretudo, em última instância e em caso de agravamento da crise, a transformação do Estado de direito em violência anómica e a cobertura desta pelo aparelho, a suspensão dos direitos civis e do direito em geral precisamente em nome dos direitos civis e do direito em geral – a saber, como seu pressuposto tácito que tem de se manifestar periodicamente. A partir daqui se esclarece também o carácter da ideia, na melhor das hipóteses ingénua mas em regra antes plenamente mentirosa, de em tempos de crise pretender defender os direitos civis contra os seus próprios fundamentos, negados pela consciência democrática fetichista mas que mesmo assim vêm à luz, como se o ataque viesse de fora e não do mais íntimo da própria relação jurídica.
Como é sabido a social-democracia passou gloriosamente na sua prova de maturidade política na primeira guerra mundial e nas situações de crise político-económica que se lhe seguiram, e de facto em última instância através do assassinato dos/as seus/suas próprios/as ex-militantes, consumado e “cogerido” sob a sua própria égide; um exame final da capacidade fundamental para “mastim”, de que Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht são vítimas destacadas. Mas a questão não é apenas o cinismo sem fim com que desde então é celebrada a própria “capacidade política”, alinhando ao mesmo tempo os assassinados honrosamente na galeria de antepassados. No sentido da consciência politicamente limitada, também não é de admirar por isso que a social-democracia não tenha sido proscrita para sempre por todas as pessoas com pensamento de crítica social, mas tenha conseguido pelo contrário oferecer-se sempre de novo como o correspondente refúgio. Até hoje encontram-se jovens sujeitos da politização “com vontade de organização” que aí aparecem e apenas secretamente podem pressentir que já têm de ser sempre futuros “mastins” e agentes do estado de excepção social total ou molecular, se puserem os pés neste caminho.
Mas essa potencialidade tem de permanecer mesmo na penumbra, se pretender estar realmente disponível. Tem de consistir numa secreta prontidão que todavia simultaneamente assenta na inconsciência sobre o carácter de toda a organização. Quem tenha feito carreira justamente a defender os direitos humanos, os Estado de direito e a democracia, como os bens mais sagrados, não será o pior “mastim” do estado de excepção, pois no fundo ambas as situações se pertencem mesmo interiormente uma à outra.
Por isso também um certo grau de inconsciência é condição para que o agir anómico a partir da “decisão” schmittiana não seja concretamente determinado nem o seu desregramento possa admitir qualquer determinação clara. Assim nunca pode haver a certeza sobre o que exactamente condiciona o estado de excepção, nem quando terá ele de ser declarado, pois para isso não pode haver uma regra jurídica formal. É um cenário meramente fáctico; por isso o respectivo formalismo tem de ser vazio de conteúdo.
Tão pouco pode haver a certeza sobre quanto tempo dura o estado de excepção, nem sobre que grupos de pessoas exactamente ele atinge e com que consequências. No processo de modernização o protótipo foi o “tratamento especial” dos chamados “ciganos” (Sinti e Roma), que por assim dizer constituem o material humano primordial de um estado de excepção permanente. A “qualidade de fora de lei” inclui em última instância o assassinato impune daqueles que nela caem; e mesmo a questão de saber quem aí é subsumido não está submetida a nenhuma regra clara. Finalmente também a amplitude das medidas constitui um momento da indeterminação anómica; o estatuto de pessoa jurídica pode ser retirado ou limitado sob determinado aspecto, enquanto se mantém noutro aspecto. Isto aplica-se a todos os chamados “direitos à liberdade” que já estão sempre condicionados pelo movimento de fim em si superior. O espectro vai das violações da normalidade formal minúsculas, moleculares, até à carnificina generalizada em nome da ordem. Um momento do estado de excepção torna-se sempre manifesto em algum lado, porque ele constitui o pano de fundo lógico-histórico da constituição social e da sua ordem estrutural.
Pelas mesmas razões, o momento anómico atinge também os próprios actores da função “mastim”. Tal como o estado de excepção tem de ser irregular quanto ao conteúdo, o mesmo acontece à determinação de quem assume a “decisão” e a executa mais ou menos sanguinariamente, incluindo “se necessário” tortura e homicídio. Como a social-democracia no fim da primeira guerra mundial se desfez numa fracção executora do estado de excepção, por um lado, e suas vítimas, por outro, foi muitas vezes mera questão de acaso biográfico a questão de saber quem se encontrava de cada lado. De qualquer dos lados não havia ideias claras sobre o processo e os objectivos imanentes. E também não importava que a própria fracção aparentemente mais radical socializada pelo marxismo do movimento operário não tivesse qualquer programa para a efectiva abolição do fim em si fetichista e da sua “vontade geral”. Tal como o “sujeito automático” constitui um processo cego através de acções de vontade humana pré-formadas, que não pode efectuar qualquer auto-reflexão teórica, também a “decisão” política reage cegamente e sem reflexão conceptual à crise; trata-se apenas de espalhar o medo anómico que impede que alguém pretenda desligar-se da ordem que o persegue e do seu nomos, antes que consiga sequer conceber um tal pensamento.
Também é indiferente como a irregularidade do terror no estado de excepção se consuma quanto às suas imundas personagens da violência imediata, ou por outros “tratamentos especiais”, nos quais a pessoa jurídica é parcial ou totalmente negada. Nem sempre uma mão tem de saber o que faz a outra. Também aqui, sob a égide da social-democracia após a primeira guerra mundial, foi paradigmática a actuação em conjunto do governo democrático do estado de emergência e dos bandos armados de esquadrões de assalto ou de comandos assassinos.
Mas a aprovação na prova de maturidade política como qualificação para o estado de excepção apenas em sentido histórico oferece a garantia de ser admitido no ilustre círculo da construção política em questão para a “decisão”. Na situação de crise imediata, pelo contrário, cai-se novamente na ausência de regra quanto a saber se se executa o estado de excepção nos outros ou se ele é executado no próprio. Ocorre aqui uma concorrência entre as forças políticas da cidadania democrática cujo desfecho é contingente.
Assim, pertence aos jogos de enganos ideológicos a ideia de que a social-democracia, apesar da sua responsabilidade numa determinada situação histórica de estado de excepção (no fundo, a primeira e paradigmática na base do desenvolvimento industrial pleno e da plena socialização negativa do capital, para além das estruturas corporativas), se teria incorporado desde então numa imaginária comunidade dos democratas, que já estaria sempre a favor do Estado de direito e dos direitos civis e contra qualquer ditadura, nomeadamente por ter sido ela própria proibida e perseguida pelos nazis, mal passados quinze anos após a sua prova de maturidade política. Mas, se o verdadeiro fundamento do Estado de direito, dos direitos civis e da democracia já é sempre a violência anómica e a ditadura infundamentada em nome do fim em si transcendental inconscientemente pressuposto, então trata-se de diferentes medidas e modos de proceder no mesmo contexto formal que transforma em irmãos inimigos os potenciais executores.
Em termos meramente factuais, as diferenças entre as novas manifestações da violência capitalista originária e dos seus crimes fundadores na administração agravada do estado de emergência do capital altamente desenvolvido podem, no entanto, pesar significativamente e tornar-se como tais decisivas, por exemplo, perante a alternativa entre um estado de excepção mais ou menos limitado e a sua passagem a catástrofe humanitária. Tal constelação desesperada ocorreu de certo modo na Alemanha em 1933. Nesta situação concreta e única sem dúvida que teria sido correcto orientar na prática todas as forças no sentido de sabotar a tomada do poder pelos nazis. A ameaça histórica permitia um procedimento pragmático para com todas as forças burguesas concorrentes com os nazis, a fim de evitar a qualidade especificamente nacional-socialista do estado de excepção.
Esta constelação, no entanto, não é de modo nenhum generalizável, e portanto também não pode ser teorizada em conformidade; desde logo não pode sê-lo no sentido de uma afirmação conceptual fundamental da estatalidade democrática e da forma jurídica, nem de um virar para aquela defensiva ideologia de salvação que não sabe nem quer saber nada da sua própria conexão interna com a causa da catástrofe e a sua forma de desenvolvimento ditatorial. Acresce que é sempre uma questão ambígua pretender traçar retrospectivamente, muito depois dos factos historicamente consumados, uma regra geral para aquela situação, sobre a qual não se pode ter qualquer influência com esse conhecimento.
Comparações metafóricas ou analogias são sempre duvidosas, mas pode aqui fazer-se apelo à seguinte imagem, para clarificação: sob condições de vida capitalistas, também uma crítica radical do capital e da sua estatalidade, se atingida por arruaceiros predadores, pedirá ajuda a transeuntes ocasionais ou à polícia e à jurisdição burguesa; pelo menos em situações onde chamar a polícia ou pedir ajuda à justiça não fosse um mal ainda maior. Mas seria de certo modo lamentável, a partir deste caso de necessidade pontual, retirar a conclusão de que agora teria de ser revista toda a crítica fundamental do Estado que se move num nível de abstracção completamente diferente. O mesmo se aplica a um comportamento político imanente sob a ameaça duma forma de desenvolvimento do estado de excepção para o assassinato de massas. Mas também a consciência de esquerda aparentemente radical tende, perante o nacional-socialismo, para um modo de digestão tão defensivo como não-conceptual, a fim de fazer da necessidade virtude e de um procedimento ditado pela imediatidade da catástrofe fazer ideologia, na qual já não se trata mais de ter em conta na prática condições especiais imperiosas, mas sim de nelas desmentir fundamentalmente a própria teoria crítica como tal, como se pudesse justamente assim “evitar o pior”.
Mas, se a partir de uma táctica ou de uma pragmática condicionada pela situação não pode ser deduzida nenhuma teoria, então isto não passa de uma queda do pensamento crítico que consiste em, a partir da catástrofe humanitária do nacional-socialismo, legitimar uma fraseologia democrática superficial e esboçar uma teoria da democracia positiva e vinculada ao pensamento ideológico da razão iluminista do capitalismo, de cujo ventre precisamente saiu o monstro. É que o nacional-socialismo na sua forma concreta foi o mais genuíno produto da República de Weimar e não do Império Guilhermino, no qual esta carga ideológica de facto se tinha acumulado – mas ela foi exacerbada e logo descarregada apenas no nascimento e na metamorfose ditatorial da democracia pelo estado de excepção. Em 1933, aliás, nem uma só força política ou social se teria deixado convencer para uma frente pragmática contra o nacional-socialismo de forças de resto divergentes, porque o anti-semistismo eliminatório constituía o seu centro ideológico. Em todos os campos sociais e políticos se encontravam elementos da delirante concepção do mundo do anti-semitismo e o núcleo do anti-semitismo nunca foi consequentemente revisto mesmo nas “teorias do fascismo” de esquerda.
Que conclusão se pode retirar da catástrofe humanitária do estado de excepção nacional-socialista? Uma táctica de prevenção conscientemente pragmática, ou a contribuição para ela, pressupõe uma consciência teoricamente fundada sobre o carácter do fim em si capitalista e do núcleo de violência ditatorial que lhe está associado. Se esta consciência não existe em lado nenhum, a possível prevenção de tais formas de manifestação ou de outras igualmente monstruosas não passa de uma lotaria histórica. Portanto, a única garantia para não acontecer nada de semelhante no futuro é a divulgação do conhecimento crítico do carácter repressivo da “vontade geral” e do fundamento anómico da forma jurídica democrática. Também só a partir daí pode haver a possibilidade de uma acção pragmática “apesar da teoria” num processo de crise que de resto já não vai parar. Quem teoriza o mal menor já perdeu, ou já está do lado errado. O que acontece quando só resta a concorrência na execução do estado de excepção é o que mostra a própria tomada do poder pelos nacional-socialistas. Esta foi confirmada democraticamente, sendo que no último acto parlamentar também a maioria daqueles que pouco depois foram levados pelos esquadrões de assalto berrava em coro o hino da Alemanha.
A anti-teoria política niilista de Carl Schmitt encontrou reconhecimento e admiração não só da parte de forças conservadoras de direita, reaccionárias ou fascistas e nacional-socialistas, mas mesmo entre liberais e, mais ou menos às escondidas, também em partes do pensamento de esquerda aparentemente radical. O “fenómeno fascinante” consiste obviamente em que aqui se diz com uma franqueza cínica e boçal onde está o mais íntimo segredo de toda a democracia e de toda a estatalidade, sem sequer admitir uma réstia de crítica ou de esclarecimento teórico. Tal como perante os heróis intelectuais da razão iluminista capitalista, o raciocínio de esquerda também cai ocasionalmente numa espécie de veneração perante os “pensadores negros da burguesia” (Adorno) deles provenientes, de de Sade até Schmitt, porque e na medida em que estes mexem no cerne da moderna constituição fetichista, da qual se está muito distante. O facto de aqui se tratar da afirmação descarada de uma relação fundamentalmente inaceitável já pouco pesa na balança, porque o vulgar entendimento democrático de esquerda abre a boca de espanto ao tomar conhecimento das negras formulações sobre a forma da vontade transcendental e a sua infundamentabilidade, para quase já esquecer que com isso se justifica o amordaçar das necessidades vitais, a administração ditatorialmente democrática de pessoas e em última instância o homicídio declarado.
O secreto fascínio, que corresponde ao esconder da própria disponibilidade para “prestar provas” no estado de excepção, contrapõe-se na balança com uma inibida rejeição e oposição, que tanto mais fecha os olhos perante a verdade sobre o Estado de direito e a democracia. Em vez disso, invoca-se a legitimação democrática formal contra a “decisão”. Neste sentido é considerado opositor de Schmitt o teórico do direito austríaco seu contemporâneo Hans Kelsen. Kelsen não estava ligado a nenhum partido mas era próximo da social-democracia. Há aqui duas observações dignas de nota. Por um lado, no seu trabalho Socialismo e Estado (1920), ele coloca-se contra as abordagens ambíguas de Marx na crítica do Estado e completamente do lado do idealismo de Estado e do socialismo de Estado de Lassale. Por outro lado, ele vê as suas bases filosóficas em Kant, mais precisamente na forma da recepção do neokantismo de Marburgo. Portanto os pressupostos óptimos para desenvolver uma teoria estatista e formalista.
Kelsen ficou célebre sobretudo pela sua Teoria pura do direito apropriadamente saída mesmo em 1934. Aí ele dá ao positivismo jurídico burguês um novo fundamento teórico. Positivo é o direito realizado formalmente correcto, cujos pressupostos não são mais questionados, ou são derivados de princípios gerais morais, naturais etc. Com isto, no entanto, coloca-se a questão, primeiro, da legitimação destes princípios com conteúdo e, segundo, da sua relação com o formalismo “vazio”, como o imperativo categórico de Kant o tinha formulado. Kelsen radicaliza agora o contexto da fundamentação formalista, uma vez que pretende manter completamente fora da fundamentação do direito qualquer determinação de conteúdo. Isso seria uma questão dos “sistemas de valores” e portanto da moral; mas o direito como tal não poderia fazer nada com uma ideia de justiça com conteúdo moral.
A Teoria pura do direito representa, portanto, um ponto de vista puramente formal, onde no entanto a “forma vazia” de Kant experimenta uma fundamentação elucidativamente alargada. Pois a definição de uma norma jurídica formal exige por sua vez uma derivação formal que só pode radicar numa outra norma jurídica formal mais elevada etc. Por trás desta regressão sem fim do formalismo jurídico puro esconde-se no entanto a questão do conteúdo, sobre o que deve o direito verdadeiramente regular e o que determina isso, questão que levaria imediatamente à irracionalidade da forma da vontade transcendental e do seu núcleo de violência anómica. Kelsen, uma vez que se apresenta como antípoda democrático de Schmitt, tem de contornar esta questão. Em vez disso, ele procura fundamentar o formalismo a partir de si mesmo e iludir esta fatal questão do conteúdo. A regressão sem fim na estrutura hierárquica formal do direito, diz ele na Teoria pura do direito, tem de “…terminar numa norma que, sendo a última, é pressuposta ser a mais elevada”. Esta “norma fundamental” pressuposta e mais elevada é designada por Kelsen expressamente como “ficção” necessária. O carácter puramente formal do direito como estrutura de normas deve portanto assentar numa última norma igualmente formal, o formalismo deve ser produzido a partir de si mesmo. Isto é evidentemente pouco menos um “milagre” vindo “do nada” do que o estado de excepção de Carl Schmitt.
Naturalmente que também Kelsen sabe que não existe norma jurídica sem conteúdo; mas este não deverá constituir a essência da norma, que deve permanecer de modo completamente exterior na sua forma pura. A formulação tão célebre como cheia de consequências na Teoria pura do direito diz: “Por isso qualquer conteúdo pode ser direito”. Isto mais uma vez é pouco menos monstruoso como fundamento do direito do que o estado de excepção ditatorial e anómico de Carl Schmitt. O modo de proceder de Schmitt e de Kelsen, a violência sem fundamento e não legitimável, por um lado, e o puro formalismo sem conteúdo, por outro, constituem obviamente as duas faces da mesma medalha, ou seja, da moderna constituição jurídica democrática, que não é possível explicar mas apenas mistificar a partir do seu próprio ponto de vista. O constructo de Kelsen não é nada menos mistificatório que o de Schmitt.
O nazi do coração Schmitt e o democrata do coração Kelsen apenas são antípodas na estrutura antinómica da forma jurídica geral. Schmitt estabelece “a partir do nada” a violência ditatorial “de lógica transcendental” como cerne do direito; Kelsen, em contrapartida, estabelece o puro formalismo jurídico “de lógica transcendental” como pretensa garantia precisamente contra essa violência sem fundamento. Obviamente que Kelsen já fora refutado na prática pelos seus próprios amigos social-democratas ainda antes de ter escrito o livro. No entanto apenas na medida em que se trata do formalismo como defesa contra a violência anómica. É na própria formulação de Kelsen, segundo a qual o direito formal poderia assumir “qualquer conteúdo que se queira”, que já se encontra o auto-desmentido da garantia de defesa formal, pois também a violência ditatorial sem fundamento é afinal um conteúdo.
Esta coincidência interna entre anomia e formalismo jurídico encontrou por ocasião da tomada do poder pelos nazis a sua terrível confirmação. Pode-se virar e revirar a questão como se quiser, mas permanece o facto de que Hitler foi empossado ditador correctamente quanto ao formalismo jurídico e democrático e operou até ao fim com leis de excepção formalmente correctas. Qualquer conteúdo arbitrário pode ser direito, mesmo o assassinato dos judeus e a aniquilação de “vidas sem valor”. O positivismo jurídico de Kelsen não consegue aduzir qualquer argumento contra isso. E assim pertence às cruéis ironias da história o facto de que os criminosos nacional-socialistas sobreviventes sem excepção invocaram o ponto de vista jurídico formalmente positivista do arqui-democrata Kelsen. Eles apenas tinham executado leis em vigor formalmente correctas como verdadeiros servidores do Estado de direito.
A completa miséria do positivismo jurídico mostra-se na tentativa patética de negar esta lógica interna do próprio pensamento, agarrando-se à afirmação de que a tomada do poder pelos nacional-socialistas se teria realizado afinal com quebra do formalismo jurídico. Esta afirmação contrafactual estende-se por grande parte da literatura apologética da democracia, que gostaria de externalizar ideologicamente os crimes contra a humanidade do nacional-socialismo e a sua monstruosidade. Mas essa monstruosidade foi a catástrofe do conteúdo da própria democracia, da pura forma de Estado do capital. É da essência de toda a estatalidade de direito democrática funcionar como um procedimento puramente formal, plenamente indiferente ao conteúdo. Mas isso é assim precisamente porque este formalismo total tem a sua base na violência anómica decisionista. Ambos os momentos pertencem ao fim em si constitutivo e ao seu “sujeito automático”. A máquina de valorização da abstracção real é absolutamente indiferente ao conteúdo e por isso igualmente violenta contra os seres humanos e contra a natureza, ou seja, destruidora do mundo. O Estado e o seu estado de excepção executam política e juridicamente esta relação destrutiva mundial. Kelsen e Schmitt têm igualmente “razão” de um modo fatal, porque reproduzem não-conceptualmente os dois momentos de formalismo e violência, sem referirem o seu nexo interno.
Pertence às infâmias da história pouco referidas o facto de a mesma época que tornou manifesto o estado de excepção, num agravamento monstruoso até à catástrofe humanitária, ter reproduzido simultaneamente numa nova escala a velha ilusão hegeliana da “superação” positiva da contradição interna da “riqueza abstracta” na estatalidade, e precisamente a partir daí se ter preparado para maquinar um conceito ideologicamente alargado de salvação de todos os males no capitalismo. A economia de guerra industrializada constituiu a ligação entre a “organização” assassina do estado de excepção e a ideologia do idealismo de Estado como disponibilidade política sobre a dinâmica cega do movimento de fim em si capitalista. Neste contexto amadureceram tanto os momentos da ditadura de crise como os de controlo e direcção estatal da reprodução económica.
Sem que isso tenha sido admitido, a social-democracia uniu em si ambos estes momentos, que apontam um para o outro, assim se tornando outra vez pioneira do desenvolvimento capitalista. As bases teóricas já Rudolf Hilferding as tinha estabelecido antes da primeira guerra mundial, no seu célebre livro O capital financeiro (1910). O pressuposto tácito de toda a argumentação de Hilferding era uma leitura positivista da teoria de Marx há muito vulgarizada, na qual a crítica radical da economia política se tinha transformado num resumo descritivo do seu contexto formal, sendo que não era este contexto formal, mas apenas as suas consequências ou formas de manifestação que eram submetidas a uma crítica secundária, crítica já não categorial, mas sim superficialmente moralista. Por outras palavras: as categorias fundamentais do capital transformam-se de definições negativas em “definição” de facticidades positivas, que devem ser discutidas “apropriadamente”. Portanto também já não se trata da abolição destas categorias reais, como “formas de vida” objectivas cuja objectividade surge como dado já inquestionável, mas sim da sua “organização” positiva; com o que, naturalmente, a teoria de Marx do capital aduzida em torno da crítica categorial deste é tornada compatível com o idealismo de Estado de Hegel e Lassale e com o politicismo de esquerda, que constitui o veículo da fúria de organização positiva.
Hilferding tenta explicar a dinâmica capitalista e a sua tendência de desenvolvimento neste preciso sentido, enquanto processo de superação interna das contradições capitalistas, que desemboca numa espécie de planeamento tecnocrático da reprodução (nacional) através dos conglomerados empresariais unificados pelo capital financeiro. Assim afirma ele: “O resultado deste processo será então um cartel geral. Toda a produção capitalista é conscientemente regulada por uma instância que determina a extensão da produção em todas as suas esferas. A fixação de preços torna-se então meramente nominal e significa apenas a repartição do produto total… O preço já não é o resultado de uma relação objectiva, em que as pessoas entraram, mas sim um mero modo de distribuição contabilística das coisas de pessoa a pessoa… É a sociedade conscientemente regulada na forma do antagonismo… A circulação do dinheiro tornou-se desnecessária, o movimento sem rasto do dinheiro atingiu o seu objectivo, a sociedade regulada, e o perpetuum mobile da circulação encontra o seu descanso… Assim se extingue no capital financeiro o carácter particular do capital”.
Hilferding ignora, portanto, como todos os social-democratas, o carácter fetichista do fim em si da máquina da valorização, para redefinir as categorias do capital como instrumentos disponíveis, que já tornariam a circulação e a concorrência supérfluas através do próprio capital e degradariam o dinheiro a uma simples “unidade de conta” para a repartição dos valores de uso. O carácter autonomizado da “riqueza abstracta” é cancelado, sem ter sido percebido, e o carácter transcendental das categorias económicas deve desaparecer como que por si mesmo, sem que se tenha rompido com elas. Hilferding vê o processo de socialização capitalista de modo meramente exterior e em termos de sociologia das organizações (em analogia fatal com a concepção do aparelho de Estado em Marx e sobretudo em Engels na fase tardia da sua elaboração teórica); portanto não como socialização negativa, mas sim positiva, e não como agudização da contradição interna, mas sim como sua superação. O capital assim pensado positivamente socializado tornaria “… imaginável um cartel económico geral, que dirigiria toda a produção e eliminaria as crises”. A forma abrangente deste processo, naturalmente, deve ser o Estado, que se funde com este “cartel geral” virtual: “O capital financeiro torna-se assim o suporte da ideia de reforço da máquina estatal por todos os meios”.
O que ainda resta por agora da crítica social é só a classificação em termos de sociologia das classes deste processo de socialização e estatização em si positivo: “Quem exerce este controlo e a quem pertence a produção é uma questão de poder”. A frase de luta de classes encobre a liquidação da crítica categorial do fetiche do capital e do fetiche do Estado; uma camuflagem que de resto se estende até à chamada esquerda radical dos nossos dias. Isto não faz qualquer ruptura com a crença positiva no Estado, pois o sujeito funcional imanente “proletariado”, inchado na transcendência aparente, tem apenas de tomar as célebres “alavancas do poder” para supostamente colher os frutos: “O capital financeiro significa por si tendencialmente a construção do controlo social sobre a produção. Trata-se, porém, de socialização na forma do antagonismo… A função socializadora do capital financeiro facilita extraordinariamente a suplantação do capitalismo. Logo que o capital financeiro coloque sob seu controlo os principais ramos de produção, bastará que a sociedade se apodere do capital financeiro através do seu órgão executivo consciente, o Estado conquistado pelo proletariado, para conseguir de imediato dispor dos principais ramos de produção…”
A redução da máquina de fim em si fetichista às categorias reais da “forma de vida objectiva”, em si positivas e pelas quais simplesmente “se pode lutar” na “qualificação” da sociologia das classes, é ainda maior que nas palavras de Marx após a Comuna de Paris, pois também o Estado volta agora a pertencer à determinação puramente positiva da forma, nomeadamente como “órgão executivo consciente da sociedade” em si neutro, que apenas teria de ser preenchido com o conteúdo de classe correcto. Mas Hilferding não conseguiu ficar por aqui. Embora ele não tenha apoiado as piores medidas do estado de excepção sob direcção social-democrata após a primeira guerra mundial, a seguir ele teve de limpar a sua teoria também da fraseologia da luta de classes. A questão fatal de que, apesar de todos os escrúpulos residuais de pessoas como Hilferding, a social-democracia tinha passado na sua prova de maturidade política na violenta “salvação da sociedade” obrigou a declarar a estatalidade como instância per se de progresso social, independentemente do seu conteúdo dito de classe; sempre com a prontidão latente para o estado de excepção assassino em pano de fundo.
Na década de 1920, portanto, também Hilferding deixou de falar no “carácter antagonista” da capacidade de planeamento estatal ou da “conquista proletária” do poder de Estado etc. O próprio desenvolvimento capitalista já tinha supostamente conduzido a uma superação das características essenciais do capital nas suas próprias bases, características que já não teriam de ser tornadas “correctas” através da “luta de classes”. A teoria do capital financeiro e do planeamento estatal da produção foi ampliada no conceito de “capitalismo organizado” (Hilferding). O Estado surgia agora em todo o caso como a instância competente para o planeamento e capaz de evitar as crises, instância regulável “normativa” e democraticamente – o conceito originário do célebre “socialismo democrático”.
O “capitalismo organizado” em princípio já deveria ser “socialismo democrático”. Nesse sentido afirmou Hilferding num discurso no parlamento em 1926: “Uma vez que o socialismo é imanente ao capitalismo, uma vez que a organização que o capitalismo cria na economia terá de acabar por se transformar no controlo democrático desta economia pela grande massa dos produtores, precisamente por isso dizemos…: Nós lutamos por um poder de Estado que prepare e alargue este controlo social”. Um ano depois ele reforçava esta ideia numa apresentação de fundo no congresso do SPD: “Capitalismo organizado significa basicamente a substituição do princípio capitalista da livre concorrência pelo princípio socialista da produção planeada. Nesta economia planeada, dirigida com consciência, está subjacente a possibilidade de realização consciente da sociedade num grau muito mais elevado”.
O esquecimento da forma basilar pelo marxismo do movimento operário, a sua leitura positivista da definição categorial de Marx e assim a completa incapacidade de desenvolver a dimensão da crítica categorial teria de conduzir à própria demissão e também mesmo ao abandono da fraseologia aliás já desgastada da luta de classes. O caminho do SPD após Godesberg já em meados da década de 1920 era previsível, e era o mesmo caminho da social-democracia por todo o mundo, que seguia os seus mestres alemães por compulsão interna. Mas desde o início que estava pré-assinalado, na autolimitação à “luta por reconhecimento” como sujeito capitalista funcional e da cidadania, que no lugar da “classe” entrava o “povo” (partido do povo) e no lugar de uma crítica mesmo rebaixada entrava a afirmação quase fanática de crença positiva no Estado, a eterna avidez de capacidade de governo capitalista.
A teoria de Hilferding do “capitalismo organizado” livre de crises e com potencialidade de “socialismo democrático” foi desde logo obviamente posta a ridículo na devastadora crise económica mundial a partir de 1929. As ilusões do idealismo de Estado e o recalcamento dos crimes fundadores da democracia de Weimar levaram a que a crise mundial apanhasse a social-democracia desprevenida. O estado de excepção foi retirado das mãos do SPD, cujo par de assassinatos e cuja repressão na gestão da crise não puderam naturalmente concorrer com os grandes crimes históricos do nacional-socialismo. O próprio Hilferding foi assassinado pelos nazis em 1941 no exílio em Paris. Na sequência, o regime de Hitler mostrou-se um bom aluno da fé positiva da social-democracia no Estado, pelo menos no aspecto político-económico, uma vez que pôs em marcha a sua própria versão do “capitalismo organizado”, com programas económicos protokeynesianos e de economia armamentista financiados por um endividamento desenfreado. Então se mostrou por maioria de razão que, com uma base industrial, o idealismo de Estado e as estruturas de economia de guerra constituem uma unidade, a qual foi ideologicamente carregada pelo nacional-socialismo com o seu anti-semitismo eliminatório democrático com especificação nacionalista.
Esta catástrofe histórica, consumada com os seus próprios meios político-económicos, não impediu o social-democratismo, notoriamente cachaçudo do ponto de vista ideológico, de se levantar como Fénix das cinzas após a segunda guerra mundial na base da prosperidade fordista, com novas versões de “organização política” do mal-estar capitalista (e nas “alas esquerdas” com sonhos cada vez mais fofinhos de “socialismo democrático”). É próprio da capacidade de governo não aprender nada com a história e transmitir esse talento aos filhos e netos, por muito aparentemente radicais que estes também gostem de se apresentar de vez em quando.
Uma vez que as teses para uma teoria crítica do Estado se transformaram inadvertidamente num volume de texto sui generis, o seu prosseguimento está de facto definido na própria lógica e organização, mas não é possível prever com rigor a conclusão. Em todo o caso a terceira parte começará por tratar a teoria do Estado leninista e da esquerda radical e mostrará que estas nunca abandonaram o paradigma social-democrata no essencial. O cisma no interior do marxismo do movimento operário pode ser reconduzido sobretudo ao problema da “modernização atrasada” na periferia global e ao estatismo específico que lhe está associado, que se agravou na teoria e na práxis estalinistas. Mas é precisamente a industrialização capitalista de Estado com sucesso numa determinada fase que desmente o “primado da política” e exige uma sucessiva adaptação às “leis do mercado”, acabando por conduzir ao colapso do sistema, já mediado com a nova crise capitalista mundial. A análise crítica tem de assinalar aqui a diferença fundamental entre uma ditadura de estado de excepção e uma ditadura de desenvolvimento do capitalismo de Estado atrasado, a fim de rejeitar a descarada equiparação do nacional-socialismo com o capitalismo de Estado da RDA na ideologia alemã mais recente.
Embora a “modernização atrasada” estatista tenha mostrado na prática a indisponibilidade recíproca da estatalidade e da valorização do capital e tenha comprometido o idealismo de Estado hegeliano em todas as suas variantes, as teorias do Estado da esquerda continuam a mover-se em círculo, sem avançar um milímetro. A crença positiva no Estado da social-democracia sofreu na teoria crítica de Horkheimer e Adorno uma mera inversão de polaridade, para uma crença negativa no Estado, a qual se movia analiticamente na pista de Hilferding. O mesmo se aplica às posteriores teorias do Estado e do capital operaistas e pós-operaistas, que subjectivaram grotescamente as categorias fetichistas, para assim, por maioria de razão e em completa contradição com o desenvolvimento histórico real, dissolverem o fim em si da “riqueza abstracta” em “dominação de classe” subjectiva e o “sujeito automático” em política consciente. O mesmo politicismo sem conceitos se encontra nas aparentadas teorias do Estado estruturalistas, que já deixam transparecer uma re-social-democratização da chamada esquerda radical. Também o “debate sobre a derivação do Estado” não conseguiu modificar nada na ausência de transformação decisiva da crítica do Estado. Trata-se, pois, de desenvolver a nova determinação conceptual de estatalidade da crítica da dissociação e do valor, que abandone essa via sem saída, a fim de resgatar o programa teórico contido implicitamente em Marx mas não realizado. Aqui se tornará clara a unidade entre teoria do Estado e teoria da crise. A condicionalidade recíproca de estatalidade e valorização do capital monetário não dá qualquer possibilidade de uma substituir a outra. Uma esquerda residual que rejeita reconhecer isto cai presentemente cada vez mais na velha ilusão estatista, na senda da sua re-social-democratização pós-moderna e, nas novas condições, terá de liquidar a teoria do valor e do dinheiro de Marx no fundamental.