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Primeira Edição: DEN KAPITALISMUS GESUNDPFLEGEN? in www.exit-online.org. Versão textualizada da comunicação apresentada ao congresso da ATTAC “O capitalismo está no fim?”, ocorrido de 6 a 8/03/2009 na Universidade Técnica de Berlim. Texto publicado na documentação do Congresso (Editora VSA, Hamburgo)
Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
A história continua a engendrar uma ironia perversa, que consiste no facto de que esta história, segundo Marx, é realmente feita pelos próprios homens, mas sem terem consciência do que fazem. A ironia da crise actual reside numa inversão curiosa. Enquanto a esquerda, após a ruptura de época de 1989, viu o capitalismo na estrada para a vitória histórica, pretendeu em grande parte “aportar” às únicas condições existentes e assim se acostumou a tomar o “crescimento financeiramente induzido" pelo seu valor nominal, agora é a própria relação de capital que, da noite para o dia, se transforma num desesperado tratamento da contradição [Widerspruchsbearbeitung], designado com risinhos histéricos como "socialismo do mercado financeiro" ou até como "comunismo de Wall Street". Embora a economia baseada no crédito e nas bolhas financeiras tenha sido apresentada pela ciência académica como nova lei viável da economia e posta em andamento pelas políticas de desregulamentação das próprias instituições dominantes, ela é de repente considerada pelas mesmas elites como "excesso" e como expressão da "ganância". Na ressaca, mais uma vez se chama a terreiro o Estado, como último recurso e suposto deus ex machina.
Uma parte significativa da esquerda académica e do movimento anti-globalização sente-se confirmada por essa viragem repentina e junta-se na exigência da re-regulamentação dos mercados financeiros. Invoca-se apenas uma diferença, no sentido de que a intervenção estatal renovada deve ser conduzida por vias sociais. Esta opção fraca tem de se confrontar com uma crítica segundo a qual a explicação do desastre é apresentada a partir da “ganância” dos especuladores e banqueiros, de modo redutor e susceptível de ligação a padrões de interpretação anti-semitas. Embora esta crítica esteja entretanto quase esgotada, ela vai de encontro a um estúpido preconceito popular, profundamente arreigado, que também continua latente na ideologia do movimento, por exemplo no slogan "Fechem o casino de jogo" (ATTAC). O que é de criticar, no entanto, é precisamente o contexto económico fundamental, que entretanto se tornou universal. Acresce que o drama se tem desenrolado principalmente nos céus financeiros desacoplados e pretende-se que apenas teriam de ser contidos os seus efeitos sobre a economia real, a qual por si teria capacidade de reprodução. A esperança é que, se os pacotes de salvamento estatais e os programas conjunturais pegarem, então seria possível um retorno ao investimento em postos de trabalho socialmente compatíveis. Tal como no caso do socialismo de Estado, há 20 anos, agora também a economia neo-liberal das bolhas financeiras é vista como um "simples erro", que importa corrigir.
Este programa não tem em conta o entrelaçamento do sistema de crédito com a chamada economia real. Já a secular expansão do crédito assentava numa contradição interna do modo de produção capitalista. Com o crescente desenvolvimento das forças produtivas, subia a percentagem de capital real e, portanto, dos custos prévios "mortos" que já não podiam ser financiados a partir da produção de mais-valia real conseguida. O adiantamento de mais-valia futura, na forma do crédito, teve de ser antecipado cada vez mais. Na terceira revolução industrial, desde os anos 80, enredou-se o nó desta contradição. A erosão da produção de mais-valia real pela racionalização de postos de trabalho qualitativamente nova já não podia continuar a ser compensada. Com as cadeias de crédito a ameaçar romper, o capital entrou numa virtualidade sem substância, alimentada apenas a partir dos ganhos diferenciais na circulação de títulos financeiros, como se pode ver na subida historicamente sem precedentes dos mercados de acções e do imobiliário. Nessa medida, a economia neo-liberal das bolhas financeiras não foi nenhum “erro", mas a única reacção possível perante o limite interno à produção de mais-valia real.
Porém, a acumulação aparente de capital não se desenrolou apenas na superstrutura financeira. Por falta de novos potenciais de valorização real, o investimento e o consumo na economia mundial foram alimentados pelo poder de compra sem substância obtido das bolhas financeiras. As conjunturas económicas baseadas no deficit assim alimentadas artificialmente, a última das quais de 2003 até à Primavera de 2008, criaram uma aparência de valorização real bem sucedida e de mobilização de trabalho abstracto. O circuito do deficit do Pacífico arrastou consigo a economia mundial, incluindo o volante da exportação alemã, e sugeriu a ascensão da China e da Índia. Agora, toda essa maravilha se evapora em série diante dos nossos olhos, num processo que ainda está longe de terminar. O crash financeiro global revelou apenas que a conjuntura económica mundial, pretensamente real, há muito tempo ficou dependente da economia das bolhas financeiras. Portanto, a nova crise da economia mundial não resultou de uma mera reacção aos excessos financeiros, mas sim do próprio limite interno à produção de mais-valia real, que agora se manifesta, e apenas fora adiado temporariamente pela economia das bolhas financeiras.
Vendo assim, a actual fantasia de regulação, em todos os campos políticos e ideológicos, põe as coisas de pernas para o ar. O Estado já não pode regular mais nada, mas tem simplesmente de substituir a acumulação real em falta. Pacotes de salvamento e programas de apoio à conjuntura não constituem qualquer arranque e vão ser necessários numa base permanente. No lugar das bolhas financeiras surgem o crédito estatal explosivo e a emissão monetária. Está à vista de toda a gente que este substituto da produção de mais-valia real, após um período de incubação, vai levar a uma inflação global galopante no médio prazo. Portanto, a nova orientação estatal não pode ser conduzida por vias sociais. Pelo contrário, é previsível que a administração social de emergência se agrave dramaticamente, em nome da desesperada gestão da crise. Seja qual for a coligação governamental ao leme, ela só pode modular a forma do curso da crise das finanças públicas, que é tão histórica como a crise dos mercados financeiros e da economia mundial. A redução das transferências sociais abaixo do nível de subsistência e a liquidação definitiva dos serviços sociais públicos torna-se a consequência inevitável das condições de crise sistémica, que apenas pode ser executada pela política, pois o pressuposto desta é precisamente a relação de capital.
Uma esquerda que se entrega à fantasia da regulação está condenada à opção que pretende assistir o capitalismo na doença. Isso seria, efectivamente, apenas a ratificação de uma capitulação há muito tempo consumada no desenvolvimento do pós-guerra e o mais tardar desde o colapso do socialismo de Estado. O objectivo socialista não foi reformulado, mas obnubilado e dissolvido em clichés keynesianos. Ironicamente, os assistentes esquerdistas do enfermo agora só podem fazer a assistência ao moribundo. Porém, este dar as mãos equivale a uma co-gestão, acolitando a gestão das medidas de emergência que são de esperar, às quais não conseguirá resistir a ilusão da “configuração” social (uma palavra tabu, aliás). A participação dos partidos de esquerda em coligações governamentais já deu uma indicação antecipada do que se trata. O capitalismo não é para “conformar”, mas sim para abolir. Se a esquerda tivesse alguma sensibilidade para a ironia histórica, teria de levar até ao fim a inversão de posições e, sob o signo do “socialismo do mercado financeiro” estatal, inversamente mandaria às malvas a sua tradicional orientação estatista. Esta predilecção pela categoria capitalista “Estado”, tanto na versão forte ("Estado dos trabalhadores" no capitalismo de Estado) como a versão fraca (Estado de bem-estar na regulação keynesiana), arrastava sempre consigo a autovinculação às condições de vida de uma “valorização do valor” autotélica, que agora esbarram em limites históricos objectivos.
À crítica liberal do Estado com base em falsas premissas, cuja inconsistência capitalista se torna notória, seria possível contrapor uma crítica do Estado radicalmente emancipatória. Se o mercado entra em colapso e a dinâmica cega do capital soterra as necessidades vitais, o que está está na ordem do dia não é a delegação destas no Estado administrador do estado de emergência, de que até as chamadas organizações do movimento também se fazem ajudantes. As fantasias de regulação da esquerda também implicam "responsabilidade pelo capitalismo”. Em vez disso, é preciso que se constitua um contramovimento social transnacional, que conscientemente se assuma como "não responsável" pela relação de capital. O que significa erguer, precisamente na crise, reivindicações imanentes (como salários mínimos legais suficientemente elevados, aumento das transferências sociais, expansão em vez de redução dos serviços públicos), cuja imposição já não segue as vias oficiais da política, mas desenvolve um poder de intervenção próprio, à margem dos regulamentos de polícia. Se a inflação vem de qualquer maneira e as necessidades vitais se tornam “não financiáveis” pelos critérios vigentes, um contramovimento social não precisa de se deixar enredar nas contas de merceeiro do terror da financiabilidade. O que pressupõe, em todo o caso, a natureza transitória de tal movimento, que visa tomar conta de “toda a loja” e, pela primeira vez, coloca na ordem do dia histórica um objectivo socialista de planeamento social para lá da lógica do trabalho abstracto e da valorização.