A História como aporia
Teses preliminares para a discussão em torno da historicidade das relações de fetiche

Robert Kurz


9. Da divisão de épocas ao relativismo da história


Chegamos agora ao último ponto da suposta “avaliação” de Wallner, ou seja, a divisão de épocas. A partir da determinação redutora e francamente errada como se viu do conceito de fetiche feita por Wallner, segue-se para ele uma divisão em idade mágica, idade religiosa e idade moderna ou “materialista”. Esta divisão de épocas, imputada ao conceito de “história de relações de fetiche”, não saiu da cabeça do próprio Wallner; veio do antropólogo J. G. Frazer (1854-1941), que a formulou na sua famosa obra Der Goldene Zweig [O ramo de ouro; original: The Golden Bough] (1928). Está a acontecer aqui com Wallner o mesmo que com o autor da Krisis residual Ernst Lohoff que notoriamente omite as suas referências. Embora o trabalho de Frazer trate material bastante interessante obtido a partir de pesquisa de campo, a sua grelha de interpretação segue um evolucionismo superficial na linha positivista de Comte e Spencer (um esquema semelhante de evolução encontra-se de resto em Freud em Totem und Tabu [Totem e tabu] e também pode ser atribuído como tal ao pensamento positivista da evolução). Althusser chamou oportunamente e com razão a este evolucionismo “hegelianismo para pobres”. Wallner ainda enriquece este constructo com alguns pedaços de materialismo histórico vulgarizado, por exemplo sobre a suposta importância da “sedentarização” para a passagem à “fase religiosa” (Exit 3, p. 36 e sg.)

Trata-se no seu conjunto de uma classificação esquemática de base positivista, de uma espécie de zoologia evolucionista da história, com que Wallner se limita a caracterizar os seus próprios preconceitos (talvez também baseados na biologia evolucionista). Tal como aconteceu com o conceito de dissociação, por ele apresentado de modo completamente deturpado e enquadrado num esquema histórico, ele executa em seguida uma reviravolta, “refutando” então os seus próprios preconceitos e acreditando ter assim atingido o conceito de “história de relações fetiche”. Mas é duvidoso que ele tenha verdadeiramente abandonado o evolucionismo positivista e esquematicamente classificador e que este não esteja antes de volta num entendimento supostamente “mais avançado”. De qualquer modo, definitivamente, a “divisão de épocas” de Wallner não tem nada a ver com o conceito de “história de relações de fetiche”. Esta abordagem representa uma abstracção necessária da teoria da história que deve passar primeiro através do material histórico e não pode assumir quaisquer hipóteses arbitrárias apressadas independentemente dele, nem certamente uma divisão de épocas abrangente à maneira das teorias positivistas da evolução ou do “materialismo histórico”. Até agora apenas foram trabalhados alguns conceitos básicos e se começou a elaborar uma diferenciação histórica entre constituição (religiosa) pré-moderna e constituição moderna como metafísicas reais diferentes. Wallner “refuta” (e mesmo assim sem razões suficientes) mais uma vez apenas a sua própria suposição que ninguém tinha formulado senão ele.

Da mesma forma leviana contorna Wallner o problema das transições de uma formação histórica para outra e em especial o processo de constituição efectiva da própria modernidade. Assim ele supõe para a anterior constituição feudal-cristã uma dinâmica própria e de crise quase-económica, como analogia imaginada com o capitalismo. Pressupõe assim implicitamente uma socialização moderna de modo anacrónico, pois só nesta se pode chegar a uma dinâmica de crise “economicamente” mediada. Nas sociedades pré-modernas Wallner postula neste sentido um suposto “alimento” dos orçamentos familiares (da antiguidade e da Idade Média) por meio da expansão militar e da cobrança de tributos em espécie. Estas constituições reais anteriores assentariam portanto numa espécie de acumulação de riqueza tal e qual como o capitalismo, apenas na forma de bens naturais (roubados). O fim teria vindo através de uma “barreira exterior” desta acumulação real natural: “Esta repetida acumulação de riqueza material só foi possível enquanto houve a possibilidade de estender cada vez mais as fronteiras do império da ‘economia’ dos orçamentos familiares. Uma vez encontrado um vencedor neste jogo de pirâmide invertida, ou restando alguns impérios — os impérios cristão, islâmico e asiático — e entre eles nada mais para submeter, o desenvolvimento (sic!) anterior tinha de cessar... Um mundo cujos orçamentos familiares se tenham esgotado, porque já não há mais qualquer exterior a cujas custas eles pudessem obter a sua alimentação, consuma uma viragem mental (sic!), pressupondo e localizando agora a riqueza no seu interior...” (Die Leute der Geschichte [As gentes da história], Exit 3, p. 42 sg.)

Este constructo abusa do material histórico sob diversos pontos de vista. Assim, a riqueza dos tributos em espécie ou a sua distribuição não estava relacionada de modo nenhum com “os” orçamentos familiares em geral, mas apenas com os centros do poder e nestes com determinadas representações; abstraindo de situações específicas no fim do império romano e nestas mais uma vez apenas no caso de certas distribuições de cereais à plebe. A maior parte da reprodução, especialmente na constituição medieval cristã, tinha lugar no interior de estruturas de dominação e em contextos locais ou regionais (muito diferentes), não enquanto expansão externa. Em geral, as trocas de reprodução material em grandes espaços estavam ligadas apenas em redes finas e de malha larga; as estruturas de dominação das “representações de Deus” não representavam qualquer socialização, mas assentavam nas relações de reprodução de modo relativamente solto.

As contribuições internas em natureza foram em regra decisivas, não os tributos exteriores (as cruzadas, por exemplo, ou mesmo a colonização medieval do Oriente contribuíram de facto para o expansionismo europeu muito posterior, mas não seguiram uma dinâmica “económica” socialmente constituída e também não chegaram a constituir relações tributárias exteriores de longo prazo como nos impérios antigos). Os “orçamentos familiares” na sua totalidade não foram “alimentados” exteriormente, pelo contrário, eles próprios alimentaram a estrutura de poder das “representações de Deus” através da sua produção agrária. Assim, a riqueza nessas situações já estava sempre sobretudo “no seu interior”, tendo a expansão economicamente mediada começado apenas com o mercado mundial capitalista, como Marx e Engels descrevem eloquentemente no Manifesto Comunista. O “dentro” do capitalismo é o seu próprio espaço especificamente formado, o qual no entanto já é sempre o mundo inteiro virtualmente e como tal se vai tornando gradualmente. Wallner, não conseguindo determinar conceptualmente o problema das “relações internas” e das “relações externas” específicas de cada formação, supõe uma referência mundial “económica” pré-moderna para a modernidade e uma moderna para a pré-modernidade. Mas uma vez que antes do capitalismo não havia qualquer dinâmica economicamente mediada, também não havia qualquer “desenvolvimento” no sentido de acumulação nem o respectivo limite, o que por sinal o próprio Wallner sabe algumas páginas antes, quando diz sobre o entendimento dos seres humanos pré-modernos: “... (não) o desenvolvimento, mas a continuidade constituía o sentido, o propósito e o objectivo do seu esforço social” (ibid., p. 23).

As inconsistências continuam quando Wallner se põe a especular sobre o “esgotamento” da lógica de acumulação em natureza da pré-modernidade uma vez consumada a “divisão do mundo”. O caso foi exactamente o contrário no final da Idade Média, quando se abriram espaços quase incomensuráveis de expansão através das viagens de descobrimento e da colonização das Américas. Havia uma quantidade de “exterior” que ainda nem podia ser ocupada; cerca de metade do mundo. Mas a colonização seguiu já uma lógica diferente, a da “riqueza abstracta” (Marx), inicialmente sob a forma da fome de ouro absolutista; um novo impulso, que em nada resultou do esgotamento quase-económico da “alimentação” natural pré-moderna através da expansão. O mundo da constituição religiosa nunca seguiu uma dinâmica económica; Wallner aplica aqui o critério do materialismo histórico vulgar, que ontologiza a “economia” como força motriz da história. O que não o impede de voltar a cair simultaneamente no erro oposto, caracterizando a transformação principalmente como uma “viragem mental”, um acto consciente, quando se trata de processos de transformação histórico-sociais em que as “viragens mentais” representavam apenas um momento e em que de resto “a economia” em geral apenas começava a surgir.

Wallner, na realidade, precisa do seu constructo, que mesmo em termos de teoria da história cai num anacronismo teórico e no qual ele hipostasia certos processos de expansão de “impérios” pré-modernos numa dinâmica de acumulação natural, apenas para os seus objectivos ideológicos. A metafísica da diferença é estendida ao problema da transformação da constituição pré-moderna na moderna. Pretende-se que esta terá ocorrido na forma de uma súbita e abrupta “ruptura”, que só pode ser explicada por uma (anacrónica) dinâmica de crise pré-moderna. Wallner toma esta abrupta “ruptura” por uma verdade universal, afirmando que “... o fim de cada mundo antigo chegou rapidamente e como colapso sobre as pessoas, os sucessores encontraram também rapidamente pronta uma nova explicação do mundo, uma nova visão sobre eles mesmos” (ibid., p. 54 sg.) Diz-se que “sempre” terá sido assim no final de uma formação histórica. O limite interno absoluto da acumulação do capital, muitas vezes referido como “tendência para o colapso” do capitalismo, é estendido para trás como “limite externo” analogamente absoluto da constituição pré-moderna, portanto carregado de filosofia da história — e isto vindo de um desprezador de toda a filosofia da história (sob a qual ele gostaria de subsumir pejorativamente o conceito de “história de relações de fetiche”). Um autogolo clássico.

Infelizmente Wallner não nos diz tão exactamente quando terá então ocorrido esta rápida “ruptura” entre a pré-modernidade e a modernidade. Por um lado, no seu contexto de discussão é por vezes procurada a “data de Bockelmann” (século XVII). Por outro lado, ele próprio atribui sem rodeios a Luis XIV claramente a história pré-moderna de uma “alimentação” natural: “‘L 'état c'est moi' proclamou um dos reis desta época já então no ponto máximo do seu declínio. Se tivermos em mente que état inclui tudo — o Estado, as condições, o estatuto, os meios de pagamento etc. — percebemos que Luis XIV se identifica com esta unidade e a incorpora numa medida que nunca mais podemos perceber e cuja amplitude nunca podemos chegar a compreender. Esses tempos já lá vão” (ibid, p. 42).

A atribuição de Wallner constitui um erro de principiante que não passaria em qualquer seminário de iniciação à história. Luís XIV já não é uma “representação de Deus” pessoal na acepção da constituição religiosa pré-moderna, pelo contrário, o seu regime já pertence à história da modernização, como todo o absolutismo. Por isso ele também quase coincide com a “data de Bockelmann” e com a data de Espinosa. Bockelmann comprime a mudança para a lógica funcional do dinheiro ao ritmo do compasso na década de trinta do século XVII, Espinosa viveu 1632 a 1677, Luis XIV de 1643 a 1715. O absolutismo, com a eliminação dos poderes intermédios pré-modernos, destruiu justamente a estrutura de dominação das “representações de Deus”; o seu “direito divino” constituiu uma transformação destas no poder objectivado moderno, e o “Rei Sol”, como warlord [em inglês no original: senhor da guerra] real no contexto da revolução militar protomoderna, tinha mais em comum com um “maximo leader” das ditaduras de imposição do capitalismo no século XX do que com um faraó, um imperador romano ou um imperador medieval.

Se Bockelmann constata uma “mudança” no século XVII, e justamente uma mudança concluída de modo inconsciente, isto não está em contradição com um momento de continuidade do desenvolvimento ou com um conceito de processos de transformação. Pelo contrário, mudanças ou “rupturas” pressupõem a continuidade de transformações. A história das transições contingentes de uma constituição histórica de fetiche para outra inclui sempre uma dialéctica de continuidade e descontinuidade ou “ruptura”. A continuidade é tão pouco absoluta como a descontinuidade; nem há um continuum puramente determinista, nem uma descontinuidade puramente contingente. Nos limites de uma formação ou constituição de fetiche e no intermúndio entre esta e uma nova, diferente (ou até mesmo no rompimento das relações de fetiche em geral) abrem-se espaços de contingência. Mas essa contingência, em primeiro lugar, ainda tem uma história irreversível já pressuposta; e, em segundo lugar, cada acção de longo alcance no espaço histórico aberto já representa de novo uma fixação ou uma mudança de linha.

Wallner ignora esta dialéctica e gostaria de a dissolver de novo unilateralmente na absolutidade da “ruptura”. Mas com isso ele embrulha-se na historicidade real, que não se harmoniza com tal dissolução. O lapso embaraçoso com a classificação de Luis XIV é apenas um erro particularmente grosseiro neste contexto. Na realidade, o capitalismo teve mesmo uma longa série de processos de transformação antes que pudesse sequer começar a processar “sobre os seus próprios fundamentos”. Processos que incluem a revolução militar protomoderna, o protestantismo, o surgimento do absolutismo, o iluminismo, etc. e entre eles as respectivas rupturas e abalos catastróficos que acompanharam o processo de transformação. Portanto, não há uma irrupção “repentina” do capitalismo, nem tão pouco uma continuidade evolutiva linear do seu “surgir”. É preciso voltar mais tarde muitas vezes à discussão mais aprofundada do conceito de “história de relações de fetiche”, baseada no problema da contingência, continuidade e ruptura. A redução que Wallner faz da transição de uma constituição para outra como ruptura súbita falha completamente esta problemática. Quando é que ocorreu então esta “ruptura”? Na realidade, ela não ocorreu como Wallner afirma, mas num processo de transformação de vários séculos, do século XV até ao início do século XIX, com uma relação dialéctica de continuidades e rupturas.

Wallner assim, como se vê, não nega só o momento de continuidade de toda a história anterior no plano de abstracção do conceito de relações de fetiche. Também nega o momento de continuidade no interior da transição contingente de uma constituição de fetiche para outra e especialmente da constituição pré-moderna para a moderna. Como se pretende que as formações históricas se enfileirem absolutamente diferentes e sem qualquer ligação, assim também cada nova constituição há-de cair subitamente do céu sem qualquer transformação. A metafísica da diferença é completada com a metafísica da contingência, da descontinuidade e da ruptura. Wallner refere expressamente esta pura ideologia como “premissa” da sua abordagem: “Não deve existir qualquer transição histórica em que uma época evolua para a próxima, pelo contrário, devem ser salientadas as fronteiras distintas entre duas épocas, o colapso de uma e a completa novidade da outra que entra no mundo (sic!) sem percurso prévio” (Exit 3, p. 35).

Também neste ponto mais uma vez se apresenta curta a consciência teórica há muito enfraquecida de Jörg Ulrich. Assim ele pergunta: “Continuidade ou ruptura, ou unidade de continuidade e ruptura? Wallner optou claramente por uma ruptura sem continuidade” (Jörg Ulrich, „Der” Mensch und die Leute und die Religion und der Kapitalismus und so weiter [“O” ser humano e as gentes e a religião e o capitalismo e por aí fora]). Perante isto, Ulrich afirma com toda a razão: “A continuidade, na minha opinião, já reside no conceito e na teoria da ruptura. Pois o que haveria de ser uma ruptura senão uma ruptura dentro de uma continuidade? Uma ruptura pressupõe que há algo que é rompido — e isto é precisamente a continuidade. Não há ruptura sem rompido” (ibid.). Mas, assim como no problema da relação entre capitalismo e religião e no problema da metafísica, também no problema da relação entre continuidade e ruptura Ulrich manifesta, no breve prefácio ao seu texto de discussão escrito posteriormente, apenas a capitulação teórica incondicional — sem qualquer fundamentação argumentativa nem esclarecimento conceptual, tal como no caso das outras questões: “A teoria das rupturas e desastres históricos”, diz ele lapidarmente, “abre uma perspectiva que tem de ser designada por nada menos que fascinante” (ibid., prefácio). A questão que permanece é onde está realmente o “fascínio” quando a argumentação de Wallner é tão deficiente, confusa e insegura que isso não pode passar em claro. A resposta, provavelmente, só a musa do desarmamento teórico a conhece.

Depois de teoricamente mais ter tropeçado nos próprios pés do que ter prosseguido, Wallner ainda contrapõe condescendentemente ao conceito de “história de relações de fetiche”, a partir de uma “superioridade” imaginada, um testemunho simultaneamente paternalista e pretensamente aniquilador: “Ora esta tentativa apresenta-se como insuficiente e a running gag [em inglês no original: piada continuada] da crítica do valor fundamental, que consiste em considerar a história da humanidade como história de relações de fetiche, será dissolvida na continuação da teoria da dissociação-valor e terá de desaparecer dela” (Exit 3, p. 61 sg.) É exactamente isso que não vai acontecer com certeza, porque Wallner apenas “refutou” sempre o seu próprio espantalho e os próprios preconceitos nele contidos. A questão agora, no entanto, é onde é que ele próprio foi parar.

Como já referi no início da minha polémica, Wallner gostaria de fingir que conseguiu ultrapassar o problema do carácter aporético de qualquer reflexão sobre a teoria da história. O critério pelo qual ele rejeita o conceito de “história de relações de fetiche” e imagina ter ultrapassado a moderna filosofia da história em geral é simples demais para poder ser verdade: Ele age como se pudesse assumir o ponto de vista autêntico dos tempos passados ou, se isso não funcionar (como ele sabe muito bem), como se pudesse fazer jus a essa autenticidade passada, sem ter de ver a história com os olhos da crítica que está indissoluvelmente ligada à crítica do capitalismo e a partir desta incluir também na crítica as formações anteriores num certo nível de abstracção, não negando o carácter diferente de cada uma. Wallner, pelo contrário, nega a visão crítica das formações pré-modernas e assim a explicação dada pela teoria da história em geral: “Supomos (a) explicação, a fim de ter algo que faça ligação, que nos dispense do procedimento hermenêutico...” (ibid., p. 62). Contra a “explicação” da teoria da história a partir de um ponto de vista superior (relações de fetiche), que ele atribui sem mais à filosofia teleológica da história, Wallner coloca portanto a hermenêutica da história de uma pretensa “empatia” com a autenticidade de formas de consciência passadas autónomas.

Assim, ele postula para as formações pré-modernas um critério de reflexão que não é critério nenhum: “A nossa questão, portanto, é o que distingue este mundo do nosso, como ele se via a si mesmo, como ele se abre para nós quando tomamos a sério as suas notícias” (Exit 3, p. 29). O critério de tomar qualquer coisa “a sério” por princípio é já por si acrítico e a-histórico; de resto também em termos dos próprios mundos passados, pois também nestes nem tudo era tomado “a sério”, caso contrário não teria havido lutas de interpretação, nem provas de mentiras, falsificações, etc. O critério de Wallner equivale a um positivismo vulgar da percepção, e ainda por cima particularmente ingénuo (pelo menos caindo na ingenuidade da aparência), que naturalmente continua filtrado pela modernidade e não se aproxima nem um milímetro da autenticidade das formas anteriores de consciência. De resto ele também faz injustiça à hermenêutica da história, que mesmo na sua condicionalidade ideológica não exige nenhum “levar a sério” positivista (no próximo ponto abordarei o significado ideológico da hermenêutica da história na filosofia burguesa da história e no final entrarei novamente na crítica detalhada deste “modo de proceder”).

Wallner pensa que é capaz de fazer valer a “visão” da humanidade passada em falsa imediatidade contra a visão moderna em geral (incluindo a nossa visão radicalmente crítica no final da modernidade): “Assim nós distinguimos entre a antiguidade romana e a Idade Média germânica, enquanto nesta distinção papas, reis e imperadores não nos vêm à cabeça no mesmo sentido que cavaleiros ou camponeses, para já não falar de servos e escravos” (ibid., p. 22). Ele considera que constitui uma objecção o facto de “que uma testemunha da Idade Média europeia seguramente não iria entender o que queremos dizer com a diferença entre a antiguidade e o feudalismo” (ibid.). E significativamente dá a entender: “Devemos... ter sempre em mente que os nossos pontos de vista sobre Roma são fundamentalmente diferentes dos pontos de vista de Roma sobre si mesma” (Wie es mit den Leuten der Geschichte weitergeht [Como prossegue a história com as gentes], ibid). Wallner age como se fosse “realmente” inadmissível olhar para a história de forma diferente da dos olhos das respectivas “testemunhas”; ele defende num meta-plano uma espécie de “história de baixo”. Isto já num sentido temporal bastante banal é tolo, porque assim também não deveríamos falar vendo a partir de hoje, por exemplo, relativamente ao ano de 1629, da Guerra dos Trinta Anos, porque as “testemunhas” nesse ano não poderiam estar conscientes de que se tratava disso. E, é claro, a Idade Média não poderia ter qualquer noção de si como Idade Média, caso contrário o futuro teria de ser já conhecido. Mesmo se nós criticamos os conceitos de época herdados do iluminismo e os modificamos de acordo com a nossa abordagem crítica, seria não só impossível, mas também disparatado reproduzir “para nós” a “consciência da época” de cada um dos tempos passados enquanto válida “para eles”.

Mas é claro que não se trata apenas de um problema de classificação do tempo, mas sobretudo da abordagem da teoria da história e dos seus conceitos. Obviamente que Wallner gostaria de posicionar o seu positivismo do “levar a sério” contra o conceito de “história de relações de fetiche”. O argumento seria que nenhum cônsul, imperador, papa, legionário, agricultor, escravo etc. da antiguidade ou da Idade Média poderia fazer fosse o que fosse com este conceito, porque ele foi formulado precisamente a partir da localização histórica específica da crise no final da modernidade. Wallner ignora aqui propositadamente que o mesmo se aplica em perfeita igualdade ao seu contra-conceito de absolutização da diferença e da contingência históricas, uma história de puras descontinuidades e “rupturas” puras. Com ela os imperadores, os papas, os camponeses etc. teriam ficado igualmente estranhos, porque tal pensamento também seria totalmente incompatível com a sua “relação com o mundo”.

Na realidade não se trata aqui de pôr em debate a autenticidade das formações passadas e da sua consciência de si mesmas perante uma reflexão da teoria da história. É apenas um truque com o qual Wallner gostaria de imunizar o seu próprio entendimento bem actual da história, sem ter de argumentar no próprio plano da teoria da história. A oposição é entre o conceito de uma “história de relações de fetiche” que inclui uma dialéctica de diferença e semelhança, continuidade e descontinuidade/ruptura, por um lado, e o conceito de uma história de diferenças, descontinuidades e rupturas absolutas que nega essa dialéctica, por outro.

Se tomarmos agora como critério a medida em que estes dois conceitos opostos satisfazem o “interesse condutor do conhecimento”, a importância ou valorização da história no sentido da crítica radical do ponto de vista da actual situação de crise e com o objectivo de suplantar o capitalismo, é fácil de ver que o conceito de Wallner de modo algum pode satisfazer este critério. A absolutização da diferença rasga qualquer conexão entre a crítica de hoje e o estudo das formações pré-modernas, que então, sob o pretexto de uma “abordagem hermenêutica”, apenas pode reduzir-se a levar por diante pedaços de saber sobre o passado à boa maneira da burguesia culta, a uma “erudição” vazia sem pretensão crítica. Esta argumentação representa um “desenvolvimento” da teoria da dissociação-valor mais ou menos na mesma medida em que a pintura de aguarela como hobby de esposas frustradas de notabilidades de província pertence à vanguarda artística.

A absolutização da descontinuidade e da ruptura faz desaparecer o problema da mediação, sendo os processos de transição negados, de modo que sua investigação é inútil — tanto para o passado como para o futuro. O capitalismo, o patriarcado moderno produtor de mercadorias é “separado” sem transições tanto para a frente como para trás. Tal pensamento é incapaz de conceber qualquer ruptura consciente mediada, pelo contrário, vai dar na pura afirmação, justamente através do postulado de uma ruptura repentina.

Do seu próprio fantasma de uma divisão de épocas positivistamente evolucionista, que ele atribui ao conceito de “história de relações de fetiche, Wallner simplesmente cai num duplo relativismo histórico, negando qualquer momento abrangente, tanto relativamente às diferentes formações históricas em geral, como também relativamente às transições contingentes. De certa maneira, Wallner, Haarmann e Ulrich, através da sua ruptura com o contexto da Exit em grande medida sem mediação nem continuidade, sem enfrentarem uma discussão de conteúdos, francamente também executaram pessoalmente a sua ruína teórica. No entanto, não se trata apenas de um decisionismo pessoal, mas este deve ser colocado no contexto da crise da subjectividade pós-moderna, a mesma que produz socialmente tal atitude e ideologia. Antes de penetrar mais neste contexto, no entanto, é preciso esclarecer a continuidade involuntária do pensamento da filosofia burguesa da história, no qual se insere esta metafísica da descontinuidade; queiram os seus representantes admiti-lo ou não.


Inclusão: 004/11/2020