A História como aporia
Teses preliminares para a discussão em torno da historicidade das relações de fetiche

Robert Kurz


5. Dissociação e fetiche


Viremo-nos agora com mais minúcia para o suposto "exame" de Wallner ao conceito de "história de relações de fetiche". Como já foi dito, ele acoplou de forma perfeitamente abusiva o conceito de dissociação ao nível de abstracção do conceito de relações de fetiche enquanto tal, embora a dissociação, com a sua conotação sexual, tenha sido desde o princípio ligada só à relação de valor da modernidade. Valor e dissociação sexual são as duas faces da mesma medalha; constituem a totalidade em si quebrada do moderno patriarcado produtor de mercadorias e nada mais. Ora Wallner procedeu como se a reformulação em termos de teoria da história do conceito de fetiche fosse per se idêntica à reformulação em termos de teoria da história do conceito de dissociação, com o que ele agride a definição desta. Ele consuma a transposição do conceito de dissociação ainda assaz abertamente para um outro nível de abstracção erróneo. Diz ele assim: "Roswitha Scholz (2000) pôs a questão e respondeu sobre o que acontece então com aqueles domínios que não cabem no fetiche. Esta questão foi levantada em relação ao fetiche valor… No entanto, Roswitha Scholz assevera com razão que a posição social das mulheres, por exemplo na Idade Média, era outra, precisamente porque não estava impregnada pelo valor-dissociação" (Exit 3, p. 26 sg.).

Wallner afirma, portanto, que Roswitha Scholz terá desenvolvido o conceito de dissociação a partir da questão de que "domínios" não caberiam no fetiche. Esta formulação já é em si fundamentalmente errada, porque a dissociação não assinala nenhuns "domínios" separáveis, mas é uma relação que atravessa todos os "domínios". Aqui nos deparamos com um velho malentendido, muitas vezes criticado por Roswitha Scholz e por outros/as teóricos/as do valor-dissociação, no qual a dissociação é subsumida na "separação de esferas" do capitalismo, sendo assim pensada numa lógica de derivação. Simultaneamente, Wallner admite que Roswitha Scholz não tenha colocado precisamente esta questão por ele insinuada, mas uma outra, ou seja, o que é que não cabe no valor. Aqui prossegue o malentendido de lógica de derivação de Wallner, pois o fetiche não é o valor só por si, do qual algo é dissociado, mas são o valor e a dissociação que constituem em conjunto, como relação de valor-dissociação, o fetiche específico da modernidade. A versão de Wallner é ela própria ainda androcêntrica-universalista, pois ela promove o valor como fetiche a "autêntico" e abrangente, enquanto a dissociação surge como simples momento secundário.

Por outro lado, porém, esta relação de valor-dissociação, de acordo com a definição até aqui desenvolvida, é uma relação fetichista histórica específica, e só nesta existe a dissociação sexual, como momento que atravessa a essência e a totalidade; daí também a referência da autora a outra posição social da mulher na chamada Idade Média. Aqui se torna de novo claro que o resultado do suposto "exame" de Wallner já está contido nas premissas; ele já pressupõe que só existe o valor como relação de fetiche (e a dissociação sexual como simples apêndice), portanto também só deve ser válido para a modernidade o conceito de fetiche assim truncado de modo androcêntrico-universalista como tal.

Com este pressuposto como ideia pré-concebida na cabeça, crê-se ele agora autorizado, no seu "exame", a querer procurar nas sociedades pré-modernas o fetiche e a dissociação, como relação total, que, supostamente, de acordo com o conceito de "história de relações de fetiche", deveriam surgir sempre juntos, (estando em todo o caso o fetiche à frente e a respectiva dissociação respeitosamente atrás ); uma busca em que ele próprio já sabe que não se vai encontrar nada, ou apenas achados erróneos: "É aqui, nesta questão da relação de continuidade e ruptura, que assenta o nosso esboço da socialização pré-moderna. Colocamo-nos a questão de saber o que pressupõem as suas situações constituídas [Verfasstheiten]: seriam elas ordenadas e movidas pela relação de fetiche como a nossa? Se sim, estes fetiches surgem igualmente unidos à respectiva dissociação? Se sim de novo, teremos nós o direito de aplicar os nossos conceitos de fetiche e de dissociação aos tempos passados, ou estes conceitos não estarão definidos para isso, porque nasceram das nossas relações sociais e servem apenas para estas?" (Exit 3, p. 27).

As perguntas são apenas retóricas, pois com elas já é fornecida a resposta. E uma vez que Wallner fala dos possíveis "fetiches e respectivas dissociações", ele leva logo consigo para a história o mesmo ponto de vista universalista-androcêntrico, prolonga-o historicamente para trás. Também para as sociedades pré-modernas tem que ser pressuposto na pesquisa, que não é pesquisa nenhuma, o respectivo fetiche como "autêntico" e abrangente, no qual estará pendurada uma qualquer "dissociação". Portanto, ele entende a dissociação duplamente mal, pois que a pensa de modo androcêntrico-universalista, ou seja, em lógica de derivação, e simultaneamente supõe que o conceito de "história de relações de fetiche" implica sempre per se uma qualquer espécie de "dissociação" análoga à da modernidade, também nas sociedades pré-modernas, onde então teria que ser "pesquisada".

Uma vez que Wallner efectuou uma "divisão de épocas" em idade da magia, idade da religião e modernidade (valor), a que se regressará, ele "pesquisa" a dissociação assim duplamente mal entendida em primeiro lugar na magia: "Coloca-se-nos agora a questão de saber se podemos descrever para trás, nas épocas passadas em geral, o estrito enganchar do fetiche com a dissociação daquilo que nele não cabe, tal como o reconhecemos e descrevemos como constitutivo para a modernidade no valor e no que é feminino. No que diz respeito à magia, o caso apresenta-se de forma ainda mais simples e lógica. É própria natureza que é o fetiche, sendo que a própria criação humana, que não é reconhecida como tal, ganha e exerce autoridade e poder sobre a gente, e a dissociação é definida de tal maneira que abrange o que não cabe no fetiche; ou, assim poderíamos dizer, os seres humanos, que se constituem socialmente como gente, não cabem na natureza, representando a própria gente a primeira dissociação" (Exit 3, p. 50). Realmente singular; na idade da magia os homens teriam tido a honra de ser dissociados da "natureza" juntamente com as mulheres, seja lá o que for que isso queira dizer.

E agora quanto à religião, ou quanto à constituição religiosa. Nesta, segundo Wallner, surge o fetiche (no caso de Wallner assim designado apenas no sentido de uma argumentação de advocatus diaboli, uma vez que ele verdadeiramente já rejeitou a priori o conceito para estas relações) "… a partir de uma ordem que é divina, que é um plano de salvação divino…" (Exit 3, p. 51). Nesta coloca ele "a pergunta por uma liberdade e por um mal que estão em posição de apanhar a criação. O corporal mostra-se, portanto, como o campo de batalha em que estas questões do bem e do mal, da viragem para o bem e para o mal, são decididas, e nisso a dissociação deixa-se ler como ‘dissociação do sagrado’… Tal como o fetiche está ligado à actuação de Deus, é parte da sua criação, do seu plano de salvação, do seu amor, assim acontece também com esta espécie de dissociação" (Exit 3, p. 51). Assim, na idade da religião a dissociação seria o "corporal"; sendo mais uma vez incluídas por igual a corporalidade do homenzinho e da mulherzinha.

A simples palavra "dissociação" é deste modo plenamente desconceptualizada, arrancada do seu contexto e "usada" arbitrariamente em todas as referências possíveis. Poder-se-ia assim construir toda a espécie de "dissociações" imagináveis, encontrá-las até porventura na geologia. A deriva dos continentes seria então também uma relação de dissociação. As pessoas separam-se da Exit e já temos aí uma relação de dissociação. Ou quando eu racho uma cavaca de madeira tenho então eu (ou a madeira) uma relação de dissociação? Não é "exame" nenhum, quando o conceito é simplesmente inflacionado e conduzido ao absurdo. "Conceitos de dissociação" construídos desta maneira forçada não passam de uma espécie de disparate superior, e isto também já está pressuposto como quid pro quo para a reformulação histórica do conceito de fetiche, assente de forma completamente diferente, que por isso também terá de ser estigmatizado como igualmente sem sentido. Aqui já se revela uma tendência para, quando os conceitos são arbitrariamente mudados no seu sentido, desbotados e confundidos, chamar a isso "desenvolvimento teórico"; uma tendência cujo método se mostrará consequentemente. Pois ela surge não só como aqui, em sentido pejorativo, com a finalidade de apodrecer os conceitos desagradáveis da crítica do valor-dissociação, mas logo a seguir também nas próprias definições conceptuais positivas por Wallner & Cª.

Portanto, Wallner construiu um espantalho, apenas com o objectivo de refutar algo que ninguém tinha afirmado, excepto ele, na sua qualidade de advocatus diaboli. Ele sabe que a super-extensão do conceito de dissociação é disparatada e esclarece-nos sobre esse disparate, desde sempre já sabido, ou seja, que a dissociação, desenvolvida como relação entre sexos específica da modernidade em referência ao valor, só tem validade precisamente para a modernidade. Com a refutação do seu próprio disparate crê ele agora ter também acabado automaticamente com o uso do conceito de fetiche na teoria da história, precisamente porque não se trata de "estirar a dissociação e o fetiche na cama de Procrustes duma travessia da história" (Exit 3, p. 59). E como resultado é ditada então a mesma dupla sentença: "Com isso, também se deve à duplicação específica da modernidade, por exemplo se eu vejo a dissociação do valor como válida descrição crítica da modernidade, porém, fazendo a tentativa de simultaneamente prolongar o fetiche e a dissociação como históricos, para trás" (Exit 3, p. 61).

O que Wallner "examinou" foi apenas o seu próprio inflacionamento e super-extensão do conceito de dissociação, que ele retirou da sua definição sexual. Acertado teria sido simplesmente "examinar" como terá parecido a relação entre sexos nas sociedades pré-modernas, pois o conceito de dissociação foi desenvolvido na elaboração teórica da crítica do valor-dissociação tendo em vista especificamente a relação entre sexos, e não pode ser tirado arbitrariamente para fora deste contexto. Esse "exame", porém, já foi feito há muito tempo por Roswitha Scholz e o resultado é claro, a saber, que nas formações pré-modernas não houve nenhuma dissociação sexual em sentido moderno (mas sim imagens da mulher completamente patriarcais) e que eram outras as relações entre sexos; do meu ponto de vista: correspondentes a outras relações de fetiche e sua parte integrante, onde se deixam assinalar perfeitamente momentos de continuidade, pois com eles a constituição da relação de dissociação sexual moderna remontou às construções patriarcais "da mulher" da Antiguidade e da Idade Média.

Um vez que Wallner empreendeu o esforço plenamente supérfluo de construir um espantalho, em relação ao conceito de dissociação, para de seguida o derrubar com grandes gestos, com isso, tal como com a repreensão do incontornável "ponto de vista da modernidade", não ganhou nem um milímetro de espaço para desacreditar o conceito de "história de relações de fetiche". Ele apenas sugere isso, uma vez que acopla sem mediação o conceito de dissociação específico da modernidade com o conceito geral de relações de fetiche; e, de facto, como afirmação plenamente destituída de fundamento em que, além do mais, o fetiche moderno surge numa interpretação universalista-androcêntrica, surgindo o valor como de ordem superior. A teoria da dissociação deturpada desta maneira é aqui simplesmente instrumentalizada e no caso mal utilizada, para jogá-la contra a abordagem da teoria da história no sentido do conceito de relações de fetiche.


Inclusão: 004/11/2020