A Substância do Capital
O trabalho abstracto como metafísica real social e o limite interno absoluto da valorização

Robert Kurz


Primeira parte: A qualidade histórico-social negativa da abstracção "trabalho"
O tempo histórico concreto do capitalismo


A destruição real do mundo pelo trabalho abstracto como processo de produção é evidente. Quando o marxismo tradicional como ideologia imanente da modernização pretende restringir os conceitos de trabalho abstracto e abstracção real à esfera da circulação, com isso demonstra não apenas a sua contaminação pela ética protestante, pelo produtivismo capitalista e por uma falsa ontologia do trabalho transhistórica, mas ainda a sua completa limitação ao espaço interior do moderno sistema produtor de mercadorias e ao seu espaço-tempo abstracto. Claro que assim também lhe escapa o conceito de historicidade capitalista. Pois de facto o capitalismo é, por um lado, o regresso do sempre igual, o tempo abstracto sem história do contínuo economico-empresarial desvinculado; por outro lado, porém, é um processo histórico concreto cego, uma história irreversível de constituição, imposição e crise, que se manifesta em estádios de desenvolvimento qualitativamente diferentes.

Daí que Moishe Postone distingue consequentemente duas espécies de certa maneira opostas de definição de tempo no processo de reprodução capitalista; o que segundo Postone significa "que a dialéctica do desenvolvimento capitalista é, num plano lógico, uma dialéctica de duas formas de tempo constituídas na sociedade capitalista e portanto não pode ser compreendida adequadamente no sentido da substituição de todas as formas de tempo concreto pelo tempo abstracto" (Postone, ob. cit., 329). Uma é a substituição do primitivo tempo concreto do dia a dia, como tempo sempre condicionado, limitado "por algo" ou "para algo", como expressão de tempo orientado por tarefas, pelo espaço-tempo desvinculado, abstracto, da economia empresarial. Mas através desta transformação é criado simultaneamente, num diferente segundo plano do tempo, um novo tipo histórico concreto de tempo, uma cega dinâmica histórica de "desenvolvimento" e crise.

Além do espaço-tempo abstracto, homogéneo e sem história da economia empresarial e deste derivado, o capitalismo como socialização do valor estabelece contudo também um tempo histórico concreto completamente diferente. Postone deduz em termos completamente elementares a relação destas duas formas de tempo das duas dimensões da mercadoria, como materialidade e como objectividade do valor: "A interacção entre as duas dimensões da forma da mercadoria também pode ser analisada quanto ao tempo, do ponto de vista da oposição entre o tempo abstracto e uma forma de tempo concreto própria do capitalismo" (Ob. cit., 439). Também se pode dizer assim: o tempo sem história, abstracto, da socialização do valor é a lógica temporal do processo de valorização; o tempo histórico concreto da socialização do valor, pelo contrário, é a lógica temporal da materialidade mobilizada por este processo de valorização, tanto no sentido da matéria natural transformada, como também no sentido do desenvolvimento social a isso ligado.

O problema que aqui aparece é outra vez a "dimensão de valor de uso" (Postone) do trabalho abstracto, agora observado sob o ponto de vista da forma do tempo. A determinação do valor de uso da mercadoria força de trabalho como produção de mais-valia estabelece uma determinação social do valor de uso das mercadorias como simples materialização do valor/mais-valia e da respectiva realização, enquanto a concretude material e com ela também a qualidade material é dissociada e permanece secundária, um simples apêndice (indiferente) da valorização do valor. Contudo o capitalismo não consegue livrar-se desta materialidade concreta, e o valor de uso social da produção de mais-valia e da sua realização, perante crescentes níveis de produtividade forçados pela concorrência universal, tem que "encarnar" sempre de novo em sempre novas formas concretas e ultra-desenvolvidas de transformação da natureza e da sociabilidade.

É precisamente nesta tensão entre a indiferença quanto aos conteúdos e a abstracção do "trabalho" e do valor, por um lado, e o "desenvolvimento" de conteúdos materiais promovido pelo próprio processo de valorização, por outro, que se funda a dialéctica das duas formas de tempo. O espaço-tempo abstracto da economia empresarial não conhece qualquer "desenvolvimento". Aqui uma hora é sempre uma hora de tempo independente, sem conteúdo, sem qualidade, homogéneo. Este tempo corresponde à dimensão de valor da reprodução, ao tempo abstracto e com ele à objectividade de valor da matéria, portanto ao valor de uso do fetiche social de produção e realização de mais-valia. O conteúdo materialmente indiferente com ele transportado porém transforma-se, é determinado sempre de novo, e na realidade não em simples mudança aleatória, mas com crescentes cientificização e produtividade, num processo histórico concreto. Nesta referência ao conteúdo, indiferente ao fim-em-si da valorização do valor, mas que se valida na prática, uma hora não é sempre a mesma hora, mas sim é progressivamente preenchida de novo, transforma-se em tempo de algo diferente, em tempo de "desenvolvimento".

Postone assinala no plano lógico a oposição e o cruzamento destas duas formas de tempo: "A constante temporal abstracta é ao mesmo tempo constante e não constante. Vista como tempo abstracto, a hora de trabalho social permanece constante como medida de todo o valor produzido. Concretamente expressa, contudo, varia em correspondência com a variação da produtividade. No entanto, uma vez que a unidade de tempo abstracto continua a ser a medida do valor, ela não se exprime, na sua nova determinação concreta, na unidade de tempo enquanto tal… Que o quadro temporal abstracto permanece constante, mas é determinado substancialmente como novo, é um paradoxo… Este paradoxo não pode ser solucionado na base do tempo abstracto newtoniano. Pelo contrário, ele remete para um outro tipo de tempo de nível superior. Este movimento resultante da nova determinação substancial do tempo abstracto não pode ser expresso em conceitos de tempo abstracto; reclama outro quadro de referência. Pode-se imaginá-lo como uma espécie de tempo concreto…Assim, este movimento do tempo é uma função da dimensão valor de uso do trabalho e da sua interacção com o enquadramento do valor e pode ser entendido como uma espécie de tempo concreto" (Ob. cit., 439 sgs.)

A dimensão valor de uso significa aqui a materialidade concreta dissociada, que de resto não tem que ser "útil" num sentido enfático, mas que também e sobretudo inclui o desenvolvimento das forças produtivas como forças destrutivas. Por um lado, portanto, estamos perante um "quadro de tempo homogéneo, abstracto, que é imutável e serve de medida do movimento" (Postone, ob. cit., 442). Por outro lado, é promovido precisamente por este espaço-tempo da economia empresarial, no plano material concreto do desenvolvimento de forças produtivas/forças destrutivas, o tempo histórico concreto de um processo social de desenvolvimento dinâmico e irreversível: "Isto inclui contínuas mudanças na natureza do trabalho, da produção e da tecnologia, tal como a acumulação das formas de saber conexas. Visto na generalidade, o movimento histórico da totalidade social tem como consequência transformações massivas, contínuas, do modo de vida social da maioria da população — nos padrões sociais de trabalho e de vida, na estrutura e distribuição das classes, na natureza do estado e da política, nas formas de família, no aperfeiçoamento do sistema cultural e educativo, nas formas de circulação e de comunicação, etc. O tempo histórico no capitalismo pode portanto ser visto como uma forma de tempo concreto, que é socialmente constituído e dá expressão a uma continuada transformação da vida social em geral, tal como das formas de consciência, do valor e da necessidade, pelo trabalho e pela produção. Ao contrário do "fluxo" do tempo abstracto, este movimento não é uniforme, mas varia e até pode acelerar-se" (Postone, Ob. cit., 443).

O tempo abstracto, homogéneo e autonomizado, como medida da combustão pretensamente infinita de energia humana, corresponde e colide com o tempo histórico concreto do desenvolvimento cegamente dinamizado e igualmente independente, mas de outra maneira, em cujo decurso não só a face do mundo é historicamente transformada, mas também as categorias reais da socialização do valor mudam qualitativamente a sua forma. É o desenvolvimento, não só desde a diligência postal, passando pelo caminho de ferro, até à "automobilização" da sociedade, mas também desde a estrutura familiar estável da produção, passando pela concentração dos "exércitos do trabalho", até à individualização abstracta, simultaneamente com o desenvolvimento das relações de dissociação sexual que lhe estão ligadas; é o processo que vai da subsunção formal das estruturas de produção pré-encontradas até à subsunção real do processo de produção e de vida sob o capital, com base nos fundamentos próprios deste; a história da ciência moderna em cruzamento com a dinâmica capitalista, da relação entre a acumulação empresarial e a crescente necessidade de condições de enquadramento do conjunto da sociedade (infra-estruturas), etc.

Observando as duas formas de tempo do ponto de vista da consciência dos sujeitos, dos indivíduos e instituições, poderíamos definir o espaço-tempo abstracto da economia empresarial como a forma de tempo subjectivamente estabelecida e o tempo histórico concreto do desenvolvimento capitalista como a forma de tempo que objectivamente se manifesta. Pois a acção social própria dos sujeitos realiza-se sempre apenas no quadro do tempo abstracto, homogéneo, da economia empresarial desvinculada e sob pressão dos seus imperativos ou (por exemplo do lado do estado e da política) em relação com este quadro de tempo pressuposto; esse tempo é independente, mas fixa o quadro imediato de acção dos sujeitos. O tempo histórico concreto pelo contrário é a resultante cega, a dinâmica objectivada de uma história do "sujeito automático" e ela própria apenas indirectamente feita pelos seres humanos, contudo por maioria de razão sem o seu controlo social. É uma relação paradoxal de tempo: o tempo subjectivo, consciente, é vazio e abstracto, tempo de combustão de energia humana indiferente a qualquer conteúdo; o tempo histórico concreto do real desenvolvimento de conteúdo material, pelo contrário, é tempo objectivo, inconsciente e portanto fatalidade histórica.

Daí que a emancipação social, em consequência, só pode consistir em conseguir o controlo social sobre o tempo histórico concreto, de modo que o espaço-tempo desvinculado da economia empresarial seja conscientemente destruído, suprimido e com isso suplantada a lógica da valorização do valor. Só a inclusão da reprodução no mundo da vida, a dissolução do trabalho abstracto e com ele da dissociação sexual pode pôr fim também à dissociação e à cada vez maior indiferença aos conteúdos materiais do processo de produção. Seria o fim da separação entre vida e produção, conteúdo e forma, produção e circulação, economia e política. Assim sendo, o processo capitalista de destruição do mundo só será detido quando se conseguir uma integração social, em que pela primeira vez na história os membros da sociedade organizem conscientemente o emprego dos seus recursos comuns (por exemplo numa organização de conselhos escalonada e abrangente) e deste modo também pela primeira vez definam o seu próprio tempo histórico concreto — o desenvolvimento social deixa assim de ser um cego processo de fatalidade.

O marxismo tradicional nem sequer é capaz de pensar nesta tarefa, muito menos lutar por uma via para a sua resolução. Se, no passado, para os teóricos do marxismo do movimento operário o tempo histórico concreto do capitalismo surgia, se bem que não como conceito, mas ao menos indirectamente na discussão mais ou menos positivista dos "estádios de desenvolvimento" do capitalismo, hoje os representantes remanescentes deste pensamento baniram por completo da sua reflexão o problema do tempo histórico concreto e, com ele, o da historicidade do capitalismo. O que quer dizer que a história interna do capitalismo, a história do seu desenvolvimento e crise, esbarra hoje nos seus limites. Daí que também já não é possível estabelecer o tempo histórico concreto como resultante do espaço-tempo abstracto da economia empresarial de modo categorialmente imanente, no sentido de uma interpretação "crítica" do próximo surto de desenvolvimento. O tempo histórico concreto agora só pode ser ainda pensado criticamente no sentido de uma crítica categorial do espaço-tempo desvinculado do próprio trabalho abstracto.

O que sobra do marxismo tradicional, completamente incapaz de semelhante feito, refugia-se por isso, no que diz respeito ao conceito de capital, na concepção de um "eterno retorno do mesmo"; converte-se numa espécie de "marxismo budista". Esta caracterização ainda nem sequer é polemicamente exagerada. Assim se diz, para citar apenas um exemplo significativo, num tratado de resto particularmente pretensioso sobre o assunto, que contudo não consegue encobrir as orelhas de burro do velho pensamento marxista tornado obsoleto: "Manifesta-se… como é difícil encontrar qualquer coisa de substancialmente novo, mesmo original, na realidade capitalista, que esse Marx não tivesse há muito antecipado…Isto não pretende ser uma homenagem a Marx: trata-se nem mais nem menos do que a constatação de que… no essencial o capital representa o eterno retorno do mesmo" (Initiative Sozialistisches Forum [Iniciativa Fórum Socialista], Der Theoretiker ist der Wert [O teórico é o valor], Friburgo 2000, pág. 79). Explícita ou implicitamente esta rejeição do pensamento de um desenvolvimento histórico na relação de valor constata-se hoje quase sem excepção entre os náufragos sobreviventes de uma época chegada ao fim de crítica categorial imanente do capitalismo.

Por outras palavras: este pensamento agora limita-se por completo ao quadro temporal do tempo contínuo abstracto e homogéneo da economia empresarial. Neste quadro temporal ocorrem diversos acontecimentos, mas não há desenvolvimento nem história. Corresponde-lhe a redução estrutural do conceito de capital ao plano do capital isolado e à sua pretensa eterna capacidade de reprodução ("há sempre um vencedor, seja lá quem for"). A dimensão social total da socialização do valor desaparece do campo de visão, juntamente com o tempo histórico concreto. Assim se funde o marxismo tradicional no seu próprio estádio final com a perspectiva económica e histórica burguesa (fim da história, ponto de vista "micro-económico"). Ao já não conseguir pensar mais nenhum novo estádio de desenvolvimento do capitalismo "de esquerda", porque já não há mais nenhum, ele deixa de pensar de todo o tempo histórico concreto. Com isso, o marxismo tradicional comprova apenas a sua imanência categorial na socialização do valor, que ele descreveu esforçadamente como ontologização do trabalho abstracto. Daí que ele esbarra inevitavelmente num limite histórico, juntamente com o seu objecto.

Isto já remete para o problema da crise categorial. O tempo histórico concreto do capitalismo, tal como ele é libertado como processo cego pelos resultados do espaço-tempo abstracto da economia empresarial no plano social material concreto, constitui de facto uma história não só de desenvolvimento, mas também de crise. A irreversibilidade deste processo desemboca num "estádio de desenvolvimento" que já não o é, mas em que se manifesta um limite histórico absoluto. Crítica categorial e crise categorial condicionam-se reciprocamente. Para se poder fundamentar este nexo no plano do tempo histórico concreto, é necessária uma análise do trabalho abstracto do ponto de vista das suas relações quantitativas. A histórica dessubstancialização do valor ou desvalorização do valor apresenta-se como problema de quantidade do trabalho abstracto, o que constitui o cerne da teoria da crise de Marx. Esta relação quantitativa do trabalho abstracto, no sentido de um limite interno do espaço-tempo económico-empresarial desvinculado, será debatida na segunda parte do presente estudo.


Inclusão: 04/10/2020