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Para podermos determinar o carácter ideológico do pensamento burguês supostamente pós-metafísico e em especial do seu desfecho pseudo-relativista, é necessário colocar o conceito filosófico de substância em relação com a constituição capitalista da modernidade. Com efeito, na história da filosofia não existe um significado geralmente reconhecido do conceito de substância. Na filosofia antiga e medieval a substância é o âmago essencial, por oposição a meras qualidades (acidentes), ou o que perdura e se mantém, ou seja, a identidade por oposição a meros "estados" ou desenvolvimentos. Em Aristóteles o conceito de substância aparece significando tanto a matéria, no sentido de um substrato das "coisas", como também a forma, no sentido de o essencial dessas coisas materiais.
No entanto, os diversos significados ou planos de significado da maior parte dos conceitos filosóficos pré-modernos de substância têm em comum o facto de não postularem necessariamente uma generalidade ou Absoluto substancial abstracto, pelo menos no mundo físico e social conhecido. Explicita ou implicitamente prevalece a suposição de que existem substâncias qualitativamente diversas que podem estabelecer relações umas com as outras. Assim sendo, a própria substância seria de certo modo algo de relativo. Tanto pela forma como pelo conteúdo, para as filosofias ou teologias antigas as estrelas, as pedras, as árvores, os cães, os humanos, etc. representam substâncias distintas. E o idêntico de uma determinada substância, por exemplo de um indivíduo humano, também pode ser representado como a totalidade das suas relações naturais, sociais, culturais, pessoais, etc. na unicidade individual da sua estrutura. Como instância absoluta, geral, "suprema", figura apenas "Deus"; mas esta substância permanece transcendente ao mundo.
No entanto, um momento do absoluto ou do geral e abstracto com referência ao mundo terreno já se insinua nas teorias atomistas, e concretamente através do modus da redução. Para Demócrito, por exemplo, não "existe" nada senão o vazio e os corpos compostos de átomos, os mais pequenos componentes em grande medida qualitativamente iguais, distinguindo-se apenas pela forma e dimensão. Tal antecipa a concepção de uma unidade absoluta e substancial do mundo como princípio imanente. Não é por acaso que este reducionismo físico é sistematicamente retomado na ciência da natureza moderna, celebrando aí o seu verdadeiro triunfo. O "universo-relógio" mecânico de Newton consiste, como ele próprio escreve na sua "Óptica", em "partículas maciças, firmes, rígidas, impenetráveis e móveis" (citado segundo: Shimon Malin, Dr. Bertlmanns Socken. Wie die Quantenphysik unser Weltbild verändert [As Peúgas do Dr. Bertlmann. Como a física quântica transforma a nossa imagem do mundo], Leipzig 2003, p. 40) que, por intermédio de "forças", actuam exteriormente umas sobre as outras. Nesse Universo homogéneo Deus já é apenas uma espécie de relojoeiro; no entanto, uma vez dada a corda, o mundo-sistema mecânico move-se por si, e o Iluminismo, por fim, acaba por passar sem qualquer substância criadora transcendente "suprema e primeira".
A unificação física reducionista do mundo em componentes ou unidades mortas e iguais inseridas num contínuo de espaço-tempo absoluto e unificado, apenas esboçada na antiguidade, é, por assim dizer, radicalizada e generalizada na modernidade, como um dogma. Neste caso o conceito atomista de substância estende-se, para além da natureza física, a todas as áreas da existência, por exemplo no conceito de "mónadas sem janela" de Leibniz. A tal corresponde uma concepção da sociedade humana que já não parte da comunidade, seja qual for a sua definição, mas pelo contrário parte da separação dos seus membros, que apenas podem mediar-se uns com os outros a posteriori e de modo exterior-mecânico. Aqui já se torna claro que o conhecimento da natureza aparentemente puro da modernidade, ou seja, o "constructo" do universo-relógio de Newton, reflecte na realidade uma determinada relação social, que inclui um paradigma de indivíduos atomísticos ou abstractos — sendo que esse paradigma contém na sua abstracção aparentemente homogénea da "individualidade em geral" uma particularidade historicamente bem relativa, nomeadamente a do sujeito masculino branco ocidental (MBO). Dito isto, porém, já não estamos perante uma mera ideia de actores do conhecimento de "o" mundo, sem pressupostos, mas sim perante uma determinada constituição histórico-social, a saber, a incipiente constituição capitalista do moderno sistema produtor de mercadorias.
Não se trata porventura de suplantar [Überwinden] a metafísica, como se supõe cada vez mais com o avanço dessa formação social. Tanto a ciência da natureza moderna como também a filosofia e a teoria social apologéticas a ela ligadas têm bases evidentemente metafísicas. Estas apenas puderam ser pouco a pouco escamoteadas e acabar por ser aparentemente deitadas borda fora porque não representam uma metafísica no sentido de uma reflexão meramente filosófica ou teológica, mas sim uma relação social real, ou seja, uma metafísica real, de certa forma encarnada ou embutida no processo de reprodução social. À medida que esta metafísica real se foi impondo historicamente e foi sendo interiorizada, a sua forma de reflexão filosófica pôde desvanecer-se, uma vez que o aparentemente evidente, axiomático e quotidiano já não tem de ser pensado à parte e já não se apresenta como uma essência distinta.
De certo modo, talvez seja lícito dizer-se que todas as constituições sociais de fetiche, portanto também já as pré-modernas, representam uma espécie de metafísica real, na medida em que a respectiva metafísica não se esgota nunca em meras ideias ou representações mentais, mas através dela ao mesmo tempo também são regulados a reprodução social real, as relações sociais e o "processo de metabolismo com a natureza" (Marx). No entanto, a metafísica real social pré-moderna das relações sociais, das condições de reprodução e das estruturas de poder é de certo modo "determinada pelo além", mediada através da projecção de uma substância absoluta simplesmente transcendente, de uma essência divina absoluta e exterior ao mundo, que é representada personalizadamente de forma mitológica ou religiosa. Como representantes desta essência transcendente projectada também as estruturas sociais reais de reprodução e de dominação se apresentam de forma personalizada; nomeadamente como um sistema de relações pessoais de dependência e obrigação.
O conceito de "dependência pessoal", no entanto, na esmagadora maioria dos casos é profundamente mal entendido (até em Marx, que não se debruçou a fundo sobre as condições pré-modernas) quando por "pessoas", neste sentido das constituições de fetiche sociais pré-modernas, se entende "pessoas naturais", ou mesmo sujeitos-do-interesse segundo o uso moderno da língua. Assim parece que a estrutura "dependência pessoal" configuraria uma forma de dominação directa e não mediada, por oposição à moderna, indirecta e mediada. Na verdade, as condições pré-modernas são igualmente mediadas; apenas de outro modo, sendo que neste caso as próprias pessoas se tornam planos de projecção e assim representações da transcendência fetichista. Tais pessoas transcendentais e relações de dependência pessoais estão neste sentido estritamente separadas das pessoas naturais e das suas relações pessoais; de resto, isto vai ao ponto de criar contradições bizarras entre a personalidade transcendental e a personalidade natural, as quais nada ficam a dever aos absurdos da moderna socialização do valor, como é o caso no conceito de "os dois corpos do rei" (Ernst H. Kanturowicz, Die zwei Körper des Königs [Os dois Corpos do Rei], Munique 1990, primeira edição 1957).
Assim sendo, as pessoas aqui, no contexto da sua constituição fetichista, não se apresentam a si próprias como portadoras autónomas de vontade e acção, mas como representações no seio do mundo da essência da substância transcendente projectada. Como a substância absoluta permanece transcendente, não assumindo uma forma terrena imediata (a não ser em representações simbólicas), ela também não pode abarcar totalitariamente o mundo real. Não há nenhuma generalidade abstracta social, mas sim uma sequência de múltiplos graus de representações pessoais e de situações relacionais a todos os níveis.
Outro é o caso da metafísica real capitalista da modernidade. Aqui a transcendência está de certo modo superada [aufgehoben]; a substância fetichista projectada ou a essência como Absoluto tornou-se imediatamente terrena e social, sob a forma da "valorização do valor" (e, apenas neste sentido de uma imanência ao mundo, "directa" e já não "determinada pelo além", isto é, já não derivada de um princípio exterior ao mundo). Embora o momento da transcendência continue a existir, na medida em que a figura essencial do fetichismo, o "valor", não constitui nenhuma essência directamente física ou social, mas sim uma abstracção não palpável, que paradoxalmente por assim dizer encarnou no "processo de metabolismo com a natureza" e nas relações sociais. Nesta medida, a relação social assim constituída representa uma abstracção real, e não uma projecção de ideias meramente ideológica ou (em sentido pré-moderno) religiosa, mitológica, etc., nem tão-pouco uma mera abstracção nominal.
De certo modo, a projecção tornou-se imediatamente real, e com isso também palpavelmente terrena, mesmo que continue mediata, na medida em que apenas se manifesta em relações sociais e em coisas reais (mercadorias e dinheiro), enquanto a essência do "valor" como abstracção não pode ser imediata, nem portanto tão-pouco palpável. O paradoxo da abstracção real consiste em que a abstracção, em si não física/material/corpórea, a coisa do pensamento, ou por outra, um produto da cabeça socialmente objectivado como projecção fetichista, se apresenta ainda assim como uma relação social real e uma objectividade física real, nomeadamente em objectos que em si não são abstractos, mas que são tornados objectos realmente abstractos pelo mecanismo de projecção social.
A "coisa do pensamento" e "produto da cabeça" não devem aqui ser mal entendidos como algo de "pensamento projectado", por exemplo no sentido de um "contrato social" (primordial) na ideologia do Iluminismo, como problema da vontade, ou como ideologia; um mecanismo de projecção fetichista é pelo contrário algo sempre já pressuposto à "projecção", que ainda tem de ser decifrado (cf. a este propósito, nesta edição da EXIT!, a análise crítica feita por Christian Höner ao conceito de ideologia de Nadja Radkowitz, que confunde esses dois planos distintos).
De certo modo quase se poderia falar de uma regressão, pois o mecanismo de projecção moderno regride a uma espécie de animismo secundário, onde já não são as pessoas transcendentalmente representativas, mas as coisas inanimadas a apresentar-se como animadas, como Marx expôs ironicamente no seu capítulo dedicado ao fetiche, no exemplo da mesa que como mercadoria é acometida por caprichos metafísicos. No entanto, neste caso já não se trata de uma animação individual das coisas, mas de uma animação reproduzida de modo idêntico na sempre igual forma do valor e do preço, em que se manifesta a sociabilidade negativa da alma da mercadoria, e a relação social como coisificada. Este animismo secundário não anima tanto as coisas (a natureza) como por assim dizer coisifica a alma (a situação relacional humana); é nesta medida a falsa imediatez da projecção metafísica real sem mais rodeios.
Na medida em que a transcendência da projecção é superada, como essa projecção agora se apresenta imediatamente nas próprias coisas e relações terrenas, ela também já não pode ser personalizada, mas tem de se apresentar sob uma forma coisificada, "objectivada", regulando deste modo sob todos os aspectos o processo de reprodução social, a mediação social. Melhor dizendo: ela "é" essa mediação, que por isso já não necessita de uma instância transcendente exterior ao mundo, nem de mediadores pessoais como representantes dessa instância absoluta; afinal ela própria já está estabelecida como absoluta. O valor, a projecção do fetiche que se apresenta como realmente objectivo no dinheiro, constitui-se como Absoluto terreno, social, através do movimento de reacoplamento do dinheiro a si mesmo como capital, como processo de valorização ou "sujeito automático" (Marx), ao qual é submetida toda a reprodução social e todo o entendimento do mundo. Qualquer coexistência colorida de situações relacionais naturais, culturais e sociais (relações) acaba e é substituída pela pretensão de Absoluto do princípio essencial abstracto único "valor" e pela sua substancialidade negativa.
Ideológica ou "filosoficamente", como forma de reflexão no seguimento ou no sentido de uma apologética de escolta e flanqueadora, o pensamento deste mecanismo de projecção da abstracção real recorre a determinados conteúdos significantes do conceito de substância religioso e filosófico pré-moderno, que no entanto se apresentam numa configuração completamente nova, correspondente à metafísica real capitalista. No lugar da divindade transcendente e absoluta é posto o princípio essencial imanente e absoluto do "valor" ou do processo de valorização. Como se trata da projecção de um processo de abstracção socialmente objectivado, este princípio essencial, no entanto, embora se apresente imediatamente nas coisas e nas relações, sendo portanto imanente, não pode ainda assim ter uma existência material e social por si. Enquanto tal continua a ser não palpável, "intangível" ou "não empírico", não obstante a sua indubitável imanência. Nesta medida, a reflexão positiva, apologética da metafísica real capitalista pode recorrer ao filão "idealista" da metafísica religiosa e filosófica primordial, particularmente de origem platónica. A idealidade transcendente das formas essenciais de Platão e seus seguidores apresenta-se agora como a idealidade imanente do princípio essencial na modernidade, particularmente no idealismo alemão.
No entanto há aqui novamente uma diferença importante no conceito dessa idealidade. Em Platão e nos seus seguidores trata-se da idealidade transcendente das formas essenciais no plural; das formas ideais das diversas coisas, que na matéria terrena se apresentam apenas como "sombras". Sob este aspecto, o idealismo formal de Platão permanece tão pluralista e, assim sendo, relativista como o conceito tradicional de substância, do qual é parte integrante. "Acima" da idealidade do mundo plural das formas, no entanto, eleva-se ainda a esfera do "pura e simplesmente bom", grau mais elevado e origem de todo o Ser, um todo-uno, que no entanto está tão afastado na sua transcendência, que já não se apresenta como tal na imanência.
A idealidade da forma imanente da modernidade, pelo contrário, já não conhece qualquer pluralismo de formas, nem por conseguinte qualquer relatividade correspondente; a forma do valor ou o "sujeito automático" não tolera nenhum outro deus junto de si. O Absoluto transcendente do todo-uno ideal desceu à terra como o Absoluto imanente do princípio essencial "valor". Tal como em Platão, as coisas terrenas empíricas não possuem uma existência independente, sendo antes a mera "expressão" da idealidade da forma; mas desde logo, em primeiro lugar, uma idealidade da forma já não transcendente, mas sim imanente, que se manifesta na socialização do valor e, em segundo lugar, uma idealidade da forma já não plural, mas monística, absoluta, totalitária. Seja como a "forma pura e simples" kantiana ou como o "espírito do mundo" hegeliano, como "vontade absoluta", etc., trata-se sempre de um princípio da imanência da forma total em última instância determinante, do qual todas as coisas e relações apenas devem ser "formas de aparência [Erscheinungsformen]". O mundo não se compõe da relacionalidade de diversas entidades, mas sim, monisticamente, do todo-uno terreno da valorização do valor.
Pode-se reconhecer à primeira vista que o universo-relógio físico de Newton, com os seus componentes atomísticos unitários e o seu contínuo unitário e absoluto de espaço e tempo, corresponde com bastante precisão a esse idealismo da forma absoluto e totalitário. A aparente contradição entre o "idealismo" da forma e o "materialismo" do mundo físico desaparece, mal ambos os constructos sejam decifrados quanto ao seu fundo histórico-social. Provavelmente o mesmo já se aplica às antigas formas incipientes da contradição entre o idealismo da forma platónico e o materialismo da substancia atomístico, na medida em que a filosofia ocidental da antiguidade já representa uma reflexão ainda inacabada, no contexto da relação não amadurecida entre a forma da mercadoria e a forma do pensamento.
Na modernidade completou-se a complementaridade entre estes dois constructos, que do ponto de vista histórico-social correspondem à constituição da formação social "baseada no valor" (Marx) do capitalismo. O idealismo formal da filosofia moderna (que nas teorias positivistas apenas manifesta o seu vulgar estado de decadência) pode ser decifrado como o princípio essencial do valor, da forma social de fetiche paradoxalmente secularizada; o materialismo substancial da física mecanicista, como o mundo natural moldado e de certo modo "executado" por esse ditado da forma. É um mundo feito de elementos e "forças" mecânicas iguais, que na sua condição física e biológica se pretende ver degradado em mera "forma de aparência" da abstracção real social. O ambiente cultural e o mundo da vida hodiernos da sociedade capitalista cada vez mais unificada à escala planetária aproximam-se fantasmaticamente do constructo newtoniano de um Universo mecânico uniforme; para a biosfera planetária, tal como para a cultura humana no sentido mais lato, porém, tal significa a aniquilação sucessiva.
O conceito filosófico clássico de substância apenas na metafísica real capitalista da modernidade se diferencia claramente em forma (forma ideal imanente–transcendente ou "transcendental", forma do valor) e conteúdo (mundo moldado de modo mecanicista, fisicamente reduzido). No entanto, nesta relação entre a forma e o conteúdo da substância real metafísica ainda falta o agente social de toda a organização da metafísica real, o momento mediador do movimento. A relação entre a forma do valor e a substância natural mecanicisticamente reduzida não pode ser estática, mas apenas um processo dinâmico, em que a natureza em si não reduzida, apenas é realmente reduzida à abstracção do valor pela mediação social, por uma força social no "processo de metabolismo com a natureza" especificamente capitalista.
Esta força é ela própria uma substância material, não porém natural, mas social. A substância natural da abstracção real moderna, como abstracção da forma do princípio essencial "valor", é a matéria abstracta física e mecanicisticamente reduzida; a substância social deste princípio da forma da metafísica real é — o "trabalho abstracto" (Marx). O "trabalho", como forma de actividade e ao mesmo tempo como substância do capital, constitui a força social-material e o processo, através do qual somente pode afirmar-se no mundo terreno o princípio da forma da metafísica real, com a sua pretensão de Absoluto negativa e destrutiva. O movimento mediador do trabalho abstracto é a automediação da substância e, assim sendo, um fim-em-si e uma auto-agregação na forma do valor (manifestando-se na forma do dinheiro) e como permanente "alienação [Entäusserung]" na matéria natural e nas relações sociais, enquanto sua moldagem até à respectiva destruição, a fim de as transformar na simples imagem da abstracção real que se processa consigo mesma.
Já aqui se torna claro que o marxismo tradicional permaneceu completamente refém da metafísica real da modernidade. O seu "materialismo", com a eterna celebração da respectiva corrente na história da filosofia ocidental, mais não representa que a reflexão afirmativa de um lado da relação de valor ou de capital, nomeadamente o materialismo substancial da redução física, em que o mundo natural já se apresenta moldado pela abstracção real capitalista. É o materialismo de aniquilação de uma forma de reprodução fetichista que vai dilacerando e triturando a biosfera terrestre. Consequentemente, no pensamento marxista, ao materialismo substancial físico positivo de uma natureza destrutivamente moldada corresponde o materialismo substancial social positivo do "trabalho" que é o agente dessa moldagem. Este "materialismo" da ontologia do trabalho marxista e da concomitante fé mecanicista na ciência da natureza está muito longe de suplantar o idealismo formal da tradição filosófica aparentemente contrária; à semelhança do que acontece no pensamento burguês e como seu prolongamento modificado, comporta-se de um modo meramente complementar relativamente a ele.
Nesta medida, Hegel não foi recolocado com os pés no chão e de cabeça para cima, mas os pés continuam sempre sob o comando da cabeça, do princípio essencial capitalista da forma ideal. Decifradas socialmente, as relações de fetiche como "metafísicas reais" são sempre ao mesmo tempo "idealismos reais", levados ao auge pelo idealismo real capitalista pela primeira vez imanente do "sujeito automático" na forma da valorização do valor, do reacoplamento cibernético da abstracção real valor a si mesma. Ironicamente, assim sendo, o materialismo real do trabalho e da ciência da natureza capitalista não é outra coisa senão a forma de aparência prática do idealismo real da forma do valor, e não o contrário. A abstracção real do valor representa uma agregação ou uma forma de existência da prática de abstracção real do trabalho e vice-versa; precisamente por isso o trabalho abstracto constitui o modo como o princípio essencial social não material deita a mão ao mundo material como um fantasma.
Deste modo, o "idealismo objectivo" de Hegel sob determinado aspecto até anda mais próximo da coisa do que o "materialismo objectivo" do pensamento marxista; mas Hegel pensa o idealismo real capitalista apologeticamente, como movimento de automediação positiva da essência da abstracção real, assim lhe escapando por princípio a sua qualidade negativa, destrutiva e aniquiladora da vida. O materialismo marxista, pelo contrário, compra a passagem à crítica (em grande medida reduzida, não indo além da imanência) de modo que, por seu lado, lhe escapa o carácter da abstracção real social. Como abstracção, o valor/trabalho abstracto mantém-se de certo modo um coisa do pensamento, e daí uma idealidade (negativa). Não se trata, porém, de uma idealidade subjectiva, apenas reflexiva, de uma idealidade constituída por meras abstracções nominais (linguísticas e mentais), mas de uma idealidade objectivada por processos históricos, "materializada" por uma prática compulsiva.
A fim de se chegar a uma crítica plena da substancialidade negativa da relação de fetiche capitalista, não é o idealismo objectivo de Hegel que tem de ser posto de cabeça para cima e pés no chão, mas sim a cabeça da abstracção real que tem de ser guilhotinada. Apenas essa seria a prática libertadora e transcendente, que deixaria de moldar compulsivamente o mundo social e natural, mas destruiria sim o próprio princípio essencial dessa prática destrutiva.