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Primeira Edição: Original Gegenrealismus in www.exit-online.org Publicado in Neues Deutschland, 10/2002. Tradução de José Paulo Vaz in www.obeco.planetaclix.pt
Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Os conflitos sociais são sempre também uma luta por conceitos, pelo "poder de definição" sobre a forma como os problemas podem ser encarados. Também se poderia dizer que os problemas são definidos, quase naturalmente, de acordo com os critérios da lógica do sistema dominante. E os conceitos assumem então a cor correspondente, ao jeito do camaleão. Não existe uma proibição expressa ou uma censura, pois o mecanismo da construção dos conceitos e o processo da definição decorre de forma muito mais subtil. Uma determinada forma do discurso manifesta-se de determinado modo e, de repente, toda a gente começa a falar a mesma linguagem, aparentemente com profunda convicção. Principalmente no plano sócio-económico, institui-se na investigação científica, nos media e na classe política uma regulamentação geral do discurso, um "discurso do consenso", que funciona ainda mais rigidamente por não ter sido fixado administrativamente.
Esta situação baseia-se no facto de a ciência, os media e a política não poderem funcionar de forma tão estúpida e automática como a mão invisível do mercado. Eles instituem o lado "subjectivo" em relação às leis "objectivas" do sistema. A conformidade com os imperativos capitalistas não é por isso nunca dada por si própria, mas tem sempre de ser produzida num processo discursivo. Uma função essencial deste discurso consiste em os participantes alinharem uns contra os outros com base no "boletim meteorológico" capitalista, ao qual é preciso adaptar todas as relações sociais e culturais. É precisamente para isso que serve a regulamentação do discurso. Neste sentido, ciência, media e classe política constituem uma espécie de cartel que zela por que ninguém saia dos carris. É instituído um quadro geral em que, se, por um lado, a própria clientela é enredada na conversa fiada do marketing, por outro, é agarrada pelo freio.
A semântica do controlo ideológico é dominada por quem detém o poder básico de definir o que é a "realidade" e, por consequência, a "Realpolitik" (política realista). O cartel semântico hoje dominante erigiu as exigências da administração capitalista da crise em princípio da realidade e redefiniu, em correspondência, o conceito de reforma. O antigo "pathos" social e emancipatório do reformismo, tal como se constituiu no decurso do desenvolvimento histórico da contratação colectiva, do "Estado de bem estar" e do serviço público, é agora, precisamente ao contrário, instrumentalizado para a contra-reforma. As campanhas de privatização e de restrições sociais subordinam-se ao lema: "nós somos a modernidade". Quanto mais privado e mais barato melhor.
Todos se preocupam com a possibilidade de fazer as "reformas" contra "o eterno passado". Propõe-se o compromisso na "conformação da sociedade". Por exemplo: reduz-se a despesa em 5 ou 10% ? Tem de ser fechado o hospital ou a creche? Devem eliminar-se os benefícios dos doentes de cancro ou dos deficientes? Faz-se um aumento de 1% num benefício qualquer mas triplicam-se os encargos noutro ponto? "Melhorias para as pessoas" é como se chama agora ao menor grau de deterioração a que, com um gesto reformador, se consegue descer. A luta política já só diz respeito a saber quem tem mais habilidade para vender os cortes cada vez mais duros. A esquerda política é ameaçada de "ser reduzida à insignificância" se não fizer "reformas convincentes". A "vontade do eleitorado" — assim se deixa vislumbrar a semântica do controlo — regurgita de "realismo" e de "maturidade dos cidadãos", precisamente quando está ávida de salários baixos, de destruição do sistema de segurança social e de privatizações.
Esta dominante regulamentação do discurso está tão estafada como o anúncio de um progresso iminente, maçadoramente repetido desde há muitos anos. Se as coisas continuarem assim, a palavra "reformador", antes respeitável, arrisca-se a converter-se numa injúria vulgar, com que o homem comum designará um mau vizinho ou um mau cão. A lavagem ao cérebro nem sempre funciona. O poder dominante de definição da realidade pode ser quebrado por um amplo contra-realismo. Neste sentido, uma ampla campanha de envergadura contra o projecto dos baixos salários, muito mais do que uma simples política social nos limites da aritmética política, seria uma Kulturkampf (luta pela cultura), uma ofensiva por um nível civilizatório. Uma contra-"Realpolitik" que pusesse implacavelmente em causa todas as ramificações, meandros e cumplicidades da administração repressiva da segurança social e do trabalho teria hipóteses de ser bem sucedida ao nível das massas.
Isto aplica-se, em primeiro lugar, a uma luta séria pela manutenção dos serviços públicos como parte de um "standard" mínimo de vida. As pessoas estão tão fartas dos caminhos de ferro por acções, dos correios por acções, e da ameaça das águas por acções como de uma medicina de segunda classe e do sistema de (não) ensino barato. O "contrafogo" (Pierre Bourdieu) não tem de ser o eterno voltar ao passado da tradição burocrática estatal. Também é pensável um conceito de serviço público na forma de sociedades sem fins lucrativos auto-administradas que seriam encarregadas de gerir as infraestruturas. A orientação por um valor de uso público não estaria para além da forma do valor, mas seria um momento de transformação emancipatória.
Se o Capitalismo não pode manter o nível civilizacional, também não tem de ser "aceite" com reverências. Pelo contrário, tem de se tirar a conclusão de que o Capitalismo, pelo seu lado, cada vez "aceita" menos os seres humanos. A necessidade de formas de representação organizada dos socialmente excluídos da cidadania não será facilmente resolvida como aconteceu com os refugiados da Segunda Guerra Mundial, absorvidos pelo "milagre económico", mas, pelo contrário, só aumentará; e não só na Alemanha de Leste. A aritmética do cartel semântico e político dominante não lhes pode dar voz, apenas pode conduzir a sua voz para as engrenagens do ressentimento nacionalista e racista. Diga-se a verdade: não se trata de anunciar a crença no Estado, mas a responsabilidade pessoal. Uma responsabilidade no sentido não burocrático de um contra-movimento social autónomo, e não no sentido de uma crença no mercado fortemente autoritária e alegremente resignada.