Marx depois do Marxismo

Robert Kurz

24 de setembro de 2000


Primeira Edição: Jornal Folha de São Paulo

Fonte: http://obeco-online.org/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Quanto mais irreflexivo e acrítico se torna o capitalismo, mais se consolida uma necessidade insatisfeita por teoria, uma necessidade que cedo ou tarde será imperiosa 

Nem só livros isolados têm o seu destino, mas também grandes teóricos. E sobretudo para os teóricos críticos vale o antigo adágio: "Quem é dado por morto, vive mais". Karl Marx já foi dado por morto mais de uma vez e sempre escapou por um fio da morte histórica e teórica. A razão é simples: a teoria de Marx só poderá morrer em paz junto com o seu objeto, o modo de produção capitalista. Enquanto esse sistema de um cinismo mundialmente objetivado não desaparecer da história, o espectro do comunismo continuará a rondar; e a teoria de Marx, com sua análise até hoje insuperada da lógica capitalista e de suas leis funcionais, forneceu um dia os elementos básicos de uma crítica à qual essa forma de sociedade é um desafio renovado. Talvez no futuro próximo o mundo se surpreenda novamente com um indesejável renascimento do tantas vezes satanizado "profeta" barbudo da crítica radical do capitalismo. A favor dessa suposição pesa o fato de que o capitalismo fracassou estrondosamente em dar às regiões economicamente arruinadas de sua periferia uma nova perspectiva civilizadora. E tampouco é só a expectativa de uma possível crise alarmante dos mercados financeiros que poderia recolocar Marx na ordem do dia da história. Mesmo se o capitalismo do tipo "shareholder value" perdurar ainda por algum tempo, o sistema capengante, em sua singeleza econômica, já carrega involuntariamente dentro de si uma outra e perigosa substância inflamável, o bocejante tédio intelectual. 

Alentados livros

Quanto mais irreflexivo e acrítico se torna o capitalismo, mais se consolida uma necessidade insatisfeita por teoria, uma necessidade que cedo ou tarde será imperiosa. Não há sociedade que deixe atrofiar impunemente o seu potencial intelectual. Depois que os charlatães da pós-modernidade escreveram alentados livros sobre por que já não é mais possível escrever alentados livros, o capitalismo expirou as suas últimas idéias. Os conteúdos da chamada "era da informática e da comunicação" só fazem aborrecer até mesmo pessoas com modestas pretensões intelectuais. Em sua penúria, não resta outra alternativa à "necessidade teórica", na busca por alimento espiritual, senão se aproximar daqueles campos da crítica radical da sociedade que, hoje em dia, saíram totalmente da moda intelectual. Mas, a exemplo de todo pensamento teórico que ultrapassa a data de validade de um determinado espírito de época, também isso vale para a obra de Marx: ela sempre carece de uma nova abordagem que lhe descubra novas facetas e descarte velhas interpretações. E não só interpretações, mas também certos elementos datados dessa própria teoria. Cada teoria, como dizia Adorno, tem um "núcleo temporal" e, portanto, uma limitação que a obriga a se desenvolver e a ir além de si mesma. De outro lado, cada teórico pensou mais do que ele próprio sabia; e uma teoria sem contradições não seria seriamente digna desse nome. Existe sempre uma relação tensa entre uma teoria e seus destinatários e também seus opositores, na qual a contradição interna da teoria se desdobra e só assim fomenta o conhecimento crítico capaz de agir socialmente. Quando Marx, precipitadamente dado como morto, ressuscitar outra vez, com certeza não será mais no horizonte hermenêutico daquela época que findou em 1989 e que por isso só agora pode ser abarcada com a vista. Para poder compreender o valor da teoria de Marx e as suas contradições, é preciso redefinir a natureza dessa época do ponto de vista atual. Ela não encerra apenas o "breve" século 20 (1914-1989), mas três grandes processos históricos ou ondas de desenvolvimento que, de certo modo, tiveram seus respectivos séculos, mas que se sobrepuseram e penetraram mutuamente. A primeira dessas ondas pode ser designada como o "século do movimento operário" (1848 a 1950), a segunda como o "século da luta pelo domínio capitalista mundial" (1870 a 1945), a terceira como o "século das revoluções de desenvolvimento nacional" (1918 a 1989). Foi pela interferência dessas ondas que se criaram as constelações do modelo histórico da sociedade mundial e de seus "sistemas" -modelo a nós familiar, porém agora desaparecido. No processo integrado dessa época, o capitalismo impôs-se globalmente e amadureceu como formação social. E não há dúvida de que aquela corrente intelectual e política designada como "marxismo" marcou indelevelmente esse desenvolvimento. Mas isso significa também que o "marxismo" se prende àquela época cujo término testemunhamos. O que constitui o "núcleo temporal" da teoria de Marx se tornou, pois, obsoleto. Atuantes no futuro só podem ser agora aqueles aspectos dessa teoria que não se esgotam em "núcleos temporais", antes apontam para além deles. Aliás, o próprio Marx já dizia: "Não sou um marxista". O problema básico comum, e a dinâmica de desenvolvimento daí resultante dos três "séculos" imbricados de movimento operário, revolução de desenvolvimento nacional e luta pelo domínio mundial (dentro do "longo" século de 1848 a 1989, com a queda do Muro de Berlim), pode talvez ser definido como o descompasso temporal do capitalismo. Primeiro, o novo modo de produção era de certa maneira descompassado com relação a si mesmo naquele intervalo do século 19 que constituiu a vida de Marx (1818-1883): de um lado, ele tinha desdobrado sua própria lógica a ponto de ela ser visível em suas linhas básicas e portanto reconhecível abstratamente; de outro, as formas econômicas capitalistas e as relações sociais ainda estavam muitas vezes amalgamadas com relações e formas de pensar pré-capitalistas. Assim era que o direito burguês e o respectivo aparato ainda estavam longe de totalmente diferenciados e perfeitos, os espaços sociais ainda não se achavam suficientemente homogeneizados, os padrões pré-modernos da cultura cotidiana incompatíveis com o "trabalho abstrato" ainda não tinham sido postos de lado e a normatização da produção e do consumo ainda não fora realizada. 

Desenvolvimentos díspares

Por outro lado, o descompasso temporal do desenvolvimento capitalista apresentava-se também como externo. Quando Marx escreveu seu "Capital", uma grande porção do globo praticamente não fora ainda arrebatada pela lógica desse modo de produção. As áreas coloniais, das quais uma parte considerável só foi anexada no século 19, foram tocadas apenas na superfície e pontualmente pelo processo capitalista, enquanto a vida na grande hinterlândia persistia nas estruturas pré-modernas.
Mas, mesmo no interior da Europa, havia uma acentuada disparidade de desenvolvimento. A Inglaterra já rudimentarmente industrializada antecipara-se em muito ao continente, enquanto entre os países continentais a porção ocidental (em especial a França) era bem mais desenvolvida em relação à Europa Central e Meridional. Na Alemanha, não se firmara nem sequer o pressuposto de uma economia nacional uniforme e de um correspondente Estado nacional.
Assim, o século 19 na Europa e no círculo daqueles países que já se começavam a definir vagamente como "capitalistas" esteve essencialmente sob o signo de uma corrida de recuperação. Essa primeira "modernização retardatária" estabeleceu (na concorrência com a Inglaterra e a França) como que um paradigma que marcou de forma mais duradoura o desenvolvimento da Alemanha e da Itália; e na Ásia, também o do Japão.
Ao mesmo tempo os Estados Unidos, até ali pouco notados pela "história universal européia", transformaram-se meteoricamente, do outro lado do Atlântico, num foco autônomo de capitalismo industrial. Foi esse processo de "modernização retardatária", na segunda metade do século 19, que possibilitou o surgimento daquele contraditório centro global de relativamente poucos países que, desde então, domina o mundo capitalista em constelações diversas.
Não resta dúvida de que Marx, nesse contexto de variados descompassos temporais, escreveu não apenas da perspectiva de uma radical crítica do capitalismo, mas paradoxalmente da perspectiva também de seu desenvolvimento positivo. Pois Marx, afinal, foi um dissidente do liberalismo que esteve preso ao conceito liberal de progresso burguês e ao esquema histórico do desenvolvimento da filosofia hegeliana. Dessa perspectiva, era simplesmente "a vez" histórica do capitalismo e, para poder um dia suprimi-lo para sempre, era preciso primeiro introduzi-lo, sustentá-lo, desenvolvê-lo e de certo modo avizinhar-se de seu conceito como suposto modo de produção "historicamente necessário", em nome de um "desenvolvimento das forças produtivas". "Preocupa-nos", diz Marx já no prefácio da primeira edição de sua obra-prima, "não só o desenvolvimento da produção capitalista, mas também a falta de seu desenvolvimento". Essa frase poderia servir de chave para toda a história do "marxismo". 

Chave positiva

Isso porque, de acordo com essa frase, a teoria de Marx não reflete o processo de modernização capitalista como algo negativo, mas sim positivo e, nesse sentido, difere das outras teorias de modernização somente pela sua terminologia específica e pelo seu arcabouço histórico-filosófico. O "marxismo" do antigo movimento operário remetia-se, em última instância, a esse aspecto específico em Marx. Em seu alcance, a crítica do capitalismo a ele vinculada ainda estava longe de poder abarcar o conjunto lógico e histórico desse modo de produção, só o fazendo com certos graus de desenvolvimento do descompasso temporal interno e externo.
Essa limitação era tanto menos aparente uma vez que, aos próprios "interesses dominantes" e a seus apologetas, o capitalismo parecia idêntico ao respectivo estágio de seu desenvolvimento ainda inesgotado. E as conservadoras elites funcionais, tanto econômicas quanto políticas, sempre se atinham ao status quo do processo de transformação.

Foi assim, por sua vez, que o repúdio a essa situação nas forças "progressistas", em luta para romper o status quo, assumiu o nome de "crítica do capitalismo", ainda que, na verdade, se tratasse apenas do desenvolvimento ulterior do próprio capitalismo. Dessa perspectiva resulta a constatação, só à primeira vista surpreendente, de que o "marxismo" do "longo" século de 1848 a 1989, sem saber nem querer, foi no fundo uma mola propulsora ou um "acólito do desenvolvimento" capitalista. De fato, o pensamento "marxista" de toda essa época se referia às respectivas condições empíricas menos da perspectiva de uma crítica do desenvolvimento da produção capitalista que da perspectiva de uma crítica da falta de seu desenvolvimento. 

Paradoxos do marxismo

Os partidos "marxistas" lutavam sem exceção pela modernização das relações; como queriam "domar" o capitalismo, impeliram-no adiante. Cumpriram, assim, um papel vanguardista na superação do descompasso temporal interno e externo. Por isso assumiram também, sob os pressupostos concorrenciais da "modernização retardatária" do século 19, o ponto de vista econômico e estatal de "seu" Estado-nação: a oposição social interna e o conformismo nacional externo não eram, na verdade, tão antagônicos como primeiramente talvez pudessem parecer, antes brotavam igualmente do papel paradoxal do "marxismo" no processo de desenvolvimento capitalista. Foi assim que, na Primeira Guerra Mundial, o "século do movimento operário" pôde aliar-se ao "século da luta pelo domínio capitalista mundial" da maneira mais atroz. Simultaneamente à eclosão da Revolução Russa de outubro, teve início a segunda onda da "modernização retardatária", ou seja, o "século das revoluções de desenvolvimento nacional". Pois só então ingressavam as grandes regiões globais da periferia capitalista, a grande maioria da humanidade, como Marx já previra 50 anos antes com pretensões próprias na história capitalista universal. E mais uma vez o "marxismo" assumiu o papel de uma crítica da falta de desenvolvimento capitalista. Converteu-se ele em ideologia legitimadora da auto-afirmação da periferia "retardatária" na concorrência com os centros estabelecidos do capital. Nesse contexto há de se compreender também o grande cisma do movimento "marxista" mundial: enquanto os partidos trabalhistas ocidentais, nesse meio tempo reconhecidos como forças positivas da modernização, não precisavam mais recorrer a Marx para se legitimarem, o "marxismo" passou de certo modo a ser propriedade exclusiva dos retardatários históricos. Hoje a história dos descompassos temporais no capitalismo terminou. Quis a ironia dessa história que o "marxismo" como teoria da modernização e do desenvolvimento no século 20 se tornasse duplamente obsoleto, por razões totalmente contrárias: no caso do movimento operário ocidental, ele se fez supérfluo porque a "modernização retardatária" foi bem-sucedida; no caso das revoluções de desenvolvimento nacional no Leste e no Sul, tornou-se imprestável porque a "modernização retardatária", em última instância, fracassou. 

"Pax americana"

No final do "longo" século de suas ondas entrelaçadas de desenvolvimento, o capitalismo tornou o mundo negativamente compassado sob a égide da "pax americana". Agora ele não se desenvolve mais. Por isso já não se pode em lugar algum criticá-lo da perspectiva de uma falta de seu desenvolvimento. Se o pensamento de Marx se tornar outra vez atual, certamente não o será como "marxismo".
O próprio Marx, é verdade, nem em sonho imaginaria que a segunda parte daquela frase no prefácio do "Capital" caracterizaria mais de 120 anos de história do desenvolvimento interno da modernidade capitalista. Mas assim é: somente após o "marxismo" poderá ter início a verdadeira crítica do capitalismo. O renascimento da teoria de Marx no século 21 terá de descobrir intelectualmente uma terra virgem para além dos atuais conceitos de "desenvolvimento". Isso com certeza é difícil de entender. Quem menos quer compreendê-lo, claro, são os "marxistas" que restaram, cujo trabalho de acólitos involuntários do desenvolvimento capitalista perdeu todo o sentido.

São Paulo, domingo, 24 de setembro de 2000


Inclusão: 03/12/2019