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Fonte: Revista Espaço Acadêmico. Intelectuais Brasileiros e Marxismo. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1991, pp. 13-18. Nota do editor: Os textos desta série foram publicados pelo autor no jornal carioca Tribuna da Imprensa, ao longo do ano de 1990. No final de cada artigo é indicada a data de publicação. Os artigos foram reunidos e publicados em "Intelectuais brasileiros & marxismo" (Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1991). O autor, a quem agradecemos, autorizou a publicação na REA. Também registramos o agradecimento ao Prof. Paulo Cunha.
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Se estivesse vivo, como Astrojildo Pereira estaria reagindo à crise do socialismo? Como encararia os acontecimentos da Europa oriental? Qual seria a sua reação diante da imagem mostrada na televisão do guindaste que removeu a imensa estátua de Lênin?
Nascido em 1890, na cidade de Rio Bonito, no Estado do Rio de Janeiro, Astrojildo estaria completando um século de vida. E estaria vendo coisas que nem sm seus piores pesadelos podia ter imaginado.
Imagino o constrangimento, a perplexidade do sereno e discreto fundador do Partido Comunista do Brasil. Relembro seu vulto franzino, já velhinho, pouco antes de morrer, usando uma boina escura para proteger a calva. Revejo a expressão suave mas teimosa do seu olhar, acostumado a enfrentar todos os tipos de tempestade. E torno a me perguntar: o que ele acharia dessa tempestade de agora?
Infelizmente, Astrojildo não está presente entre nós, no momento em que transcorre o seu centenário. Não podemos saber o que ele faria, o que ele diria.
Quando penso no vigor da sua fé, entretanto, sinto-me tentado a assegurar que o veterano lutador reiteraria sua confiança absoluta na causa a que servia. Tenho a impressão de que talvez dissesse: “O socialismo está morto? Então, viva o socialismo!”.
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Astrojildo Pereira não nasceu socialista (ao contrário do que poderia parecer aos que o conheceram mais tarde e que ficavam impressionados com a total adesão do homem às concepções de Marx e Lênin). Astrojildo tornou-se socialista.
Antes de assimilar o “marxismo-leninismo”, foi um moço rebelde, inquieto e meio moleque, dividido, cheio de dúvidas, que pensou em se tornar frade, mas ao mesmo tempo (no Colégio Anchieta, de Nova Friburgo) redigia um jornalzinho pornográfico clandestino.
Abandonou o curso ginasial no terceiro ano, tornou-se antimilitarista, republicano e democrata radical. Com o fracasso da campanha civilista de Rui Barbosa, com a repressão desencadeada contra a revolta do marinheiro João Cândido e com o fuzilamento do pedagogo Ferrer na Espanha, Astrojildo foi levado a radicalizar suas posições e passou a se interessar pelas idéias anarquistas.
Em 1911, partiu num navio, como passageiro de terceira classe, para a Europa, de onde regressou com uma mala cheia de livros de Kropótkin, Malatesta, Grave, Faure, Hamon e Bakunin. E a partir de então se dedicou à difusão do anarquismo em regime de tempo integral.
Trabalhou em vários dos pequenos jornais que constituíram a “imprensa alternativa’ da época: A Voz do Trabalhador, Guerra Social, Spártacus, O Cosmopolita e outros. Para suprir a falta de colaboradores, desdobrou-se em numerosos pseudônimos, tais como Aurélio Corvino, Pedro Sambê, Tristão, Cunhambebe, Alex Pavel, Astper, etc. Chegou até a polemizar consigo mesmo, usando os colaboradores que tinha inventado para animar as publicações, tornando-as mais interessantes.
De 1918 a 1921, o anarquismo viveu um período de crise interna. Astrojildo, inicialmente, defendeu com paixão os ideais ácratas, definindo-se como “um intransigente libertário”. Ganhou um premio em dinheiro na loteria e fez uma doação de vários contos de réis para o jornal anarquista A Voz do Povo.
Pouco a pouco, porém, o anarquista convicto passou a rever as teorias que serviam de base às suas convicções políticas e filosóficas. Sob o impacto das conseqüências da revolução leninista em escala mundial, fascinado pelo que estava acontecendo no recém-fundado Estado bolchevista, acabou aderindo ao comunismo e participou decisivamente da preparação da criação do Partido Comunista do Brasil, em 1922.
A opção de Astrojildo Pereira pelo comunismo deixou mágoas profundas em alguns dos companheiros anarquistas que não o acompanharam. Em José Oiticica, por exemplo, tais mágoas ainda estavam vivas em 1956, quanto ele se referiu, num artigo, aos danos causados ao movimento anarquista pela “intromissão sorrateira, venenosa, nefasta, do bolchevismo, operada, sem nenhuma ciência minha nem dos militantes anarquistas mais conscientes, pela cavilação manhosa de Astrojildo Pereira”.
Oiticica, evidentemente, subestimava os diversos outros anarquistas que se tornaram comunistas, considerando-os demasiadamente influenciáveis, desprovidos de motivações próprias. Em certo sentido, porém, o combativo intelectual anarquista também estava prestando uma homenagem a Astrojildo, quando atribuía à sua influência pioneira o esvaziamento do anarquismo em 1921-1922. O próprio Astrojildo, com sua natural modéstia, jamais se atribuiria um papel tão destacado.
Astrojildo sempre primou pela discrição, pela modéstia. Quando o PCB foi fundado, a maioria dos comunistas já o reconheciam como líder. Mas ele preferiu ficar em segundo plano e apoiou Abílio de Nequete para o posto de secretário-geral (e só assumiu o comando da agremiação quando Nequete renunciou, poucos meses depois).
Heitor Ferreira Lima, que o conheceu em 1923, descreveu-o mais tarde, com simpatia: “Calmo, sério, falando sem pressa, tinha prosa agradável e variada. Jovial e simples, apreciava anedotas, bebendo às vezes cerveja, nos encontros de cafés com os companheiros”.
Polemizou com ex-companheiros de militância anarquista e se esforçou para levar o Partido Comunista do Brasil a ser oficialmente reconhecido pela Internacional Comunista (reconhecimento necessário para lhe assegurar a sobrevivência).
Ao longo dos anos vinte, foi gradualmente esboçando na orientação política do seu partido um movimento capaz de tirá-lo do isolamento, capaz de lhe permitir pôr em prática uma política de alianças um pouco menos estreita do que aquela que vinha sendo seguida. Fez um acordo com o professor positivista Leônidas de Rezende para que os comunistas utilizassem o jornal diário A Nação em seu trabalho de propaganda. Organizou o Bloco Operário e Camponês (BOC) para participar das eleições. E procurou Luís Carlos Prestes na Bolívia, levando-lhe literatura comunista, para tentar atrair o comandante da “Coluna Invicta”.
Num dado momento, a vinculação com a Internacional Comunista, que na cabeça de Astrojildo garantia a sobrevivência ao PCB, começou a ser uma fonte de graves transtornos: um emissário da Internacional, o lituano August Guralski, veio para o Uruguai e de lá passou a “enquadrar” os comunistas brasileiros. Astrojildo foi chamado a Montevidéu para uma reunião, levou um pito, foi obrigado a dissolver o Bloco Operário e Camponês; em novembro de 1930, foi destituído de seu posto e mandado para São Paulo: deram-lhe uma chance de se “reabilitar”, atuando nas bases do partido.
Por fim, em 1931, depois de muita humilhação, Astrojildo se retraiu, afastou-se do partido que tinha fundado. Não abandonou em nenhum momento seus princípios e suas convicções, porém deixou de ter militância. Foi um tempo triste e sombrio para ele. Felizmente, a vida lhe proporcionou um consolo: casou-se com aquela que viria a ser a sua companheira até o final da sua vida, dona Inês, filha de Everardo Dias, autor da História das lutas sociais no Brasil.
Nos anos trinta, Astrojildo trabalhou numa empresa dedicada ao comércio de bananas e arranjou tempo para se dedicar a uma velha paixão: a literatura. Quando tinha dezoito anos, Astrojildo soube que Machado de Assis estava morrendo. Resolveu visitar o grande escritor, a quem dedicava uma admiração enorme. Chegou, foi conduzido ao leito do agonizante. Não disse nada: se ajoelhou e beijou a mão do mestre. Depois, se levantou e saiu, em silêncio. Euclides da Cunha, que relatou o episódio, comentou: “Naquele momento – no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis – aquele menino foi o maior homem de sua terra” (Jornal do Commércio, 30-9-1909).
Nos anos trinta, Astrojildo escreveu sobre Machado de Assis, lembrou que ele era não só o mais universal dos nossos escritores como também o mais verdadeiramente nacional dos nossos romancistas. Recordou a frase de Machado sobre José de Alencar, dizendo que havia nele “um modo de ver e de sentir que dá a nota íntima da nacionalidade”. E observou, com argúcia, que essas palavras se aplicavam mais ao próprio Machado. Hoje, essa interpretação de Machado é a que vem prevalecendo entre os melhores críticos; nos anos trinta, porém, Astrojildo a defendia remando contra a maré.
Astrojildo nunca pôde desenvolver uma concepção especificamente estética a partir do marxismo: em geral, limitou-se a empregar as idéias de Marx no âmbito limitado de uma sociologia da literatura. Tendia a salientar nas obras, unilateralmente, o valor de documentos históricos. Não discutia os problemas do universo ficcional, a criação da fantasia no texto. Apesar dessa limitação da sua aparelhagem teórica, entretanto, o bom senso e o bom gosto o ajudavam a distinguir, na arte literária, o que era realmente bom e o que era ruim. Assinalou os limites artísticos de Joaquim Manuel de Macedo. Reconheceu as qualidades literárias de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. E saudou com admiração o aparecimento de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, em 1938.
Em 1945, teve participação destacada nos trabalhos do 1º Congresso Brasileiro de Escritores, que exigiu as liberdades democráticas que vinham sendo negadas pela ditadura de Getúlio Vargas. Depois, pediu seu reingresso no Partido Comunista, que o aceitou de volta, mas lhe impôs uma autocrítica dolorosa e injustificada.
Adaptou-se às características da atividade política do PCB, como ele mesmo admitiria mais tarde, deixou de lado seu espírito crítico e praticou o culto da personalidade de Stálin e de Prestes.
Com a “desestalinização” de 1956, contudo, reanimou-se e retomou a reflexão, o exame das complicações que a vida estava criando. Insurgiu-se contra as esquematizações simplistas e sectárias. Retornou ao seu caríssimo Machado de Assis e lhe dedicou alguns ensaios reunidos no livro Machado de Assis – Ensaios e apontamentos avulsos, lançado em 1959 pela Livraria Editora São José.
Depois de sua volta ao PCB, Astrojildo dirigiu a revista Literatura (1946-1848) e a revista Estudos Sociais (1958-1964). E publicou o livro Formação do PCB, que veio a ser severamente criticado por seu antigo companheiro de partido, Octávio Brandão.
A pendenga era antiga. Mesmo quando atuaram politicamente juntos, Astrojildo Pereira e Octávio Brandão sempre foram personalidades radicalmente diversas. Astrojildo era discreto, aberto ao diálogo, sensível às sutilezas e complexidades da realidade humana; era jovial, cordato, acessível, indulgente. Octávio Brandão era um asceta, carismático, presunçoso, ostentava uma cultura que nunca chegou efetivamente a dominar; simplificava tudo, falava como se fosse o dono da revolução e era drástico em seus juízos. Enquanto Astrojildo admirava Machado de Assis, Octávio Brandão o desprezava e escreveu sobre ele um livro sintomaticamente intitulado O niilista Machado de Assis (Ed. Organização Simões Editora, 1958), condenando o nosso maior escritor porque, tendo vivido ma época de Marx e Engels, ignorou os ensinamentos dos fundadores do “socialismo científico”...
O golpe de 1º de abril de 1964 surpreendeu Astrojildo em sua casa, na Rua do Bispo, 151 (número X), no Rio Cumprido, no Rio de Janeiro. Ele teve de sair de casa e de mergulhar na clandestinidade. Depois de uns poucos meses, contudo, a vida clandestina lhe pareceu sem sentido: apresentou-se voluntariamente ao comandante de um dos IPMs em que era indiciado. Foi preso e submetido a longos interrogatórios, pautados pela idiotice daquilo que o humorista Stanislaw Ponte Preta chamou de Febeapá (Festival de Besteira que Assolou o País). Fizeram-lhe uma porção de perguntas sobre a fundação do PCB, sobre os anos vinte, sobre o período em que fora secretário-geral do PCB. Em janeiro de 1965 (poucos meses antes do seu falecimento), os carcereiros o soltaram. E ele comentou, com sutil ironia, o comportamento daqueles que o tinham detido: “São pesquisadores de um novo tipo. Colocam no xadrez as fontes de informações históricas”.
Inclusão | 14/07/2019 |