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10/01/1968
Caro Yuri!
Recebi seu manuscrito sobre a “contradição fundamental”(2), o li na hora, porém não pude concentrar forças para lê-lo uma segunda vez e escrever algo sobre o mesmo. Com essa agitação me é quase impossível. Não sei se chegaram até você as ressonâncias das crises nervosas, que teimosamente se esforçaram em agitar a trancos e barrancos o último mês uns homens da filosofia conhecidos seus – Molodtzov(3), Kosichev, Gott, Troschin e seus amigos – em torno do infeliz artigo na Комсомольской правде(4). Tomam decisões em rebeldia em suas cátedras e conselhos acadêmicos, lançam cartas histéricas às instâncias superiores, intimidam as autoridades e etc. Tudo é tão repugnante que se cai a alma aos pés. Não se deseja fazer nada.
18/01/1968
Novamente reinicio esta carta que havia deixado de lado, porque acreditava que você estava em Moscou. É uma pena que não chegamos a falar por um momento. Talvez tivesse me ajudado a deixar este mal humor. Não penso em superá-lo e em resumo inclusive escrever uma carta se transformou em um problema. Na verdade desejo refazer meus passos galantemente. Porém, é uma lástima, isso é demais. E aqui está o que penso, este absurdo se dilatou por mais de duzentos anos, se não terminar de modo infeliz. Se perdem todas as forças, se deseja deixar de lado toda essa desventurada e indolente filosofia e se dedicar a qualquer outra coisa... Neste ponto meu estado de ânimo se apropriou de mim. É difícil determinar até que ponto isso é uma desculpa. Porém, minha impressão completa, no integral e intuitivo, é essa, começa a época dos dias calamitosos podres, quando todos aqueles que poderiam contribuir com algo interessante deslizam para seus buracos, e saem novamente para a luz arrastando toda classe de bichos, que nada esqueceram e nada aprenderam, que somente se fizeram ainda mais danosos e canalhas, em vista de terem sentido fome. E não se pode conseguir olhar a toda essa questão “filosoficamente”, não é visto sub specie aeternitatis(5).
Inclusive não sei se transmito essas lamentações ou melhor cortar e esperar para terminar a carta, embora eu não possa clarear o ânimo.
Por isso não se ofenda, Yuri Andreievich, se nesta ocasião sou pouco inteligível ao fazer formulações a respeito do “universal-parcial” e as sutilezas vinculadas a ele.
Em geral e grosseiramente a essa questão também me figurou precisamente assim. Também me acostumei a figurar a época atual a partir do ponto que gira em torno daquelas mesmas categorias; como essa fase no caminho que vai desde a “socialização” formal até a socialização real, da qual, lamentavelmente, parece que ainda estamos longe. Com tristeza, contudo, em todo esse movimento há pouca boa compreensão teórica e frases em demasia, muita demagogia, de modo que o processo transcorre assim penosamente e com custos tais que quase excedem os benefícios potenciais da socialização formal, quase reduzindo-os a nada.
Assim, no plano puramente teórico concordo de todo com seu texto, questiono, contudo, quais são as medidas sociais e econômicas concretas que puderam garantir as máximas vantagens, criadas pelo fato da socialização formal-jurídica da propriedade e acabar com toda a palha. Aparentemente, um certo contrapeso ao formalismo, que presunçosamente de forma prematura declarou “realidade” a não existência de relações mercantis-monetárias salvo as abertamente reconhecidas no direito. De modo que a situação existente requer, certamente, conceber o método do “um se divide em dois”(6), dar a deus o que é de deus, e a César o que é de César, isso é determinar os direitos do formalismo de modo completamente claro, o que se sai de suas possibilidades reais, e esboçar claramente aquela esfera, a qual não está sob o domínio real do formalismo. E que esta se constitua em si mesma, como se sabe, todo elemento contém em si sua própria “razão” e algumas vezes isso é mais racional que o formal. Então a razão formal chegará, talvez, em algo mais autocrítico e hábil, que por si só, temo nunca chegará.
Socializar formalmente pode ser proveitoso, na verdade, somente naquele que já amadureceu para tal coisa. De outro modo somente se obterá o prejuízo e o escárnio, a estagnação. Em particular com a condição atual da razão teórica. Não é necessário engolir mais do que o estômago é capaz de digerir. Essa verdade com muita frequência tem nos escapado, após ficarmos sem Lenin. Muito frequentemente temos tomado a razão relativa como Absoluta, como omnipotente, como omnisciente.
“Universal-parcial” = universal-abstrato = universal-ilusório. Porém isso, na verdade, é em si parcial, porque não é. Nesta “unidade de opostos”, nesta contradição emaranhada é necessário, antes de qualquer coisa, fazer ver aquilo que na verdade, realmente, se apresente neste “universal”, e isso que não. Somente depois dele poderia, com segurança, constituir-se uma “unidade” mais ou menos racional. E é necessário que estes opostos se separem com a máxima clareza, antes de sintetizarem-se.
No conceito [понятии] “universal-parcial” estes ainda não se manifestam, se ocultam, e por ele nos fatos sobem ao palco sob a máscara de seu “outro”. Sim, o conceito de “universal-parcial” expressa de modo completamente preciso aquela “síntese” empiricamente real, que existe. E por isso, talvez, este mesmo conceito reclama uma análise um pouco mais detalhada, ou seja, precisa e clara, até chegar ao sóbrio cinismo. Sim, o trabalho se tornou-se “universal” somente “em parte”, somente parcialmente. Na verdade, em que medida e até que ponto? Está aqui todo o problema. Esta medida deve ser determinada, para não exceder-se, para não esforçar-se em dar a voz de comando naquilo que na verdade não se deixa influenciar por esta voz de comando, para esboçar claramente as competências. E com isso, que se encontra além dos confins dessa “medida”, jogar honestamente, sob regras rigorosamente estabelecidas, não trocá-las nem em seu proveito, nem como a este lhe satisfaz.
Em minha opinião, seria particularmente correto dizer: aqui nestes e nestes outros limites, preciso e claro aparece o “trabalho privado” como dono da situação, e nestes limites não tem direito a meter o nariz qualquer “representante do Universal” – Universal Abstrato. Há que recordar que somente é um universal-abstrato, não mais que um universal-ilusório. E nestes limites, quer dizer, no mercado, que dominem as leis do mercado. Com todos seus menos. Dado que sem estes menos não teria seus mais.
Na fronteira entre o mercado e o Universal que se crê essa mesma “síntese” relativa-racional, que não pode de forma alguma se tornar “racional”, em razão de que essa fronteira não está claramente delineada, de onde provém que nas mútuas violações de fronteiras não se entenda isso: que são violações.
Então resultará um quadro diáfano, o quadro da luta de princípios mutuamente excludentes, e não sua “difusão”, coisa pior à luta aberta e honesta, dado que a difusão transforma a toda a empiria em uma só confusão cinza.
Assim que a mim aparecer, no conceito do trabalho “universal-parcial”, a tarefa de análise, melhor que colocada, mais do que resolvida. A contradição é indicada, sim, e se indicam os métodos empíricos de sua manifestação. Ao mesmo tempo a manifestação do plano negativo, cuja culpa recai justamente na “parcialidade”. Porém, de onde age essa “parcialidade”? Quais polos se produzem? Mercado ou sua antítese polar que é a parcialidade sob a máscara de Universalidade? Parcialidade, presunçosa de ser universalidade direta, ou parcialidade, que entende honestamente que é parcialidade e nada mais?
É necessário esboçar claramente o que compete a esta ou aquela variedade do “universal-parcial”, então estará claro o campo e a dose de culpa em tais ou quais resultados, tanto negativos, quanto positivos, nesta forma dada de síntese do “universal” e “particular”, estado e mercado, difusamente coloridos um e outro...
Pode ser que não possa idear algo mais inteligível agora. Talvez meus raciocínios estejam influenciados pelo estado de ânimo hipocondríaco que se apodera de mim. Porém, na verdade, estes têm suas raízes naquilo?
De nenhuma forma pode admitir que Molodtzov – Troschin, que se esforçaram em assumir o monopólio da “verdade em filosofia”, no papel de “encarnação da razão”, tenham mais direito a isso que aqueles que desejariam condená-los como “revisionistas”. Eles, na verdade, não reconheceram de forma alguma que são somente um “universal-parcial” e também desconhecem que tão grande é esta parcela “universal” em seus cérebros. Penso que isso há tempos se reduziu a pura simulação, a frases... Porém, estamos eu e Arseniev na possibilidade e direito de lutar entre nós, talvez, por uma dose mais sólida de “universalidade”? Aqui viemos a dar no pessimismo, especialmente quando nos fatigamos, especialmente quando, ao olhar ao redor, percebemos as poucas forças e como todas elas estão dispersas, até que grau são “parciais”.
Bom, que assim seja, entretanto termino com isso. Se te sobra uma pitada de otimismo, compartilhe-o!
É provável que em fevereiro vá com Vasil-Vasilievich. Saudações à família e em particular ao gnoseólogo(7).
Olia deseja muito pedir tua opinião sobre seu livro, porém não se anima.
Adeus!
Evald.
Notas de rodapé:
(1) Possui graduação em farmácia pela UFPR e é mestre em educação pela UFPR. Participa dos Grupos de Pesquisa: Núcleo de Pesquisa Educação e Marxismo (NUPE-Marx/UFPR), na linha Trabalho, Tecnologia e Educação; e Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC/UFPR), na linha Estudos Marxistas em Saúde. Contato: marcelojss @ gmail.com (retornar ao texto) (retornar ao texto)
(2) [Yuri Zhdanov, em seu artigo Um Olhar ao Passado (Взгляд в прошлое, editado no ano de 2004 pela editora Phoenix, Rostov-on-Don) explica o contexto do diálogo que mantinha com Ilienkov: “Ao que parece, atraído seu interesse pelo texto, que eu lhe havia enviado, da lição Sobre a Contradição Fundamental do Socialismo. Eu procurava compreender a natureza do socialismo, partindo do caráter do trabalho, e cheguei à conclusão de que o trabalho no socialismo ainda não tinha caráter universal-concreto, que tal universalidade se manifestava no mesmo somente de forma parcial. Sobre esse fundamento me pareceu possível fundamentar a concepção de trabalho universal parcial no socialismo”. – V.A.] (retornar ao texto)
(3) [Naquela época Vasili Sergueievivh Molodtzov era decano da Faculdade de Filosofia da Universidade de Moscou. – Edithor] (retornar ao texto)
(4) [Se refere à reportagem Coragem para Pensar, publicado em 2 de dezembro de 1967, resumo de uma mesa redonda em que participaram vários filósofos soviéticos (Samsonova, Ilienkov, Narski, Sokolov e Mijailov) cujo tema central foi a importância da filosofia para a juventude. Комсомольской правде: periódico criado pela resolução do XIII Congresso do Partido Comunista da Rússia (bolchevique) como órgão oficial da União de Juventudes Comunistas Leninistas da União Soviética (Комсомол), começaria a publicar desde 24 de maio de 1925. Na época soviética o periódico ganhou relevância por editar escritos de letrados destacados como Vladimir Maiakovski, Arkadi Gaidar, Alexander Fadeiev e de jornalistas famosos entre os que se encontram Yaroslav Golovanov e Vasili Peskov. Privatizado em 1992, adotaria a partir de então uma forma tipo tabloide dando preferência a conteúdos similares aos dos periódicos sensacionalistas ocidentais. É atualmente o periódico com maior circulação na Federação Russa. – Edithor] (retornar ao texto)
(5) [Sob a forma de eternidade – M.S.] (retornar ao texto)
(6) [Aparentemente, isso é uma alusão à fórmula maoísta que provocou uma aguda discussão entre os filósofos da República Popular da China entre os anos 1964-1966. Para maior detalhe pode-se consultar: a interpretação maoísta do debate no artigo Três Importantes Lutas na Frente Filosófica da China (1949-1964) (Edições de Línguas Estrangeiras, Pequim, 1976), uma visão oposta se encontra na Crítica às Concepções Filosóficas de Mao Tse-Tung (Editorial Progresso). Uma análise mais recente se encontrará no livro O Século de Alain Badiou. Evald Ilienkov daria a conhecer sua opinião sobre este debate no artigo Dialética ou Ecletismo? (1968) publicado na revista Вопросы философии [Questões Filosóficas]. – Edithor] (retornar ao texto)
(7) [Se refere ao meu filho Andrei. – Y.Z.] (retornar ao texto)
Inclusão | 09/06/2014 |