Os Desafios da Mulher Dirigente
Entrevista com Lorena Peña (Comandante Rebeca), das Forças Populares de Libertação “Farabundo Martí”

Marta Harnecker

Novembro de 1990


Primeira Edição: Cuba, Ediciones MEPLA, 1994. Primeira edição digital: www.rebelion.org, 17 de marzo de 2002.
Fonte: Marxists Internet Archive, 8 de março de 2008, Dia Internacional da Mulher. Disponível em:
https://www.marxists.org/espanol/tematica/mujer/autores/harnecker/1994/retos.htm
Ediciones MEPLA. Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/Cuba/mepla/20111026113255/mujer.pdf
Tradução para o Português: Maria Júlia A. G. Montero
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.


Índice

Introdução

I. A direção, um novo desafio para a mulher

II. Formas sutis de discriminação

Pais que a ajudaram a ser independente

III. Uma vitória completa: salvar o relacionamento e desenvolver-se politicamente

IV. Os casais e os solteiros

V. Mulher dirigente e problemas domésticos

VI. O comando militar feminino

VII. Filhos criados por outros

VIII. Integração da mulher

IX. Reivindicações do movimento de mulheres

X. Não há projeto de democracia sem a mulher

Intodução

Lorena Peña, mais conhecida por todos como Comandante Rebeca, tem uma longa história de luta junto ao povo salvadorenho. Oriunda de uma família pequeno-burguesa, aos dezessete anos já trabalhava “para ser independente”, e pouco tempo depois começou a militar na organização político-militar salvadorenha Forças Populares de Libertação “Farabundo Martí”, mais conhecidas como FPL, e logo chegou a ser promotora comunal em vários bairros periféricos de San Salvador. Um tempo depois, passou a formar parte do Comitê Central da organização, e permaneceu na direção da comissão de massas durante quatro anos. Mais tarde, lhe dão tarefas de segurança. Naqueles anos a conheci. Veio me visitar em Havana, conhecia meus Cadernos de Educação Popular(1) e queria que eu a apoiasse em suas novas funções. Entreguei-lhe o material que havia preparado para o curso de formação política do Partido Socialista Chileno, onde eu militava.

Em 1979, foi nomeada secretária do partido na Frente Ocidental e, pouco mais tarde, dois meses antes da ofensiva de 81, assumiu a direção militar dessa frente — não tanto devido aos seus conhecimentos nesse terreno, que naquela época eram bastante escassos —, mas graças aos seus dotes organizativos.

Muitas vezes, teve que assumir tarefas de direção que estavam além de sua preparação técnica. No entanto, foi exitosa, porque está convencida que

“se comprometemos o coletivo política, ideológica e emocionalmente com a tarefa, as coisas caminham bem”.

Logo depois da ofensiva de 81, quando se reestruturam os comandos, Rebeca deixa a chefia da Frente Ocidental e assume sem problemas a subchefia. O mesmo lhe acontece na Frente Especial de San Salvador, no Paracentral, e novamente na Frente Ocidental.

Mas, Rebeca, que assume com grande naturalidade o exercício de altos cargos de direção política e militar, aceita com humildade passar de chefe a subordinada.

Teve, até agora, três companheiros e, por razões narradas nesta entrevistas, suas relações afetivas fracassaram. Também tem um filho que — devido à sua militância clandestina — não pôde viver com ela quando pequeno. Rebeca se limitava a observá-lo escondida atrás de uma árvore.

Em uma longa conversa realizada em plena guerra, em novembro de 1990, me narrou suas vicissitudes. Preparei a entrevista para publicação e esperei em vão por suas correções. Eu havia perdido a esperança de concretizar este projeto quando, cerca de dois anos e meio depois, em maio de 93, a encontrei em El Salvador, no I Congresso das FPL, em época de paz. Confessou-me que a leitura de seu testemunho a havia golpeado muito. Perguntou-se:

“Onde está minha vitória pessoal se conto todas essas baboseiras e não faço nada?”.

Isso determinou que ela dedicasse parte importante de seu tempo ao tema da mulher. Hoje, Rebeca é uma das principais impulsionadoras do Movimento de Mulheres “Mélida Anaya Montes”.(2)

Marta Harnecker
Havana, julho 1993

I. A Direção, um Novo Desafio para a Mulher

— Em que afeta um casal o fato de que a mulher tenha um cargo de maior responsabilidade que o homem?

— As mulheres com responsabilidades dificilmente acham algum companheiro que seja solidário com elas. Esse é um denominador comum. Na minha vida, de diferentes formas, o problema foi o mesmo. Eu fiz um balanço, e em nenhum caso a separação foi porque não nos entendíamos fisicamente, ou por questões de caráter, nada disso.

— Conte um pouco mais. O que aconteceu com seus companheiros?

— Com meu primeiro companheiro tudo andou muito bem, até que entrei para o comitê central...

— Quantos anos depois de ter começado a relação com ele?

— Cinco anos. Era meu primeiro namorado. Aos dezesseis anos comecei a andar com ele, até que nos casamos. Já fazia cinco anos. Nossa relação vinha desde o ensino secundário, quase que já estava preestabelecido que era com ele que eu ia ficar...

— Quando você começou a militar?

— Eu entrei formalmente em maio de 1973, tinha dezessete anos.

— E se casou...?

— Aos dezoito, em 1974, um ano depois da fraude eleitora, e tive meu primeiro filho aos dezenove. Quando fiquei grávida, estava como aspirante a combatente. Me tiraram tudo isso e me deram como tarefa cozinhar para um grupo de companheiros que vinham a uma escola clandestina, nas temporadas de colheita, como se viessem para isso, e logo voltavam. Antes de levá-los à escola, os separávamos em alguns locais clandestinos. Eu atendia um lugarzinho desses, cozinhava para os que chegavam...

— Você acredita que mudar você de atividade foi uma medida correta da organização?

— Eu acho que, em atenção à sua condição física, uma pessoa pode mudar de atividade. Mas, no meu caso, o que aconteceu foi que me rebaixaram o nível de atividade. E, isso sim, eu acho que não foi correto.

— E você acha que fizeram isso intencionalmente?

— Não. Acho que ninguém planejou isso, estava dentro da lógica.

— E se você fosse dirigente, o que teria feito?

— Bom, acho que quando a gravidez está avançada, é preciso mudar as pessoas de atividade, mas talvez eu não a mandasse ser cozinheira. Há uma diversidade de tarefas com as quais, estando nessa situação, é possível contribuir e se desenvolver.

Eu, nessa época, me dediquei a ler muito e com paixão, mas nem todo mundo tem essa vontade. E o partido deve dar condições para que as mulheres não fiquem para trás, porque esse é o ponto crítico de qualquer mulher com militância.

Quando meu filho tinha seis meses, tivemos que passar para a clandestinidade. Foi nesse momento que se deu o giro da organização para as massas. E, como eu havia trabalhado nos bairros de periferia desde a época escolar, me puseram para atender esse setor, que nesse momento era só um nome, porque na realidade não existia. Minha tarefa foi a de organizar a base do partido entre os trabalhadores e grupos de apoio e propagandear a organização nos bairros... fui me metendo nisso cada vez mais e quando Vladimir, meu filho, tinha sete meses, os companheiros me perguntaram: “Como você vai fazer com mais tarefas e o filho?”

— Seu companheiro não te ajudava?

— A verdade é que Dimas era um homem excepcional; tínhamos turnos para lavar as fraldas, turnos de vigília para com a criança, um dia sim e um dia não, cada um fechado em casa para que o outro fosse cumprir tarefas, apesar de que ele tinha um processo de desenvolvimento muito mais acelerado que o meu. Mas, com esse sistema, o problema era que dos dois fazíamos um, porque ele também saía um dia sim e um dia não.

Então, quando o menino tinha oito meses, decidi levá-lo à minha mãe. E só nessas condições pude passar a fazer as tarefas em tempo integral.

— Não houve para você um conflito interno entre a mãe e a combatente?

— Claro! Separar-se de um filho é como se te amputassem um braço. Eu não posso explicar a sensação até física que se sente. Toda essa mística cristã me ajudou muito. Os recursos políticos não teriam sido suficientes para tomar essa decisão, mas isso do amor ao povo, de que outros não comem e que você ao menos tem a comida assegurada, foram argumentos que pesaram mais que o temor de que matassem meu filho junto de mim. Lembro que, para dar valor a mim mesma até li um texto de Lênin direcionado às mulheres, onde ele falava da maternidade em um sentido histórico-social.

Deixei o Vladimir com minha mãe e segui na clandestinidade. Assumi totalmente o trabalho na periferia e, por consequência, o trabalho operário.

Em 1976 entrei para o comitê central. Tinha, então, vinte e um anos. Éramos sete. As responsabilidades eram múltiplas.

— Sete no comitê central?

— Sim. Era o período em que o partido começou a criar direções integrais por frentes. Eu, por exemplo, que formava parte da direção de San Salvador, atendia o setor operário, a comissão de infraestrutura – que era a que fazia os barretines(3)— os hospitais clandestinos, as cadeias clandestinas para os sequestros.

Tive sob minha responsabilidade a equipe central de saúde, que era um hospitalzinho móvel; uma espécie de sala de cirurgia com seus médicos e sua equipe, com mecanismos clandestinos de comunicação para mover-se aonde fosse necessário. Ao mesmo tempo, estava no setor de formação. Quando te conheci, Marta, e revisei seus programas de educação política, estava nessa tarefa. Era uma loucura tudo aquilo, mas como tinha menor nível de complexidade que hoje, podia dar conta da tarefa.

Meu companheiro não entendeu esse processo, e então nossa relação começou a entrar em crise. O interessante é que, em termos de tempo, eu ficava fora de casa o mesmo que antes, só que agora ele não podia me controlar, porque eu ia para um departamento, para outro, para o interior do país, às vezes podia voltar para dormir, às vezes não. Tinha mais responsabilidades. Ele começou a não entender isso, e alimentar dúvidas sobre o que eu sentia por ele, em tudo o que eu fazia: se eu chegava tarde, era por desinteresse; se eu saía cedo, era por desinteresse...

E depois começou a acontecer uma coisa que nunca havia acontecido. Ele me dizia: “Você é ingênua, tem que entender que anda com homens”. Esses “homens” eram os compas. Quando trabalhava com um companheiro, me advertia: “Você deve ter cuidado, porque eu vejo isso de um jeito muito estranho...”. A situação foi ficando cada vez mais difícil.

— Ou seja, ele tinha ciúmes...

— Ciúmes, mas ciúmes de todos e cada um dos companheiros. Isso parece divertido no começo, mas logo se torna sufocante. Pode parecer divertido que tenham ciúmes de um ou outro, mas quando isso é uma fonte de conflito permanente, de questionamento de suas atividades, e você tem que começar a pensar que cada tarefa que fizer significará um debate, um problema; que as iniciativas que tome com os companheiros, e te absorverem mais tempo, resultarão em problemas em casa, então isso começa a ser conflitivo. E se, além disso, isso começa a transcender e já não é só o problema com você, mas começa a ser percebido pelos demais, e então seus próprios companheiros, para não te criarem problemas, começam a retrair-se. E você começa a entrar em uma tensão nas relações com todo mundo...

Então, o que se colocou, afinal de contas? Ou eu sigo meu caminho revolucionário, de trabalho com os companheiros e me torno independente, ou sou uma revolucionária medíocre e uma boa companheira para meu esposo. Assim, concretamente, o quadro se apresentou. Eu conversei com ele sobre isso. Desde que comecei a discutir até que tomei a decisão pela separação, passaram-se dois anos; dois anos de debate, de crítica e autocrítica... e acontecia algo bem interessante: no debate, ele não se defendia, porque sabia que teoricamente eu tinha razão. Mas passavam quinze dias do balanço e a história se repetia, e cada vez mais tensa. Interferia no meu trabalho. Ele queria conhecer todas minhas casas de segurança para saber onde me buscar. Eu não podia lhe dar essas informações, porque com isso rompia a compartimentação e, para demonstrar o absurdo de suas exigências, pedi a ele que me desse os dados das casas de segurança que ele frequentava. Ele se negou, argumentando isso da compartimentação. Então perguntei por que ele devia respeitar essas normas e eu não. Nesse momento, atribuí os problemas à origem camponesa de Dimas, já que o machismo no campo salvadorenho é muito forte.

Ao final, já não se tornou só um problema de opção política, mas de afeto, porque isso faz com que a motivação para conviver se acabe. Em novembro de 78, nos separamos...

Anos depois, conversamos sobre isso, porque continuamos sendo bons amigos. Ele estava de acordo comigo, e então dava grandes gargalhadas, e me dizia: “Talvez eu não houvesse entendido muitas coisas se você não tivesse me deixado...”. E concordávamos os dois que sua atitude se devia a uma grande influência camponesa por conta do machismo, da dominação da mulher, encoberta sob outro conceito: “Você é boba e seus companheiros são espertos”. “Tenha cuidado, você não compreende como é o mundo”; mas o fundo era esse. O que mais pesou foi que ele já não me controlava, porque antes eu ficava ocupada 24 horas por dia, mas como dependia do organismo onde ele estava, ele sabia o que eu fazia as 24 horas do dia. Isso mudou logo depois de ficarmos juntos: cada um tinha um trabalho diferente, e era Marcial que tinha o controle. Ele aceitou que havia influências desse tipo e muita incompreensão de sua parte, e que isso fez com que não déssemos certo.

A meados de 79, eu fiquei com um universitário. Nos dávamos muito bem. Não tínhamos problemas, trabalhávamos em áreas distintas... eu trabalhava no Ocidente e ele em San Salvador. Nos víamos eventualmente a cada quinze dias ou uma vez ao mês, ele ia ao Ocidente ou eu vinha a San Salvador. Isso era antes da ofensiva de 81. Estávamos às maravilhas... para a ofensiva, mandaram-no a San Vicente e me mandaram ao Ocidente. Passamos um bom tempo sem nos vermos. Até meados de 82, eu era secretária do partido e ele era chefe dos suprimentos e da logística. Nos dávamos bem porque seu chefe era outro. Mas me nomearam, logo a mim, chefe dessa frente, a Paracentral, e passei a ser sua chefa. Aos oito meses, terminamos. Ele dizia que toda a imagem que tinha de mim como mulher se perdeu só de saber que eu era sua chefa. Ele sentia que não podia se entender comigo da mesma maneira.

— No fundo, a relação começou a não dar certo porque ele não suportava ser seu subordinado...

— Sim...

— Você não acha que isso se acontecia porque ele se preocupava com o que os outros pensariam dele?

— Claro! Entre outras coisas... veja que era o tempo das unidades regulares. Você sabe que ali havia vozes de comando, e que o chefe era saudado com a continência. Quando ele chegava a reuniões do estado maior, em que estavam todos os chefes, ele não sabia se me beijava ou se batia continência, para te dar um exemplo pequeno. E não faltavam piadas, não tenha dúvidas. Não faziam piadas comigo porque, afinal, não era eu que estava nessa situação, mas com ele, sim. E se você acrescenta o fato de que grande parte de nossas conversas nesse tempo eram sobre as tarefas: as minas já estão prontas? E a munição? E as calças do batalhão, as rações operativas, os embutidos, os derretidos? Imagina a situação! E isso era todos os dias. Às vezes ele dizia: “Não posso cumprir tal tarefa”, e eu tinha que lhe dizer: “Você tem que poder”.

Lembro de uma anedota que me mostrou o grau crítico em que estava nossa relação. Ao final de 81, lhe mandei um bilhete em que perguntava: “Vai vir agora?”, e ele me respondeu: “é uma ordem ou o quê?”

Se você também levar em consideração que, no momento mais agudo da crise, acontece tudo o de Marcial e Ana Maria. Nesse momento, ainda, nos enfiam o Plano CONARA(4). Você se lembra desse plano, em San Vicente, que durou mais ou menos seis meses? Tinha que dirigir oito mil pessoas de população civil perseguida. Imagina isso durante quatro meses. Era uma confusão, com uma criança morta por semana em cada canto, por fome, por falta de comida... então, que cabeça tinha eu pra resolver esse assunto? Nenhuma, sinceramente. Talvez aí eu tenha falhado. Isso acabou assim, foi bem doloroso....

O triste é que quando eu fiquei com esse compa, ele era um profissional que havia se incorporado já adulto à organização, com muita visão, com muito desenvolvimento cultural; aparentemente, não tinha problemas com minha independência, me ajudou um montão nesse sentido. Eu me dizia, então: “Talvez o problema seja minha origem, e que eu me entenda melhor com alguém de extração pequeno-burguesa. Mas, ainda que ele fosse de uma origem e o outro, de outra, o problema seguia sendo o mesmo: o choque entre a relação pessoal e a relação de trabalho.

Dessa experiência, eu disse a mim mesma: “Não volto a me relacionar com ninguém, ou terei que pensar muito sobre isso; terei que fazer grandes análises”. Inclusive, tirei uma conclusão bem-humorada, na qual não acredito mais — na época eu acreditava : “Eu estou fora de série, não tenho interesse, como mulher, de servir aos que estão na série atual”. Não sei se me faço entender. Para outra mulher, pode ser uma vitória não perder a relação, ainda que pague muito por isso; para mim, vitória é poder ser revolucionária e achar um homem que me entenda nessa dimensão e que caminhemos juntos. E, por isso, apesar da relação ter terminado, eu considerava que o ocorrido era uma vitória.

Passei três anos sem querer nem ouvir falar em relacionamentos.

— A solidão não te incomodava?

— Cheguei a valorizá-la nesses três anos. Lia mais e aprendi a me relacionar melhor com as pessoas. Então, compreendi que estar só também tem suas vantagens. Para mim, foram três anos impressionantes nesse sentido, aprendi bastante. Eu me imagino que já tenha passado com você, que se você está solteira, tem outro clima de relações. Eu achava as qualidades da solidão também...

Inclusive, cheguei a pensar que uma coisa é ficar com alguém, outra é se relacionar. É preciso diferenciar. Talvez pelo moralismo na organização, uma pessoa chegava a acreditar que se dormia com alguém era porque estava pensando seriamente, necessariamente... eu acredito que isso é um erro, veja bem. No fundo, é moralista. Você cumpre com o requisito de relacionar-se, e depois cumpre com o requisito de separar-se, porque se simplesmente fica com alguém, é louca. Eu refleti sobre todas essas coisas e cheguei a pensar que uma coisa é ficar/dormir com alguém, e outra é fazer um projeto de vida em comum. Mas, estando em Guazapa, olhe que divertido, encontrei um velho amigo e companheiro de luta. Éramos grandes parceiros. E um belo dia eu disse: “Bom, e eu, que faço pensando no compa, se ele veio, se ele foi? O que é isso?”. E aconteceu o mesmo com ele. E então nos relacionamos. Foi uma relação bastante boa enquanto estivemos juntos. Ainda, ele teorizava que era importante que as companheiras tivessem seu próprio nível de desenvolvimento etc.

— Mas, qual era a relação orgânica com você?

— Ele era meu chefe. Era de um núcleo de comissão política que estava lá. A verdade é que fazíamos tudo coletivamente, ainda que com divisão de trabalho. E para mim não tinha problema que ele fosse meu chefe. Eu me subordino com facilidade no que é preciso se subordinar. Mas tive que ir ao exterior por questões de saúde, e durante a consulta médica, viram que eu estava grávida.

— Você quis ter esse filho? Não pensou em interromper a gravidez?

— Olha, em nenhum momento pensei em interromper a gravidez, porque, sim, queria ter outro filho. Já nesse momento a guerra estava tão longa, não achava que poderia terminar logo, e pensava que eu estava ficando velha e que se esperasse mais não poderia ter outro filho. Então decidi que, se essa possibilidade ocorresse, eu iria aproveitá-la.

— Agora, nas outras relações pesaram problemas de subordinação, de comando, de tarefas; nesse caso, não há problemas nem de ciúmes, nem de tarefas, então, qual foi o problema?

— Minha filha tinha um mês de nascida, e ele disse: “Bom, eu estou sozinho, e você está fora”. Sim, estou aqui com a filha dos dois”. “Sim, mas eu estou só”, me respondeu, “e aqui há uma mulher da qual eu gosto...”. Se quiser, é um pouco de instabilidade afetiva, mas, uma vez mais, também é a incapacidade de esperar a companheira, que para se desenvolver deve cumprir tarefas que implicam deixar o companheiro sozinho. Então é o mesmo fenômeno.

Eu sinto que há um problema de estabilidade, mas também de valores, ou seja, as duas coisas...

Olha, o único aspecto que me deixa mais tranquila em toda essa bagunça é que o compa foi capaz de me avisar o que estava pensando em fazer, ainda que fosse muito cruel. Tínhamos um trato, e era que eu não o perdoaria se me enganasse. Ele sabia que, se me enganasse, então que me esquecesse, eu ia me fazer em pedaços. Eu parto do pressuposto de que não dou motivos para que me enganem, e não porque eu seja superboa, mas sim porque eu também sou muito clara.

Quando voltei à frente, havia comentários entre as companheiras, que tal companheiro te deixa e se casa, que o outro te deixa e se casa; e as companheiras diziam: “Não se deve buscar tarefas longe do companheiro, não se deve ter filhos, porque ter filhos é perder o companheiro”.

Eu nunca havia refletido sobre isso. Talvez eu fosse insensível a esse tipo de assunto, mas me coloquei a pensar que, ao menos em El Salvador e nas FPL, todas as mulheres dirigentes são solteiras, separadas ou viúvas. E a que não é está prestes a sê-lo. Não temos nenhum acompanhante.

É um denominador comum, uma experiência que eu vivi. E olha que eu assumo isso com alegria, porque também não devemos ficar amarguradas com tudo isso.... nem virar anti-homem, anti-casal, porque cada um sabe, pelo que sentiu na pele, qual é sua experiência. Não pretendo criar uma regra de tudo isso, mas acredito que não é tão fácil desenvolver com naturalidade o comando feminino.

Dessa forma, cheguei à conclusão de que, ainda que não seja absolutamente impossível compatibilizar a vida familiar com o trabalho político, no caso de uma companheira que tem responsabilidades de direção, é muito difícil, porque na prática ainda está estabelecido que, se você quer estabilidade, tem que limitar seu desenvolvimento como pessoa, como revolucionária, como política... a ponto que você não tenha independência nem com relação ao seu companheiro.

Isso é assim na prática, mas ninguém formula assim. Você lê os estatutos, nossos folhetos sobre a moral, o que quiser, as pessoas não dizem isso. Mas na prática é assim que funciona. Ainda que nenhum partido tenha uma política discriminatória desde o ponto de vista teórico, na prática é outra coisa.

II. Formas Sutis de Discriminação

— Você poderia apontar alguma discriminação que sofreu em seu partido?

— Por exemplo, de sete mulheres que havia na direção quando eu entrei, agora somos três, as outras morreram. Onde está a promoção de outras companheiras?

Em todos os comitês zonais da organização, exatamente agora há cinco mulheres. Estou falando de um total mais ou menos de sessenta quadros. Três delas somos nós, as do comitê central.

— Como acontecem as práticas políticas discriminatórias? Você poderia nos dar um exemplo?

Há pouco tempo eu estive no Ocidente. Lá, fizeram a lista de quadros e havia uma companheira bastante boa, que era de uma direção subzonal e com um nível muito bom de rendimento, mas me disseram que estava um pouco deslocada politicamente e que, ainda mais, estava grávida, então não podia ser considerada para tal tarefa. Isso é discriminatório.

— O que queriam dizer com isso de deslocada politicamente?

Ela tinha tido alguns maridos e ainda mais tinha ficado grávida nesse último período. Isso era suficiente para considerá-la deslocada politicamente.

Eu quero esclarecer que não é que eu ache que por ser mulher ela deve estar ali. Eu não estou de acordo que a uma mulher, só porque seja mulher, devam dar-lhe tarefas mesmo que não esteja preparada para desenvolvê-las. Agora, eu penso o mesmo com relação a um operário ou um camponês, ou quem quer que seja. Eu acho que é correto que a organização se proponha metas de recrutamento. A análise das porcentagens é importante para ter uma visão de onde estão nossos pontos fracos. Mas a seleção final deve ser feita usando critérios de qualidade.

— Agora, ao revisar este texto dois anos depois, você pensa o mesmo?

— Acho que há uma armadilha nisso que eu te disse, porque pressupõe que não há qualidade.

Eu penso que a qualidade é um requisito para homens e mulheres e que, nesse processo um grande número de mulheres adquiriu qualidade, mas pela cultura, pelas condições que coloca o partido, pelo que coloca a sociedade e pelos costumes que estão na cabeça dos companheiros e companheiras, não se percebe essa qualidade. É por isso que se fala de muitos controles de qualidade para a mulher, como se ela tivesse acabado de começar a luta.

Eu acho que deve ser cláusula dos estatutos de qualquer partido ter uma meta mínima de participação das mulheres; se não, não há maneira dos companheiros e companheiras se proporem seriamente a abrir oportunidades de capacitação e de promoção das mulheres.

Aí sim, tenho diferença de critérios. Agora, no I Congresso, vi: 116 congressistas. Que currículo, Marta. Muito bom, o da maioria. E quando estávamos falando da cota de mulheres no comitê central, os companheiros insistiam em garantir a qualidade.

No final do Congresso, se abriu um espaço para propor novos nomes, e se você visse cada coisa que propuseram, uns quarenta homens, e ninguém falou que não tinham qualidade. Quando são homens, o critério da qualidade é esquecido.

Eu estava rindo disso à noite. É incrível!

Outro exemplo de discriminação é o seguinte: uma vez tive uma discussão com um dirigente nosso porque ele me dizia: “Olha: é que as mulheres não querem, lhes fazemos propostas e elas não aceitam, propusemos uma tarefa pra uma mulher e ela não quis realizá-la.”. Eu lhe respondi: “Se fosse um combatente homem, você certamente até choraria pra que ele aceitasse a tarefa, mas você não faz isso com uma mulher”. Ao final, ele reconheceu: “De verdade, é inumano o que estamos fazendo. Porque isso não havia passado pela nossa cabeça antes?”. Eu lhe disse: “Porque vocês, discutindo sozinhos, entre homens, se sentem felizes, são vocês os que estão nos diminuindo...”.

Daí a importância de que haja mulheres participando, porque é como outra organização, de certo modo.. não anti-homem, não deve ser assim, mas é outro ponto de vista que nem sempre é levado em consideração.

Acredito que é necessário uma mudança de atitude, de valores, de preparação, e que é necessário resolver os problemas materiais das companheiras. Para ser franca, eu não vejo saída a curto prazo para esse problema.

Penso, no entanto, que o principal problema é se as companheiras estão dispostas ou não a se sacrificar. Se não se faz o trabalho de conscientização com elas, se não as fazermos ver esse tipo de coisa, você perde seu tempo... Isso aconteceu comigo no Ocidente. Havia umas quinze companheiras, eram muito inteligentes, muito lúcidas e, a maioria, operadoras de rádio. Eu lhes perguntava: “Não estão entediadas de ser operadoras de rádio?”, e respondiam que não, porque o chefe do esquadrão de segurança era seu companheiro. Eu falei de fazer outras coisas e elas não queriam. Então, essa é uma luta, porque não podemos fazer por alguém o que essa pessoa não quer fazer por si mesma.

E essa é a principal consciência que ficou pra mim. Decidi deixar de pregar e trabalhar com elas uma a uma para obter conquistas reais e, ao mesmo tempo, brigar para que não fossem abandonadas pelo marido, quer dizer, para que haja uma vitória completa... Porque não se trata de conseguir que sigam seu caminho e terminem todas desestabilizadas.

— Você nunca chegou a pensar que a influência cristã tem algo a ver com o atraso ideológico dessas mulheres?

— Não, não havia pensado sobre isso...

— Isso me ocorreu agora, também não havia pensado sobre...

Pais que a ajudaram a ser Independente

— Voltando um pouco, conte-me de sua família.

— Eu sou de uma família pequeno-burguesa. Meu pai era um militar aposentado, funcionário do governo durante um tempo e minha mãe era dona de um negócio mediano em San Salvador. Era uma família liberal, sempre ligada à política; não havia golpe de Estado em que meu pai não participasse. E pelo lado da minha mãe, o mesmo. Ainda que ela fosse uma comerciante, vinha de uma família de intelectuais, e apreciava muito o desenvolvimento intelectual.

Meus pais se conheceram no meio da luta contra Martínez. Quando chamaram todos os que haviam participado do golpe em que caiu a tirania de Martínez, meu pai não aceitou. Esse grupo logo fundou o PCN e os esquadrões, e meu pai não foi por aí. Finalmente, se tornou militante das FPL.

Quando eu nasci, meus pais haviam conseguido um nível de vida mais ou menos acomodado. No primário, estive em um colégio laico por conta das ideias de meu pai, mas no secundário fui a um colégio burguês ,de freiras.

— Como era a relação com sua mãe?

— Minha mãe tinha um controle ideológico, não autoritário, sobre nós. Desde os doze anos eu tinha a chave de casa, podia beber e fumar em casa, levar amigos. Era por outra via que ela nos controlava. Dizia: Você tem que ser independente, as meninas que se deixam levar pelos homens não têm personalidade, você tem que ter personalidade. Você tem que estudar, deve valer-se por si mesma...”. Inclusive, nos dizia: “Há um monte de mulheres que se chamam fulana de tal, tem o sobrenome do esposo. Eu me chamo Angela Mendoza de Peña, porque o dia em que seu pai me deixe, eu sou Mendoza. Se eu agora não tenho sobrenome, o dia em que ele me abandonar, o que vou fazer?”

— Vejo que sua mãe te marcou bastante...

— E meu pai, desde seu ponto de vista, também. Ele tinha outra tese: não queria filhos que fossem cópia em "papel carbono". E, sem ter lido Freire, porque meu pai era um militar, eu lembro que ele dizia: “Eu educo meus filhos para que sejam livres”. Então, quando minha mãe fazia coisas que nos incomodavam, sabe o que ele fazia? Ele saía de casa com a gente, em protesto, como se fosse outro filho. Era divertidíssimo. Minha mãe ficava sozinha em casa e todos saíamos de casa em protesto, todo o grupo com meu pai na liderança... ele nos levava ao cinema ou outro lugar, e depois de dar uma gargalhada, dizia: “Vamos voltar, que já a assustamos bastante”. Os dois eram bem fortes e muito livres.

— E era boa a relação entre eles?

— Sim, até o final.

— Quantos irmãos você tem?

— Éramos quatro irmãos, um homem e três mulheres, só eu estou viva...

Deixa eu dizer, eu era a mais fraquinha de caráter de minhas três irmãs. As outras eram mais enérgicas, mais fortes, mais autoritárias, mais independentes... foi dessa forma que nos educaram, muito donas de nós mesmas.

— Então você tinha um trabalho legal?

Aos 17 anos, ao sair do Ensino Médio, para ser independente, consegui um trabalho. Trabalhei primeiro em uma empresa privada. Como meu colégio era burguês e eu tinha boas notas, isso era motivo suficiente para conseguir entrar em qualquer trabalho... depois, quando já militava, me orientaram que buscasse uma atividade mais próxima das minhas tarefas políticas, então me mudei para a prefeitura. Passei por um cursinho e como tinha experiência como promotora social, não tive nenhum problema. Sabia de trabalho organizativo, de dinâmica de grupos, de tudo isso. Na prefeitura me deram trabalho nos bairros de periferia. Em meados de 73, eu era a promotora comunal de mais ou menos sete bairros pobres de San Salvador.

III. Uma Vitória Completa: Salvar o Relacionamento e Desenvolver-se Politicamente

— Você disse antes que considerava uma vitória seguir adiante com suas atividades e compromissos, ainda que isso custasse o relacionamento. Agora, vejo que a verdadeira vitória – era isso que você queria dizer quando falou de “vitória completa”? — é aquela em que se conseguem ambas as coisas. Parece-me importante pensar em como conseguir isso, já que a imensa maioria das mulheres militantes de hoje busca se realizar tanto no terreno afetivo como no político...

— Olha, minha primeira grande vitória é me esforçar, enfrentar os desafios necessários para conseguir minha realização pessoal, porque isso já é uma vitória contra minha própria covardia. E a vitória completa é se me esforço e tenho um resultado positivo.

Em minhas relações afetivas, eu acho que triunfei, porque não terminei subordinada e agi como acreditei que era o correto, ainda que isso tenha tido alguns custos. Essa é a única maneira de ser feliz, isso é a felicidade para mim.

É uma vitória agir como se acredita que se deve agir. Sem que o partido, marido, pai, ou mãe fiquem em cima. Eu até agora tenho feito isso sempre.

— Sim, mas você fala de vitória e de vitória completa...

— Claro, é bem injusta a situação das mulheres que são independentes, porque atuar de maneira consequente com suas ideias significa não conseguir uma vida afetiva estável com ninguém. A maioria dos companheiros ainda não admite a possibilidade das mulheres serem independentes, que tenham autonomia e que possam se desenvolver plenamente. Ao contrário, eles acham que elas vivem em função deles.

Isso ainda existe aqui em El Salvador, e por isso digo que a vitória completa suporia que homens e mulheres mudassem, para construir uma sociedade mais humana, com famílias mais humanas, mais democráticas. Isso seria o certo.

Porque hoje só há duas alternativas, e eu vi muitas companheiras que escolheram o outro caminho: negar suas qualidades, tornar-se medíocres, sombras de seus maridos, ou você é você mesma e seu marido te larga. Essa é mais ou menos a norma.

IV. Os Casais e os Solteiros

— Agora, o fato de que companheiros da direção das frentes tenham companheiras não provoca, nos que estão sozinhos, uma reação de inveja e de dizer “Olha, os chefes podem fazer isso e nós não....”?

— Olha, isso tem a ver com outras coisas. Vou expor meu caso pra você porque há diferentes situações. No meu, para todo mundo está bem claro que me colocam onde me necessitam; eu nunca cheguei atrás de ninguém para nenhuma tarefa. Então, as pessoas não ligam. Eu nunca tive problemas por isso, porque sempre ficou claro que eu estou onde tenho que estar, por uma tarefa muito concreta que é minha responsabilidade. No caso do meu trabalho na Frente Paracentral, cheguei ali não porque meu companheiro estava lá, mas quando a direção decidiu me mandar para lá.

As pessoas se importam mais quando a companheira do chefe não está em tarefas de direção, mas próximas à direção, ou em tarefas de apoio à direção por ser a companheira de fulano. Aí esse tipo de reação aparece.

Justamente por isso fizemos um debate em 88, porque se dizia que era preciso manejar as relações. E então, nos perguntamos: por onde começam as relações? Por cima ou por baixo? Como está a coisa?

— O que significa manejar as relações?

— Permitir que os casais fiquem mais perto, dar-lhes mais possibilidades.

— Humanizar a situação da tropa, digamos...?

— Em geral, a vida dos casais na organização. Isso se colocou porque a relação dos casais da direção estavam muito humanizadas; e as da tropa, não. Então, começamos a pensar como fazer, porque, se a um pelotão de trinta pessoas a gente agrega os/as companheiro/os/as, quanto gente isso dá? E como se organiza um pelotão de sessenta? Como inventa tarefas para os trinta a mais, sejam homens ou mulheres? Me entende? Aí há um problema objetivo que não se dá em pequenos aparatos, porque nesses você pode conciliar. E então tem outro problema de muitos combatentes, cujas mulheres estão na população civil e eles não estão interessados em que a mulher deixe os quatro filhos para ir com eles pra montanha. Ou seja, há um monte de situações de diferentes tipos.

E também aconteciam casos em que justamente os dois podiam estar juntos e um estava por um lado e outro por outro, e não se fazia nada para juntá-los. Nesse sentido, realizamos um esforço com resultados práticos de maior estabilidade dos casais.

Fizemos um esforço para criar condições materiais, mas não conseguimos criar novos valores para a relação do casal. Isso é muito importante, porque, como estamos em guerra, se cedo ou tarde não há todas as condições materiais, se você não tem a ideia de enfrentar junto as repercussões da guerra nas condições dadas, nesse momento, quando faltam as condições materiais, os casais se separam.

— O que você chama de condições materiais?

— Que eles possam trabalhar perto um do outro, que possam se ver todos os dias... coisas assim. Mas seja porque um se desenvolva mais, ou porque o outro tenha que ir para outro lado, ou que te capturem, ou te mandem a um treinamento, se não há a vontade de assumir juntos o compromisso da revolução em sua expressão concreta que é a guerra, nesse momento as relações se quebram, com todas as sequelas que isso significa para cada um.

V. Mulher Dirigente e Problemas Domésticos

— Quais dificuldades é preciso superar para que a mulher possa assumir tarefas de direção?

É preciso começar pelas pessoais e afetivas. Em primeiro lugar, a questão dos filhos, porque outras mulheres, que são excelentes e não tem quem as ajude com os filhos, acabam ficando em tarefas menores ou de apoio.

— Você está afirmando que seriam resolvidos os problemas se houvesse quem se encarregasse do cuidado dos filhos?

— Se houvesse apoio em dois níveis. Olha, por um lado, apoio institucional, creches, centros de atenção infantil, seriam uma medida que poderia contribuir para que as mulheres se incorporassem mais; e a outra, se o trabalho doméstico fosse compartilhado. Mas isso não acontece.

Então, é grave, porque ainda que haja creches, se o trabalho doméstico não é compartilhado, as mulheres têm dificuldades para participar politicamente do mesmo jeito.

Porque de nada serve que haja creches, e aí chega 6 da tarde e você tem que ir lavar fralda, preparar as coisas do dia, a comida, ir no supermercado, varrer, limpar a casa etc. Agora, nessa época de paz, terminado o conflito, nós queremos que a participação política seja muito mais ampla. E que as pessoas mais comuns participem na política.

Mas se você tem trabalho assalariado, trabalho doméstico e trabalho político, realmente fica bem difícil. Porque agora o movimento de mulheres no partido é tão forte? Porque todas sentimos hoje o que nunca havíamos sentido na guerra, Marta. Terminada a guerra, acabou a igualdade. Sabe por quê? Porque ao voltar para casa, as que eram guerrilheiras pegaram seus filhos, e o marido não se integrou ao trabalho da casa. De repente, elas dizem: “Agora estou pior do que na guerra, porque saio do trabalho político e vou fazer todo o trabalho doméstico. Agora meus fins de semana são para cuidar das crianças. Agora, das seis da tarde em diante eu tenho que estar em casa cuidando dos filhos. E tenho que ver nos intervalos do meio-dia como vou ao supermercado”.

Em janeiro, era incrível: você não achava nenhuma mulher, todas estavam matriculando as crianças, e os companheiros estavam bem tranquilos.

Então, sim, realmente, não só é necessário ver como tirar as mulheres do lar, mas ver como metemos os homens no lar, para que isso possa ser resolvido.

Isso vai ser um trabalho longo, mas acredito que é uma batalha que precisa ser travada.

VI. O Comando Militar Feminino

— É mais fácil imaginar uma mulher dirigindo uma frente política ou de massas ou em tarefas diplomáticas do que como chefe militar. Como você chegou a ser chefe de uma frente de guerra?

— Em 80...

— Quando se preparava a ofensiva?

— Correto. O comitê central havia crescido, eram 18 companheiros do CC, e na Comissão Política éramos uns oito ou nove. Logo, na CP, percebemos que os chefes dos comandos que tínhamos nos comitês zonais eram muito bons, mas não sabiam como organizar mil homens – estavam ficando loucos. Por outro lado, nós, secretários do partido, sabíamos como fazê-lo. Então se decidiu que alguns companheiros da CP teríamos essa tarefa. Então, me fizeram chefe militar do Ocidente para que organizasse essas unidades.

— Você tinha conhecimentos militares?

— Não, não sabia nada de comandar tropas. Desde que fui aspirante a combatente, não peguei em uma arma. Isso foi dois meses antes da ofensiva de 81. Então era um pouco complicado, porque não era só organizar isso, mas no contexto da ofensiva que estava sendo preparada.

— Como você fez para desempenhar essa tarefa sem ter conhecimentos militares?

— Me apoiei nos companheiros, porque havia chefes de pelotão que eram muito bons, companheiros com capacidade operativa que, ainda que não tivessem a visão de organizar algo grande, tinham capacidade técnico-militar. E dessa maneira fomos enfrentando a situação. Ou seja, consultando com os companheiros as questões concretas do tipo de recursos que precisavam, tipo de armas, enfim... me lembro que diziam: é preciso fazer trincheiras. Mas eu nunca tinha visto uma trincheira Os companheiros, logo depois de construí-las, me perguntavam: estão boas? Eu dizia que sim. Ou seja, às vezes fazia truques, porque não podia responder “não sei” toda hora. Me lembro que, com as trincheiras, segui a corrente... mas a verdade é que consegui seguir adiante me apoiando neles.

Queria te dizer que, não só nesse caso, mas em todas as tarefas que me deram, eu sinto que, se eu pude desenvolvê-las ao menos medianamente, foi justamente porque estou convencida de que se uma pessoa consegue comprometer o coletivo política, ideológica e emocionalmente com a tarefa, as coisas caminham. Mas, se o coletivo está desunido, se há disputa ou as pessoas não se apoiam nele, por muito inteligente que uma pessoa possa ser, não pode substituir a energia dos demais.

Isso me ajudou a sair de um monte de dificuldades. Agora estou trabalhando com uma equipe de economistas. Eu não sou economista, e se eu resolvesse dar uma de sabida e não aprender com eles, as coisas não poderiam funcionar. Tenho que estar aberta a tudo que me seja colocado. E acredito que isso seja importante. Me serviu muito durante toda a vida isso de aprender dos outros.

Por isso, me incomoda que se faça mau uso dos graus militares, porque atrás de cada comandante há um monte de mortos que lhe salvaram a vida um monte de vezes; há um monte de gente que caminha de pé pela manhã, tarde e noite para que suas grandes ideias cheguem a outro lugar.

Enfim, até nas coisas mais elementares é preciso valorizar as possibilidades de ensino que os demais têm.

— E como os homens aceitam o comando feminino?

— Aceitam com naturalidade, e isso avançou bastante, porque, por exemplo, eu sempre trabalhei com homens. Foram raras as vezes que dirigi mulheres diretamente. Nunca tive grandes dificuldades.

— Para se impor, você não teve que abandonar valores e atitudes femininas?

— Não, nunca fiz isso, dar uma de valentona, a que faz isso e aquilo, assumir outras características, não, isso não fiz. Ao contrário, os companheiros diziam que eu os estava “afeminando”, porque tinha tendência a chamá-los por diminutivos, usar apelidos. Então, o que se chamava Felipe, eu chamava Fili, e o outro Orly... eu lhes dizia: “Como quer que eu te chame: 'Vem, filho da puta!'?” Não, não vou fazer isso. Eu sou assim...

O que realmente pesa é o grau de efetividade do seu trabalho. Esse é o assunto de fundo. Se isso não está sendo questionado, você não tem porque mudar sua maneira de ser.

— Se você se visse obrigada a colocar em uma balança a realização pessoal em um trabalho com perspectiva revolucionária e sua realização afetiva, pesaria mais o primeiro?

— Sim...

— Ainda que seja com um pouco de dor?

— Com dor na alma, mas pesa mais. Ainda que eu acredite que é preciso fazer um esforço para compatibilizar as duas coisas. Não se trata de ter o sacrifício como um princípio. Isso me parece inumano para todos: quadros e base. É inumano, mas chega um momento em que, se as coisas se tornam incompatíveis, você deve decidir. Ou há um salto de valores para enfrentar essa situação, ou é preciso pesar mais o projeto e o trabalho. Eu não acredito que haja outra solução.

— E você, como chefe, se tem que planejar as tarefas dos quadros, considera o aspecto feminino de algum quadro para tentar buscar uma fórmula em que não cheguem a enfrentar decisões tão difíceis?

— Olha, um chefe sempre tem que ver os dois problemas, do homem e da mulher que estão envolvidos em cada decisão. Nós tentamos fazer com que sejam compatíveis, que não haja necessidade de romper a relação, sempre que essa compatibilidade — pelo menos essa é minha posição — não atrapalhe as possibilidades de nenhum dos dois. Isso é o que eu penso.

São feitos malabarismos orgânicos, às vezes difíceis, mas não há malabarismo que funcione quando os valores estão muito fracos. Eu vou te dar um exemplo: havia uma companheira que devia dirigir uma oficina de explosivos, porque tinha as qualidades para fazê-lo. Seu companheiro era miliciano, iam viver juntos onde o companheiro estava, mas ela iria todos os dias à oficina de explosivos. No entanto, o companheiro queria seguir sendo chefe dela, não aceitava que ela assumisse essa tarefa de direção.

— E o que a companheira decidiu?

— Se incorporar à oficina de explosivos.

— Isso lhe custou a relação com o companheiro?

— Estavam nessa quando o companheiro caiu numa emboscada. Mas houve outros casos em que, se não havia possibilidade de que o companheiro fosse com a companheira, ela não se movia de onde estava.

Nós temos essa política de fazer com que estejam perto, que possam se relacionar, que estejam juntos. Estamos fazendo um esforço nessa direção, buscando compatibilizar o desenvolvimento das companheiras e dos companheiros com o do casal. É preciso buscar uma solução para esses problemas, porque nossa revolução não é de pessoas “autônomas”, nem de seres anormais. Mas se você não ataca a questão ideológica, nunca é suficiente. Sabe como termina? Termina que a companheira acaba grávida, ela sai com uma licença, e o cara fica com outra, e então aquela primeira se ferra no seu desenvolvimento e fica sozinha do mesmo jeito.

— A direção das FPL se preocupa com essas coisas?

— Nós fizemos até uma campanha de planejamento familiar. Os companheiros se opunham a que as companheiras fizessem o planejamento. “Que loucura é essa?!”, dissemos nós. Você está junto do seu companheiro, não se desenvolve, acaba grávida, e do mesmo jeito o cara te abandona. E depois você fica fora da frente, com filhinhos, sem o marido. Isso é uma puta tragédia.

VII. Filhos Criados por Outros

— Meu caso não é igual ao de todas as mulheres. Como sou da direção e já tenho meu próprio espaço, a direção se preocupa em me dar condições para que eu trabalhe. No caso das companheiras de base, temos um sistema até de creches legalizadas, onde as mulheres podem ver seus filhos, sair com permissão em cada período se voltam para a frente; ou seja, temos um sistema amplo. Nossa ajuda não se foca desde a perspectiva de que a mulher possa doar mais, mas de que as crianças tenham condições justas.

Agora, se você tem quem te ajude, um familiar, por exemplo, nós acreditamos que é o melhor, mas há quem não tenha família.

Nas creches, existe um sistema de internato completo. Muitos dos que entram são crianças sem família. Lembre-se de que na frente há um monte de jovens de vinte anos com filhos cujos pais foram assassinados durante a repressão ou são combatentes ou ativistas. Essas crianças não têm familiares que as acolham. Mas não acreditamos que esse sistema de creches seja o ideal. As crianças são educadas com outros costumes, com outro nível de vida. Quando seus pais vão buscá-las para ficar uns dias com elas, há um grande choque entre entre as condições alimentícias, sanitárias, em que vivem na creche e as condições de vida muito mais humildes de seus pais. Isso, a longo prazo, pode trazer dificuldades. Nós também passamos para outro esquema que é buscar famílias que colaborem. Achamos isso melhor. Com todo esse desenvolvimento da repovoação, do trabalho político em casa, o melhor é uma família que possa apoiar os que não a têm.

Essa é a outra variante que, para mim, parece boa. Além disso, dessa forma o combatente pode ir lá quando quer, coisa que não acontece na creche que está na cidade. É problemático (um relaxo) fazer a conexão para que se vejam, por outro lado, da outra forma, eles podem dar uma passada, porque os filhos estão nas periferias de suas respectivas zonas. Chalate, por exemplo, já tem isso resolvido.

Outro problema das creches é quando os pais caem, os filhos perdem a memória de quem era o pai, de quem era a mãe. Me entende? Quando fui a uma creche, havia umas trinta crianças que não lembravam de seus pais. Esse tipo de coisa começou a nos preocupar. Se eles estivessem em uma casinha, por mais humilde que fosse, já teriam uma família. Seria possível falar com essa família para que explicassem quem foi o pai, quem foi a mãe.

— Há sentido nessa experiência de ter filhos para que sejam criados por outras pessoas?

— Durante dez anos eu acreditei que não deveria voltar a ter filhos, porque não via sentido nisso. Eu dizia: “Para que vou ter outro filho se o que tenho na verdade não tenho? Para que vou ter outro?”. E isso me dava como um sentimento de traição, ter outro filho. Pensava: Como vou fazer isso com o outro? Mas depois comecei a pensar que, com esse tipo de raciocínio, nos desumanizamos. Talvez eu veja desde minha perspectiva, eu tive uma família estável, sei que posso contar com ela, que no futuro posso reconstruir a relação com meus filhos. Por outro lado, me parecia uma visão que no fundo era pessimista, como quem diz: “Nunca vamos ver a vitória, nunca poderei reconstruir nada”.

No entanto, não posso negar que, agora que me reencontrei com meus filhos, há grandes lacunas, às vezes terríveis, mas, apesar de tudo, penso que foi bom que os tivesse. É outra dimensão de minha vida que jamais teria vivido se não os tivesse tido e, por outro lado, ainda que seja com os vaivéns da guerra, tive a possibilidade de construir uma família com eles. Se eu não tivesse tido esses filhos, que seria de minha família hoje em dia? Só seríamos minha mãe e eu. Todos meus irmãos morreram lutando e meu pai acaba de morrer de câncer.

— Como foi seu reencontro com esse filho que foi criado por sua mãe?

— Quando se criaram novas condições, eu disse a mim mesma: “Agora sim posso viver com meu filho”. Mas, com que moral eu iria tirar o filho da minha mãe, se já fazia oito anos que ela estava com ele, e eu o havia visto só três meses nesses oito anos? Como agora ia pedir meu filho para minha mãe, quando ele havia vivido tantos anos com ela e, por outro lado, todos seus filhos morreram na luta? Não tive moral para fazer isso. Era complicado...

Olha, apesar do difícil que é não estar com eles, como sei que não fiz por folga, mas por uma decisão mais profunda de convicções de outro tipo, não me sinto mal. Além do mais, penso que, na medida em que se constrói algo para o povo, se constrói para eles também.

— Acredito que é preciso refletir não tanto sobre o que significa para uma mãe se separar de seu filho, mas do que significa para o filho estar separado de seus pais... essa situação não é escolhida por ele, é imposta.

— Acredito que agora não é a mesma situação que durante a guerra. A guerra era uma situação superexcepcional. Aqui houve setenta mil vítimas em dez anos; isso marcava todo mundo: pai, mãe, filhos, avós, todos estávamos na mesma situação.

Agora, terminada a guerra e começado o tempo de paz, eu me dei conta de duas coisas. Uma, pessoalmente acredito que já não se justifica delegar o cuidado dos filhos. Acredito firmemente que cada pai e cada mãe deve cuidar de seus filhos. Outra, que esse cuidado deve ser combinado com o trabalho político.

Há outro detalhe: como fim da guerra, os avós já não querem continuar criando os filhos. Também pediram seu descanso. Vi um monte de casos assim.

Agora, sobre a maternidade, eu acredito que essa é uma decisão pessoal de cada mulher; mas acredito, pessoalmente, que, pelo menos eu, não resolveria ter, nem agora, nem mais adiante, mais filhos, se eu quiser manter o nível de compromissos que assumi. Mas não me atreveria a estabelecer uma regra geral, porque há mulheres que em toda a guerra não tiveram filhos e hoje têm vinte e quatro anos e querem ter um filho.

Penso que é bem difícil estabelecer uma norma; acredito no que eu dizia antes: que aquela mulher que resolve ter filhos e não resolve o problema do apoio em casa, termina meio louca. Digo isso pela minha experiência.

No ano passado, em novembro, acabei com paralisia facial. Claro, o trabalho político era uma loucura e em casa, de repente, eu estava sozinha com os filhos, para cima e para baixo. Quebrei. É muito duro. É uma lástima que eu não tenha quem colocar de burro de carga para que faça o trabalho doméstico, mas penso que há mulheres que estão como eu, ainda que tenham o marido em casa.

— E sua mãe está com você agora?

— Minha mãe se deu umas férias totais e eu a respeito e apoio. Eu acredito que esse é seu direito.

Além disso, eu gosto... vi muitas avós que, do mesmo jeito, dizem: já chega.

— Conte-me, você agora está vivendo com seus filhos?

— Estou com meus dois filhos, mas o mais velho está terminando o Ensino Médio no México. Ele já tem dezoito anos, vive em um quartinho. Já é independente...

— Você acredita que, assim como se diz que atrás de cada grande homem há uma grande mulher, também atrás de toda grande mulher existe outra que assume as tarefas que a primeira não pode assumir pelas responsabilidades que recaem sobre seus ombros? Mesmo que existam essas instituições que cuidam dos filhos desde pequenos, porque sempre há as tarefas do lar e as horas que os filhos passam em casa...

— Na verdade, sim, isso é assim.

VIII. Integração da Mulher

— De que maneira é possível contribuir para uma maior integração da mulher nas tarefas de direção política?

— Acredito que, de tudo que conversamos, se deduz que é necessária uma política consciente das organizações sociais, das organizações políticas, no sentido de criar condições para que as mulheres possam se desenvolver politicamente.

Já faz um tempo, tivemos um encontro de mulheres em Tehuantepec. Tinha que ver as mulheres do PRI(5) e do PRD(6) queixando-se dos mesmos problemas que as mulheres das organizações populares de El Salvador. É a mesma história. Os problemas são os mesmos. Do jeito como estão as condições econômico-sociais e políticas, é difícil compatibilizar as responsabilidades de direção política com as do lar. E se vamos ao caso concreto de El Salvador, para que uma mulher chegue a ser dirigente, ela tem que superar todos os problemas econômicos, sociais e culturais que existem ali. Perceba que em El Salvador é muito frequente ver mulheres com um, dois, três, quatro, cinco, seis filhos, que são chefes de família.

Quero ainda falar mais uma coisa, que essa diminuição do número de mulheres que eu disse que aconteceu na direção do FMLN, estou convencida que tem a ver não só com nossa política discriminatória, mas também com o descenso do movimento operário, do movimento de massas... porque, na medida em que as massas começam a participar, e o nível de militância que exigem essas tarefas não é o mesmo que exige o partido, isso dá chance para um monte de mulheres começarem a exercer tarefas de direção e daí sai uma nova geração de mulheres.

Preste atenção que, por exemplo, em toda a direção nacional do Comitê Cristão de Deslocados e Refugiados de El Salvador (CRITDEF), só há dois homens, as demais são mulheres. Se você vai nos locais de repovoamento, a maioria na direção é de mulheres. É que o surgimento do movimento popular em sentido mais amplo dá maiores possibilidades para a mulher, porque o salto da vida doméstica para a guerrilha é muito grande.

Olha que no Sindicato do Seguro Social, o dos Hospitais, existe um Comitê Feminino que tem o mesmo peso e a mesma influência que o próprio sindicato. E já os companheiros entenderam que para conseguir efetividade de uma mulher, é muito importante o apoio que a mulher organizada proporciona. No momento apareceu uma contradição entre a organização feminina e a direção do sindicato, mas conseguiram resolvê-la. Esse é um fenômeno que está aparecendo, mas que nós deixamos de lado.

Me parece que um sintoma do amadurecimento do processo revolucionário em El Salvador é esse fenômeno do surgimento de um novo contingente de mulheres.

— A partir disso que você falou, parece que a integração da mulher à direção política e os problemas que isso representa estariam relacionados às diversas etapas pelas quais passa o processo revolucionário. É evidente que não são os mesmos problemas os que se colocam para a mulher que desempenha o comando militar e para a mulher que assume uma tarefa na condução do movimento de massas. Dá a impressão de que, nas lutas dos bairros, nas lutas territoriais, a mulher joga um grande papel porque essas lutas não a obrigam a se separar da família, e ali ela consegue cumprir o papel de mãe e de lutadora ao mesmo tempo.

— É isso mesmo.

IX. Reivindicações do Movimento de Mulheres

— Quais são, na sua opinião, as principais reivindicações que deve levantar o movimento feminino revolucionário na América Latina? Há quem sustente que as dirigentes femininas salvadorenhas e nicaragüenses politizam demais os problemas da mulher, e não lutam ou consideram secundário lutar por reivindicações propriamente femininas. O que você pensa a respeito disso, agora que tem essa experiência da reunião de mulheres no México?

— Sobre isso das principais reivindicações do movimento feminino revolucionário na América Latina, eu parto do pressuposto de que, naturalmente, suas primeiras reivindicações, as estratégicas, são as de transformação social, porque mantenho que todo esse pleito será em vão se não se luta por transformações profundas. É como se o operário só ficasse no nível da luta econômica.

Não acredito que se deva separar a luta do movimento feminino da luta pelas transformações da sociedade. Essa é uma tarefa de homens, mulheres, jovens. Agora, contrapor as reivindicações das mulheres a essas é pior ainda. Evitá-las é um erro, mas é um erro maior ainda contrapô-las, porque aí você cai no jogo do feminismo burguês, que só briga por reivindicações de tipo imediato, setorial, e deixa de lado o problema de fundo, que não é nenhuma varinha mágica, mas é onde são criadas as condições básicas para poder falar de uma superação estável e duradoura da situação da mulher.

Entre essas reivindicações que têm a ver com as transformações da sociedade, em nosso caso, está a demanda pela desmilitarização, a democratização da sociedade, a justiça econômico-social, a soberania nacional... a elas, é preciso agregar as reivindicações específicas da mulher, que não são devidamente consideradas: a igualdade de oportunidades no trabalho, a igualdade de salário, a socialização dos deveres no lar entre homens e mulheres, a criação de mecanismos transitórios de formação e capacitação de mulheres – por exemplo, das donas de casa – para que possam se desenvolver não só no trabalho político, mas nas empresas, no trabalho produtivo. Todas essas são demandas que as mulheres podem e devem levantar.

O direito a participar plenamente em todo o desenvolvimento político, econômico e social me parece uma reivindicação justa. Do mesmo modo que, enquanto se transformam todas as condições, se criem condições de ajuda material para a mulher. Agora, não me venha dizer que a máquina de lavar me ajuda, porque aí você está partindo do pressuposto de que eu sou a encarregada de lavar a roupa. As lavadoras devem ser uma ajuda para resolver os problemas não da mulher, mas da família, que já é outro caminho. Por que o casal não pode compartilhar essa tarefa?

Devem ser criados esses mecanismos transitórios, mas fazendo consciência que é de ajuda à família, ao homem e à mulher, na medida em que se constrói a igualdade de responsabilidades homem-mulher.

O problema é que como tudo isso foi marcado pelo feminismo burguês, no caso da FMLN, há um tipo de alergia a tudo que sejam reivindicações da mulher, isso apesar de existirem umas quinze organizações de mulheres agora em El Salvador. As organizações cresceram, elaboraram teoria, têm posição sobre o problema da paz, da guerra, da justiça social, sobre seu problema particular e é tempo de incorporarmos isso.

Eu sei que nós, as mulheres do FMLN, nos desinteressamos pelo problema da mulher. Ouvi cada declaração que me dá alergia. Até caímos na ridicularização da luta da mulher. Uma vez, ouvi uma compa dizer: “Não, primeiro é a revolução, e depois que o homem cozinhe”. E uma companheira que está em uma frente lhe respondeu: “Eu sei cozinhar muito bem, meu problema é como participo no desenvolvimento global da sociedade”.

Há uma tendência em nós a dizer que primeiro é a luta pela revolução e depois a luta da mulher. Eu penso que elas devem ir juntas. Não sou partidária do feminismo “radical”, ao estilo burguês, mas essa afirmação de dizer que primeiro é uma coisa e depois a outra me parece ilógico e injusto, porque, como você vai afirmar que é preciso deixar o imediato pelo estratégico, quando é preciso combinar as coisas?

— Você pensou em como podem se resolver os problemas da mulher dirigente salvadorenha na nova sociedade que vocês pretendem construir, sabendo que a possibilidade de crescimento econômico ainda está longe?

— Eu penso que, assim como será gradual a conquista dos objetivos plenos da revolução, nessa gradação devem ir também as conquistas da mulher. Ou seja, não podemos pensar que a mulher vai resolver todos os seus problemas se a sociedade em conjunto não é capaz de resolver as questões mais elementares. Ou, ainda — apesar de que eu não faço ideia de uma fórmula — , penso que assim como o programa deve ser gradual em educação, em trabalho, reforma agrária, em mudanças econômicas e sociais, essa gradualidade deve ir já tomando em conta os problemas da mulher, como por exemplo, sua capacitação técnica, sua educação político-ideológica... e, por outro lado, deve criar condições materiais, ao mesmo tempo em que se muda a mentalidade.

É difícil pensar em fórmulas porque, na medida em que as condições materiais serão mais difíceis, isso vai exigir mais consciência e mais esforço de homens e mulheres, para que as mulheres possam ter possibilidades. Para te dar um exemplo, se não for possível ter uma lavadora, então, o que vamos fazer se continuarmos seguindo o esquema de que ela serve para ajudar a mulher?

Eu parto do pressuposto de que nesse primeiro momento a tarefa é político-ideológica e material. Mas, que nível pode ter? Para mim, é difícil determinar isso nesse momento.

Por exemplo, no nosso caso, até agora só se pensou em um ministério para ver os problemas da mulher, sua proteção legal, que não fique abandonada, que o marido pague pensão, ver o que se pode fazer por sua educação, tratar o problema da prostituição, ir buscando paliativos.

É importante não esquecer que nos repovoamentos existe uma experiência de autogestão que até agora tem tido êxitos notáveis com relação à realização da mulher. Abarca a educação, a saúde, a produção agrícola, a produção de bens artesanais: sapatos, roupas etc, e a escola e a creche.

As companheiras levam os filhos de manhã às creches, vão à sua unidade produtiva, ou as que são das clínicas vão às clínicas; as outras vão para a escola, e estão resolvendo muitas coisas coletivamente. Mas eu me pergunto: como se pode estender isso para todo o país? Porque essas experiências foram realizadas com companheiros que, pela guerra, viveram os últimos dez anos em coletivo: estiveram em acampamentos, em refúgios e adquiriram uma mentalidade que é diferente da do resto do país.

Aí mesmo, a meia hora dos repovoamentos, há gente que ainda que agora viva em zonas sob controle, não esteve desde o princípio nessas zonas e, ainda que tenha recursos para organizar uma forma de vida coletiva, o caminho que tem que buscar é outro, porque essas pessoas não têm toda a experiência prática e político-ideológica que têm as pessoas que viveram em acampamentos, em refúgios, que estiveram nos poderes populares locais, que eram a expressão anterior dos repovoamentos.

Pela via da cooperativa, chegaram a um funcionamento similar; fundaram sua escola, sua unidade produtiva, tudo igual. É interessante. Aí você vê dirigentes cooperativistas mulheres. Eu conheci uma que era a que mais produzia de sua cooperativa, e tinha cinco filhos. Ao perguntar-lhe como era isso, me respondeu: “É que a cooperativa já se organizou, as crianças vão para a creche, eu as levo de manhã e as pego à tarde, e os outros vão à escola”.

— O movimento feminino de que você falava tem alguma relação com essas experiências?

— Sim, tem, porque as cooperativas têm seu setor feminino, e há bastante interação entre o setor feminino das comunidades dos bairros e o da repovoação e das cooperativas. Ainda que em San Salvador, por exemplo, a experiência seja diferente. Como você faz ali uma unidade produtiva desse tipo? É mais difícil, é outro mundo. São trabalhadores informais, não têm terra, são agregados. Aí é mais complicado. No entanto, há algumas experiências que estão sendo desenvolvidas na cidade, na área do artesanato etc. Onde isso acontece de maneira mais notável é na zona rural, onde estão os repovoamentos e as cooperativas. Aí sim é clássico e promissor o panorama.

— Acredito que essas experiências de que você fala são esperançosas, porque prefiguram de alguma maneira as maiores possibilidades de desenvolvimento da mulher em um esquema de sociedade que abandonou o individualismo, fenômeno típico do capitalismo, para dar ênfase aos valores solidários e coletivos...

X. Não há Projeto de Democracia sem a Mulher

— Eu queria que você me contasse, agora que está dedicada ao trabalho da mulher, a estudar, a pensar sobre esse tema, quais reflexões, quais novas ideias e que caminhos encontrou para conseguir o desenvolvimento igualitário e não discriminatório da mulher.

— Bom, com nossa entrevista anterior eu fiquei incomodada. Disse a mim mesma: não pode ser, onde está minha vitória pessoal se conto todas essas baboseiras e não faço nada?

— Essa foi a razão pela qual não me respondia e tive que postergar a publicação desta entrevista?

— Sim. Então comecei a falar com as companheiras dos organismos do interior — eu estava no México — e nos propusemos a fazer um diagnóstico da mulher na sociedade, nos grêmios e no partido, e daí fazer políticas.

E quando voltei ao país, logo depois da assinatura dos acordos de paz, me joguei de cabeça no trabalho com as mulheres. De lá para cá fundamos uma organização, que é o Movimento de Mulheres “Mélida Anaya Montes”(7), e que surgiu como uma iniciativa do partido. Aos poucos percebemos que um movimento social deve ter autonomia para se desenvolver e, se é de mulheres, com muito mais razão. Vimos que devíamos criar um espaço onde as mulheres pudessem refletir sobre sua situação e buscar alternativas. Produzimos um interessante debate e daí tiramos algumas conclusões, que até hoje acredito que sejam válidas

Constatamos que a mudança nacional, tal como está colocada até agora, não atinge problemas importantes da mulher. Ainda que certamente a mulher seja beneficiária direta da situação de maior estabilidade do país – de que não haja mortos, que não haja repressão, que seus filhos cresçam melhor, que seus maridos não sejam assassinados, que elas não sejam assassinadas -, os diferentes projetos de mudança não levam em consideração a situação da mulher.

Olha, por exemplo, a política de reforma agrária não abarca, e nem abarcou, as mulheres, porque não revisou as políticas de crédito. Aqui, o único crédito que há para as mulheres é o dos bancos comunais, que lhes dão quinhentos pesos — quinhentos pesos são mais ou menos sessenta dólares — para que comecem seu caminho como empresárias. Isso é ridículo!

Além disso, ninguém revisou o nível de documentação das mulheres. Então se colocou como cláusula que a terra era só para aquele que estivesse devidamente documentado e, por essa via, se excluiu um monte de mulheres.

Se você vai para o campo do trabalho, pra começar, a FMLN não reivindica a igualdade de salários para homens e mulheres; não reivindica o combate à violência contra a mulher nos locais de trabalho; não reivindica o castigo ou sanção aos empresários que fazem exames mensais de gravidez para despedir as mulheres, para não ter que cobrir os gastos da pré-maternidade, não reivindica que o assédio e a chantagem sexual dos superiores, capatazes e chefes devem ser penalizados; nem reivindica a necessidade de contratos justos para as mulheres.

A imensa maioria das mulheres daqui trabalham em zona franca e nela o contrato é pelo tempo que o patrão ache que é conveniente.

Segundo as investigações do governo, a primeira causa de morte é por partos e problemas de pós-parto ou por abortos. Há oitenta mil abortos clandestinos por ano em El Salvador. Nem o plano de saúde do governo, nem a esquerda, levam em consideração essa realidade.

E assim poderíamos ir passando por todos os campos.

Então, há um problema: incorporar a mulher requer políticas especiais para elas. Políticas inclusive desiguais, porque está claro que todo um setor está marginalizado, e em função de suas desvantagens, requer políticas especiais, como há política especial de créditos para os camponeses em geral.

— Você pode dar um exemplo de uma política especial?

— Exemplo: os planos de educação para mulheres adultas; os planos de saúde ginecológica especiais dirigidos a mulheres. Facilitar os requerimentos de créditos para mulheres e acompanhá-los de capacitação em gestão e administração, como estão fazendo com o Exército Nacional para a Democracia, em que lhes dão créditos de baixas taxas e colocam o técnico para que os capacite em como usar seu crédito. Ou uma campanha de documentação casa por casa, porque se as mulheres estão cuidando das crianças, como vão tirar o RG? É preciso se colocar em seu lugar...

Nós afirmamos que, para conseguir a integração da mulher no processo de mudança, é necessário, por um lado, que as mulheres adquiram consciência da necessidade de impulsionar a mudança nacional: democrático, revolucionário, antimilitar; mas que nessa mudança nacional sejam capazes de inserir sua própria plataforma, de maneira que a agenda nacional integre a das mulheres.

Assim, poderíamos fazer a junção dos interesses particulares das mulheres com os interesses da nação.

Como conclusão, posso te dizer que eu acredito que não pode haver projeto de democracia sem mulheres. Se as mulheres não têm uma alternativa de desenvolvimento político, econômico e social no projeto, esse projeto não é viável. Não é viável de acordo com os princípios de justiça social que nos propusemos.

Desta e outras entrevistas realizadas pelo MEPLA, se destaca a necessidade urgente de elaborar um projeto alternativo de sociedade que leve em consideração as diferenças de gênero, que supere o direito burguês. Este, ainda que proclame a igualdade universal, ao desconhecer a desigualdade real dos indivíduos na sociedade capitalista, limita-se a defender uma igualdade que, para muitos, é algo meramente formal. É necessário elaborar um projeto de sociedade que, partindo da desigualdade real de gênero, sustente e propicie uma igualdade efetiva entre os sexos.

Um projeto que deixe para trás a concepção burguesa da família, não para destruí-la, mas para superar uma concepção patriarcal, discriminatória, individualista e hipócrita sobre ela.

Um projeto que permita que a mulher chegue a cargos de direção política, sem que a mulher se veja constrangida a ter que renunciar a ser mãe, esposa ou amante para cumprir essas tarefas.

Marta Harnecker


Notas de rodapé:

(1) Tratam-se de duas séries de livros. A primeira: O que é o socialismo?: 1. Explorados e exploradores; 2. Exploração capitalista; 3. Monopólios e miséria; 4. Luta de classes (I e II); 5. Imperialismo e dependência; 6. Capitalismo e socialismo; 7. Socialismo e comunismo. Primeira edição, Chile, 1971. Várias edições na América Latina, traduções ao Português, Italiano, Holandês e Inglês. Nova edição revisada e universalizada em 1979, publicada na Espanha pela Editoria Akal. A segunda série: Como lutar pelo socialismo?: 8. O partido: vanguarda do proletariado; 9. O partido: sua organização; 10. Dirigentes e massas; 11. Estratégia e tática; 12. Alianças e frente política. Primeira edição, Chile, 1972. Algumas edições na América Latina, traduções ao Italiano e ao Português. Esta edição não foi revisada desde então pela autora, que a considera superada em vários aspectos depois de seus últimos trabalhos sobre esses temas. (retornar ao texto)

(2) Movimento conformado por mulheres de diversas organizações políticas na luta pelas reivindicações da mulher. (retornar ao texto)

(3) Lugares secretos destinados a esconder armas e equipamentos militares. (retornar ao texto)

(4) Plano Nacional de Restauração de Áreas. Plano militar com fachada cívica. (retornar ao texto)

(5) Partido Revolucionário Institucional. (retornar ao texto)

(6) Partido Revolucionário Democrático, de México. (retornar ao texto)

(7) Mais conhecida como comandante Ana Maria nas FPL. (retornar ao texto)

Inclusão 10/06/2016
Última alteração 30/06/2016