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Fonte: Revista O Comuneiro - http://www.ocomuneiro.com/nr01_07_tenhamacerteza.htm
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
A reeleição de George Bush no final do último ano deixou muita gente, particularmente na esquerda estadunidense, em estado de choque. Assim para esta, uma administração dominada pelos neocons [novos conservadores] e segura pelos votos da direita religiosa, pode fazer o que bem entender nos próximos quatro anos.
Esta posição ignora três coisas. Em primeiro lugar, a obstinação face do imperialismo USA no Iraque. Este está atolado numa guerra no terreno com a qual não esperava e sem tropas suficientes e capazes de lidar com essa situação e que tem vindo a paralisar a sua capacidade de intervenção noutro local qualquer.
Segundo, a vitória eleitoral não é o mesmo que “hegemonia”, no sentido da dominância política e ideológica que pode esmagar completamente qualquer resistência doméstica. Sem dúvida que as políticas de Kerry são idênticas às de Bush, mas uma grande parte dos que votaram nele combinaram um elevado grau de ilusão com uma grande contestação e amargura nunca vistas em eleições nos EUA desde o tempo de Nixon. Estas pessoas podem ficar temporariamente desmoralizadas com o resultado eleitoral, mas a sua revolta pode explodir de uma maneira que pode dificultar a vida de Bush como o foi para Nixon (que até teve uma vitória em 1972 muito superior à do primeiro), especialmente se as coisas forem de mal a pior para os EUA no Iraque.
Em terceiro lugar, há a economia. Os EUA têm estado numa fase de “recuperação” da recessão de 2000-2002. Enquanto durarem essas recuperações, muitos apologistas do sistema vão continuar a dizer que tudo vai bem e um futuro maravilhosos está à nossa espera.
Mas o desempenho da economia norte-americana está longe de ser brilhante. Os milhões de empregos industriais destruídos durante a recessão ainda não foram substituídos – todos os novos empregos têm surgido nas partes mais mal pagas do sector dos serviços. O mais importante índice da saúde económica capitalista, a taxa de lucro, apenas recuperou até ao nível de meados dos anos 90. E não está num patamar superior que o nível de 1973 que prenunciou um novo período de crise económica, apesar dos 25 anos de queda dos salários reais e da extensão dos horários de trabalho dos trabalhadores americanos (agora à volta das 400 horas, ou dez semanas, muito acima da França ou da Alemanha).
A real fraqueza da economia estadunidense é vislumbrada mais claramente na sua balança de pagamentos. Esta tem um défice igual a 6% do seu produto nacional (PNB). E vai tapando o buraco pedindo um bilião de dólares por dia! Os credores são os Estados e os grandes capitalistas do resto do mundo, particularmente do Este Asiático. Eles vêem o dólar como a moeda mais segura e usam os seus excedentes internos para comprar títulos de crédito dos EUA. Os seus dividendos, por sua vez, advêm da sua habilidade em vender mais aos EUA do que compram. Assim, o governo norte-americano e os consumidores privados estão a pedir dinheiro emprestado do Este Asiático para comprarem bens do... Este Asiático.
Esta tendência já estava presente há cinco anos atrás, no início da recessão da última recessão americana. O número de falências e de despedimentos que ocorreram nesse período não mudaram esse padrão. A “recuperação económica” dos últimos dois anos é em grande parte um produto da administração Bush em cortar impostos aos ricos, em baixar as taxas de juro e com o enorme gasto com armamento. Mas tudo isto foi acentuado pela tendência em colocar uma grande fatia dos gastos dos EUA – governamentais e privados – em se financiarem a partir do estrangeiro.
O outro lado de tais empréstimos tem sido o boom a que a China chegou em que acaba por sugar todas as matérias-primas e inputs industriais de todo o mundo. A recuperação norte-americana depende do boom chinês e este, por seu lado, depende da recuperação dos EUA. E a mediar isto tudo estão vastas somas do renmibi chinês e de outras moedas que se convertem em dólares para financiar as crescentes cadeias de empréstimos e dívidas. Tudo parece ser demasiado miraculoso para ser verdade. E, a longo prazo, é.
Dois aspectos podem trazer toda a estrutura a cair por terra. Primeiro, pode haver uma queda continuada da taxa de câmbio do dólar em relação às outras moedas. O governo norte-americano já autorizou até agora uma queda de 30% em relação ao euro e ao yen japonês. O objectivo é reduzir os gastos dos consumidores americanos em importações na medida em que estas se tornam mais caras, e baixar o preço das exportações americanas de forma a que se tornem mais competitivas. Mas se a descida do dólar se acentua pode desencadear uma avalanche, de onde os governos e os capitalistas estrangeiros veriam o valor das suas reservas em dólar a cair abruptamente e aí, começariam a transferi-las para o euro ou para o yen. O governo Bush poderia então tentar proteger o dólar através do aumento das taxas de juro que poderia, por seu turno, levar ao fim do período de recuperação e criar um imenso desejo de contestação entre os milhões de americanos, incluindo muitos que votaram em Bush em Novembro passado.
Em segundo lugar, com o mesmo grau de perigosidade, há sinais de fragilidade no boom chinês. As empresas chinesas pediram empréstimos dos bancos estatais de forma a expandir as suas unidades industriais bem como para competirem entre si e com os produtores estrangeiros no mercado mundial. O resultado tem sido um largo excesso de bens de consumo que só têm sido vendidos pelo abaixamento voluntário dos preços (basta dar uma olhadela nos preços dos leitores de DVD ou nos micro-ondas) ao mesmo tempo que se dá uma subida vertiginosa nos preços das matérias-primas. Mas estão as firmas chinesas ao vender nessas condições a fazer lucro? Poderão estar a ter perdas, ocultadas pela sua posição de credores e da especulação financeira via sistema bancário. Este poderia ser um cenário clássico em que um boom capitalista se transforma rapidamente numa grave depressão capitalista – e uma súbita retirada dos fundos que têm sustentado a economia americana.
Não há certezas absolutas acerca da especulação sobre quando e como este castelo de cartas vai colapsar – particularmente porque tanto o governo estadunidense como o chinês se esquecerão de falar em princípios de “mercado livre” como esforço em proteger as suas classes dominantes da ruína.
O mais importante é que Bush muito dificilmente terá uma saída suave da crise económica, tal e qual como no Iraque. Assim pode-se abrir uma via para as forças de esquerda americanas – que se manifestaram com aquelas centenas de milhares de pessoas contra a guerra – para terem um impacto real ao mesmo tempo que unem as diferentes correntes de contestação. Porém, a précondição para que isso aconteça será a superação da passividade pós-eleitoral e abandonar a ilusão de que podem combater um partido capitalista ao colocarem as suas aspirações num outro partido capitalista.