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A Gazeta de Colônia, órgão reacionário, publicara um artigo em 23 de junho de 1842, acusando a Gazeta Renana de atacar o cristianismo, base do Estado e concitando o governo prussiano a proibir qualquer discussão de problemas filosóficos e religiosos pela imprensa.
Marx respondeu em três artigos da Gazeta Renana, aparecidos em 10, 12 e 14 de julho de 1842.
A filosofia, enquanto uma gota de sangue fizer bater-lhe o coração absolutamente livre e mestre do universo, não se cansará de lançar contra os adversários o grito de Epicuro:
«O ímpio não é o que despreza os deuses da multidão, mas o que adere à ideia que a multidão tem dos deuses.»(2)
A filosofia não o esconde. Faz sua a profissão de fé de Prometeu:
Numa palavra, odeio todos os deuses!(3)
Opõe esta divisa a todos os deuses do céu e da terra, que não reconhecem a consciência humana como a divindade suprema, divindade que não suporta rivais.
Mas aos tristes poltrões, que se vangloriam de, na aparência, a situação social da filosofia ter piorado, a filosofia responde como Prometeu a Hermes, servidor dos deuses:
Fica certo de que nunca eu desejaria trocar
Minha sorte miserável contra a tua servidão.
Porque prefiro mil vezes a prisão neste rochedo
Que ser, de Zeus pai, fiel lacaio e mensageiro...(4)
Prometeu é o primeiro santo, o primeiro mártir do calendário filosófico.
(Marx: «Diferença entre a Filosofia da Natureza em Demócrito e Epicuro», Oeuvres, t. I, p. 10, Mega.)
Os filósofos não brotam da terra como os cogumelos, eles são frutos de sua época, de seu povo, cujos sumos os mais sutis, os mais preciosos, os menos visíveis, se exprimem nas ideias filosóficas. O espírito que constrói os sistemas filosóficos nos cérebros dos filósofos é o mesmo que constrói as estradas de ferro com as mãos dos operários. A filosofia não está fora do mundo.
(MARX: Artigo na Gazeta Renana, de 14 de julho, 1842; Obras. t. 1, pág. 242. Ed. Al.).
Durante os meses que precederam, em Paris, a publicação aos Anais Franco-Alemães, dos quais apareceu apenas um número duplo em março de 1844, Marx, Ruge, Feurbach e Bakounine, trocaram, de março a setembro de 1843, uma correspondência que devia estabelecer a unidade de pontos de vista e de doutrina dos colaboradores da revista. Dessas oito cartas colocadas por Ruge na introdução dos Anais Franco-alemães, três são de Marx, o verdadeiro animador da iniciativa.
Marx publicou nos Anais Franco-Alemães (março de 1844) sua Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, onde a filosofia tem ainda um lugar essencial, mas que aborda já a crítica da realidade econômica e social.
Não nos apresentamos à face do mundo como doutrinários sustentando um novo princípio: eis a verdade, ajoelhemo-nos diante dela! Desenvolvemos para o mundo novos princípios que tiramos dos princípios do mundo. Não lhe dizemos: abandona tuas lutas porque elas não passam de tolices; queremos fazer ressoar a teus ouvidos a verdadeira palavra da luta. Nós mostramos ao mundo apenas por que ele verdadeiramente luta e que a consciência é uma coisa que ele deve conquistar, mesmo que o não queira.
(MARX, Carta a Ruge, setembro de 1843; Obras, t. I, págs. 574-575. Ed. Al.)
A Sagrada Família ou Crítica da Crítica Crítica, escrita em 1844 e publicada em fevereiro de 1845, deveria ser um curto panfleto contra os jovens-hegelianos Bruno e Edgard Bauer, Max Stirner, etc. Marx — a colaboração de Engels reduz-se a uma vintena de páginas no começo do livro — levado pelo seu temperamento combativo e sem dúvida também para fugir à censura dando mais de vinte folhas impressas, fez do projetado panfleto uma obra volumosa onde ataca a critica abstrata: esta despreza as necessidades dos homens, opõe o espírito à massa, contenta-se em suprimir a propriedade do pensamento e crê regenerar o mundo pela consciência dos filósofos e o milagre da especulação pura.
A Sagrada Família permite a Marx liquidar seu período jovem-hegeliano e opor a essa paródia do idealismo especulativo, que é a doutrina dos irmãos Bauer e ao próprio idealismo especulativo, a concepção do materialismo histórico que ele começa a elaborar e ao qual dá suas primeiras fórmulas precisas nas Teses sobre Feuerbach, que redigiu em março de 1845, em Bruxelas.
A arma da crítica não pode evidentemente substituir a critica das armas, a força material deve ser derribada pela força material, mas a teoria, também ela, torna-se força material desde que penetra as massas. A teoria é capaz de penetrar as massas desde que faz demonstrações ad hominem e faz demonstrações ad hominem desde que se torna radical. Ser radical, é tomar as coisas pela raiz. E a raiz, para o homem, é o próprio homem.
(MARX, Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Obras, t. I, página 614, Ed. Al. - Obras Filosóficas, t.I, págs. 90-97. Edit. Costes, 1927.)
Essas massas de operários comunistas, que trabalham nas oficinas de Manchester e de Lyon, por exemplo, não creem que possam jamais desembaraçar-se de seus patrões e de sua própria degradação de fato por meio do “pensamento puro”. Eles sentem muito dolorosamente a diferença entre o ser e o pensamento, entre a consciência e a vida. Sabem que a propriedade, o capital, o dinheiro, o trabalho assalariado, etc., não são absolutamente quimeras, mas produtos inteiramente reais, inteiramente palpáveis, de sua alienação, que devem ser suprimidos de uma maneira real, palpável, para que o homem se torne não um homem apenas no pensamento, na consciência, mas ainda como existente na massa, como ser vivo.
(MARX. A Sagrada Família. Obras, t. III, págs. 223-224, Ed. Al; Obras Filosóficas, t. II, pág. 92, Edit. Costes, 1927.).
As ideias não podem nunca ir além de um antigo estado de coisas, elas só podem ir além das ideias do antigo estado de coisas. As ideias além disso nada podem realizar. Para a realização das ideias são necessários homens que ponham em ação um poder prático.
(MARX, A Sagrada Família. Obras, t. III. pág. 294. Ed. Al, Obras Filosóficas, t. II, pág. 213, Ed. Costes)
Na introdução de seu Ludwig Feuerbach (1884), Engels lembra como foi concebida, em 1845, a Ideologia Alemã e a razão pela qual ela não foi publicada. "Em seu prefácio à Contribuição à Critica da Economia Política (Berlim, 1859), Marx conta como resolvemos, os dois, em Bruxelas, em 1845, expor, num trabalho comum, o antagonismo existente entre nossa maneira de ver (tratava-se da concepção materialista da história elaborada por Marx) e a concepção ideológica da história da filosofia alemã: na verdade, para acabar com a nossa antiga consciência filosófica. Essa tarefa foi realizada sob a forma de uma crítica da filosofia post-hegeliana. O manuscrito, dois grandes volumes "in-octavo", estava desde muito tempo com o editor em Westfalia, quando soubemos que as circunstâncias não permitiam sua publicação. Abandonamos tanto mais voluntariamente o manuscrito à critica roedora dos ratos, quanto havíamos atingido nosso objetivo principal que era ver claro em nós mesmos.”
Esta obra, que devia formar dois grossos volumes, só foi publicada 86 anos depois de ter sido escrita. O Instituto Marx-Engels-Lenine, realizou em 1932 a publicação integral sob o título: A Ideologia Alemã, tirado de um artigo de Marx contra Karl Grun. A Ideologia Alemã é a primeira explanação da concepção materialista da história. Marx e Engels já aparecem aí como os representantes do socialismo científico.
O fato é, portanto, este: indivíduos determinados, que são empregados numa produção ativa de determinada maneira, contraem relações sociais e políticas determinadas. A observação empírica deve revelar, em cada caso, empiricamente e sem nenhuma mistificação nem especulação, o vínculo entre a organização social e política e a produção. A organização social e o Estado decorrem constantemente da atividade vital de determinados, mas desses indivíduos, não tais como possam aparecer aos seus próprios olhos ou aos olhos de outros, mas tal como são na realidade, quer dizer, como homens ativos, como produtores materiais, portanto agindo em limites, circunstâncias e condições determinadas e independentes de sua vontade.
A produção das ideias, das representações, da consciência está inicialmente implicada na atividade material e no comércio material dos homens, linguagem da vida real. A representação, o pensamento, o comércio espiritual dos homens aparecem ainda aqui como emanação direta de sua conduta material. Assim também a produção espiritual, tal como se exprime na linguagem da politica, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc., de um povo. Os homens produzem suas representações, suas ideias, etc., mas são os homens reais, agindo, condicionados por um desenvolvimento determinado de suas forças produtivas e do comércio que lhe correspondem até às suas formas mais remotas. A consciência não pode ser nunca outra coisa senão o ser consciente, e o ser do homem é sua atividade vital, real. Se em toda a ideologia os homens e suas relações parecem ao inverso como numa câmara escura, esse fenômeno decorre de sua atividade histórica, assim como a inversão dos objetos na retina decorre de sua natureza física.
Em oposição completa com a filosofia alemã, que desce do céu para a terra, aqui sobe-se da terra ao céu. Quer dizer que não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam, se representam, nem dos homens ditos, pensados, imaginados, representados, para chegar aos homens vivos; partimos dos homens reais, agindo, e baseando-nos em sua atividade vital, real, expomos o desenvolvimento dos reflexos e ecos ideológicos dessa atividade vital. As nuvens do cérebro dos homens são elas próprias sublimações necessárias de sua atividade vital material, fácil de constatar empiricamente e ligada às condições materiais preexistentes. A moral, a religião, a metafísica e as outras ideologias, assim como as formas de consciência que lhe correspondem, não conservam, portanto, por muito tempo, a aparência de autonomia. Elas não têm história, não têm desenvolvimento, são os homens que, desenvolvendo sua produção material e seu comércio material, transformam, ao mesmo tempo que sua própria realidade, seu pensamento e os produtos de seu pensamento. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência. No primeiro caso, parte-se da consciência como do indivíduo vivo; no segundo, que corresponde à vida real, parte-se de indivíduos reais, considerando-se a consciência como sua consciência apenas.
(MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã. Obras, t. V, págs. 15-16. Ed. Al.)
O homem possui, também, uma «consciência». Mas não uma consciência que, à partida, seja uma consciência «pura». Uma maldição pesa, desde o início, sobre o «espírito», «enodoado» por uma matéria que se apresenta neste caso sob a forma de camadas de ar agitadas, de sons, numa palavra, «enodoado» pela linguagem. A linguagem é tão velha como a consciência — a linguagem é a consciência real, prática, que, existindo para os outros homens, existe para mim próprio pela primeira vez e, tal como a consciência, a linguagem só aparece com a necessidade imprescindível do trato com os outros homens. Onde existe uma relação ela existe para mim. O animal «não está em relação» com nada, não conhece, em suma, qualquer relação. Para o animal, as relações com os outros não existem como relações. A consciência é, pois, à partida, um produto social e continuará a sê-lo enquanto, em geral, existirem homens. A consciência, bem entendido não é, ames de tudo, outra coisa senão a consciência do meio sensível mais próximo e a do elo limitado com outras pessoas e outras coisas situadas fora do indivíduo que toma consciência. É, ao mesmo tempo, a consciência da natureza que, primeiramente, se levanta era face dos homens como uma potência radicalmente estranha, toda poderosa e inatacável, perante a qual os homens se comportam de forma puramente animal e que a eles se impõe tanto como ao gado; por conseguinte, uma consciência da natureza puramente animal (religião da natureza). Vê-se logo que essa religião da natureza, ou as suas relações determinadas com a natureza, são condicionadas pela forma da sociedade e vice-versa. Aqui, como, de resto, em todo o lado, verifica-se, também sob essa forma, que o comportamento limitado dos homens perante a natureza condiciona o comportamento limitado entre eles e que o comportamento limitado entre eles, homens, condiciona, por sua vez, as suas relações limitadas com a natureza, precisamente, porque a natureza está ainda pouco modificada pela história e porque, por outro lado, a consciência da necessidade de se relacionar com os indivíduos que o rodeiam marca para o homem o início da consciência, devido ao facto de viver, antes de tudo, em sociedade.
Esse início é tão animal como o é a própria vida social desse estádio. É uma simples consciência gregária e o homem distingue-se aqui do carneiro pelo único motivo de a consciência ocupar nele o lugar de instinto, ou seja, pelo facto de possuir um instinto consciente. Essa consciência de rebanho, ou tribal, alcança o desenvolvimento e o aperfeiçoamento ulteriores pelo crescimento da produtividade, pelo aumento das necessidades e pelo acréscimo da população, sendo este último o factor base dos dois precedentes. Assim é desenvolvida a divisão do trabalho que, primitivamente, não era outra coisa senão a divisão do trabalho no acto sexual, transformando-se depois na divisão do trabalho que se faz por si própria ou «naturalmente», em virtude das disposições naturais (vigor corporal, por exemplo), necessidades, acasos, etc. A divisão do trabalho só se torna, efectivamente, divisão do trabalho a partir do momento em que se opera uma divisão entre trabalho material e intelectual. Desde essa altura, a consciência pode verdadeiramente imaginar-se a si própria como coisa alheia à consciência da pratica existente, como representando realmente alguma coisa sem representar alguma coisa real. Desse momento em diante, a consciência está em estado de se emancipar do mundo e de passar à formação da teoria «pura», teologia, filosofia, moral, etc. Mas, mesmo quando essa teoria, essa teologia, essa filosofia, essa moral, etc., entram em contradição com as relações existentes isso apenas se deve ao facto de as relações sociais existentes terem entrado em contradição com a força produtiva existente. De resto, num círculo de relações nacional e determinado, isso também pode suceder porque, neste caso, a contradição produz-se, não no interior dessa esfera nacional, mas entre essa consciência nacional e a prática das outras, nações, isto é, entre a consciência nacional e a consciência universal.
(
Marx e Engels: «A Ideologia Alemã», Oeuvres, t. V, pp. 19-21, Mega. «A Ideologia Alemã», (1ª parte: «Feuerbach), pp. 21- 23, Editions Sociales, 1953.)
As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, quer dizer que a classe que é a potência material dominante na sociedade, é igualmente a potência espiritual dominante. A classe que detém os meios de produção material dispõe igualmente, e por causa deles, dos meios de produção espiritual e detém, por isso, de maneira geral, sob seu jugo, as ideias daqueles que são privados dos meios de produção espiritual. As ideias dominantes não são mais que a expressão ideal das relações materiais dominantes: são relações materiais dominantes traduzidas em ideias, e, por conseguinte, as próprias relações que fazem de uma classe a classe dominante; elas são, portanto, as ideias de sua dominação. Os indivíduos que compõem a classe dominante têm, entre outras coisas, uma consciência, logo, eles pensam; na medida em que eles dominam como classe e determinam em toda a sua extensão uma época histórica, está claro que eles o fazem inteiramente, que dominam portanto, entre outras coisas, como seres pensantes, como produtores de ideias, que regulam a produção e a distribuição das ideias de seu tempo; que suas ideias são as ideias dominantes da época. Numa época e num país, por exemplo, em que o poder real, a aristocracia e a burguesia disputam entre si a dominação, onde a dominação é, por conseguinte, dividida, a ideia dominante é a doutrina da separação dos poderes apresentada como “uma lei eterna”. A divisão do trabalho, que já nos apareceu como uma das forças principais da história, manifesta-se igualmente na classe dominante como divisão do trabalho espiritual e do trabalho material, de sorte que, no seio dessa classe, uns constituem os pensadores dessa classe (seus ideólogos ativos, criadores que tiram seu principal meio de existência da fabricação das ilusões desta classe sobre ela própria), enquanto outros se comportam de maneira mais passiva e mais receptiva para com essa ideia e essas ilusões, porque eles são, na realidade, membros ativos dessa classe e têm menos tempo para consagrar à elaboração de ilusões e de ideias sobre si mesmos. No seio dessa classe, esta divisão pode mesmo atingir uma certa oposição, uma certa hostilidade dos dois grupos que, contudo, desaparecem por si mesmas em todos os choques práticos onde a própria classe fique em perigo e quando desaparece inteiramente a hipótese de que as ideias dominantes sejam outra coisa que não as ideias da classe dominante e que elas têm um poder diverso do poder dessa classe. A existência das ideias revolucionárias, numa determinada época, pressupõe sempre a existência do uma classe revolucionaria; já foi dito atrás o essencial sobre as condições preexistentes.
Se em nossa concepção do “processus” histórico, separamos as ideias da classe dominante da própria classe dominante, se lhes atribuímos uma existência independente, se nos limitamos a constatar que em tal época dominavam tais ou quais ideias, sem nos preocupar com as condições de produção e dos produtores dessas ideias, se, consequentemente, deixamos de lado os indivíduos e a situação histórica que estão na base dessas ideias, poderemos dizer, por exemplo, que dominavam as noções de honra, de fidelidade etc.; na época em que dominava a aristocracia, e as noções de liberdade, igualdade etc... durante a dominação da burguesia. A própria classe dominante, de modo geral assim pensa. Essa concepção da história, que principalmente, desde o século XVIII, é comum a todos os historiadores, se choca inevitavelmente de encontro ao fato de que as ideias dominantes se tornam cada vez mais abstratas, quer dizer que elas revestem cada vez mais a forma de universalidade. Notadamente, toda nova classe, que suplanta a classe que a precedeu no poder, é forçada, quando nada, para a realização de seus fins, em apresentar seu interesse como o interesse geral de todos os membros da sociedade, quer dizer, falando no plano ideal, dar às suas ideias a forma de universalidade, apresentá-las como as únicas racionais, universalmente válidas. A classe revolucionária, pelo próprio fato de se opor a uma classe, não se apresenta como classe, mas como representante da sociedade toda inteira, aparece como a massa total da sociedade em face da única classe dominante. Ela o pode fazer, porque, no início, seu interesse coincide ainda, realmente, com o interesse geral de todas as outras classes não dominantes e que, sob a pressão das antigas condições, não pode ainda se desenvolver como interesse particular de uma classe particular. Sua vitória beneficia portanto a numerosos indivíduos das outras classes que não sobem ao poder, mas somente na medida em que ela dá a esses indivíduos a possibilidade de elevar-se até a classe dominante. Quando a burguesia francesa derrubou a dominação da aristocracia, permitiu com esse fato que numerosos proletários se elevassem acima do proletariado, mas somente na medida em que se tornavam burgueses. Cada nova classe não faz portanto mais do que estabelecer seu domínio sobre uma base mais ampla que a antiga classe dominante; por isto é que, mais tarde, o antagonismo das classes não dominantes contra a nova classe dominante se desenvolve de maneira tão aguda e tão profunda. Dessas duas circunstancias resulta que a luta a travar contra essa nova classe dominante chega de novo a uma negação das condições sociais anteriores, mais decisiva, mais radical, do que por ocasião de todas as lutas de classes precedentes, pela dominação.
Toda essa aparência, que faz com que a dominação de uma determinada classe pareça ser apenas a dominação de certas ideias, cessará, bem entendido, por si mesma, logo que a dominação das classes deixar de ser a forma da ordem social, logo que não seja mais necessário apresentar um interesse particular como um interesse geral ou o interesse “geral” como o dominante.
Uma vez que as ideias dominantes são separadas dos indivíduos dominantes e, antes de tudo, das condições que decorrem de um dado estádio do modo de produção; uma vez que se chegou à conclusão de que, na história, são sempre as ideias que dominam, é muito fácil abstrair dessas diversas ideias, a “Ideia” a Noção etc., de fazer dessa ideia que domina a história e de apresentar assim todas essas ideias, todos esses conceitos isolados como as “autodeterminações” do Conceito que se desenvolve na história. É então, também, natural que todas as relações humanas sejam deduzidas do conceito do homem, do homem representado, da essência do homem, do Homem. Foi o que fez a filosofia especulativa.
(MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã. Obras, t. V, págs. 35-38. Ed. Al).
O segundo congresso da Liga dos Comunistas, realizado em Londres, em fins de novembro de 1847, encarregara Marx de redigir um manifesto do qual Engels havia elaborado um primeiro esboço que apareceu mais tarde sob o título: Princípios do Comunismo.
Marx terminou a redação do Manifesto do Partido Comunista no começo de fevereiro de 1848. O Manifesto apareceu na segunda quinzena daquele mesmo mês, alguns dias antes da revolução de fevereiro em Paris.
Será necessária uma grande penetração para compreender que, se há uma modificação na situação dos homens, em suas relações sociais, em sua existência social, haverá também uma modificação em suas ideias, em suas concepções, em suas noções, numa palavra, em sua consciência?
Que demonstra a história das ideias senão que a produção intelectual se transforma com a produção material? As ideias dominantes de uma época nunca foram mais que as ideias da classe dominante.
Quando se fala de ideias que revolucionam uma sociedade inteira, enuncia-se apenas o fato de que, no seio da velha sociedade, os elementos de uma nova sociedade se formaram e a dissolução das antigas ideias marcha conjuntamente com a dissolução das antigas condições de existência.
Quando o mundo antigo estava em seu declínio, as velhas religiões foram vencidas pela religião cristã. Quando, no século XVIII, as ideias cristãs cederam lugar às ideias de progresso, a sociedade feudal travava sua última batalha com a burguesia, então revolucionária. As ideias de liberdade de consciência, de liberdade religiosa, não fizeram mais do que proclamar o reino da livre concorrência no domínio da consciência.
Sem dúvida, dir-se-á, as ideias religiosas, morais, filosóficas, políticas, jurídicas, etc., modificaram-se no curso do desenvolvimento histórico. Mas a religião, a moral, a filosofia, a política, o direito se mantiveram sempre, através dessas transformações.
Há mais ainda as verdades eternas, tais como a liberdade, a justiça etc. que são comuns a todas as condições sociais. Ora, o comunismo liquida com as verdades eternas, revoga a religião e a moral em lugar de renovar-lhes a forma, põe-se assim em contradição com todo o desenvolvimento histórico anterior.
A que se reduz, essa acusação? A história de toda a sociedade passada desenvolveu-se em antagonismos de classes, que revestiram formas diferentes segundo as diferentes épocas.
Mas, qualquer que tenha sido a forma apresentada por esses antagonismos, a exploração de uma parte da sociedade pela outra, é fato comum a todos os séculos passados. Portanto, nada há de espantoso se a consciência social de todos os séculos, apesar de todas as divergências e de toda diversidade, se enfeixa em certas formas comuns - formas de consciência que não se dissolverão completamente senão com o completo desaparecimento do antagonismo das classes.
(MARX e ENGELS, Manifesto do Partido Comunista. Obras, t. VI, págs. 543-544, Ed. Al.; Bureau da Edições, págs. 28-29, 1935).
No prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política (1859), Marx expõe sua concepção materialista da história. Este texto constitui a exposição mais concisa e mais completa do materialismo histórico.
Na produção social de sua vida, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a um grau de desenvolvimento determinado de suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política à qual correspondem formas de consciência social determinadas. O modo de produção da vida material condiciona o “processus” da vida social politica e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina seu ser, mas, pelo contrário, é seu ser social que determina sua consciência. A um certo grau de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou — o que é apenas a sua expressão jurídica - com as relações de propriedade no seio das quais estavam até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas que eram, essas relações tornam-se entraves a essas forças. Abre-se então uma época de revolução social. Com a mudança da base econômica, toda a enorme superestrutura é mais ou menos lenta ou rapidamente subvertida. Quando se considera tais subversões, é preciso sempre distinguir entre a subversão material das condições econômicas da produção - que se pode constatar fielmente com o auxílio das ciências naturais - e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas através das quais os homens tomam consciência desse conflito e o levam até o final. Assim como não se julga um indivíduo pela ideia que ele faz de si mesmo, assim não se pode julgar uma tal época, de subversão pela consciência que ela tem de si própria, mas, deve-se antes explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma formação social não desaparece nunca antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que ela pode conter, e relações de produção novas e superiores não se lhes substituem nunca antes que as condições materiais de existência dessas relações se tenham incubado no seio da velha sociedade. É por isso que a humanidade só se propõe os problemas que ela pode resolver, pois, encarando-se mais de perto a questão, verificar-se-á sempre que o próprio problema só surge onde as condições materiais para resolvê-lo já existem ou pelo menos estão em caminho de existir. Esboçados em grandes traços, os modos de produção asiático antigo, feudal e burguês moderno, podem ser designados como épocas progressivas da formação social econômica. As relações burguesas de produção constituem a última forma antagônica do “processus” social de produção, antagônica não só no sentido de um antagonismo individual, mas de um antagonismo que nasce das condições sociais de existência dos indivíduos; mas as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais para resolver esse antagonismo. Com esta formação social conclui-se portanto a pré-história da sociedade humana.
(MARX, Prefácio à Contribuição da Crítica da Economia Política, págs. 5-6, Ring Verlag, Zürich, 1934, Ed. Al. MARX e ENGELS, Estudos Filosóficos, págs. 83- 85, E.S.I., 1935.)
Marx aplica em sua obra fundamental O Capital (1867), sua concepção materialista da história, na análise da estrutura econômica da sociedade capitalista.
“Agora, depois do aparecimento do O Capital, a concepção materialista da história não é mais uma hipótese, mas uma tese cientificamente provada.”
(LENINE. Do Materialismo Histórico, página 20, Bureau de Edições, 1935.)
Aproveito esta ocasião para responder rapidamente a uma objeção que me foi feita quando da publicação de minha obra: Contribuição à Crítica da Economia Política, 1859, por um jornal germano-americano. Dizia ele que minha opinião de que é que o modo de produção determinado e as relações de produção que lhe correspondem em cada caso, em resumo que “é a estrutura econômica da sociedade a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e politica à qual correspondem formas determinadas da consciência social”, que “é o modo de produção da vida material que condiciona a vida social, politica e intelectual em geral”, dizia o jornal que tudo isto era, sem dúvida, exato para o mundo atual onde predominam os interesses materiais, mas não para a Idade Média, quando reinava o catolicismo, nem para Atenas e Roma, onde reinava a politica. Em primeiro lugar, é estranho que alguém suponha que se possa ignorar essas expressões arquiconhecidas relativas à Idade Média e ao mundo antigo. O que é claro, é que a Idade Média não podia viver do catolicismo, nem o mundo antigo da politica. A maneira pela qual nessas épocas os homens ganhavam sua vida explica, ao contrário, a razão por que ali a politica e aqui o catolicismo desempenhavam o papel principal. Basta aliás conhecer, por pouco que seja, por exemplo, a história da República romana para saber que o segredo dessa história está todo inteiro na história da propriedade rural. Por outro lado, Don Quixote já expiou o erro de acreditar que a cavalaria andante se poderia acomodar a todas as formas econômicas da sociedade.
(MARX, O Capital, liv. I, págs. 45-46, Dietz, Stuttgart, 1914, ed. alemã; Edit. Costes, 1924, t. I, págs. 70-71.)
Na sua obra «Anti-Dühring (E. Dühring abala a ciência)», surgida em 1878, Engels opõe as concepções marxistas à fraseologia pseudo-revolucionária do socialista pequeno-burguês Dühring que negava a dialéctica e afirmava que «as verdades autênticas são absolutamente imutáveis».
«Ludwig Feuerbach» e o «Anti-Dühring», bem como o «Manifesto do Partido Comunista», são os livros de cabeceira de todos os operários conscientes.» (Lenine: «As Três Fontes e as Três Partes Constituintes do Marxismo». Karl Marx e a Sua Doutrina, p. 60, Editions sociales, 1953).
Mas as coisas correm ainda pior para as verdades eternas no terceiro grupo das ciências, as ciências históricas, que estudam, na sua sucessão histórica e no seu resultado presente, as condições de vida dos homens, as relações sociais, as formas do Direito e do Estado com a sua superestrutura ideal feita de filosofia, de religião, de arte, etc. Na natureza orgânica, ainda assim, estamos perante uma sucessão de processos que, na medida em que podemos observá-los directamente, se repetem com bastante regularidade dentro de limites muito extensos. Desde Aristóteles, as espécies orgânicas mantiveram-se mais ou menos as mesmas. Pelo contrário, na história dá sociedade, a repetição das situações é excepção e não regra, desde que ultrapassamos a idade primitiva da humanidade, a que é costume chamar-se idade da pedra; e, quando surgem essas repetições, nunca se produzem exactamente nas mesmas condições. É o que se passa ao encontrarmos a primitiva propriedade colectiva do solo em todos os povos civilizados e a forma do seu desaparecimento. E por isso que, no domínio da história da humanidade, a ciência está ainda muito mais atrasada que no campo da biologia. E isso deve-se, ainda em maior escala, ao facto de quando, excepcionalmente, se consegue conhecer o encadeamento interno das formas de existência sociais e políticas de um dado período, isso ocorrer, regularmente, na altura em que essas formas já percorreram metade do seu caminho, quando se dirigem para o declínio. Neste caso, o conhecimento é, portanto, essencialmente relativo, porque se limita a penetrar o encadeamento e as conseqüências de certas formas de sociedade e de Estado existentes apenas num dado tempo, para determinados povos e, por natureza, transitórias. Assim, quem parte, neste domínio, à caça de verdades definitivas, em última análise, de verdades autênticas, absolutamente imutáveis, poucos resultados obterá além de banalidades e de lugares-comuns da pior espécie, por exemplo, que os homens não podem viver sem trabalhar, que até agora estiveram quase sempre divididos em dominadores e dominados, que Napoleão morreu em 5 de Maio de 1821, etc.
(Engels: «Anti-Dühring», pp. 121-122, Editions sociales, 1950.)
De povo a povo, de idade a idade, as ideias do bem e do mal têm variado de tal maneira que muitas vezes se contradisseram. Mas, objetarão, o bem não é entretanto o mal e o mal não é o bem; se se confunde o bem e o mal, toda moralidade desaparece e cada um pode fazer ou não fazer o que quiser. Eis aí, desembaraçada de todo o aparato de oráculo, a opinião do senhor Dühring. Mas a coisa não é assim tão simples. Se assim fosse, não se discutiria jamais sobre o bem e o mal, cada um saberia o que é o bem e o que é o mal. Ora, onde estamos boje? Que moral hoje nos pregam? Eis aqui de início a moral cristã feudal, herdada de séculos de antigas fés, a qual se divide essencialmente em moral católica e moral protestante, com toda uma série de variantes e subdivisões que vão desde a moral católica dos jesuítas e a moral ortodoxa dos protestantes, até à moral latitudinária. Ao lado dela, figura a moral burguesa moderna e ao lado desta a moral proletária do futuro, de maneira que o passado, o presente e o futuro fornecem, nos países os mais avançados da Europa, três grandes grupos de teorias morais simultânea e concorrentemente em vigor. Qual é portanto a verdadeira? Nenhuma, no sentido da verdade absolutamente definitiva; mas, seguramente, a moral que contém a maior quantidade de elementos duráveis é aquela que, no presente, representa a subversão do presente, o futuro, portanto, a moral proletária.
Mas, quando vemos que as três classes da sociedade moderna, a aristocracia feudal, a burguesia e o proletariado, têm, cada uma, sua própria moral, só podemos tirar uma conclusão: é a de que, consciente ou inconscientemente, os homens baseiam, em última instância, suas ideias morais nas condições materiais sobre as quais repousa a situação de sua classe — nas condições econômicas de sua produção e de suas trocas.
Há, entretanto, muitos elementos comuns a essas três teorias morais — não estaria aí pelo menos um fragmento da moral fixada para a eternidade? — Essas teorias morais representam três graus diferentes de uma mesma evolução histórica; têm portanto um fundo histórico comum, e, por isso, necessariamente, muitos traços comuns. Ainda mais: em graus idênticos ou aproximadamente idênticos da evolução econômica devem corresponder teorias morais que necessariamente mais ou menos se harmonizam. A partir do momento em que se desenvolveu a propriedade privada dos objetos mobiliários, uma lei moral devia ser comum a todas as sociedades que admitiam esta propriedade privada: Não roubarás. Mas esta lei tornou-se por isso uma lei moral eterna? De nenhuma maneira. Numa sociedade onde não houvesse mais motivos para roubar, onde só os loucos roubassem, como provocaria risos o pregador de moral que pretendesse proclamar solenemente esta verdade eterna: não roubarás.
Consequentemente, repelimos toda tentativa para impor um sistema qualquer de moral dogmática como lei moral eterna, definitiva, imutável, sob o pretexto de que o mundo moral também tem seus princípios permanentes superiores à história e às diversidades étnicas. Afirmamos, pelo contrário, que toda teoria moral foi até agora o produto, em última análise, do estado econômico da sociedade na época correspondente. E, como a sociedade sempre se baseou em antagonismos de classe, a moral sempre foi uma moral de classe; ou bem ela justificou a dominação e os interesses da classe dominante ou bem representou, desde que a classe oprimida se tornava assaz poderosa, à revolta contra essa dominação e os interesses futuros dos oprimidos. Assim, em conjunto, realizou-se um progresso para a moral como para todos os outros ramos do conhecimento humano; isso não há dúvida. Mas ainda não ultrapassamos a moral de classe. Uma moral verdadeiramente humana, superior aos antagonismos de classe e às suas sobrevivências, não será possível senão numa sociedade que tenha, não somente ultrapassado, mas ainda esquecido, na prática da vida, a oposição das classes. E agora pode-se medir a presunção do sr. Dühring que, no seio da velha sociedade dividida em classes, pretende, nas vésperas de uma revolução social, impor à sociedade sem classes do futuro uma moral eterna, independente do tempo e das mudanças materiais! Supondo-se mesmo — o que ignoramos até agora - que ele compreenda a estrutura dessa sociedade futura, pelo menos em suas linhas essenciais.
(ENGELS, Anti-Dühring, págs. 80-82, Ring Verlag, Zürich, 1934, ed. Al.; Edit. Costes, 1931, t. I, págs. 134-137).
Carlos Marx, falecido antes da redação definitiva do O Capital, deixou a Engels a tarefa de terminá-lo. Este último redigiu os livros II (1885) e III (1894) e por sua vez confiou a Karl Kautsky (11), a redação do livro IV consagrado à história das doutrinas econômicas.
Depois de dez anos de trabalho, Kautsky renunciou a continuar a obra gigantesca de Marx e Engels. Contentou-se em classificar as notas de Marx e de subdividi-las sem ter em conta o plano inicial do O Capital.
“É, sob sua forma atual — diz ele em seu prefácio (1904) — uma obra paralela aos três primeiros livros, como o primeiro capítulo da Crítica da Economia Politica é a primeira parte ao livro I do O Capital."
Essa obra, intitulada em alemão: Teorias sobre a Mais-Valia, foi traduzido em francês sob o título: História das Doutrinas Econômicas.
Na passagem abaixo, Marx critica a teoria da civilização e as concepções gerais de Henri Storch (1768-1835) economista russo-alemão, autor de um Curso de Economia Politica, onde estão reunidas as lições que ele deu ao grão-duque Nicolau.
Quando se quer examinar a ligação entre a produção espiritual e a produção material é, antes de mais nada, necessário encarar a esta não como uma categoria geral, mas sob uma forma histórica determinada. É assim, por exemplo, que ao modo de produção capitalista corresponde uma outra espécie de produção espiritual diversa do modo de produção da Idade Média. Se não encararmos a própria produção material, sob a forma histórica específica, é impossível apreender as características da produção espiritual que lhe corresponde e as reações de uma sobre a outra. Se não, ficaremos em frases ocas.
Isto a propósito da frase sobre a “civilização”.
Em outras palavras: de uma forma determinada da produção material decorrem primeiramente uma organização determinada da sociedade, depois uma determinada relação do homem e da natureza. O sistema político e. as concepções ideológicas são determinadas por esses dois fatores e, portanto, também, o caráter da produção espiritual.
Quando Storch encara a produção material não do ponto de vista histórico, quando ele a encara como uma produção de bens materiais em geral e não como uma forma determinada, historicamente desenvolvida e específica dessa produção, abandona o único terreno que permite compreender tanto os elementos ideológicos das classes dominantes quanto a livre produção espiritual dessa determinada formação social. Ele não consegue elevar-se acima de reles lugares-comuns. As relações não são assim tão simples quanto podem parecer à primeira vista. Por exemplo, a produção capitalista é hostil a certos ramos da produção espiritual, como a arte e a poesia. Se não compreendermos isto, chegaremos à quimera dos franceses do século XVIII, que Lessing tão bem ridicularizou. Pois se na mecânica e em outros domínios ultrapassamos os antigos, porque não poderíamos também criar uma epopeia? E eis a Henriada que substitui a Ilíada!
(MARX, Teorias sobre a Mais-Valia, t. I, págs. 381-382, Berlim, 1923, ed. al.; Histórias das Doutrinas Econômicas, t. II, págs. 157-159, Edit. Costes, 1927).
Conrad Schmidt chamara a atenção de Engels para o livro do professor Paul Barth: A Filosofia de Hegel e seus Sucessores, onde o autor pretende que o marxismo não admite a influência das ideologias sobre a base econômica. De Londres, Engels respondeu-lhe com uma carta datada de 27 de outubro de 1890.
O mesmo se dá no direito: desde que a nova divisão do trabalho se torna necessária e cria juristas profissionais, abre-se, por sua vez, um novo domínio, autônomo, que, embora dependendo de maneira geral da produção e do comércio, nem por isso deixa de possuir uma capacidade particular de reação sobre esses domínios. Num Estado moderno, é preciso não somente que o direito corresponda à situação econômica geral e seja sua expressão, mas ainda que ele seja uma expressão sistemática que não se desminta a si mesmo por suas contradições internas e para consegui-lo, reflete cada vez menos fielmente as relações econômicas. E isso é tanto mais certo quanto mais rapidamente acontece que um código seja a expressão brutal e intransigente, autêntica da dominação de uma classe; porque isso mesmo já contradiria a “noção do direito”. A noção do direito puro, consequente da burguesia revolucionária de 1792-1796, está, já falsificada, em vários pontos, no Código de Napoleão, e, na medida em que nele está encarnada, deve sofrer quotidianamente toda espécie de atenuações diante do poderio crescente do proletariado. Isto não impede que o código napoleônico seja a coleção de leis que serve de base a todas as novas codificações em todas as partes do mundo. É assim que o curso do “desenvolvimento do direito” não consiste em grande parte senão em tentar inicialmente eliminar as contradições resultantes da tradução direta das relações econômicas em princípios jurídicos e estabelecer um sistema harmonioso do direito; e depois, parece que a influência e a pressão do desenvolvimento econômico ulterior quebram novamente esse sistema e o precipitam em novas contradições. (Só falo aqui do direito civil).
O reflexo das relações econômicas sob a forma de princípios jurídicos e estabelecer um sistema harmonioso do direito; e, deproduz sem que aqueles que agem tenham consciência disto - o jurista pensa que opera por proposição a priori, enquanto que é apenas pelos reflexos econômicos — e eis porque tudo fica de cabeça para baixo. O fato dessa desordem que, enquanto não a conhecemos, constitui o que chamamos um ponto de vista ideológico, reage por sua vez sobre a base econômica e pode modificá-la dentro de certos limites; isso me parece ser a própria evidência. A base do direito de sucessão, supondo-se um nível igual de desenvolvimento da família, é uma base econômica. Contudo, seria difícil demonstrar que na Inglaterra, por exemplo, há liberdade absoluta de testar, e na França sua grande limitação não tem, em todas as suas particularidades, outras causas que não as econômicas. Mas, por um lado muito importante, todas duas reagem sobre a economia porque influem ambas na repartição da fortuna.
No que concerne aos domínios ideológicos que pairam muito mais alto, no espaço, a religião, a filosofia, etc., possuem resíduos - disto que hoje chamaríamos estupidez — remontando à pré-história e que o período histórico encontrou diante de si e recolheu. Na base dessas diversas representações falsas da natureza, da constituição do próprio homem, dos espíritos, das potências mágicas, etc., há apenas, o mais das vezes, um elemento econômico negativo: o baixo nível econômico do período pré-histórico tem, como complemento, mas também às vezes como condição ou mesmo como causa, as concepções falsas da natureza. E, se bem que a necessidade econômica tenha sido a mola principal do progresso no conhecimento da natureza e que o tenha sido cada vez mais, nem por isso deixaria de ser um pedantismo querer procurar causas econômicas em toda essa estupidez primitiva. A história das ciências é a história de eliminação progressiva dessa estupidez, quer dizer, de sua substituição por uma nova estupidez, mas cada vez menos absurda. As pessoas que disto se encarregam, fazem parte, elas também, de esferas particulares da divisão do trabalho e julgam que trabalham num terreno independente. Na medida em que constituem um grupo independente no seio da divisão social do trabalho, suas produções, e inclusive seus erros, exercem uma influência de retomo sobre o desenvolvimento social, assim como o desenvolvimento econômico. Mas, com tudo isso, não deixam eles próprios de estar sob a influência dominante do desenvolvimento econômico. É na filosofia, por exemplo, que se pode mais facilmente prová-lo em relação ao período burguês. Hobbes foi o primeiro materialista moderno (no sentido do século XVIII) mas um absolutista na época em que a monarquia absoluta florescia em toda a Europa e travava, na Inglaterra, a luta com o povo. Locke foi, em religião como em política, o filho do compromisso de classe de 1688. Os deístas ingleses e seus continuadores mais consequentes, os materialistas franceses, foram os autênticos filósofos da burguesia, - os franceses foram mesmo os filósofos da revolução burguesa. Na filosofia alemã de Kant a Hegel, o filisteu alemão se manifesta sempre de maneira ora positiva, ora negativa. Mas, como domínio determinado da divisão do trabalho, a filosofia de cada época pressupõe uma documentação intelectual determinada, que lhe foi transmitida por seus predecessores e da qual ela se serve como ponto de partida. Eis porque acontece que países economicamente retardatários podem, entretanto, deter o primeiro lugar em filosofia: a França, no século XVIII, em comparação com a Inglaterra, em cuja filosofia os franceses se apoiavam; mais tarde, a Alemanha em relação a uma e outra. Mas, na França como na Inglaterra, a filosofia, assim como o desenvolvimento literário dessa época, foi, também, o resultado do surto econômico. A supremacia final do desenvolvimento econômico, igualmente nesses domínios, é coisa certa, mas se produz nas condições desejadas pelo próprio domínio interessado: em filosofia, por exemplo, por efeito de influências econômicas (que o mais das vezes só agem sob seu disfarce politico, etc.) sobre a matéria filosófica existente, transmitida pelos predecessores. A economia não cria, ai, nada diretamente por si mesma, mas determina a espécie de modificação e o desenvolvimento da matéria intelectual existente e ainda faz isso, em geral, indiretamente pelo fato de que são os reflexos políticos, jurídicos, morais que exercem a maior ação direta sobre a filosofia.
Sobre a religião, disse eu já o indispensável em meu último capítulo sobre Feuerbach.
Portanto, quando Barth pretende que nós negamos toda reação dos reflexos políticos, etc., do movimento econômico sobre esse próprio movimento, não faz mais que arremeter contra os moinhos de vento. Basta ler o 18 Brumário, de Marx, onde se estuda quase unicamente o papel particular desempenhado pelas lutas e os acontecimentos políticos, naturalmente no limite de sua dependência geral das condições econômicas, ou O Capital, por exemplo, na parte sobre a jornada de trabalho em que a legislação, que é bem um ato politico, age de modo tão incisivo, ou ainda a passagem sobre a história da burguesia (capítulo XXIV). Por que lutamos então pela ditadura politica do proletariado, se o poder político é economicamente impotente? A violência (isto é, o poder do Estado) é também uma potência econômica!
Mas não tenho tempo agora de fazer a critica desse livro. É preciso inicialmente que saia o livro II e creio, entretanto, que Bernstein bem poderia realizar essa tarefa.
O que falta a todos esses senhores é a dialética. Sempre eles vêm apenas aqui a causa, ali o efeito: Que é uma abstração vazia, que, no mundo real, semelhantes antagonismos polares metafísicos existem apenas nas crises, mas que todo o grande curso das coisas se produz sob a forma de ação e reação de forças — sem dúvida muito desiguais — das quais o movimento econômico é em grande parte a força mais poderosa, mais antiga, mais decisiva - que nada é absoluto e que tudo é relativo, isso, - que quer você? - eles não vêm; para eles Hegel não existiu.
(ENGELS, Carta a Conrad Schmidt, em 27 de outubro de 1890. Texto fornecido pelo Instituto Marx-Engels-Lenine; MARX e ENGELS, Estudos Filosóficos, págs. 155- 159, E.S.I.)
Joseph Bloch tinha, numa carta datada de 3 de setembro de 1890, perguntado a Engels o que Marx e ele entendiam por materialismo histórico, e se a produção e a reprodução da vida real constituíam, a seus olhos, o único fator determinante. Engels responde-lhe numa carta escrita de Londres a 21 de setembro de 1890.
Segundo a concepção materialista da história, o fator determinante na história é, em última instância, a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu nunca afirmamos nada fora disso. Se alguém quer deformar esta afirmação até o ponto de dizer que o fator econômico é o único determinante, transforma essa proposição numa frase oca, abstrata, absurda.
A situação econômica é a base, mas as diversas partes da superestrutura, - as formas políticas da luta de classe e seus resultados - as Constituições estabelecidas pela classe vitoriosa uma vez ganha a batalha etc. - as formas jurídicas e mesmo os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos participantes, teorias politicas, jurídicas, filosóficas, conceitos religiosos e seu desenvolvimento ulterior em sistemas dogmáticos - exercem igualmente sua ação sobre o curso das lutas históricas e determinam-lhe, em muitos casos, de maneira preponderante, a forma. Há ação e reação de todos esses fatores, no seio dos quais o movimento econômico termina necessariamente por abrir caminho através de grande quantidade de acasos (quer dizer, de coisas e de acontecimentos cuja ligação intima entre si é tão longínqua ou tão difícil de demonstrar que podemos considerá-la como inexistente e desprezá-la). Se assim não fosse, a aplicação da teoria, a não importa que período histórico, seria verdadeiramente mais fácil que a resolução de uma simples equação do primeiro grau.
Fazemos nossa história nós próprios, mas, antes de tudo, com dados e condições bem determinados. Entre todas as condições, são as econômicas as que finalmente determinam. Mas as condições politicas, etc., e até mesmo a tradição que pesa no cérebro dos homens, desempenham um papel, ainda que não decisivo. Foram causas históricas, e, em última instância, econômicas, que formaram o Estado prussiano e continuaram a desenvolvê-lo. Mas dificilmente se poderá pretender, sem pedantismo, que, entre os numerosos pequenos Estados da Alemanha do Norte, fosse justamente Brandebourgo o destinado pela necessidade econômica e não também por outros fatores (como, por exemplo, por suas complicações com a Polônia, como consequência da posse da Prússia, e daí suas complicações nas reações politicas internacionais — que são decisivas igualmente na formação da Casa da Áustria), a tornar-se a grande potência em que se encarnou a divergência na economia, na língua e também, depois da Reforma, na religião, entre o norte e o sul.
Dificilmente se chegaria, sem cair no ridículo, a explicar pelas razões econômicas, a existência de cada pequeno Estado alemão do passado e do presente, ou ainda a origem da mudança de consoantes do alto alemão que alargou a linha de partilha geográfica constituída pelas cadeias de montanhas dos Sudetos até o Taunus, a ponto de realizar uma verdadeira brecha através da Alemanha.
Em segundo lugar, a história se faz de tal maneira que o resultado final se destaca sempre dos conflitos de um grande número de vontades individuais cada uma das quais, por sua vez, resulta de uma quantidade de condições particulares de existência; há, portanto, inúmeras forças que se contradizer mutuamente, um grupo infinito de paralelogramos de forças donde sai uma resultante - o acontecimento histórico - que pode ser encarada, por sua vez, como o produto de uma forma agindo como um todo, de maneira inconsciente e cega. Por que. o que cada indivíduo quer é impedido por outro e o que daí resulta é alguma coisa que ninguém quis. É assim que a história se desenvolve até aqui, à maneira de um “processus” natural e submetida também, em seu conjunto, às mesmas leis do movimento. Mas do fato das diversas vontades - cada uma das quais quer aquilo a que a impelem sua constituição física e as circunstâncias exteriores, em ultima instância as econômicas (ou suas próprias circunstâncias pessoais ou as circunstâncias sociais gerais), não chegarem àquilo que querem, mas fundirem-se numa média geral, numa resultante comum - desse fato não temos o direito de concluir que elas sejam iguais a zero. Ao contrário, cada uma contribui para a resultante, c, por isso, está incluída nessa resultante.
Por outro lado, eu queria pedir-vos que estudásseis, porque é muito mais fácil esta teoria nas fontes originais e não em segunda mão. Marx raramente escreveu qualquer coisa em que ela não desempenhasse seu papel. Mas, particularmente o Brumário de Luís Bonaparte é um exemplo excelente de sua aplicação. Do mesmo modo no O Capital encontrareis indicações a esse respeito. Depois, permito-me aconselhar-vos, também, minhas obras: Anti-Dühring e L. Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, nas quais fiz a exposição do materialismo histórico mais detalhada entre as que conheço.
Se, algumas vezes, os jovens dão mais importância do que se deve ao fator econômico, Marx e eu somos em parte os responsáveis por isso. Diante de nossos adversários, tínhamos de acentuar o princípio essencial, negado por eles, e então nem sempre tivemos tempo, nem lugar, nem ocasião de fazer justiça aos outros fatores que participam da ação recíproca. Mas, desde que se tratava de representar um período histórico, quer dizer, de passar à aplicação prática, a coisa mudava de figura e não havia mais erro possível. Infelizmente, acontece quase sempre que julgamos ter compreendido de modo perfeito uma nova teoria e poder manejá-la sem dificuldade, desde que nos assenhoramos dos princípios essenciais, e isso também nem sempre é exato. Não posso excluir desta acusação vários de nossos recentes “marxistas” e neste particular têm surgido coisas verdadeiramente singulares.
(ENGELS, Carta a Joseph Bloch, 21 de setembro de 1890. Texto fornecido pelo Instituto Marx-Engels-Lenine, MARX e ENGELS, Estudos Filosóficos, páginas 150-153, E.S.F., 1935.)
Hans Starkenburg fizera a Engels duas perguntas: 1. Em que medida as relações econômicas podem agir como causas? Serão elas causas bastantes, fatores, condições permanentes etc., da evolução? 2. Qual o papel da raça e da individualidade histórica na concepção da história de Marx e Engels? Engels respondeu a Hans Starkenburg numa carta datada de Londres, em 25 de janeiro de 1894.
Eis a resposta às vossas perguntas.
1. Pelo nome de relações econômicas, que consideramos a base determinante da história da sociedade, entendemos a maneira pela qual os homens de uma determinada sociedade produzem seus meios de existência e trocam seus produtos entre si (na medida em que existe a divisão de trabalho). Assim, toda a técnica da produção e dos transportes está nelas incluída. Segundo nossa concepção, essa técnica determina igualmente o modo de troca, assim como de distribuição dos produtos, e por consequência, depois da dissolução da sociedade gentílica, igualmente a divisão em classes e, portanto, as relações de dominação e de escravatura e, por conseguinte, o Estado, a política, o direito, etc. Estão incluídos, além disso, entre as relações econômicas, a base geográfica sobre a qual elas se desenvolvam e os vestígios realmente transmitidos de estádios de desenvolvimento anteriores que se mantiveram, algumas vezes, somente pela tradição ou por vis inertiae(6)e, naturalmente, também o meio que envolve essa forma social.
Se, como dissestes, a técnica depende, na maior parte, do estado da ciência, esta depende ainda muito mais do estado e das necessidades da técnica. Quando a sociedade tem necessidades técnicas, a ciência é mais auxiliada por elas que por dez universidades. Toda a hidrostática (Torricelli etc.) surgiu da necessidade de regularizar as torrentes das montanhas da Itália nos séculos XVI e XVII. Só sabemos alguma coisa de racional sobre a eletricidade, depois que foi descoberta sua utilização técnica. Mas, infelizmente, na Alemanha, habituaram-se a escrever história das ciências, como se elas tivessem caído do céu.
2. Consideramos condições econômicas aquelas que condicionam, em última instância, o desenvolvimento histórico. Ora, a raça, é, ela própria um fator econômico. Mas há aqui dois pontos que não devemos esquecer.
Em sua carta a Mehring, de 14 de julho de 1893, carta reproduzida por Mehring em sua História da Social-democracia Alemã (t. I, pg. 385, edição de 1803), Engels pede aos marxistas que estudem como se formam as ideologias, como nascem, sobre uma base econômica determinada, as correntes filosóficas, artísticas, literárias etc. e como agem sobre o meio social
"Aliás, falta apenas um ponto(7), mas que não foi, nos escritos de Marx e nos meus, regularmente acentuado, de maneira suficiente e, neste particular, somos todos igualmente culpados. Todos, principalmente, atribuímos, e tivemos de atribuir o maior empenho em deduzir as concepções políticas, jurídicas e as outras concepções ideológicas, assim como os atos que delas decorrem dos fatos econômicos fundamentais. Assim fazendo, negligenciamos o lado formal pelo conteúdo: a maneira pela qual as concepções, etc., aparecem. Nossos adversários agarram-se a esse ponto para levantar mal entendidos. Disto, Paul Barth é um exemplo frisante.
A ideologia é um “processus” que o pseudo-pensador realiza, sem dúvida, conscientemente, mas com uma consciência falsa. As forças motrizes verdadeiras que o impulsionam são-lhe desconhecidas; de outro modo, não seria um “processus” ideológico. Também se apega a falsas ou aparentes forças motoras. Como se trata de um “processus” intelectual, deduz o conteúdo assim como a forma, do pensamento puro, seja de seu próprio pensamento, seja do pensamento de seus predecessores; trabalha com a única documentação intelectual que consegue, sem olhá-la de perto, como emanada do pensamento, e sem estudá-la melhor num “processus” mais remoto, independente do pensamento; e isto é para ele a própria evidência, porque todo ato, por ser transmitido pelo pensamento, parece-lhe também, em última instância, baseado no pensamento.
O ideólogo histórico (entendemos aqui por histórico apena um termo coletivo abrangendo as questões politicas, jurídicas, filosóficas, teológicas, em resumo, todos os domínios que pertencem à sociedade e não apenas à natureza) - o ideólogo histórico encontra, portanto, em cada domínio cientifico, material que se formou de maneira independente no pensamento das gerações anteriores e que passou nos cérebros dessas gerações sucessivas por seu próprio processo, independente de desenvolvimento. Sem dúvida, fatos exteriores, pertencentes a seu domínio próprio ou a outros, bem podem ter contribuído para determinar esse desenvolvimento, mas supõe-se tacitamente que esses próprios fatos não são, por sua vez, senão frutos de um “processo” intelectual e ficamos assim sempre na esfera pensamento puro que consegue digerir mesmo os fatos mais duros.
É essa aparência de história independente das Constituições de Estado, dos sistemas jurídicos, das concepções ideológicas em cada terreno particular que cega, antes do mais, a maioria das pessoas. Quando Lutero e Calvino “ultrapassam” a religião católica oficial, quando Hegel “ultrapassa” Fichte (18) e Kant, e que Rousseau “ultrapassa” indiretamente, com o seu Contrato Social, Montesquieu, o constitucional, é um acontecimento que fica dentro da teologia, da filosofia, da ciência política, que constitui uma etapa na história desses domínios do pensamento e não saem do terreno do pensamento. E depois que a isto se acrescenta a ilusão burguesa da perpetuidade e da finalidade da produção capitalista o fato de que os mercantilistas foram ultrapassados pelos fisiocratas e por A. Smith não é considerado mais senão como uma simples vitória da ideia, não como reflexo intelectual de fatos econômicos modificados, mas como a compreensão exata, enfim conquistada, de condições reais, tendo existido em todos os tempos e em todos os lugares; se Ricardo-Coração-de-Leão e Felipe Augusto tivessem instaurado o livre câmbio, em lugar de se empenharem nas Cruzadas, ter-nos-iam poupado 500 anos de miséria e de asneiras.
Este aspecto da questão que aqui posso apenas aflorar, nós todos o negligenciamos, penso eu, mais do que ela merecia. É a velha história; no começo, negligencia-se sempre a forma pelo fundo. Como já disse, eu também sou culpado, e a culpa sempre me apareceu post festum. É essa a razão pela qual, não somente estou muito longe de acusar quem quer que seja, sendo um antigo cúmplice não qualificado para fazê-lo - ao contrário - mas pelo menos queria chamar sua atenção para esse ponto, para o futuro.
A isto se liga igualmente essa estúpida ideia dos ideólogos: como negamos às diversas esferas ideológicas que desempenham um papel na história um desenvolvimento histórico independente, negamos-lhes também, toda eficácia histórica. É partir de uma concepção banal, não dialética, de causa e efeito, como polos opostos um a outro, de maneira rígida; é ignorar absolutamente sua ação recíproca. O fato de que um fator histórico, desde que é criado por outros fenômenos, em última instância, por fenômenos econômicos, reage também por sua vez e pode exercer uma ação sobre seu meio e mesmo sobre suas próprias causas, esses senhores o esquecem muitas vezes de todo, propositadamente. Como Barth, por exemplo, falando da casta dos padres e da religião (ver em seu livro, pág. 475).
(ENGELS, Carta a Mehring, 14 de julho de 1893. Texto fornecido pelo Instituto Marx-Engels-Lenine; MARX e ENGELS, Estudos Filosóficos, págs. 165- 167, E.S.I., 1935).
Notas de rodapé:
(1) Parte transcrita da edição da Editorial Estampa, Lisboa, 1971. (retornar ao texto)
(2) Carta de Epicuro a Menoikos. Citado em Grego no texto. (retornar ao texto)
(3) Verso extraído da tragédia de Ésquilo, «Prometeu Agrilhoado». De Prometeu, herói mitológico, Ésquilo fez o símbolo do lutador pela felicidade dos homens. Citado em grego no texto. — (N. R.) (retornar ao texto)
(4) Versos extraídos da tragédia de Ésquilo. Citado em grego no texto. — (N. R.) (retornar ao texto)
(5) Parte transcrita da edição da Editorial Estampa, Lisboa, 1971. (retornar ao texto)
(6) Pela força da inércia. (retornar ao texto)
(7) Engels alude ao estudo de Mehring sobre o materialismo histórico aparecido em apêndice à primeira edição da Lenda de Lessing. (retornar ao texto)
Inclusão | 03/07/2019 |