Em Defesa da Revolução Africana

Frantz Fanon


Quarta parte: A caminho da libertação da África
A Argélia perante os torcionários franceses(1)


capa

A Revolução Argelina, pela inspiração profundamente humana que a anima e pelo seu culto apaixonado da liberdade, procede, desde há três anos, à destruição metódica de um certo número de mistificações.

De fato, a Revolução Argelina restitui à existência nacional os seus direitos. De fato, é testemunho da vontade do povo. Mas o interesse e o valor da nossa Revolução residem na mensagem de que é portadora.

As práticas autenticamente monstruosas que apareceram depois de 1 de Novembro de 1954 impressionam sobretudo pela sua generalização... Na realidade, a atitude das tropas francesas na Argélia insere-se numa estrutura de dominação policial, de racismo sistemático, de desumanização prosseguida de uma maneira racional. A tortura é inerente ao todo colonialista.

A Revolução Argelina, propondo-se a libertação do território nacional, visa não só à morte deste conjunto, como à elaboração de uma sociedade nova. A independência da Argélia não é apenas fim do colonialismo, mas desaparecimento, nesta parte do Mundo, de um germe de gangrena e de uma fonte de epidemia.

A libertação do território nacional argelino é uma derrota para o racismo e para a exploração do homem; inaugura o reino incondicional da Justiça.

A verdadeira contradição

As guerras de libertação nacional são frequentemente apresentadas como expressão das contradições internas dos países colonialistas. A guerra franco-argelina, ainda que inserindo-se num contexto histórico caracterizado pela eclosão simultânea e sucessiva de movimentos de libertação nacional, apresenta particularidades próprias.

Colónia de povoamento, declarada território metropolitano, a Argélia viveu sob uma dominação policial e militar jamais igualada em país colonial. Em primeiro lugar, isto explica-se pelo fato de a Argélia não ter praticamente nunca deposto as armas a partir de 1830. Mas, sobretudo, a França não ignora a importância da Argélia no seu dispositivo colonial, e nada pode explicar a sua obstinação e os seus incalculáveis esforços, a não ser a certeza de que a independência da Argélia provocará a curto prazo o desmoronar do seu império.

A Argélia, situada às portas da França, permite ao mundo ocidental observar em pormenor e como que em câmara lenta as contradições da situação colonial.

O apelo ao contingente francês, a mobilização de várias classes, a convocação dos oficiais e sargentos, os convites ao sacrifício periodicamente lançados ao povo, os impostos e o congelamento dos salários empenharam toda a Nação francesa nesta guerra de reconquista colonial.

O entusiasmo generalizado, e por vezes verdadeiramente sanguinário, que marcou a participação dos operários e dos camponeses franceses na guerra contra o povo argelino abalou nos seus fundamentos a tese de um país real opondo-se ao país legal.

Segundo urna frase significativa de um dos Presidentes do Conselho franceses, a nação identificou-se com o seu exército que combate na Argélia.

A guerra da Argélia é conscienciosamente feita por todos os franceses, e as poucas críticas expressas até agora por alguns individualistas evocam unicamente certos métodos que “precipitam a perda da Argélia”. Mas a reconquista colonial na sua essência, a expedição armada, a tentativa de sufocar a liberdade de um povo, não são condenadas.

A tortura, necessidade fundamental do mundo colonial

De há algum tempo a esta parte, fala-se muito de torturas aplicadas pelos soldados franceses aos patriotas argelinos. Publicaram-se textos abundantes, precisos, pavorosos. Fizeram-se comparações históricas. Personalidades estrangeiras, e entre elas franceses, condenaram estas práticas.

Os franceses que se insurgem contra a tortura, ou que deploram a sua extensão, fazem pensar inevitavelmente naquelas belas almas de que falava certo filósofo, e o nome de “intelectuais cansados” que lhes é dado pelos seus compatriotas Lacoste e Lejeune é bastante pertinente. Não se pode querer ao mesmo tempo a continuação da dominação francesa na Argélia e condenar os meios de manter essa dominação,

A tortura na Argélia não é um acidente, nem um erro ou uma falta. O colonialismo não se compreende sem a possibilidade de torturar, de violar ou de massacrar.

A tortura é uma modalidade das relações ocupante—ocupado. Os polícias franceses, que foram, durante muito tempo, os únicos a praticar essas torturas, não o ignoram. A necessidade de legitimar as torturas foi sempre considerada por eles como um escândalo e um paradoxo.

A tortura, estilo de vida

Resta que o sistema tem acidentes, avarias. A sua análise é de uma extrema importância.

No decurso do 1.° trimestre de 1956, revelaram-se inúmeros casos de polícias no limite da loucura.

As perturbações que apresentavam no interior do meio familiar (ameaças de morte dirigidas a mulher, sevícias graves sobre os filhos, insónias, pesadelos, ameaças contínuas de suicídio(2) e as faltas profissionais de que se tornaram culpados (rixas com colegas, negligência no serviço, falta de firmeza, atitudes de desrespeito para com os chefes) implicaram muitas vezes cuidados médicos, transferência para outro serviço ou, mais frequentemente, mudança para França.

O múltiplo aparecimento de organismos revolucionários dinâmicos, as reações fulminantes dos nossos fidayines, a implantação da FLN em todo o território nacional, punham aos polícias franceses problemas insuperáveis. O alerta permanente a que a FLN os condenava parecia dever explicar a irritabilidade dos policias.

Ora, rapidamente, os polícias explicam-se.

Tais fatos põem evidentemente certos problemas:

Depois de terem negado a existência de torturas na Argélia, os Franceses utilizaram um duplo argumento.

Afirmaram, em primeiro lugar, tratar-se de casos excepcionais.

A maior demissão dos intelectuais franceses foi terem tolerado essa mentira. Vão-se tomar medidas, afirmou o Governo Francês, mas não podemos torná-las públicas. Como se a tortura de um homem ou o massacre organizado não fossem ambos abrangidos pelo direito criminal público. A paixão da verdade e da justiça não pode, sem se desmentir, aceitar semelhante fraude.

A fuga às responsabilidades

Mas os testemunhos tornavam-se cada vez mais numerosos, as torturas revelavam-se cada vez menos excepcionais, toda a responsabilidade foi atirada sobre elementos estrangeiros ao serviço do exército francês. Este segundo argumento é importante. Mostra simultaneamente o cinismo das autoridades francesas e a crescente impossibilidade de enganar, de dissimular, de mentir. Há um ano que os Franceses não se cansam de repetir que só antigos SS ao serviço da Legião são responsáveis pelas torturas. Ora, a maioria dos desertores do exército francês são legionários estrangeiros. É porque os métodos policiais franceses os revoltam, que esses alemães e esses italianos abandonam as fileiras inimigas e se juntam às unidades do FLN. Interrogamo-los às dezenas, antes do seu repatriamento. Estes antigos legionários são unânimes: a crueldade e o sadismo das forças francesas são pavorosos.

Em todo o caso importa não esquecer que o aparecimento de soldados torcionários remonta ao Inverno de 1955. Durante quase um ano, só os polícias torturam na Argélia.

Possuímos atualmente pormenores acerca dos métodos usados pelos Franceses. Foi publicada uma grande quantidade de testemunhos, e inventariada a importante gama de técnicas. Todavia, não foi fornecido nenhum elemento acerca da doutrina, da filosofia da tortura. Informações chegadas à FLN esclarecem singularmente esta racionalização.

Lofrédo e Podevin, teóricos da tortura

Os polícias franceses Lofrédo (comissário em Argel) e Podevin (chefe da polícia judiciária de Blida) precisaram, em intenção dos seus amigos e no decurso de exposições técnicas aos seus novos colaboradores, certas características dos seus métodos.

1) Vários testemunhos e relatórios convergentes de denunciantes designam um argelino como alguém que desempenha um papel importante na organização local da FLN. O patriota é preso e levado para as instalações da PJ. Não se lhe fazem perguntas, pois, nesta fase do inquérito, “não sabemos que rumo deve tomar o interrogatório e o suspeito não deve aperceber-se da nossa ignorância”. O melhor meio consiste em quebrar a sua resistência utilizando o chamado método “de preparação pelo exemplo”.

Alguns jipes saem da PJ e voltam com uma dezena de Argelinos apanhados ao acaso na rua ou, o que é mais frequente, num aduar dos arredores. Uns após outros, na presença do suspeito, que é o único que interessa à polícia, estes homens vão sendo torturados até à morte. Calcula-se que depois de 5 ou 6 assassinatos o verdadeiro interrogatório pode começar.

2) O segundo método consiste em torturar, em primeiro lugar, o interessado. São necessárias várias sessões para quebrar a sua energia. Nenhuma pergunta é posta ao suspeito. O inspector Podevin, que utilizou amplamente este método em Blida e depois em Argel, confessa que é difícil não dizer nada a partir do momento em que o torturado começa a pedir explicações. Por isso, é preciso quebrar rapidamente a sua resistência.

Na sexta ou sétima sessão apenas lhe dizem: fala.

Aqui o interrogatório não segue nenhuma orientação. Em princípio, o suspeito deve dizer tudo o que sabe.

Encontra-se o mesmo fenómeno nos dois casos: o interrogatório é diferido.

Nesta perspectiva, em que o pretexto dos fins tende cada vez mais a destacar-se dos meios, é normal que a tortura se torne a sua própria justificação. E o sistema colonialista, para ser lógico, deve aceitar reivindicar a tortura como um dos seus elementos importantes.

Os intelectuais franceses e a imprensa francesa

Martin-Chauffier, num prudente relatório em que não é difícil descobrir uma semiaprovaçào, não pode escapar a este dilema. O argumento da tortura excepcional é aqui retomado com particular vigor. Todavia, o autor reconhece que

“estes crimes, apesar de cometidos no escalão inferior, são de certo modo cobertos pela negligência dos poderes superiores em tomar um cuidado suficiente, e ameaçam pela quase impunidade que os encoraja erigirem-se num verdadeiro sistema”.

A contradição já nào pode ser negada, e na frase que se segue é um IGAME, a mais alta autoridade francesa na Argélia, que aprova, aconselha e legitima estes crimes. A pretensa ignorância dos poderes superiores é manifestamente uma mentira e uma duplicidade.

Martin-Chauffier ficaria muito espantado se soubesse que a sua atitude era considerada aqui incompreensível. Na realidade, a tortura não é um meio para obter informações. Na Argélia tortura-se por perversão sádica e eis a única passagem válida do relatório de Martin-Chauffier:

“Este sistema”, diz, “tem como efeito perverter aqueles que são os seus instrumentos.”

G. M. Mattei, que participou nas expedições francesas na Argélia, acaba de publicar algumas páginas no número de Julho-Agosto de Temps Modernes. Escreve:

“Lembro-me de que, de tempos a tempos, quando o cinema ambulante do batalhão vinha projetar um filme, e este não agradava, soldados e oficiais levantavam-se e iam tranquilamente passar o resto da noite com os prisioneiros... Os gritos eram em parte abafados pela música do filme.”

Mattei revolta-se contra estes atentados à dignidade e à honra francesas. E, naturalmente, termina o seu testemunho com o argumento doravante clássico dos democratas franceses:

“Que geração nos preparam nesse caldo de cultura que é atualmente a Argélia?... Porque ‘‘o mais grave” evidentemente, “é aquilo em que se transformaram, após doze meses de FLN, estes jovens recrutados com quem passei seis meses: em verdadeiros mercenários.”

Não se pode encontrar melhor exemplo daquilo a que no fim de contas se tem de chamar perversão do sentido moral. Quando os intelectuais franceses, com Mattei, repetem em coro “que atualmente na Argélia há uma vasta campanha de desumanização da juventude francesa” ou deploram que os soldados franceses “lá aprendam o fascismo”, é preciso ver que estes humanistas só se preocupam com as consequências morais de tais crimes sobre a alma francesa. A gravidade das torturas e dos “trabalhos forçados”, o horror das violações de rapariguinhas argelinas, só não são ignorados porque a sua existência ameaça uma certa ideia de honra francesa.

Vale a pena meditar sobre esta atitude. Semelhante exclusão do Argelino, semelhante ignorância do homem torturado ou da família massacrada, constitui um fenómeno inteiramente original. Aparenta-se a esta forma de pensamento egocêntrico, sociocêntrico, que se tornou característico dos Franceses.

Na realidade, o medo de uma contaminação moral (?) parece ser totalmente vão. Os polícias doentes não eram nada atormentados pelas suas consciências. Se mantêm o ritmo profissional fora dos gabinetes e oficinas, ou seja, nas salas de tortura, é porque são vítimas de sobrecarga de trabalho. O que reclamavam estes polícias era menos um apaziguamento moral do que a possibilidade de retomar as torturas.

O sistema em questão

Na Argélia, o policia que tortura não infringe nenhuma lei. Os seus atos situam-se no âmbito colonialista. Ao torturar, manifesta uma real fidelidade ao sistema. Por isso, também os soldados franceses não podem ter outra atitude sem condenar a dominação francesa. Na Argélia, todo o francês deve comportar-se como torcionário. Se quiser ficar na Argélia, a França não tem outra solução senão manter uma ocupaçâo militar permanente e uma poderosa estrutura policial.

As forças inimigas não podem imaginar até que ponto lhes é impossível fazer outra coisa além da evacuação do território nacional.

O povo argelino não luta contra as torturas, a violação de raparigas ou os assassínios coletivos. A história da ocupação francesa é assinalada por tais crimes e em Kabylie ainda há pouco tempo se metia medo às crianças ameaçando-as de “chamar Bugeaud”.

O povo argelino não ignora que a estrutura colonialista assenta na necessidade de torturar, de violar, de massacrar.

Por isso, a nossa reivindicação é, logo à primeira vista, total e absoluta.

Os polícias sádicos que perderam o sono, os soldados torcionários que “correm o risco de se transformar em fascistas”, põem-nos, a nós argelinos, um problema preciso: como modificar a nossa estratégia e intensificar o nosso combate para que o território nacional seja, o mais depressa possível, libertado?

Qualquer outra consideração nos é radicalmente estranha.

continua>>>


Notas de rodapé:

(1) El Moudjahid, n.° 10, Setembro de 1957. (retornar ao texto)

(2) Em Constantinois suicidou-se um comissário de polícia em 1956. (retornar ao texto)

Inclusão 05/07/2018