O Negro e o Gueto de Varsóvia

W. E. B. Du Bois


Fonte: TraduAgindo -

Tradução: Alexsandro Casemiro

HTML: Fernando Araújo.


Eu visitei a Polônia três vezes. A primeira, 59 anos atrás, quando eu era estudante na Universidade de Berlim. Eu discuti isso com meu colega Stanislaus Ritter von Estreicher. Contei a ele sobre a questão racial na América, que me parecia ser o único problema racial e a questão social mais importante do mundo. Ele disse: “Você não sabe nada sobre problemas reais de raça.” Então ele começou a falar comigo sobre o problema dos poloneses, aqueles em particular que haviam sido integrados ao Império Alemão; sua educação limitada; a recusa em deixá-los falar sua língua; o número reduzido de carreiras que eles tinham direito de seguir; do insulto contínuo a que sua cultura e vida familiar estavam sujeitas.

Fiquei espantado porque, naquela época, questões de raça eram para mim questões de cor, ligadas primeiro à escravidão nos Estados Unidos e à quase escravidão na África. Prometi que, quando voltasse das minhas férias de verão, pararia para visitá-lo em Cracóvia, Polônia, onde seu pai era um bibliotecário universitário. 

Descoberta da questão judaica

Visitei o sul da Alemanha atravessando a Suíça e a Itália, passando por Veneza e Viena e, através da Áustria e Tchecoslováquia, cheguei à Polônia alemã; durante essa viagem, eu me deparei com um novo problema racial. Partindo de Budapeste, cruzei a Hungria para uma pequena cidade de Galiza, onde planejava passar a noite. O cocheiro olha para mim e me pergunta se eu queria parar “unter die Juden [entre os judeus]”.  Fiquei um pouco confuso, mas respondi “sim”. Fomos a um pequeno hotel judeu, em uma rua estreita, longe do caminho central. Lá tomei consciência de outro problema de raça e religião que não conhecia e que dizia respeito ao tratamento e segregação de um grande número de seres humanos. Eu retomei minha jornada em direção a Cracóvia, percebendo cada vez mais os problemas que afetavam esses dois grupos humanos; então voltei para a universidade, muito atencioso com minha própria questão racial e seu lugar no mundo.

Pouco a pouco, tomei consciência da questão judaica no mundo moderno e um pouco de sua história. Na Polônia, aprendi muito pouco, porque a universidade, os professores e os alunos mal sabiam desse problema, as maneiras pelas quais ele os influenciava, o significado que dava às suas vidas. Na Alemanha, vi essa pergunta surgir várias vezes, mas reprimida, raramente mencionada. Lembro-me de uma vez em uma pequena cidade onde eu tinha estado em uma visita social. Um estudante alemão estava comigo e, quando percebi que havia algo errado, ele me tranquilizou: “Eles acham que sou judeu. Não é contra você, sou eu – ele sussurrou. Eu fiquei impressionado. Nunca pensei que uma manifestação de preconceito racial pudesse ser outra coisa senão um preconceito de cor. Eu sabia que o jovem era um alemão puro e, no entanto, seus olhos escuros e seu belo rosto despertaram a suspeita de nossos amigos. Então comecei aprofundar esse novo fenômeno que havia experimentado.

Treze anos depois, eu ainda havia atravessado a Polônia e a cidade de Varsóvia. Tudo estava obscuro do ponto de vista literal e espiritual. Hitler tinha poder na Alemanha, onde fiquei 5 meses e senti a tempestade chegando. Cruzei Varsóvia para ir para a União Soviética, exatamente 3 anos antes do horror que caíra nesta cidade.

Contudo, em Berlim, antes de partir, senti algo sobre a questão judaica e a importância que ela adquirira desde os meus anos de estudante. Um dia, fui ao bairro judeu e entrei em uma livraria. Logo depois, um homem entrou na sala e me perguntou o que eu estava procurando. Mencionei alguns títulos e folheei alguns dos que ele me mostrou. Ele não disse nada, nem eu. Eu senti sua suspeita e finalmente saí. Fui a um professor naquela mesma noite. Havia alguns americanos e vários alemães. As cortinas foram cuidadosamente fechadas e o professor começou a falar. Ele defendeu o programa nazista em linhas gerais – emprego, moradia, redes de estradas; mas ele admitiu que tinha vergonha do tratamento aos judeus, pelo menos alguns deles. Ele acusou alguns, mas ele tinha alguns amigos judeus e tinha vergonha da maneira como eram tratados.

Então, à meia-noite, entrei na Polônia.  Estava escuro, não apenas por causa da fumaça, mas também das almas de seu povo, que falavam em tom baixo enquanto dirigiam lentamente no escuro, ao longo das plataformas de trem.

E, finalmente, há três anos, fui para Varsóvia. Eu sabia algo da bagunça deste mundo: os uivos e tiros dos tumultos racistas da Ku Klux Klan; a ameaça da polícia e dos tribunais; o abandono e destruição do habitat humano; mas nada em minha imaginação mais selvagem combinava com o que vi em Varsóvia em 1949. Se eu não o visse, diria que é impossível que uma nação civilizada, com profundos sentimentos religiosos e instituições religiosas eminentes, com sua literatura e sua arte, possa reservar para seus semelhantes o tratamento que  sofrera Varsóvia. Foi uma destruição completa, planejada e total. Algumas ruas estavam tão fechadas que era necessário usar fotografias tiradas no passado para entender onde elas estavam. E ninguém mencionou o número de mortos, a quantidade total de destruição, os aleijados e os tolos, as viúvas e os órfãos.

Certamente, o mais surpreendente foi que, no meio de todas essas memórias de guerra e destruição, as pessoas estavam reconstruindo a cidade com um entusiasmo simplesmente incrível. Uma cidade e uma nação foram literalmente ressuscitadas. Então, uma tarde, fui levado ao antigo gueto. Eu sabia muito pouco de sua história, mesmo tendo visitado guetos em várias partes da Europa, principalmente em Frankfurt. Aqui não havia muito para ver. Havia um vazio completo e total e um monumento. E o monumento levantou novamente a questão racial e religiosa que constituíra meu problema particular e separado por tanto tempo. Pouco a pouco, assistindo, lendo, reconstrui essa extraordinária história de resistência à opressão e ao mal, em momentos de total desespero, com inimigos por toda parte: resistência que envolvia morte e destruição para  centenas e centenas de seres humanos;  um sacrifício deliberado de suas vidas por um ideal maior e com a consciência de que esse sacrifício poderia ser em vão. 

Uma visão mais ampla da questão negra

O resultado dessas três visitas e, em particular, o espetáculo do gueto de Varsóvia, não foi uma compreensão mais clara do problema judaico no mundo, mas uma compreensão mais real e completa do problema dos negros. Primeiro, o problema da escravidão, emancipação e castas nos Estados Unidos não era mais, na minha cabeça, uma coisa única e separada, como eu havia percebido por tanto tempo. Não era mais uma questão de cor ou características físicas ou raciais – o que foi particularmente difícil de descobrir, pois durante toda a vida a questão da linha de cores havia sido uma causa real e eficiente de miséria. Nem era apenas uma questão de religião. Eu conhecia religiões de vários tipos – sentei-me em templos xintoístas no Japão, em igrejas batistas na Geórgia, na Catedral Católica em Colônia, na Abadia de Westminster, na Inglaterra. Não, a questão da raça que me interessou atravessou as barreiras físicas, as barreiras de cor, crença, status; era antes uma questão de origens culturais, educação pervertida, ódio humano e preconceito que afetavam todos os tipos de pessoas e prejudicavam incessantemente todos os homens. Assim, o gueto de Varsóvia me ajudou a sair de um certo provincialismo para uma concepção mais ampla das maneiras pelas quais a luta contra a segregação racial, contra a discriminação religiosa e a opressão dos pobres tinha que evoluir, para que a civilização pudesse espalhar e triunfar no mundo.

Lembrei-me agora do meu camarada Stanislaus. Ele está morto faz muito, morto por se recusar a ser um informante a serviço dos nazistas na Polônia conquistada. Ele deu a vida por uma grande causa. Uma causa que acabou se tornando mais ampla. Até que ponto ele entendeu que por trás do problema polonês estava o problema judaico e que tudo isso constituía um crime contra a civilização? Eu não sei.

Agora me lembro de outra cena, meio século atrás, na Polônia. Uma cena religiosa em uma igreja católica. Os camponeses estavam ajoelhados perto um do outro. Eles estavam inteiramente sujeitos a uma poderosa hierarquia. E hoje eles se libertaram dessa escravidão, lutaram, lutaram. Eles veem a luz?


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Inclusão 30/11/2021: