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Primeira Edição: Capítulo 6 do livro La Teoria Marxista. Categorias de Base y Problemas Actuales, 1987.
Fonte: LavraPalavra http://www.cuadernospoliticos.unam.mx/cuadernos/contenido/CP.39/4.%20Agustin%20Cueva-El%20fetichismo%20de%20la%20hegemonia%20y%20el%20imperialismo.pdf
Tradução: Fernando Savella
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Antonio Gramsci se converteu, sem dúvida alguma, numa referência obrigatória para todos os estudos que são feitos atualmente acerca da questão do Estado, tanto na Europa ocidental como na América Latina. De um certo ponto de vista, o autor italiano aparece inclusive como o verdadeiro fundador da ciência política marxista, finalmente livre, como dizem, do “dogmatismo” e do “economicismo” e, portanto, da concepção “instrumental” do Estado que havia caracterizado o pensamento leninista. Dessa forma, Gramsci se tornou uma espécie de ‘anti-Lenin’, dotado de incalculáveis projeções teóricas e políticas.
Em que consiste esse aporte gramsciano que agitou tanto a ciência política marxista? Parece se tratar, essencialmente, de Gramsci ter demonstrado, contra toda uma tradição, que a classe dominante se impõe como tal não apenas através da coerção, ou seja, da violência física, mas também mediante a “hegemonia”, ou seja, por meio de uma “direção intelectual e moral” capaz de assegurar inclusive o “consenso ativo” dos governados.
Isso é correto, mas não constitui exatamente uma novidade dentro do pensamento marxista-leninista. A “Ideologia Alemã” de Marx e Engels é inteiramente dedicada a demonstrar que as ideias dominantes em uma sociedade são precisamente as ideias da classe materialmente dominante; e a obra toda de Marx, incluindo “O Capital”, pretende esclarecer os mecanismos estruturais e superestruturais através dos quais o momento ideológico da dominação se realiza: o fetichismo da mercadoria, a peculiaridade da exploração centrada na extração de mais-valia relativa, a propriedade e o controle dos meios de produção e reprodução ideológica, etc.
E quanto a Lenin, não hesita em esclarecer que, para ele, todo processo de dominação social compreende um importante momento de dominação cultural. São bem conhecidas as suas teses sobre as “duas funções” que esse processo de dominação supõe(1), assim como é conhecida sua concepção do partido como dirigente e maestro:
“Educando o partido operário, o marxismo educa a vanguarda do proletariado, vanguarda capaz de tomar o poder e de conduzir todo o povo ao socialismo, de dirigir e organizar o novo regime, de ser o maestro, o dirigente e o chefe de todos os trabalhadores e explorados na obra de organizar a sua própria vida social sem a burguesia e contra a burguesia”.(2)
E onde está então a novidade real do pensamento gramsciano? Talvez nem tanto em seus escritos quanto em uma leitura muito particular deles, que tende a separar o momento ideológico-cultural da dominação de classe da própria dominação. Nesse sentido, Christine Buci-Glucksman, uma das mais conhecidas e sutis intérpretes de Gramsci, foi muito clara ao responder a uma pergunta que formulamos em uma entrevista para a “Revista Mexicana de Sociologia“. Afirmou o seguinte:
“… creio que na sua pergunta há uma segunda intenção mais profunda que poderia ser formulada assim: por acaso é utópico pretender conquistar a hegemonia se, precisamente antes de alcançar o poder ou pelo menos numa estratégia de luta pelo poder, a hegemonia não é nada senão parte da dominação? Se a hegemonia já está dentro da dominação, é evidente que não pode ser conquistada. Quanto a isso creio que temos que revisar o conceito de ideologia e, adotando o pensamento de Gramsci como modelo de análise, há nele outra teoria da ideologia, diferente da de Marx em alguns aspectos. A questão da ideologia não pode ser considerada simplesmente em termos classistas-instrumentais, é necessário fazer uma análise muito mais complexa”.(3)
Estando ou não de acordo com essas considerações, temos que reconhecer na resposta de Christine Buci-Glucksman o mérito da franqueza. Em efeito, se se quer encontrar a todo custo uma novidade transcendental nas reflexões de Gramsci, não é possível desembocar em outra coisa que não uma revisão do pensamento do próprio Marx, e não somente dos supostos “desvios” ulteriores. Em uma perspectiva desse tipo, o conceito gramsciano de “hegemonia” adquire naturalmente uma originalidade, na medida em que já não aparece como um momento constitutivo de um processo estruturado de reprodução social (reprodução de determinado modo de produção), mas sim como uma dimensão autônoma da sociedade que seria possível modificar qualitativamente ainda antes que a estrutura de poder tenha sido realmente substituída. Uma visão que sem dúvida se situa nas antípodas da de Lenin, para quem:
“O proletariado precisa tomar o poder de Estado, organização centralizada da força, organização da violência, tanto para impedir a resistência dos exploradores como para dirigir a enorme massa da população, os camponeses, a pequena-burguesia, os semi-proletários, de forma a ‘colocar em marcha’ a economia socialista”.(4)
Não se trata, então, de Lenin ignorar a necessidade de uma direção intelectual e moral da sociedade ou desconhecer a dimensão “pedagógica” de todo o fazer político, elementos sem os quais mal se pode alcançar uma verdadeira “hegemonia”; se trata de que, para ele, esses elementos não podem operar como “variáveis” independentes do poder tour court. Por isso, o problema da conquista da “hegemonia” em determinada sociedade não pode aparecer, segundo Lenin, como algo desvinculado da conquista do poder político, sob a pena de que a teoria marxista do Estado e da revolução “não seja mais do que uma noção confusa de uma mudança lenta, paulatina, gradual, sem saltos e nem tormentas, sem revoluções”.(5)
O fato de Gramsci jamais ter formulado teses como as que Lenin dirige a crítica é evidente por si só. Até onde sabemos, nunca renegou o leninismo e nem esqueceu que há um momento militar (técnico-militar e político-militar, segundo suas palavras) da luta de classes, que não pode ser substituído pelo combate ideológico solitário. Ao refletir sobre a luta das nações oprimidas, por exemplo, Gramsci fala de:
“…uma forma de ação política que possui a virtude de determinar reflexos de caráter militar no sentido: 1) de que seja eficiente para desagregar intimamente a eficácia bélica da nação hegemônica; 2) que force a força militar hegemônica a se diluir e se dispersar em um grande território, anulando em grande parte sua capacidade bélica”.(6)
Essa reflexão mostra de forma confiável como Gramsci encontra com clareza o contexto político-militar do poder e sua dialética intrincada, enquanto utiliza o conceito de hegemoniaem um sentido muito mais amplo do que vemos em outros de seus escritos.
Isso no plano teórico mais geral, pois é verdade que em outro plano, mais concreto, Gramsci introduz toda uma perspectiva de análise que tende a colocar em relevo a nova “espessura” adquirida pelo Estado capitalista do “Ocidente”. É bem conhecida sua afirmação de que:
“… ao menos no que diz respeito aos Estados mais avançados, (…) a ‘sociedade civil’ se converteu em uma estrutura muito complexa e resistente às ‘irrupções’ catastróficas do elemento econômico imediato (crises, depressões, etc.): as superestruturas da sociedade civil são como o sistema das trincheiras da guerra moderna…”(7)
Ao contrário do que ocorria em um país como a Rússia czarista, por exemplo:
“… onde as cenas da vida nacional são embrionárias e desligadas e não podem se transformar em ‘trincheiras ou fortalezas’ (…) No oriente o Estado era tudo a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no ocidente, entre Estado e sociedade civil existia uma justa relação e sob o tremor do Estado se evidenciava uma robusta estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira avançada, atrás da qual existia uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas; em maior ou menor medida se entende, mas isso precisamente exigia um reconhecimento de caráter nacional”.(8)
Essas observações, não é demais lembrar, são formuladas com o propósito explícito de respaldar as opiniões de Lenin contra a tese trotskista da “revolução permanente”, ainda que, ao fazê-lo, certamente, Gramsci incorre em mais de uma ambiguidade, tanto pela imprecisão propriamente dita, como por omissão. Imprecisão porque, ao considerar o problema em termos de “ocidente e oriente”, dá espaço a uma leitura culturalista ulterior de seus escritos; e omissão já que, ao não colocar em evidência o substrato econômico da mudança de contexto da “sociedade civil” e o Estado “ocidentais”, complica ao mesmo tempo que sugere um rico caminho de análise. Com esse ponto, tocamos em um dos lados mais débeis do pensamento gramsciano: seu manejo insuficiente da economia política que, por um lado impede a reflexão sobre as condições infraestruturais da constituição e do desenvolvimento da “hegemonia” burguesa, e por outro dá margem para que suas reflexões sobre a esfera política sejam afetadas por tal grau de indeterminação que até deixa a impressão de converter a autonomia relativa da dita esfera em uma verdadeira autonomia absoluta. Essa debilidade constitui desde o começo a “porta falsa” pela qual passarão posteriormente todas as correntes revisionistas.
O fenômeno que Gramsci analisa sob a sua perspectiva particular nas citações acima, certamente não é algo que escapa à percepção teórica de Lenin. Em “Imperialismo, fase superior do capitalismo”, por exemplo, Lenin está plenamente consciente de que o capitalismo, ao chegar em seu estágio imperialista, mostra transformações não só de natureza econômica, mas também de natureza política, que não podem deixar de afetar a própria estrutura do Estado (agora burguês-imperialista) e de sua correspondente “sociedade civil”.
O simples fato de que o capitalismo se torna o capitalismo monopolista de Estado diz bastante nesse sentido, mesmo que, obviamente, o problema não se esgote aí. Está claro, igualmente, que a obtenção de superlucros nas regiões coloniais, semicoloniais e dependentes permite que a oligarquia financeira levante certas “trincheiras e fortificações” no interior de sua sociedade nacional, por meio do robustecimento da aristocracia operária (apoio social da burguesia, como disse Lenin(9)), ou graças (é outro exemplo) à criação de “sistemas de participação” por ações, tendendo a forjar uma imagem de “democratização do capital”, que mesmo sendo uma falácia, não deixa de produzir efeitos ideológicos. Lenin chegou inclusive a afirmar que a exportação de capitais “imprime um selo de parasitismo em todo o país (imperialista), que vive da exploração do trabalho de alguns países e colônias ultramarinas”.(10)
Não é o caso de discutir aqui se essas observações de Lenin dão conta ou não de todas as transformações ocorridas na “sociedade civil” e na esfera político-estatal dos países imperialistas. O mais certo é que não, na medida em que se tratam de anotações muito pontuais dentro de uma reflexão que persegue outros propósitos, de caráter mais geral. Mesmo assim, há uma questão metodológica que não cabe passar por cima: para Lenin, as transformações a que nos referimos não são independentes do lugar que cada país ocupa na cadeia capitalista imperialista, de forma que a própria “hegemonia” burguesa, no sentido de uma capacidade de “direção intelectual e moral” (predomínio ideológico), não está desvinculada de sua hegemonia no sentido mais amplo do termo: supremacia de um Estado sobre outros.(11)
Com a reflexão gramsciana não ocorre o mesmo: aqui encontramos justamente seu segundo ponto débil. Quando Gramsci se refere à evolução do Estado no “ocidente”, nunca menciona sequer o fato de que se tratam de Estados imperialistas; fato que, por mais assombroso que possa parecer, também tende a ser sistematicamente omitido pela maioria de seus intérpretes e exegetas. Graças a essa omissão, que está longe de ser uma peccata minuta, o importante aporte de Gramsci para a menor compreensão da forma (modalidade concreta) que a dominação burguesa assume nos Estados imperialistas será convertido, postumamente, em uma espécie de verdade a-história indeterminada, em princípio aplicável a qualquer Estado capitalista. O que dificulta, naturalmente, a análises da relação real e dialética que se estabelece na fase imperialista entre os dois elementos constitutivos de toda dominação: a coerção e a “hegemonia”.
Com efeito, se nos atermos à maior parte dos estudos pretensamente gramscianos que circulam hoje em dia, parece até que o capitalismo alcançou finalmente uma etapa de “humanização” na qual a dominação burguesa não se sustenta mais em última instância na “boca do fuzil”, mas sim na democracia e no consenso. O aparato repressivo, ainda assim, está ali, relevante como nunca, e mesmo essa relevância tende a ser percebida muitas vezes como uma espécie de garantia da “segurança nacional”, ameaçada pelo “exterior”: quase como uma muralha que a “civilização” se vê obrigada a levantar para se proteger das constantes ameaçadas da “barbárie”.
Assim, e por mais paradoxal que possa parecer, a doutrina da seguridade nacional, doutrina que nenhum latino-americana minimamente progressista aceita como um bom aspecto da lei, de fato chegou a ser assumida por muitos dos nossos homólogos “ocidentais”.(12) E existe algo de correto, no fundo, na ideia de que tais aparatos repressivos desempenham uma determinada função de “segurança nacional”, ainda que não exatamente no sentido oficial que lhe é atribuído. Sem a sua presença e constante crescimento, as burguesias imperialistas mal conseguiriam assegurar o fluxo permanente de excedente econômico vindo das regiões dependentes até os centros metropolitanos, sem o qual suas próprias possibilidades de dominar “democraticamente” em tais centros entrariam em crise. Recordemo-nos, a título de exemplo, que bastou os termos de intercâmbio no mercado petroleiro se nivelarem relativamente, para que os países imperialistas vissem a acentuação intensa da crise que suas próprias contradições haviam gerado. Até que o simples direito de viajar (orgulho desses centros hegemônicos) será tanto mais real e “democrático” quanto maior e mais barato for o combustível proveniente do mundo subdesenvolvido. Sem dúvida, o sistema capitalista funciona como um todo estruturado, tanto a nível econômico quanto na esfera política, por mais que entre cada um dos seus “elos” haja um certo nível de descontinuidade, marcado por particularidades nacionais que seria tolo desconhecer.
Em todo caso, convém entendermos que a fase imperialista do capitalismo não se caracteriza por uma tendência geral ao predomínio das formas democráticas de dominação, mas sim por um desenvolvimento desigual de sua superestrutura política, correlacionada inevitavelmente com o desenvolvimento desigual da base econômica. Ela determina uma divisão internacional das modalidades de dominação em função do lugar que cada elo nacional ocupa na cadeia capitalista imperialista; divisão particularmente acentuada a partir do segundo pós-guerra, quando se reforçam alguns elos do sistema deliberadamente com a finalidade de levantar um “dique” frente ao avanço do socialismo. Graças ao dito reforço, se criam “polos de desenvolvimento” onde as contradições do sistema tendem sem dúvida a se atenuar, permitindo o “florescimento” da democracia burguesa; mas às custas, naturalmente, da acumulação de contradições na “periferia”, que não tardará em mostra-se como um “terceiro mundo” ou “mundo subdesenvolvido”, no qual aquela democracia está longe de florescer.
O predomínio de formas “consensuais” ou repressivas de dominação burguesa não depende de fatores “culturais” ou meramente ideológicas, nem de um “desenvolvimento político” indeterminado, mas sim da configuração estrutural de um sistema que inclusive determina a mesma classe dominante que, por um lado, parece se impor em virtude de sua capacidade de “direção espiritual e moral” (nos elos fortes, primordialmente), e por outro lado, precisa aplicar níveis supremos de violência nos elos débeis, sobretudo quando se desenvolvem movimentos sociopolíticos que buscam alterar significativamente a dita configuração (os movimentos de libertação nacional). Não é demais lembrar, a respeito disso, que são os mesmos aparatos armados supostamente “democráticos” e “apolíticos” dos Estados Unidos e alguns países da Europa ocidental – os mesmos, nem mais e nem menos – os principais encarregados de desestabilizar os regimes progressistas do terceiro mundo, quando não de aplicar nestes, de maneira sistemática, desde a tortura até o genocídio. Essa afirmação conserva sua validade mesmo quando esses aparatos conseguem tirar as castanhas do fogo com as mãos de outrem: depois de tudo, a eficácia repressiva dos exércitos “gorilas” [denominação comum para forças militares pró-imperialistas no continente] da América Latina não deriva de nenhuma tradição autônoma de “barbárie”, mas sim do treinamento, assessoria e apoio logístico proporcionados pelos centros “democráticos” do ocidente, de onde vem, acima de tudo, a medula de seu alimento ideológico.
Sabemos que essas constatações podem soar um pouco “brutais”, na medida em que ferem certa visão de mundo que o próprio sistema nos impõe, quase como um “senso comum”. Com efeito, uma das maiores miragens que o sistema imperialista gera é o de uma articulação linear e não estrutural de si mesmo, segundo o qual parece que o contexto de seus pontos mais “avançados” têm pouco ou nada a ver com a dos lugares mais “atrasados”, nem mesmo no plano econômico, e muito menos ainda no político, como se o comportamento de gentleman que a burguesia exibe em seus centros imperiais fosse completamente alheio aos ultrajes que comete na “periferia”, verso e reverso de uma única moeda.
De acordo com essa distorção ideológica, o problema da “hegemonia” ou não “hegemonia” da burguesia em determinado espaço aparece como uma questão exclusivamente interna, por assim dizer nacional, desvinculada da outra hegemonia, que se articula com uma envergadura internacional e constitui o verdadeiro suporte da primeira. Há, desde logo, uma contradição flagrante entre esse pressuposto e a prática política das potências capitalistas, que em momento algum esquecem que o sistema tem que ser preservado como uma totalidade articulada; mas essa contradição, como bem sabemos, é ideologicamente dissolvida por meio do recurso da presença mítica de um inimigo “além dos muros”: supostamente, os aparatos repressivos do imperialismo nunca atuam em função das contradições do próprio sistema, mas sim, sempre em resposta a ameaças exteriores a ele.
Por sua vez, o fato de que os países imperialistas são efetivamente os mais avançados em termos de desenvolvimento das forças produtivas tende a criar outra imagem falaciosa: a de que também o são no terreno político. Questão essa que temos ao menos que qualificar. Por um lado, como já vimos, é verdade que esses países conseguiram, através de sua supremacia imperial, criar determinadas condições históricas que tornam viável uma forma de dominação democrático-burguesa relativamente sólida e estável. Nesse sentido, é certo que a sua superestrutura política interna é mais avançada que a dos países capitalistas dependentes, onde a democracia burguesa não é exatamente a norma. Mas esse mesmo fato supõe uma situação muito particular que Gramsci percebeu com toda a lucidez: o fortalecimento das “trincheiras e fortalezas” da “sociedade civil” ou, igualmente, das diversas instâncias através das quais se consolida o domínio burguês sobre o conjunto da sociedade. Isso significa que nesse tipo de países (que por algum motivo são os elos fortes do sistema) a perspectiva da luta de classes se encontra enormemente limitada pela solidez da “sociedade civil” burguesa; para não falar do aparato armado, infinitamente mais poderoso, tecnológico, ideologicamente compacto e internacionalmente integrado do que o dos países dependentes.(13)
Gramsci insistiu ainda que essa solidez da sociedade civil e do Estado nos países imperialistas persiste inclusive durante as grandes crises econômicas. Com metáforas expressivas, escreveu que em tais países:
“Nem as tropas de assalto, por efeito das crises, se organizam de forma fulminante no tempo e no espaço, muito menos adquirem um espírito agressivo; reciprocamente, os assaltados não se desmoralizam e nem abandonam a defesa, ainda entre os escombros, nem perdem a confiança nas próprias forças e em seu futuro. As coisas, certamente, não permanecem tal qual eram antes, mas é verdade que chegam a faltar os elementos de rapidez, de ritmo acelerado, de marcha progressiva definitiva que esperavam encontrar os estrategistas do cadornismo político”.(14)
Sobre essa questão, Gramsci não se equivocou, e nunca chegou a considerar como um privilégio “democrático” – temos que ser justos com ele. O que cabe dizer é que tal situação não o entusiasmou muito.
De toda forma, é inegável que nos elos fortes se desenvolveu uma textura estrutural caracterizada simultaneamente pela flexibilidade e resistência, que ao mesmo tempo que ampliou o espaço reformista, diminuiu as possibilidades de uma ruptura revolucionária, e ao mesmo tempo que permite a vigência das formas democrático-burguesas de dominação, opõe uma barreira sólida para a sua superação. De forma que, mesmo que a superestrutura política dos países “avançados” do capitalismo mostra em certo sentido (desenvolvimento da democracia burguesa) um “adiantamento” relativo comparado com os países subdesenvolvidos; de outra perspectiva, que é a das possibilidades de uma transformação revolucionária, envolve atualmente um atraso considerável em relação ao terceiro mundo. A experiência histórica dos últimos dez anos, para não remontarmos a um passado ainda mais distante, confirma plenamente a hipótese de que a cadeia imperialista tende a ser rompida em seus elos mais débeis.
Pois bem, o problema que acabamos de desenhar se torna um tanto mais complexo no plano político enquanto aquele atraso nem sempre é percebido como tal pelos teóricos progressistas do mundo “desenvolvido”. Alguns tendem inclusive a converter essa limitação em uma virtude, fazendo desse gradualismo obrigatório uma espécie de via ideal (“democrática”) de transição até uma vaporosa utopia que, por sua própria leveza histórica, está desligada já de antemão de todos os problemas, sacrifícios e erros do que normalmente denominam como “socialismo real”. Convencidas de que “bourgeoisie oblige” [a burguesia exige], as correntes eurocomunistas, por exemplo, esperam se salvar das dores do parto de uma nova sociedade, que esperam alcançar com a pura mediação de uma prova ideológica que levaria à “conquista da hegemonia”. Assim como nos tempos de Marx e Engels, em que havia uma “ideologia alemã” que acreditava que iria realizar uma revolução de tal magnitude que, ao seu lado, até a grande revolução francesa pareceria uma simples brincadeira de criança; temos hoje uma “ideologia europeia” (falamos, naturalmente, da revisionista) que com sua revolução imaginária deixaria de lado todas as revoluções reais conhecidas até hoje.
Ainda, toda essa ideologia se articula com uma outra falácia, que surge da exposição de uma meia verdade: a afirmação de que a democracia burguesa vigente nos elos mais fortes se explica, de maneira indeterminada, pela luta de suas classes populares. Meia verdade, dizemos, porque aqui também se omite algo que é mais do que um mero detalhe: os parâmetros estruturais do sistema que permitiram que essa luta de classes, que ninguém pretende ignorar, produzisse certos efeitos e não outros, como os que se mostram nos países subdesenvolvidos, por exemplo. Ou alguém pensa, seriamente, que a Suíça é mais democrática que a Guatemala porque no país alpino a luta de classes foi mais intensa?
Para nós, latino-americanos, o mais grave disso tudo é que tais ilusões vêm exercendo influência em certos meios intelectuais progressistas e inclusive em algumas organizações políticas de esquerda. O que se torna um paradoxo, para dizer o mínimo, em um momento em que o imperialismo aflora em seus aspectos mais belicistas e agressivos, sem sairmos da sua mira. No que concerne aos círculos intelectuais, tal paradoxo se explica em grande medida pelas próprias condições objetivas de produção do pensamento social institucionalizado na América Latina capitalista. Mas também há nessa postura muito de esnobismo e dependência intelectual: sempre é mais elegante resenhar o último livro europeu do que explorar a fundo a nossa realidade ou resgatar o imenso acervo revolucionário acumulado pelos movimentos de libertação do terceiro mundo. A Serra Maestra cubana, assim como a selva vietnamita, os desertos sajarahuis ou as montanhas nicaraguenses, são lugares pouco propícios para o desenvolvimento de certo refinamento intelectualista.
Não queremos, ainda assim, que o que foi dito até aqui passe por alto pela complexidade de determinados problemas, negue a importância das lutas democráticas, ou tome neste mesmo instante o céu de assalto. Só pela sombra sabemos que o mundo hoje se tornou mais intrincado e contraditório do que nunca; mas pensamos que nenhuma folhagem emaranhada deve nos fazer perder de vista o perfil do grande bosque. O complexo supõe um acúmulo de sobredeterminações de diversos tipos que se entrelaçam com as determinações de base, mas sem aboli-las e nem alterar o substancial de uma matriz estrutural, que de outro modo, deixaria de ser uma matriz estrutural.
Tanto o Estado dos países “avançados” quanto o das regiões subdesenvolvidas sofreram mutações importantes na fase imperialista e, mais aceleradamente ainda, nos últimos trinta anos; o domínio burguês se tornou mais sofisticado e complexo e suas formas de reprodução ideológica alcançaram um alto grau de “tecnificação” antes desconhecido, ainda que só foi possível pelo enorme desenvolvimento de todas as mídias de massa controladas pelo imperialismo. Mas nem por isso o Estado capitalista deixou de ser o que é em essência, nem de se assentar em última instância no exercício da violência. De uma violência “racionalizada”, é claro, dosificada e atualizada em função de suas necessidades, interesses e possibilidades, porque nenhum Estado golpeia com pau de cego, afinal, não vive seus momentos finais.
É inegável que nesse contexto, a luta ideológica se torna mais indispensável do que nunca, mas sob a condição de que aponte para desmascarar o sistema, e não para lhe proporcionar óculos de proteção novos; e de que seja capaz de romper com o “senso comum” imposto pela dominação, em lugar de se mover dentro dele num círculo vicioso.
Por outro lado, pensamos que já é hora de analisar criticamente alguns dos mitos que vêm sido forjados ultimamente, e não por acaso, em torno do problema da democracia na América Latina.
Em primeiro lugar, é falso que a esquerda latino-americana não havia tratado desse problema antes de receber a última “iluminação” metropolitana. A revolução cubana triunfou enquanto o baluarte da democracia contra a tirania de Batista; a experiência chilena fracassou em grande medida por levar sua vocação democrática até as últimas e quase suicidas consequências; o movimento sandinista encarnou e continua encarnando as aspirações democráticas do seu povo, que obviamente não podem ser confundidas com as da “iniciativa privada”. Assim, e em um contexto estatal tampouco democrático como o latino-americano, é quase uma ironia “lembrar” às massas que temos que lutar em favor da democracia: é o que viemos fazendo desde sempre, por mais que erros tenham sido cometidos no caminho. Mas em um contexto igualmente marcado pelas desigualdades sociais mais atrozes, também é insensato pedir-lhes que não imprimam uma face específica nessa democracia: depois de tudo, é compreensível que os mineiros bolivianos coloquem o problema em termos diferentes dos do operário alemão ou o escandinavo. A democracia não é uma casca vazia, mas sim uma forma que vale em função de determinados conteúdos.
Em segundo lugar, é da mesma forma falsa a afirmação de que a esquerda “fracassou” na América Latina por não ter notado que juntamente das reivindicações estritamente proletárias, deviam ser incluídas também as de índole nacional e popular-democrática. Se a esquerda latino-americana pecou de alguma forma em sua história, seria pelo erro contrário: não conseguir estabelecer uma direção proletária a tantos e tantos movimentos democráticos e nacionalistas. O problema está, sinteticamente, em outro nível: como recuperar o nacional popular sem cair no nacional-populismo que alguns parecem defender? É a velha questão que é debatida desde os tempos de Mariátegui, Mella e Haya de la Torre e que continuará, certamente por muito tempo, obcecando o pensamento político latino-americano. Como quer que seja, é pertinente recordar que a necessidade de forjar uma “vontade nacional popular” como ingrediente necessário de nossa libertação, foi formulada claramente por José Martí há um século.
Em terceiro lugar – e queremos que isto fique bem claro – não pretendemos negar a enorme e decisiva importância que a luta pela democracia tem na América Latina. Em uma região como a nossa, assolada permanentemente pelas mais desagradáveis ditaduras, parece até supérfluo insistir que as reivindicações democráticas constituem uma das mais importantes bandeiras do combate. Mas uma coisa é reconhecer este fato e lutar para que se abram espaços democráticos cada vez mais amplos, para que através deles, se expressem as aspirações mais profundas das massas e a luta avance; e outra, muito diferente, é criar ilusões sobre o conteúdo da democracia burguesa e até converter esta em uma meta final da humanidade. Tudo é questão de saber de que lado nos colocamos historicamente.
Em quarto lugar, e para evitar que nossas proposições se confundam com as de um certo ultrismo “permanente”, convém precisar que não postulamos que a revolução está na ordem do dia em todos os cantos da América Latina, à margem dos contextos nacionais concretos e das respectivas correlações de forças. Estamos convencidos de que a América Latina constitui uma unidade não apenas cultural, mas também histórica, no sentido mais forte do termo, já que está dotada de uma mesma tradição, um mesmo inimigo comum e um ímpeto similar de libertação; mas queremos ser dialéticos o suficiente para entender que se trata de uma unidade não apenas na adversidade, mas também na diversidade: cada país tem, obviamente, suas peculiaridades e um ritmo próprio de desenvolvimento de suas contradições, que sem dúvidas estabelecem modalidades específicas e tempos diferenciados em sua luta de classes. Articular essas particularidades com a universalidade do problema que tentamos resgatar é justamente o grande desafio que a história nos apresenta.
Notas de rodapé:
(1) “Todas as classes opressoras sem exceção precisam, para salvaguardar sua dominação, de duas funções sociais: a função do carrasco e a função da cura”. La bancarrota de la II Internacional, en Obras Escogidas en 12 tomos, Progreso, Moscú, 1976, tomo V. p. 245. (retornar ao texto)
(2) El Estado y la revolución, en Obras escogidas en tres tomos, t. 2, Ed. Progresso, Moscú, s.f., pp. 313-314. (retornar ao texto)
(3) “Entrevista com Christine Buci-Glucksman”, Revista mexicana de sociologia, Año XLII. vol. XLII, Nº 1, Enero-marzo de 1980, p. 297. (retornar ao texto)
(4) El estado y la revolución, Obras escogidas, ed. cit., p. 313. (retornar ao texto)
(5) Ibid., p. 307. (retornar ao texto)
(6) Notas sobre Maquiavelo, sobre política y sobre el Estado moderno, Juan Pablos Editor, México, 1975, pp. 73-74. (retornar ao texto)
(7) Ibid., p. 94. (retornar ao texto)
(8) Ibid., pp. 95-98. (retornar ao texto)
(9) El Imperialismo, fase superior del capitalismo, Obras escogidas, ed. cit., t. I, p. 699. (retornar ao texto)
(10) Ibid., p. 775. (retornar ao texto)
(11) Talvez convenha lembrar que o termo hegemonia tem em espanhol duas acepções: “supremacia de um estado sobre outros. Fig. Superioridade em qualquer grau (Martín Alonso: Diccionario del español moderno). Essas acepções a grosso modo coincidem com as da forma inglesa hegemony: “Liderança, predominância, preponderância de um Estado sobre outros” (The new Webster encyclopedia dictionary of the English language). Igualmente ao italiano, como provam os escritos do próprio Gramsci. É curioso que a história do imperialismo junte essas duas acepções! Nós colocamos o termo entre aspas ao nos referirmos ao sentido restrito de “superioridade intelectual e moral”, a “liderança”, e tiramos das aspas quando aludimos à supremacia imperialista. (retornar ao texto)
(12) Existem aqueles que pensam que o Estado “de segurança nacional” pertence somente às regiões dependentes, questão que levantaria uma discussão mais detida. Aqui, temos por certo que, em certo sentido ao menos, os Estados imperialistas são os principais defensores e aplicadores da doutrina de “segurança nacional”. (retornar ao texto)
(13) Comparado com a OTAN, por exemplo, a CONDECA tem demonstrado ser bastante frágil. (retornar ao texto)
(14) Op. cit., p. 94. (retornar ao texto)
Inclusão | 16/05/2019 |