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Primeira Edição: Apresentado no ciclo “Capitalismo e Imperialismo na América Latina”, seção Colômbia-Equador, em Agosto de 1979.
Fonte: LavraPalavra
Tradução: Fernando Savella
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Resumo: O modo de produção capitalista na América Latina é regido por leis objetivas de acumulação, concentração e centralização de capital, e apresenta como uma região uma problemática em comum que define sua fisionomia própria dentro da grande “cadeia” capitalista imperialista mundial, mesmo que com características específicas em cada país. Uma questão definidora da fase atual do desenvolvimento latino-americano é a fusão da força política do Estado com a força econômica do capital monopolista, ou seja, a conformação de um capitalismo monopolista de Estado, com modalidades concretas de ação não estritamente idênticas às dos países imperialistas, devido à condição supracitada das nossas formações sociais.
O desenvolvimento do capitalismo nas áreas subdesenvolvidas e dependentes não é regido por leis “especiais”, distintas das que governam qualquer desenvolvimento capitalista. O que significa, entre outras coisas, que não existe lei alguma que impeça a reprodução ampliada do modo de produção capitalista, e assim, de suas contradições nessa região do mundo. A pergunta sobre se pode ou não haver “desenvolvimento” na América Latina é, portanto, uma pergunta carente de sentido. Está claro que, visto em seu conjunto, o capitalismo vem se desenvolvendo na América Latina em ritmos inclusive superiores aos de outras áreas integrantes do sistema e que, em termos “sociais”, nossas estruturas de classe continuam evoluindo em uma direção cada vez mais capitalista.
O fato de que esse desenvolvimento tenha “desapontado” as expectativas de uma “melhor” distribuição da propriedade, da renda e do poder, que os desenvolvimentistas de diversas tendências alimentam a 15 ou 20 anos, é em rigor um problema que concerne à história das ideologias e suas ilusões, mas não um caso “aberrante” dentro do desenvolvimento capitalista. O desenvolvimento desse modo de produção é regido em qualquer lugar por leis objetivas de acumulação, concentração e centralização do capital, e jamais houve segurança científica que nos autorizasse a pensar que a América Latina capitalista pudesse escapar de tais leis.
E o mesmo poderia ser dito a respeito de outra série de questões. Imaginar, por exemplo, que o desenvolvimento do capitalismo poderia favorecer aqui a criação de economias nacionais autônomas, é tão ilusório quanto pensar que esse mesmo desenvolvimento é capaz de suprimir as especificidades de cada formação nacional, com seus ritmos históricos particulares e suas constelações de contradições também particulares. De forma que não há nada de surpreendente no fato de que ao mesmo tempo que a América Latina seguiu um processo de acelerada imbricação de suas economias na nova fase do desenvolvimento do capitalismo mundial, experimentou igualmente um processo de desenvolvimento desigual de cada entidade nacional: casos de completa estagnação de economias como a argentina, uruguaia e peruana; casos de desenvolvimento acelerado como o da economia brasileira, equatoriana, dominicana e venezuelana, por exemplo.
Assim, se por um lado existe uma economia capitalista mundial da qual sem dúvidas somos parte, por outro lado não existe uma formação econômica e social capitalista mundial, mas sim uma “cadeia” composta de múltiplas entidades nacionais.
Não se pode separar das reflexões precedentes, ainda assim, a conclusão de que o desenvolvimento do capitalismo na América Latina ocorre de maneira exatamente idêntica ao dos países imperialistas. As condições históricas, tanto internas como externas, são naturalmente diferentes, e elas determinaram e seguem determinando modalidades específicas de desenvolvimento do modo de produção capitalista na América Latina, que são precisamente as que nos interessa colocar em relevo. Porém, ao fazê-lo, devemos ter muito cuidado em não confundir o que em rigor constitui um problema teórico e o que é propriamente um problema histórico. Como escreve Lenin a propósito da teoria da realização e da questão do mercado externo:
Na verdade, entre esses dois problemas, não há nada em comum. A questão da realização é um problema abstrato vinculado à teoria do capitalismo em geral. Se tomarmos um único país no mundo inteiro, as leis fundamentais da realização descobertas por Marx são sempre as mesmas. O problema exterior ou do mercado exterior é um problema histórico, um problema das condições concretas do desenvolvimento histórico, um problema das condições concretas do desenvolvimento do capitalismo em tal ou qual país, em tal ou qual época.
Contudo, essas “condições concretas” a que se refere Lenin são as que, ao constituir uma historicidade comum dos países latino-americanos, permitem que nos localizemos em um certo nível de abstração no qual podemos captar a especificidade do desenvolvimento latino-americano. Não se trata do nível universal, regido, como se disse anteriormente, pelas leis gerais do modo de produção capitalista, nem do nível do singular, que compreende as determinações já mais peculiares de cada formação nacional; trata-se sim de um nível intermediário, do particular, em que aquela historicidade comum se converte em uma problemática da mesma forma comum, que define a fisionomia própria da região dentro da grande “cadeia” capitalista imperialista mundial.
A especificidade do desenvolvimento do capitalismo na América Latina se origina em duas ordens de fatos históricos que constituem suas determinações particulares:
a. A existência de uma matriz estrutural heterogênea que se caracteriza primeiramente não apenas pelo desenvolvimento marcadamente desigual do capitalismo, mas também pela complexa presença de modos de produção pré-capitalistas que sem dúvida imprimiram um caráter específico a todo o processo de desenvolvimento, sobredeterminando o próprio curso do capitalismo (a via reacionária que este seguiu). No momento atual, a presença já residual dos modos de produção pré-capitalistas se expressa, sobretudo, através da subsistência de vastos setores econômicos somente formalmente submetidos ao capital (esses “polos marginais” de que falava Aníbal Quijano em alguns de seus trabalhos).
b. Os violentos e contínuos “reajustes” que teve e tem que sofrer essa matriz em função de sua inserção subalterna no sistema capitalista imperialista mundial, fato que ao mesmo tempo força e “deforma” a lógica interna de desenvolvimento das nossas sociedades. Por “deformação” temos que entender, nesse caso, uma acentuação muito marcada da lei do desenvolvimento desigual do capitalismo, que chega a configurar verdadeiros pontos de “atrofia” e “hipertrofia” simultâneas no aparato produtivo latino-americano.
Essas duas ordens de fatos (a e b) se encontram intimamente entrelaçados, e todo o segredo da análise dialética consiste em captar tanto sua intrincada vinculação orgânica, como o alcance e sentido de suas constantes mutações. Para a análise dialética, convém evitar dois erros frequentes: o de dissolver os problemas de alguma dessas ordens na outra, e o de analisar sua relação em termos sistêmicos, ou seja, como se se tratassem de conjuntos de relações não contraditórias.
A articulação de vários modos de produção, por exemplo, por mais que a partir do último terço do século XIX comece a caracterizar-se por um predomínio cada vez maior do modo de produção capitalista, não deve ser concebida como uma simples “refuncionalização” do pré-capitalismo pelo capitalismo. O que se dá na realidade é uma trama particular de determinações recíprocas que em última instância configuram uma modalidade específica de desenvolvimento do capitalismo.
O mesmo poderia ser dito a respeito do problema da inserção das nossas sociedades no sistema capitalista imperialista mundial. Subordinadas, estas sociedades possuem perfis e ritmos básicos próprios (de suas lutas de classes, principalmente) que geram toda uma série de “descontinuidades” e “conflitos” (contradições, em suma) naquele processo de inserção. As várias determinações que aqui intervêm configuram também modalidades específicas no seio de uma relação mais geral, que é a dos países imperialistas com os países submetidos à sua dominação.
Contudo, o que importa destacar é que um processo histórico assim determinado se caracteriza não propriamente por sua “falta de desenvolvimento”, mas por um tipo de desenvolvimento capitalista em certo sentido impetuoso, que vai acumulando uma constelação muito especial de contradições, que acabam por converter esses países em verdadeiros elos débeis da cadeia capitalista imperialista mundial, no sentido leninista do termo, ou seja, em pontos de “condensação” onde as contradições próprias do capitalismo em sua fase mais avançada (monopolista) se somam às das fases ou instâncias anteriores, incluindo as enormes sequelas do pré-capitalismo; e onde a própria “questão nacional” não foi resolvida, em razão mas mesma situação colonial, semi-colonial ou de dependência.
É sob essa ótica que analisaremos, portanto, o assunto que agora nos interessa diretamente: o do desenvolvimento e da natureza do Estado na América Latina.
Chegando a esse ponto, convém nos determos a formular duas precisões de ordem geral referentes ao problema do Estado e às formas de dominação no sistema capitalista.
a. A democracia burguesa relativamente sólida e estável não constitui a superestrutura “natural” do modo de produção capitalista, e sim a modalidade que a dominação burguesa assumiu nas áreas capitalistas “centrais” (os elos fortes), beneficiárias da enorme massa de excedente econômico extraído do resto do mundo; ou, temporalmente, em alguns países capitalistas “periféricos” (elos débeis, em princípio) que obtiveram uma participação conjuntural vantajosa na repartição daquele excedente (os casos da Argentina e sobretudo o Uruguai em determinado momento ou da Venezuela na atualidade). Fora dessas situações, que jamais chegaram a envolver mais de vinte países, a superestrutura “natural” do capitalismo não tem sido exatamente a democrática, mas sim o seu extremo oposto. Assim como existe uma lei de desenvolvimento desigual da base econômica do capitalismo, existe também uma lei de desenvolvimento desigual de sua superestrutura estatal e, portanto, do desenvolvimento desigual da democracia burguesa. O que caracteriza em última instância o Estado burguês não é a sua forma, democrática ou totalitária, mas sim sua necessidade de assegurar a reprodução ampliada do modo de produção capitalista, em condições sempre historicamente determinadas e de acordo com o lugar que cada formação econômico-social ocupa no seio da cadeia capitalista imperialista. Fora dessa “localização”, recordemos enfaticamente, o Estado capitalista simplesmente não existe: é uma abstração pura indeterminada, que não corresponde a nenhuma entidade real.
b. Os conceitos de dominação, coação e hegemonia devem ser manejados com a devida cautela. Por um lado, deve haver grande cuidado de não apresentar os conceitos de dominação ou de hegemonia como alternativos, já que o primeiro envolve o segundo como um de seus aspectos: a hegemonia burguesa é um aspecto (o ideológico) da dominação burguesa. Por outro lado, não cabe esquecer que coação e hegemonia são apenas dois momentos de um único processo histórico, cujo desenvolvimento desigual determina o predomínio de um ou outro desses “momentos”, segundo o elo capitalista de que tratemos: tendência ao predomínio da hegemonia nos elos fortes; tendência ao predomínio da coação nos elos débeis. Por qual razão? Uma breve revisão do “caso” latino-americano nos permitirá compreender melhor a situação.
Expressão de um processo das características antes assinaladas (em III), o Estado latino-americano não pode deixar de adquirir uma fisionomia específica, embora somente pelo fato de que as determinações universais de todo Estado burguês se somam às determinações particulares. A própria natureza da “sociedade civil” latino-americana impôs uma “sobrecarga” de tarefas à instância (política) encarregada de assegurar sua coesão e reprodução. Garantir o sistema de dominação que esse Estado é expressão, mas tratando ao mesmo tempo de superar as profundas lacunas que a acentuada heterogeneidade estrutural produziu na própria classe dominante ou bloco das classes dominantes; forjar as condições necessárias para o estabelecimento e vigência do “pacto” neocolonial e, simultaneamente, buscar a maneira de “regular” as fissuras, desigualdades e defasagens internas que o mesmo “pacto” acentua; condensar e expressar as tendências dominantes em cada formação social mas também “adiantar-se” em certo sentido a elas, à “luz” das perspectivas abertas pelo desenvolvimento dos países capitalistas mais avançados; tratar, enfim, de estabelecer desde cima as bases de uma hegemonia que a sociedade civil era incapaz de gerar por sua própria heterogeneidade, mas sem deixar de recorrer constantemente à “força da lei” e na maior parte das vezes, à lei da força, para evitar que as múltiplas “descontinuidades” (inclusive as culturais) e contradições acumuladas se tornem verdadeiras rupturas revolucionárias; estas são algumas (de forma alguma todas) das tarefas específicas que o Estado latino-americano teve de cumprir em seus cem anos de desenvolvimento capitalista.
Em tais condições, não é casual que nossos Estados tenham adotado em geral uma forma “autoritária” ou que tenham aparecido como uma verdadeira “protuberância” política, desmesuradamente importante perante à “sociedade civil”. Frente à debilidade de outras “trincheiras e fortificações” da classe dominante, o aparato estatal em geral e sua ramificação militar, particularmente, acabaram por converter-se não apenas na última fortaleza do sistema, mas também sua primeira. Por isso, em nossos dias, assim como há um século, o chamado “Estado de exceção” segue sendo a regra.
Conceitos como os de “autoritarismo” e “ditadura” são ainda assim muito formais e gerais para caracterizar um Estado capitalista que sofreu modificações sensíveis desde sua fase inicial “oligárquica” até sua situação atual; em cada momento de sua evolução, esse Estado tem tido tarefas muito concretas a cumprir, em função das correspondentes etapas pelas quais atravessou o desenvolvimento do capitalismo na América Latina, e é isso o que interessa aqui analisar a respeito da atual etapa.
O perfil do atual Estado latino-americano só pode ser compreendido se levarmos em conta que a exaustão de toda uma fase do desenvolvimento capitalista (vale dizer, de determinada modalidade de acumulação) abriu em nossas sociedades uma situação de crise aguda que pôs na ordem do dia duas opções: a de uma transformação revolucionária do sistema imperante, ou então, a sua reestruturação em termos social e politicamente reacionários, mas que apontam ao estabelecimento de uma nova fase do desenvolvimento capitalista.
Não creio ser necessário insistir aqui em algo que é conhecido de todos: a diversidade e crescente amplitude das lutas sociais na década de 60 e começo de 70, em resposta às quais foi se acentuando o caráter repressivo do Estado latino-americano. Insistirei, no lugar, no outro aspecto da questão, ou seja, no papel que o Estado foi adquirindo como “remodelador” de toda a sociedade.
A primeira tarefa que o Estado cumpriu nesse sentido na maior parte dos países latino-americanos foi a de cancelar de uma vez por todas o projeto de desenvolvimento nacional autônomo, implantando em seu lugar um modelo de desenvolvimento “associado”, ou seja, perfeitamente inserido em uma perspectiva de transnacionalização dos setores chave da nossa economia. É certo que em alguns países se desenharam conjunturalmente projetos burgueses que pareciam marcar uma trajetória oposta, de recorte mais nacionalista, mas nunca é demais lembrar que foram de duração efêmera (casos do Peru, Equador e Honduras). O movimento geral foi, então, na outra direção, implicando em pelo menos duas coisas:
a. A reestruturação do bloco burguês, em cujo seio a fração monopolista adquiriu plena primazia. A respeito disso devemos apontar algumas questões. Por um lado, que não se trata apenas da fração burguesa estrangeira, mas também da fração burguesa monopolista nativa, que indubitavelmente se conformou com o curso do desenvolvimento capitalista latino-americano. De forma que agora o capital imperialista já não se apoia, como antes, em um setor burguês local simplesmente comprador (intermediário), mas em um sócio certamente menor, mas de mesma natureza econômica. Estrita e rigorosamente, a burguesia compradora tende a desaparecer do cenário histórico latino-americano, onde os principais fracionamentos da burguesia passaram da burguesia agrária, industrial e comercial para a burguesia monopolista e não-monopolista. É falso, portanto, que o Estado latino-americano atual representa uma aliança de si mesma (?) com o capital estrangeiro sem uma determinação interna de classe; como é falsa a tese de que através desse Estado se expressa uma “burguesia burocrática”, definida como tal por sua inserção no aparato estatal. De fato, o aparato burocrático é a expressão do predomínio da fração monopolista transnacional, cujo um dos componentes é o setor monopolista nativo.
b. Uma questão distinta, e a princípio definidora da fase atual do desenvolvimento do Estado latino-americano, é a fusão da força política deste com a força econômica do capital monopolista, fato que equivale à conformação de um capitalismo monopolista de Estado. Insisto nessa questão, já que ela parece definir a evolução do nosso Estado de maneira muito mais precisa que seus traços “burocráticos” ou sua ideologia de “segurança nacional” que em todo caso derivam do que é anterior, e não o inverso. As modalidades concretas de ação desse capitalismo monopolista de Estado não são estritamente idênticas às que se mostram nos países imperialistas, em virtude da própria condição supracitada de nossas formações sociais.
Assim definido o caráter de classe desse Estado, somos capazes de compreender melhor o modelo econômico que busca-se implantar, assim como as tarefas que para isso o Estado tem de cumprir.
Nessa perspectiva, a primeira coisa que convém esclarecer é que não se trata apenas de um processo de transnacionalização da propriedade, mas de transnacionalização de toda a estrutura econômica. Queremos dizer com isso que o desenvolvimento do aparato produtivo obedece mais do que nunca ao movimento do sistema capitalista em seu conjunto, antes de exigências estritamente nacionais. Fala-se com razão de uma nova divisão internacional do trabalho, que transfere importantes setores da produção industrial para áreas dependentes, em um movimento que não obedece a desígnios arbitrários, mas a novas condições de valorização do capital que se criaram nessas áreas.
Essas novas condições de valorização são um produto histórico complexo, das quais podemos assinalar, além de questões secundárias, os seguintes componentes:
a. Um resquício de exigências “naturais”, que em síntese, se reduzem à existência de determinadas matérias primas ou à proximidade de certos centros hegemônicos, sempre que a isso se somem alguns fatores.
b. A existência de um mercado local de alguma magnitude, assim como de certas “economias externas”.
c. Sobretudo, a existência de mão de obra barata, inclusive de certa qualificação, e de seguridade política para a inversão estrangeira.
As exigências naturais escapam à ação do Estado, mas a existência das demais condições depende sobretudo dele, e portanto, se impõem como sendo tarefas históricas que esse Estado tem que cumprir. O assinalado em b é antes de mais nada uma herança das fases anteriores (principalmente a dimensão relativa ao mercado interior), de forma que a ação presente do Estado se concentra especialmente nas tarefas assinaladas em c. Desde o momento em que o Estado do capital monopolista se consolidou através de uma intensa luta de classes, esmagando os movimentos populares que buscaram escapar de seu controle, a garantia política está dada e o grande capital tem pouco o que temer a curto prazo. A tarefa seguinte consiste em assegurar a existência de uma mão de obra barata, e como na fase precedente as lutas operárias elevaram o nível dos salários a limites que o capital monopolista considera pouco “atrativos” (ainda mais em um momento de crise), o Estado se encarrega de baixá-los até que se tornem uma real “vantagem comparativa”. O mecanismo empregado para isso (com punho de ferro, naturalmente) é fartamente conhecido: política econômica liberal (sem controle de preços) para todas as mercadorias exceto uma: a força de trabalho. É sintomático o fato de que nem mesmo a grandeza do exército industrial de reserva, que nesse período cresceu abundantemente, basta para colocar o preço da força de trabalho nos níveis que apetecem ao capital monopolista. Esse preço, já que abaixo de seu valor histórico, tem que ser fixado mediante a coerção estatal.
Sobre essas bases, o fluxo de capital estrangeiro se dá em grandezas diversas, e quando flui significativamente, é um fato que acelera o desenvolvimento capitalista na área, às custas, é claro, da miséria das massas populares e, em geral, da acentuação das desigualdades em todos os níveis da formação social “hospedeira”.
A burguesia monopolista nativa sai, ainda assim, beneficiada desse processo; mais ainda, é através disso que ela se realiza e cumpre com sua “missão” histórica: extrair a maior quantidade de mais-valor da classe trabalhadora e acelerar a acumulação de capital. Mesmo assim, a burguesia latino-americana não é um todo homogêneo: o processo de concentração e centralização de capital, que se desencadeia sob o capital monopolista, acarreta na ruína de grande parte dos setores não monopolistas, que por um lado não têm a rigor nenhum projeto próprio a oferecer nessa altura da história, e por outro, o temor às massas, até pouco tempo atrás enfervescidas, os converte na cauda política do setor monopolista. Em todo caso, este acaba por impor seu predomínio, reduzindo ao mínimo o espaço de expressão dos setores “nacionais”. A contradição, no entanto, continua existindo, condicionada a uma correlação de forças mais geral.
Na medida em que o grosso da acumulação do capital passa a gravitar em torno da pauperização absoluta das massas populares locais, se coloca a esta fase um problema de realização para o qual o sistema encontra finalmente três saídas:
a. A ampliação da esfera interna de consumo da burguesia e dos estratos superiores das camadas médias.
b. A redefinição das diretrizes de consumo das classes trabalhadoras, que ao mesmo tempo que pioram notavelmente suas condições de saúde, alimentação, educação básica, moradia e similares, incrementam seu consumo de certos bens industrializados, como rádios, televisões, etc.
c. A busca de mercados exteriores.
Como que para abrir um desafio a certas teses, os mencionados mercados exteriores não são os dos países mais atrasados, ou apenas o são de forma secundária, mas se tratam em geral dos mercados dos países capitalistas mais avançados, o que introduz contradições muito particulares no interior do sistema capitalista imperialista em seu conjunto. E é aqui onde reaparece o aspecto “nacional” do problema, que a transnacionalização parecia ter abolido completamente. Cada setor burguês reivindica, obviamente, o respaldo de seu Estado, no mesmo passo em que esse Estado tenta negociar as melhores condições no plano internacional. As contradições inter-burguesas dão então origem a tensões inter-estatais, que não chegam a se tornar contradições antagônicas, mas sem deixar de serem importantes. O grau e a evolução dessas tensões depende, no entanto, de muitos fatores que vão desde os puramente econômicos até as particularidades da índole propriamente política.
A implementação do capitalismo monopolista de Estado na América Latina está também carregado de uma enorme ambiguidade a respeito do desenvolvimento do setor econômico estatal. Em alguns casos, a tendência ao seu desmantelamento parcial é muito clara, como no Chile, Argentina ou Uruguai. Nesses países, houveram processos massivos de “privatização” da economia, como etapa anterior à sua transnacionalização. Na verdade, se trata do desmantelamento de todos aqueles níveis que a rigor não haviam se conformado como expressão antecipada do capitalismo monopolista de Estado, mas sim como uma manifestação do capitalismo de Estado, de orientação nacional populista como na Argentina, ou como um embrião de economia social, como no Chile. Em outros casos, como o do Brasil, o setor da economia estatal apenas se torna mais robusto, e nesse sentido parece haver continuidade entre a fase anterior e a atual. Mas tal continuidade é apenas aparente, já que além dela se produz uma refuncionalização desse setor em razão das necessidades do desenvolvimento do capital monopolista. De toda forma, chega um momento que é o atual, em que a dimensão do setor estatal aparece como muito volumosa frente à esfera privada, o que origina uma série de pressões desta em favor de um processo de privatização.
Por fim, a implementação do capitalismo monopolista de Estado é acompanhada geralmente de uma drástica redução dos chamados gastos sociais, coisa que no limite adquire o caráter de uma verdadeiro desmantelamento do Estado “benfeitor”. A economia se privatiza também por este lado, e ao menos nos países onde o novo modelo econômico tem grandes dificuldades em “decolar”, apesar de todo o reordenamento operado, ele tende a produzir dois efeitos:
a. Uma redução ainda maior dos salários reais.
b. Uma desocupação crescente no seio das camadas médias tradicionais, que, regra geral, são os responsáveis pelos serviços assistenciais, educativos, etc. Por esse lado há também uma espécie de redistribuição regressiva da renda.
A exposição até aqui permite compreender por que o Estado latino-americano apresenta um desenvolvimento histórico particular, na medida em que a acumulação de contradições da “sociedade civil” determina uma correlacionada acumulação de tarefas “reguladoras” para a instância política, que em última instância só pode assegurar a reprodução ampliada do sistema recorrendo a uma dose muito grande de autoritarismo.
Na fase atual, a implementação do capitalismo monopolista de Estado tampouco poderia ser levada a cabo de maneira democrática, ainda que somente pelo fato de que a reorganização social que tem de ser operada implica não em uma atenuação das contradições de classe, mas sim em sua extrema intensificação. Além disso, está claro que a transnacionalização dos setores de ponta das nossas economias, e portanto sua modernização, não supõe um processo de homogeneização da sociedade latino-americana, mas ao contrário, a acentuação de sua heterogeneidade. Por mais que ao longo dessa etapa tenham sido criados alguns elos relativamente fortes, a área em seu conjunto permanece sendo um elo débil da cadeia imperialista.
Tudo isso cria para a América Latina uma situação muito particular. Por um lado, baseia a aparente consistência dos regimes totalitários, que estão longe de consolidar um real apoio de massas; superado o momento mais duro da repressão, o movimento popular reaparece com vigor na cena histórica, ainda que com dificuldade de adaptação às novas condições de luta e aos mesmos perfis da estrutura de classe que o desenvolvimento capitalista, em muito pontos impetuoso, forjou. Por outro lado, os setores mais “visionários” da classe dominante tentam “adiantar-se” aos acontecimentos e evitar “o pio”, flexibilizando até onde for possível as suas estruturas autoritárias de dominação. Mas essas estruturas têm seu limite de elasticidade, em que uma política como a dos “direitos humanos” de Carter ou um saudosismo como o social-democrata, de transplantar a doce hegemonia burguesa do “centro” até a “periferia”, se chocam em geral com a lógica implacável da acumulação de capital nessas áreas, onde o capitalismo não pode se desenvolver de outra maneira que não sobre sobre as condições históricas já dadas, impossíveis de modificar da noite para o dia, à vontade.
Se busca, de qualquer maneira, uma fórmula de “democracia viável” que sirva de válvula de escape das contradições acumuladas, no passo em que, por sua vez, o movimento popular trata de criar espaços democráticos cada vez mais amplos, através dos quais a luta de classes pode sair em campo aberto. A questão da democracia se põe dessa forma na ordem do dia como a encruzilhada em que se cruzam muitos caminhos, incluindo o que conduz ao socialismo. Porque a histórica, recordemos, hoje como antes, segue avançando pelo “lado ruim”, ou seja, pelos elos débeis do sistema. A cadeia imperialismo não se quebrou (nem será quebrada tão cedo) nos Estados Unidos ou na Alemanha, e nem mesmo na França ou na Itália, onde os avanços “teóricos” parecem substituir, antes da expressão de uma transformação revolucionária ad portas, de forma que seguirá quebrando em pontos como o Vietnã, Laos, Camboja, Angola, Etiópia e Nicarágua.
Inclusão | 09/05/2019 |