O Império de Havana

Enrique Cirules


III. A Era da Cocaína


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Lucky Luciano vinha utilizando Cuba como ponto intermediário entre as fontes abastecedoras de heroína e os mercados consumidores da América do Norte. E o representante em Havana desses canais era o córsico Amleto Battisti y Lora.

Battisti aparecia em algumas ocasiões acompanhando o presidente da República; conhecido e aceito como prestigiado homem de negócios, na indústria e nas finanças, e sendo um estrangeiro, apesar de ser notórias suas atividades mafiosas, conseguiria inclusive imunidade parlamentar pelo Partido Liberal.

A Máfia encontrou em Havana o seu mais seguro elo de ligação; se a droga chegava à capital cubana, virtualmente encontrava-se nos Estados Unidos, através de um intenso tráfico aéreo e marítimo. Para isso, não usavam só os aeroportos militares, mas pistas aéreas particulares, pertencentes aos hierarcas das cúpulas político-militares batistianas autênticas, nas cada vez mais numerosas fazendas que estavam sendo adquiridas nas províncias ocidentais.

Sobretudo é necessário frisar que foi a Máfia norte-americana que inaugurou, em Cuba, a era da cocaína, trinta anos antes de essa droga se popularizar nos Estados Unidos. Naquela época, a droga consumida em maior quantidade na América do Norte era a heroína, e a entrada de cocaína sul-americana nos mercados americanos teria significado um desafio aberto às famílias mafiosas de Havana e aos interesses de Lucky Luciano nos Estados Unidos.

O autenticismo chegou ao poder quando o Estado de caráter criminoso se encontrava perfeitamente montado e engrenado, assumindo o compromisso de, com o apoio de uma democracia delirante, reprimir ferozmente os comunistas e o movimento sindical cubano. É justamente com o seu surgimento que a Máfia norte-americana, radicada em Cuba, organizou o tráfico e o consumo de cocaína na deslumbrante Havana, utilizando, entre outros meios, a criação de uma empresa aérea denominada Aerovias Q, que inicialmente apareceu sob a égide do doutor Indalecio Pertierra, representante na Câmara da província de Las Villas. Pertierra dirigia também outras operações, com o auxílio de Tuto e Cocky, incluindo os negócios no Hipódromo Oriental Park de Marianao.

Desde sua fundação, em 1945, as Aerovias Q começaram a operar nos aeroportos militares utilizando gasolina, peças de reposição, manutenção e pilotos da Força Aérea cubana, com a autorização expressa do presidente Grau San Martín. Muito rapidamente, as Aerovias Q realizavam um voo semanal: Havana-Camaguey-Barranquilla-Bogotá. Um poderoso laboratório de Medelim produzia pó para Santo Trafficante (pai). Tudo parece indicar, porém, que Camaguey e os personagens da política autêntica, vinculados aos negócios dos laboratórios farmacêuticos ou drogarias, constituíam parte essencial nos elos do tráfico.

A cocaína nem sempre chegava diretamente à capital cubana, mas era transportada no próprio aeroporto de Camaguey. Naquela época, era fácil adquirir um papelote de pó, na rede de locais noturnos de Havana, para o turista endinheirado ou os grupos de poder.

Logo, apenas à custa do consumo de cocaína, os lucros representaram mais recursos do que se podia obter com as safras açucareiras. Foi tal o crescimento desse negócio que, no princípio da década de 40, as organizações internacionais começaram a realizar importantes concessões de papel da Ilha para o tráfico e o consumo de drogas. Utilizando algumas dessas considerações, Antonio Gil Carballo, em um artigo da revista Bohemia intitulado “El tráfico de drogas en Cuba”, denunciava em 1944 que:

O tráfico de drogas em nosso país é cada vez mais alarmante, não somente na capital da República, mas em toda a Ilha; o vício dos estupefacientes encontrou milhares de adeptos, sem dúvida alguma pela despreocupação oficial em reprimir esse monstro, em cujos tentáculos fica o bem mais precioso de seu povo: a juventude. A gravidade deste problema que venho observando, por todos os meios a meu alcance e em caráter estritamente pessoal, há mais de oito anos é maior porque tal situação criminal não só persiste como aumenta, pois quatro bandidos inseridos em altas posições oficiais lucram covardemente com este estado de imoralidade que tanto prejudica o nosso prestígio e a nossa moral.

Em todos os lugares, observei os erros oficiais e até registrei aqui, por exemplo, a intervenção culposa de nossas autoridades. Tudo foi inútil, porque o vício continua em caminho ascendente e os traficantes poderosos continuam suas atividades, evadindo-se dos problemas judiciais.

O consumo de narcóticos importados ilicitamente foi, em comparação com outros países, dez vezes superior.

O tráfico foi tão elevado que, em relação a isso, Cuba ficou em primeiro lugar, segundo as estatísticas mundiais.

No aspecto do tráfico ilícito, fomos designados pelas demais nações como o centro conspirativo da estabilidade social das Américas e como uma forte quinta-coluna da saúde de todas as nações unidas. (3)

Havana tornara-se um lugar onde os mafiosos exibiam de maneira cada vez mais aberta a sua presença. Se com o Batista, de 1934 a 1944, as atividades do Estado (sobretudo as relações com a Máfia) tinham sido manejadas com uma certa dose de discrição, com os autênticos as famílias de Havana começariam a operar com grande desembaraço: pouco a pouco iam ficando para trás aquelas medidas de segurança impostas por Lansky durante o processo de criação do Império de Havana.

Ao terminar a II Guerra Mundial, como parte dos compromissos contraídos, o governo norte-americano liberou Lucky Luciano de sua condenação, em reconhecimento aos serviços prestados por ele à democracia norte-americana. Luciano pretendia radicar-se outra vez em Nova York, para seguir dirigindo seus negócios; porém, provavelmente outros interesses mafiosos, encabeçados por D. Vito Genovese (que ambicionava ser o novo chefe da Máfia americana), começaram a mover contatos secretos para que Luciano fosse deportado para a velha Sicília e nunca mais pudesse regressar.

Em junho de 1946, quando fazia vários meses que estava em seu país de origem, Luciano abandonou clandestinamente a Sicília; fez-se silêncio sobre seu destino. Atravessou a baía, instalou-se no luxuoso hotel Excelsior de Nápoles e, quando os funcionários encarregados de arranjar sua documentação concluíram seu trabalho, mudou-se de novo, secretamente, dessa vez para Roma, onde passou a ocupar uma luxuosa suíte na Via Veneto, à espera dos correios.

Nos primeiros dias do outono, chegou uma mensagem lacrada, cifrada. Havia várias semanas que não tinha notícias de Nova York e menos ainda de Havana; mas a mensagem afinal recebida era um tanto imprecisa: Dezembro, Hotel Nacional.

Sem dúvida, essas três palavras soaram desconcertantes. O que pretendia realmente Lansky? Será que a última reunião ordenada com toda a irmandade seria realizada em dezembro? Será que os acertos que se realizavam em Cuba só poderiam concretizar-se em dezembro?

A conversa que manteve com o correio foi ainda mais inquietante; tratava-se de um velho amigo, que trazia notícias muito frescas; os capos que dirigiam as mais importantes famílias na América do Norte se mantinham na expectativa, porque Genovese começara a atuarem Nova York como se Luciano nunca mais fosse regressar.

O correio também trouxe informações de Costello. Frank lhe mandavadizer que o da Califórnia se complicava cada vez mais e beirava atraição. Buggy Seigel estava se apropriando dos fundos, negando-se além disso a dar explicações.

Naquela mesma tarde, Luciano enviou o correio. Estava de posse não de um, mas de dois passaportes, totalmente legais, em nome de Salvatore Lucania; também tinha em seu poder uma série de vistos, com os quais podia percorrer países da Europa e da América; e, claro, contava com um belo visto que lhe permitia entrar em território cubano.

O vice-cônsul de Cuba em Roma lhe fez chegar a documentação na manhã de 19 de setembro de 1946. Luciano partiu naquela mesma tarde, em voo para Barcelona, onde, quatro dias depois, pegou um avião que o deixaria em Lisboa.

A estada na capital lusitana foi muito mais breve, antes de empreender o grande salto; mas o avião em que Luciano atravessou o oceano não se dirigia para o México, nem para a Venezuela, nem para a Colômbia, nem para nenhuma outra ilha do Caribe, mas para uma das mais belas cidades do Brasil.

Os equívocos históricos que logo se produziram em função do trajeto que Lucky Luciano realizou antes de chegar a Havana tiveram origem, sem dúvida, nos numerosos vistos que levava, pois em 1946, exceto algumas relações que possuía Lansky ou Santo Trafficante (pai), a Máfia norte-americana não tinha ainda grandes vínculos com os países centrais da América do Sul.

É provável que entre os planos de Luciano também estivesse fazer contatos com os produtores de cocaína ou com intermediários que controlavam pequenos negócios, ainda que naquela época já fosse fácil adquirir, nas principais cidades cubanas (sobretudo nessa rede de turismo da deslumbrante Havana), pó a um custo que só estava ao alcance dos setores endinheirados.

Era de conhecimento público que, nas festas e nos saraus organizados nos mais elegantes bairros residenciais, clubes, cassinos e grandes cabarés ou nos esplêndidos bordéis da capital, a cocaína era abundante como água nas cascatas.

Luciano chegou ao aeroporto do Rio de Janeiro em 27 de setembro; era o preâmbulo do que ele encontraria na fabulosa ilha de palmeiras e mulatas, com a diferença de que na cubanidade de Ramón Grau San Martín tudo era legal, duradouro, estável, em um mundo em que reinava a maior impunidade.

Poucos dias depois, já se encontrava em Havana. Entrou em Cuba pelo aeroporto internacional de Camaguey, em voo direto do Brasil. O que é discutível é o fato de Lansky conhecer ou não a data e o lugar de sua chegada. Nesse sentido, há testemunhos contraditórios. Alguns que, por razões óbvias, preferem o anonimato asseguram que o primeiro surpreendido foi Lansky. No entanto, outros personagens que estiveram vinculados às redes de Havana afirmam que a maior surpresa quem teve foi o próprio Luciano. Não havia comunicado a sua chegada e, mesmo assim, quando desceu do avião encontrou vários carros de luxo de um lado da pista e Lansky à sua espera, com vários guarda-costas.

Almoçaram no Grande Hotel, o lugar mais afamado do interior do país; do terraço, podia-se observar toda a cidade, com suas ruas tortuosas, sinos e telhados cinza.

O almoço foi sofisticado: foram servidos os mais deliciosos pratos, acompanhados do bom rum santiaguero; à noite, compareceram a uma ceia na casa de campo do ministro, dono da grande drogaria da rua Avellaneda. Foi uma ceia típica: feijão preto, arroz à marinheira, saladas nativas, abacate, abacaxi e suculentos pedaços de porco assado. Além da guarda siciliana, estiveram presente o capitão da polícia local e vários civis.

Luciano chegou a Havana com dois meses de antecedência. Sua entrada no Hotel Nacional deu-se sob uma chuva intensa, com vento forte e trovões produzidos por uma dessas tormentas tropicais; mas, ao cabo dos anos, recordaria um instante memorável no brilho daqueles dias:

O empregado correu a cortina das janelas grandes e eu dei uma olhada. Podia ver quase toda a cidade. As palmeiras me chamaram a atenção. Em toda parte havia palmeiras, e senti como se estivesse em Miami. De repente, me dei conta de que, em mais de dez anos, eu não estava casado e ninguém estava ao meu lado, algo que já sentira ao passear pela Itália. Quando olhei para o Caribe, da minha janela, me dei conta de algo mais: a água era tão bela como a da baía de Nápoles, mas eu estava só a 90 milhas dos Estados Unidos e isso significava que estava praticamente de novo na América.(4)

Encantou-o o quarto 924 do Hotel Nacional, lugar muito simpático, sobriamente luxuoso, na medida do bom gosto, e que possuía apenas o indispensável. O hotel também dispunha de um salãozinho para os mandatários e de um elevador ornamentado com ferragens douradas, para uso exclusivo da Primeira Magistratura.

Na ausência dos terríveis ciclones, outubro costumava ficar dominado por uma limpidez quase irreal. Dezembro seria um desafio. Em dezembro apareciam os ventos do norte, úmidos e impetuosos vendavais que costumavam se chocar com os rochedos sobre os quais ficava o hotel. Fulgêncio Batista já não estava lá, mas Lansky assegurava que sua influência ainda podia ser sentida. Onze anos de poder era um espaço de tempo considerável; portanto, ficavam sua incontáveis marcas: os inúmeros políticos que acreditavam estar descontentes ou ressentidos, que se diziam inimigos do general, quando na realidade respondiam a qualquer solicitação sua, por mais escabrosa que fosse. O poder que havia sido forjado por Batista durante mais de uma década afinal ficara mesclado, disperso, diluído nessa outra cúpula do poder aparente, cujo mais excelso representante era um doutor em Fisiologia. O terceiro poder, cada vez mais ilimitado, era o dos invisíveis, sempre tão próximos nessa ilha dos interesses da Cosa Nostra. Os dois poderes ou os três, quase paralelos. Todos e cada um, contanto que os negócios confluíssem.

A reunião de Havana havia sido convocada para dezembro de 1946. Naquele momento, a situação da Máfia norte-americana não podia ser melhor. Haviam acumulado fabulosas fortunas; iniciava-se uma crescente penetração em importantes áreas da economia dos Estados Unidos, incluindo o sistema bancário e espaços vitais da política. Dito com outras palavras: compravam, subornavam, corrompiam, na medida em que avançava o processo de legalização de grandes fortunas, em um entrelaçamento com o capital financeiro, que ia se tornando cada vez mais ostensivo e, ao mesmo tempo, mais tolerável sem abandonar os interesses tradicionais — como a abertura do Império de Las Vegas, as cadeias do turismo da Flórida ou os investimentos legais.

Lansky continuava tendo interesse no sul da Flórida, mas não existia nem nos Estados Unidos um lugar em que as operações ficassem tão impunes como em Cuba. Assim, a elite de Havana assistiria à reunião da Máfia americana. Talvez umas quinhentas pessoas, entre chefes e subchefes de famílias, diretores, guarda-costas, assessores, convidados especiais e mais de cem advogados vinculados aos grandes negócios.

Fecharam o Hotel Nacional para um concílio de vários dias (as reuniões foram feitas entre 22 e 26 de dezembro de 1946), efetivando um dos maiores encontros realizados até então, presidido por Charles Lucky Luciano, Frank Costello, dom Vito Genovese, Alberto Anastasia, Meyer Lansky e outros. Naqueles dias próximos ao Natal, até o inefável Frank Sinatra viajou a Havana para cantar em homenagem a Luciano, enquanto se reordenavam as esferas de influência, não só nos Estados Unidos, mas também nas mais importantes zonas do Caribe.

Nas mais luxuosas suítes, não se pedia caviar, nem filé, nem lombo, nem champagne, mas aqueles deliciosos ensopados de caranguejo ou de peixes raros trazidos das ilhotas do Sul, peitos de flamingo ao forno, ensopado de cágado e assado de tartaruga com suco de limão e alho; lagostas de Cojimar, ostras de Sagua, lascas de imperador grelhadas e as deliciosas pernas de veado à parrilha, enviadas por aquele ministro criador de gado de Camaguey; ou, então, a textura incomparável e suculenta das carnes de manatí, sua variedade de sabores. Exigia-se também um bom rum, cuidadosamente envelhecido; charutos Montecristo e, à mesa, cerveja Hatuey ou Tropical.

Comiam duas ou três vezes durante a noite, enquanto bebiam, discutiam ou precisavam importantes questões; às vezes, chamavam o Palácio Presidencial em horários não-convencionais.

Mike Miranda, que tinha negócios com agências de automóveis, máquinas de jogo, hipódromos, companhias de seguros e, sobretudo, uma grande experiência no domínio de sindicatos, confirmou sua presença na reunião. Outro que confirmou com prazer sua presença foi Joseph Magliocco. Seus interesses relacionavam-se com bebidas, empresas de importação e exportação, cadeias de lavanderias e distribuição de óleo de oliva; ele tinha, também, grande influência nos sindicatos.

Claro que dom Vito Genovese também compareceu. Os interesses de dom Vitone incluíam hipódromos, negócios de importação e exportação, empresas de anúncios, cadeias de restaurantes e bares, e até mesmo as atividades portuárias. Mas, sobretudo, o mais importante era que, naquela época, dom Vito pretendia se tornar o chefe da Máfia norte-americana, para que pudesse controlar inteiramente o tráfico de drogas.

Os negócios eram diversos, complexos, mesclados. Giuseppe Bonnano respondeu também de maneira positiva. Os interesses de Joe Bonnano giravam em torno das empresas funerárias, das indústrias de roupas, importação e exportação, de cadeia de lavanderias e da distribuição de óleo de oliva e de queijos.

Ficaria muito extensa a lista dos interesses e negócios que possuía cada um dos capos que viajaram a Havana no final de 1946. Resta-nos apenas dizer que concorreram os principais chefes de famílias de Nova York e de Nova Jersey: Joe Adonis, Alberto Anastasia, Frank Costello, Tommy Luchese, Joe Profaci, Willie Moretti e Angie Pisano. Representando Chicago, estiveram presentes Tony Accardo (um dos principais conselheiros) e os irmãos Charles e Rocco Fischetti, primos e herdeiros de Al Capone.

Diz-se que Al Capone enviou uma saudação a seu amigo Lucky: embora tivesse saído da prisão, não podia assistir à reunião porque agonizava de sífilis cerebral, em uma de suas mansões em Palm Beach.

Compareceram a Havana, também, Carlos Marcello, vindo de Nova Orleans; Steve Magaddino, representando as famílias de Búfalo da Flórida, o velho Santo Trafficante.

A Máfia considerou que o Hotel Nacional era o lugar mais tranquilo do mundo. O primeiro andar foi reservado para as deliberações, para uma reunião de homens de negócios; à noite, ali eram oferecidasas mais encantadoras festas, com os detalhes mais refinados. Então, o Nacional era todo sossego, diversão, com mulheres escolhidas nas listas do Tropicana, do Montmartre e do Sans Souci ou nas Casas da Marina.

Era de primeira ordem no que se refere à tranquilidade dos hóspedes. Que ninguém fosse se sentir molestado, ameaçado, naquele memorável encontro. Mas, em 29 de novembro de 1946, os 480 empregados do Hotel Nacional decretaram uma greve(5), exigindo um aumento de 30% em seus salários. Tudo ficou deserto: bares e salões, a cozinha, a garagem, a portaria; as mesas ficaram sem serviço; não havia quem limpasse um vômito, servisse um trago ou trouxesse um pacote de cigarros. A gerência chamou seus advogados e pôs rapidamente o caso nos tribunais; mas, como era algo de maior envergadura, o assunto passou imediatamente ao despacho da Presidência. Grau e seu primeiro-ministro, Carlos Prío Socarrás, dispunham-se a tomar sérias medidas. Haviam convocado no Palácio a gerência do hotel e os representantes dos grevistas. O Hotel Nacional havia concedido 25% de aumento, mas os trabalhadores do restaurante queriam 30; até que, na última hora, a Presidência recebeu uma chamada dos invisíveis comunicando que tinham concordado com o aumento de 30% e que desejavam que, naquela temporada de inverno, clientes e servidores se relacionassem com harmonia.

Para alojar os auxiliares reservou-se uma boa quantidade de quartos nos hotéis Presidente, Inglaterra e Sevilla Biltmore; no aeroporto de Boyeros e em outros lugares da cidade, foram tomadas algumas medidas de emergência. O Hotel Nacional fechou suas portas para jornalistas, policiais e funcionários do governo cubano.

Cinquenta carros com motoristas e uma seleta comissão de recepção foram colocados à disposição dos convidados, para o caso de algum deles se atrasar por algum motivo.

Os acessos ao hotel também foram vigiados por homens selecionados, além dos jardins, das entradas do Malecón e dos caminhos que conduziam à rua O, discretamente.

Dada a envergadura da reunião de Havana e para evitar qualquer risco, tudo foi planejado e calculado. Em 15 de dezembro de 1946, justamente uma semana antes da chegada dos convidados (que deveriam aparecer no dia 20 ou 21), a National Airlines inaugurou um serviço direto entre Havana e Nova York.

A cobertura formal para uma reunião dessa envergadura foi uma viagem que um grupo de admiradores de Frank Sinatra realizou a Havana. O cantor havia sido convidado por um milionário italiano para receber uma homenagem nos elegantes salões do Hotel Nacional de Cuba. Em relação a isso, o próprio Luciano nos disse:

Se alguém tivesse perguntado, havia uma razão aparente para tal reunião. A festa era uma homenagem a um jovem italiano de Nova Jersey, chamado Frank Sinatra, o cantor que se tomara ídolo dos adolescentes do país. Viera de Havana com seus amigos, os Fischetti, para conhecer seu amigo Charlie Luciano e para comparecera uma festa de gala em sua honra durante a semana. Frank era um bom menino e todos estávamos orgulhosos dele, do modo como havia chegado ao estrelato. Trabalhava para a banda de Tommy Dorsey e ganhava uns 150 dólares por semana; mas necessitava de publicidade, roupas, vários instrumentos musicais, e tudo isso custava bastante dinheiro; acho que foram uns 50 ou 60 mil dólares. Dei um sinal verde para a questão do dinheiro, que saiu do fundo, ainda que alguns meninos puseram algum extra, como contribuição pessoal. Tudo isso o ajudou a converter-se em uma grande estrela, e agora demonstrava a sua gratidão, vindo a Havana para saudar-me.(6)

Anthony Summer, em seu livro The secret lives of Marilyn Monroe, toma como fonte diversos textos publicados pela revista Time, para assegurar que, no caso de Sinatra, se trata da:

Imagem popular de um gângster, modelo 1929. Tem uns olhos brilhantes e ferozes e seus movimentos remetem à elasticidade do aço. Ele fala com a boca retorcida, veste-se de forma chamativa, estilo George Raft: camisas escuras, usa gravatas claras e de fundo branco, com desenhos. É amigo de Joe Fischetti, um personagem do que resta do bando de Al Capone, que uma vez se meteu numa grande encrenca por andar com Lucky Luciano em Havana.(7)

A presença de Luciano na capital cubana foi realmente muito ruidosa; depois de concluído o conclave de 1946 (no qual se discutiram esferas de influência, problemas territoriais, o assunto do tráfico de drogas e a abertura do Império de Las Vegas com o muito famoso Hotel Flamingo), Luciano dedicou-se a uma vida de festanças e saraus, corridas de cavalos, romances e encontros maravilhosos.

Ao terminar aquela reunião, todos partiram alegando problemas pessoais. Lansky também foi embora para a Flórida, mas Luciano não: ele não pretendia distanciar-se de Havana. Procurou um círculo especial de amigos, abandonou o Hotel Nacional e foi instalar-se no exclusivo bairro de Miramar, a umas poucas quadras da mansão particular do presidente Grau San Martín. A rua 30 era seu refúgio; dispunha de uma casa verdadeiramente segura, com saídas para um lugar muito deserto ou para a rua Terceira, a pouco mais de 100 metros da Quinta Avenida.

Duas semanas mais tarde, um grupo de seletos norte-americanos que morava no mesmo bairro já sabia da sua presença, e logo começaram achegar convites à casa número 29.

Durante aqueles dias, Luciano foi quase feliz. Havana ia-se tornando o lugar ideal para ele. Inclusive, na maior parte do tempo, deslocava-se apenas com dois guarda-costas, escolhidos por Neno Pertierra. Um dos pistoleiros havia sido dealer no cassino Montmartre; chamava-se Armando Feo e dizia-se que era muito bom atirador, tinha nervos de aço e modos de grande senhor.

O outro era um sujeito de aspecto elegante, conhecido pelo apelido de Trabuco, com uma fama bem conquistada de homossexual ativo, que a Máfia utilizava para resguardar os cassinos de visitas indesejáveis.

Luciano já havia conhecido Paco Prío. “Um de nossos melhores amigos”, disse Lansky, com certo orgulho, no dia em que ele lhe foi apresentado. “É irmão do primeiro-ministro e sem dúvida um dos políticos mais importantes. ”

Mas o chefe da Máfia norte-americana deixava constantemente, sob qualquer pretexto, Armando Feo na residência da rua 30 e, com seu mordomo na direção, saía para entrevistar-se com o italiano Barletta ou com o córsico Battisti.

Barletta chegaria a ser um dos mais influentes personagens de Cuba; possuía a representação exclusiva da General Motors e, no transcurso dos anos, seus negócios como membro importante da irmandade iam se ramificando até alcançar grandes investimentos. Montaria tambémseu banco e se dedicaria inteiramente a transações para legalizar enormes capitais. Chegou a controlar alguns negócios nos Estados Unidos e assumiu o controle de importantes meios de imprensa na Ilha; mas, nos dias em que se reunia quase diariamente com o senhor Lucania, dom Amadeo era nada menos que um perseguido.

O outro personagem (Battisti) sempre se havia movido nas instâncias mais influentes e em um passado não tão longínquo se havia encarregado do mais forte banco de terminais de Havana, sem contar que estivera à frente do Hipódromo e fora responsável pelo Casino de la Playa.

Luciano continuou recebendo convites de norte-americanos ricos. Tudo era muito agradável e digno numa das mansões da rua Paseo, onde nem Sequero deixavam chegar: esperavam-no no amplo portal, como se fosse um velho amigo. Abriram-lhe a entrada com gentilezas e ele atravessou a grande sala atapetada, com mármores e cristaleiras, em direção a um jardim inglês, enquanto na pérgula tocava um quinteto de jazz.

Foi uma tarde aprazível. Luciano surpreendeu-se quando o apresentaram a uma das mais lindas moças da festa e acabou encantado por ela. Mas Beverly Paterno também o procurava e estendeu sua mão branca e alongada, em um gesto de elegante coqueteria.

Estiveram sentados com amigos comuns. Conversaram, beberam e dançaram até a despedida. Além de ser de grande beleza, a jovem Paterno pertencia a uma refinada família que frequentava os lugares mais prestigiosos de Nova York, e combinaram um encontro para um outro dia.

Naquela noite, Luciano reservou o carro para as 9 horas e partiu com Armando Feo e dois guarda-costas. Rapidamente estava no cassino do Hipódromo, jogando fichas, até que, por volta das 11, saíram em direção ao Sans Souci.

Deixaram para trás o portão, com aquele telhado vermelho, e em seguida viram as luzes do fundo. Havia música, vozes, discussões por uma briga de galos, e o carro avançou por uma estrada de cascalhos, tão suavemente quanto Feo era capaz de dirigir, até deter-se sob os caramanchões.

Miguel Tray, como sempre, o fez passar imediatamente a seu escritório, porque era noite de rumba e música, com uma linda vedete que depois lhe faria companhia. Mas Luciano declinou da oferta: desejava ficar sozinho, para jogar e tomar uns tragos.

Esteve no cassino até quase 2 da madrugada e, ao sair, um homem se pôs na sua frente. A proteção de Luciano colocou-se em guarda. “Pareceu-me que você era uma pessoa conhecida”— explicou o inoportuno, sem dar-se a conhecer; tratava-se do jornalista norte-americano Harry Wallace. — “E não me equivoquei. Pensei que você estivesse na Itália, em seu povoado natal; que surpresa encontrá-lo em um dos lugares mais famosos de Havana. ”

—“Não sou a pessoa que você procura” — declarou Luciano.

Não desejava ser molestado. Não queria ouvir nenhuma proposta que ferisse sua dignidade e os homens que o protegiam trataram Wallace com excessiva rudeza, apesar da insinuação de que estava disposto a ser discreto.

Wallace era realmente muito conhecido em Havana(8); escrevia uma coluna de fofocas, e seus comentários para o jornal Post, que se editava em inglês, bem como suas crônicas, tinham uma boa acolhida.

Como amparo oficial que desfrutava, Luciano achava que não tinha nada a temer. Seus amigos tinham influência bastante para que se sentisse ameaçado por algo tão simples. Algo parecido lhe havia ocorrido anos antes, quando se tornou de repente uma celebridade que comparecia aos melhores salões; naquele momento, quase embriagado, sentia que podia conseguir qualquer coisa com aquela garota tão disposta a tudo.

Juntos percorreram os lugares mais excitantes de Havana: foram às corridas de cavalos, saborearam sorvetes de coco, tomaram uns tragos e desfrutaram o sol numa das praias próximas. A tarde, costumavam sentar-se nas muretas do porto ou se punham a andar através das avenidas arborizadas. Num dia havia a estreia de um filme; no seguinte, um jantar no restaurante da moda e, à noite, a visita a um dos cabarés mais animados, com música de tambores e umas cinturas de fogo, com ritmos muito excitados.

Mas o que Luciano não podia suspeitar era que já havia conseguido uma enorme publicidade. Ele, que devia se manter distanciado dos escândalos, fora arrastado pela paixão. A moça Paterno havia inclusive contratado um relações-públicas(9), desencadeando um plano de rumores e fofocas; fotografias tiradas em lugares elegantes com uma distinta senhora, com o fundo do porto em uma paisagem com mastros e navios, apitos, ruído de autos, luzes cintilantes e vozes na rua. A brisa naquele bairro de negros trazia um forte cheiro de mar e, às vezes, uma música, enquanto devoravam uma deliciosa paelha, sentados no portal de El Templete.

Pouco depois, a moça Paterno desapareceu, abandonou a capital cubana como mesmo mistério com que havia chegado; ficaram, claro, promessas, encantos e os comentários sobre os programas que tinham feito juntos. Em menos de uma semana, começaram a aparecer nos Estados Unidos as primeiras notícias: o rei da Máfia se achava instalado em Havana.

Em seu livro La Mafia, Frederico Sonders Jr. afirma que Luciano :

Com sua habitual visão e habilidade, começava a meter-se na política cubana. Legisladores, juízes e chefes da polícia assistiam às magníficas festas oferecidas pelo senhor Luciano ; eles e suas esposas recebiam caros presentes de uma mão sempre aberta. Tudo fazia crer que o senhor Lucania estava a caminho de ser uma autoridade em Cuba.(10)

Segundo Harry J. Anslinger, o comissário do Escritório de Narcóticos do Departamento de Tesouraria dos Estados Unidos, a polícia norte-americana, em relação a Luciano, como não tinha nenhuma pressa, “vigiava todos os seus gestos de Washington.”(11)

É inegável que dom Vito Genovese estivera arranjando os problemas: a questão da estada de Luciano em Havana apareceu primeiro como um simples rumor e depois como uma certeza absoluta. Ali estava o lugar exato de sua residência e as redes e contatos do fabuloso negócio das drogas a que se havia entregue. O próprio Escritório de Narcóticos dos Estados Unidos informa que, antes de Luciano sair de Cuba, já tinham as rotas do tráfico, graças a relatórios secretos telegrafados de Roma.

O outro grave revés foi uma mais clara operação subterrânea. Sabe-se que, naqueles dias, “uma célebre estrela do Brooklin e de Hollywood, amiga de Charlie Luciano, foi a Havana para vê-lo”(12). Vinha em busca de prazer e de sossego e se alojou no Hotel Nacional; onde uma celebridade podia sentir-se mais segura?

O certo é que aquela encantadora mulher, por razões muito práticas, desejava agradecer ao senhor Lucania por um de seus favores e não havia melhor maneira de expressar sua admiração do que voando para Havana.

Naquela noite, em dois quartos realizou-se uma festa. Estavam os amigos mais próximos e houve um jantar. Com a música e o baile, o excesso foi tal que ninguém reparou no amanhecer.

Nãose sabe ainda como o rumor chegou à escola. Alguns afirmam que foi através da imprensa, coisa pouco provável. Naquele internato, atendido por monjas, estudava um número considerável de jovens de famílias endinheiradas. Em questão de meia hora, idealizaram a visita, no calor da chegada daquela estrela, que nos últimos meses havia cativado a todos com um de seus insuperáveis filmes. Como poderiam desperdiçar a oportunidade?

Acertaram-se todos os detalhes: encomendaram rapidamente um ramo de flores em uma das mais afamadas floriculturas da cidade, contrataram um ônibus para as alunas e providenciaram o vaso que iam entregar a Luciano. A jovem deveria expressar em um perfeito e cálido inglês as palavras de regozijo depois de oferecer a ele a caixa de bombons com sabores de abacaxi e manga.

Partiu a comitiva, como se fosse uma romaria. Iam cerca de vinte alunas, as mais dispostas e comunicativas. As que eram mais sensíveis para a época. Surgia a grande oportunidade da direção da escola de enaltecer a instituição com ações audazes.

O ônibus entrou pela entrada principal do hotel e se deteve próximo da porta de entrada; desceram as moças com aquele ramo de flores, sem saber que tudo seria tão simples. Parecia que elas estavam sendo esperadas, pois não havia nada que as detivesse no saguão. Foram conduzidas até um os elevadores e uma pessoa, que parecia ser o anfitrião, passou-as para o ascensorista, que as levou até o nono andar.

Abriu-se a porta do elevador; elas viram o andar atapetado e um outro empregado: um daqueles guardas diligentes, para percorrer o longo andar até encontrar a porta entreaberta e entrar na companhia das moças (capitaneadas por uma freira)(13). O lugar apresentava “um caos de luxúria. Garrafas pelo chão, roupas penduradas pelas paredes e as pessoas dormindo onde haviam caído.(14)

A saída foi ainda mais tumultuada: aterradas por aquela visão, as moças se precipitaram para o elevador, com exclamações, risos, gritinhos histéricos. Foram levadas rapidamente para o andar de baixo do hotel, para que tomassem o ônibus. Foi um escândalo, realmente: “a irmã deu seu relatório à madre superiora; a madre superiora, ao bispo.”(15)

Desde antes, segundo a polícia norte-americana, o comissário do escritório já havia “mandado a Havana dois agentes de narcóticos e vários empregados do Hotel Nacional figuraram temporariamente na folha de pagamentos do Departamento de Tesouraria; um jovem para o elevador e um telefonista, entre outros.(16)

O próprio Harry J. Anslinger (comissário de Narcóticos dos Estados Unidos), no prefácio do livro Brotherhood of evil: the mafia, escreveu em 1958 que Sonders Jr. era a pessoa capacitada para narrar com precisão as histórias da Máfia nos Estados Unidos, porque havia “estado durante anos inteiros muito próximo de nós em distintos campos de defesa e venceu ao nosso lado muitas batalhas. Conhece muito a fundo o que está falando”.(17)

Em consequência, de Sonders Jr., citamos:

Sólidas razões faziam crer que, antes de abandonar a Itália, [ Luciano ] havia deixado uma extensa organização naquele país para introduzir narcóticos de contrabando em Cuba, que dali mandaria aos Estados Unidos. Anslinger se dispôs a esperar, até saber o máximo acerca de seus contatos e métodos de operação. O Plano esteve a ponto de fracassar por um incidente que deu lugar a um dos mais divertidos relatórios existentes nas sombrias fichas do Departamento [refere-se à incursão de alunas e monjas nos quartos de Luciano ]”.(18)

Em seguida, armado de uma inocência proverbial, acrescenta:

A imprensa cubana, como é natural (imprensa que havia mostrado sua grande docilidade durante a reunião de dezembro no Hotel Nacional e que agora parecia ter sinal verde),(20) descobriu quem era aquele rico e generoso senhor Lucania e a notícia causou sensação. Mas a reação do público não foi a que o comissário Anslinger esperava. Ninguém parecia preocupado com a presença de Charlie Lucky Luciano na Ilha. Ao contrário. Naquele tempo, Anslinger havia descoberto já tudo o que queria saber, em particular que os primeiros envios de droga, via Havana, aos Estados Unidos, estavam sendo organizados e queriam bloquear o canal.(21)

Transcorreram mais de quarenta anos e os assuntos relacionados com a derrota que Luciano sofreu em Havana ainda permanecem envolvidos em mistério; se nos detemos nas considerações feitas pelo comissário do Escritório de Narcóticos do Departamento de Tesouraria americano, uma vez “descoberto tudo o que queria saber”, parece lógico que Luciano tivesse seus dias contados; seguramente seria detido e processado e os canais do tráfico, destruídos. Mas era de esperar também, dados os seus notórios vínculos com as famílias de Havana, que a estrutura delituosa da Máfia norte-americana radicada em Cuba fosse varrida e que terminassem os seus grandes negócios.

Quando Luciano convocou toda a Máfia norte-americana para Havana, ele se encontrava em uma situação extremamente desvantajosa. Mas não tinha outra opção, expulso como estava dos Estados Unidos e sem vislumbrar nenhuma esperança de poder voltar. Então, decidiu que o melhor que podia fazer era instalar-se de maneira permanente na capital cubana. Pela proximidade dos Estados Unidos e a situação favorável que a Ilha oferecia para as operações, seguiria exercendo o controle e a hegemonia. Do contrário, mais cedo ou mais tarde seria deslocado e sua influência ficaria cada vez menor.

É necessário precisar que, a partir de 1942, o pior inimigo de Charlie Lucky Luciano não era o governo de Washington, e em particular seus serviços especiais (com os quais havia ampliado consideravelmente suas relações). O principal inimigo de Luciano era a crescente influência econômica e política de outros grupos ou famílias dos Estados Unidos encabeçados por dom Vito Genovese.

Mas o fato de Luciano escolher Havana como centro de operações polarizou com rapidez muitas ambições e temores, desatando-se sobre ele um conjunto de forças que contribuíram para tirá-lo da capital cubana. Em primeiro lugar, a intenção de afastá-lo definitivamente dos Estados Unidos. Depois, uma outra força, sempre negativa para Luciano, representada por dom Vito Genovese e outras famílias.

A segunda força estava relacionada com os interesses de Meyer Lansky. Este era o lugar-tenente de Luciano e o chefe do Império de Havana, e sua ajuda em qualquer outra circunstância teria sido extraordinariamente valorosa. Mas o fato de que o chefe da Máfia se instalasse definitivamente em Cuba tornou a sua presença uma verdadeira ameaça. E tudo nos leva a pensar que Lansky contribuiu secretamente (e em não pouca medida) para o deslocamento de Luciano.

Luciano não entendeu de imediato aquela situação. Passariam-se vários anos até que ele se desse conta das manobras a que havia sido submetido.

A terceira e última força pode perfeitamente ter sido uma poderosa aliada de Luciano. Esteve representada pelo governo de Washington, particularmente por seus serviços especiais. Se levarmos em conta o resultado estratégico da aliança que conduziu Luciano à liberdade em princípios de 1946 e, sobretudo, as considerações que fez o governo norte-americano sobre o patriotismo, a fidelidade e o espírito democrático de Charlie Lucky Luciano, não teria sido estranho que gozasse de uma maior tolerância ou impunidade, como alguns outros mafiosos, dado o acelerado processo de integração, legalização e entrecruzamento de interesses que se estava produzindo com as grandes fortunas provenientes da delinquência organizada.

Essa afirmação é irretocável, já que a ação empreendida pelo governo de Washington, quando se tornou pública a presença do chefe da Máfia norte-americana em Havana, não esteve dirigida a reprimir a Máfia em território americano nem ao desmantelamento do Império de Havana, mas exclusivamente a obrigar o governo cubano a expulsar Luciano, confinando-o de novo na velha Sicília.

Em pouco menos de uma semana, a presença de Luciano em Cuba tornou-se algo realmente escabroso. Lansky foi o primeiro a confirmar-lhe o clima desfavorável que estava sendo gerado nos Estados Unidos, como resultado das intrigas de Genovese. Em Washington, havia muita gente comprometida em sua lista e agora todos corriam um grande risco. Poderiam acabar com os cassinos, poderiam ressentir-se os negócios nos night clubs e nos grandes cabarés, assim como os canais da droga, o tráfico de pedras preciosas, o jogo popular, as corridas de cavalos e as operações em empresas e companhias que estavam alcançando cada vez maiores espaços. Era até provável que causassem danos aos grandes negócios nos bancos, mas a desgraça também poderia estender-se aos amigos do governo.

O comissário do Escritório de Narcóticos do Departamento de Tesouraria dos Estados Unidos, Harry J. Anslinger, rapidamente começou a pressionar. Anslinger alegava que em Havana se encontrava o inimigo número um e, para evitar problemas ao governo cubano, Washington “veria com bons olhos que devolvessem Luciano para a Itália”(22).

Passaram-se vários dias e, como nada aconteceu, o comissário endureceu suas posições; fez novas declarações à imprensa dos Estados Unidos, acompanhadas dessa vez por um documento que enviou às autoridades cubanas, exigindo a saída imediata de Luciano.

O presidente Grau San Martín limitou-se a responder àquela observação com um memorando em que agradecia o envio da nota, mas sem se comprometer com nada. Houve também uma entrevista do ministro do Interior, doutor Alfredo Pequeno, com o excelentíssimo embaixador norte-americano em Havana. Foram as únicas respostas que o comissário deu, pois, segundo a cúpula autêntica, apesar do prestígio negativo que tinha Luciano, sua permanência em Havana constituía um ato absolutamente legal: seus papéis encontravam-se em ordem e a investigação feita não revelava que ele estivesse cometendo contravenções.

Anslinger compreendeu logo a fragilidade de sua influência e requereu ajuda pessoal ao presidente Truman. Segundo Anslinger, a polícia norte-americana conhecia todas as redes e as manobras da Máfia em Havana; e o presidente norte-americano autorizou as medidas que considerava oportunas. Mas, apesar de haver conseguido a aprovação de Washington, o Escritório de Narcóticos dos Estados Unidos não foi mais além da primeira exigência: o governo do doutor Grau San Martín deveria tirar com urgência Luciano de Cuba, e isso era tudo.

As fontes revelam que, naqueles dias, Grau reuniu-se com um importante grupo de políticos, no segundo andar do Palácio Presidencial. O primeiro-ministro Carlos Prío também assistiu àquele encontro, no qual o presidente, então, demonstrou sua contrariedade em relação à ingerência norte-americana. “Afinal”, teria dito Grau San Martín, “se éramos livres, por que não se podia outorgar vistos a quem o governo de Cuba estimasse conveniente?”

Precisou-se também, naquela reunião, que os relatórios emitidos pela polícia secreta de Cuba ao escritório presidencial asseguravam que o milionário ítalo-norte-americano conhecido como Salvatore Lucania estava submetido à mais estrita vigilância e que, assim, fora comprovado que levava em Havana uma vida pacata. Muitos o consideravam um encrenqueiro, mas, segundo Grau, legalmente não havia nada que o obrigasse a sair do país, uma vez que estava se comportando de uma forma tão digna.

Diante dos primeiros sintomas de escândalo, Luciano ficou muito inquieto. Evidentemente, os riscos maiores vinham das intrigas, dos conchavos realizados por dom Vito, os quais podiam produzir tantas desgraças.

Luciano estava dominado pelas dúvidas. Por acaso o jornalista do Post teria algo a ver com aquilo? Wallace encontrava-se em negociações confidenciais com a polícia secreta cubana e seus amigos eram muito influentes. Lansky, no entanto, expressou sua negativa: “Não, homem, não; neste país não há polícia que seja nossa inimiga”.

Desde o começo, pelo menos aparentemente, Lansky quis resistir. Luciano esteve de acordo, e o governo de Cuba estava respondendo positivamente à sua opção preferida. “O caso de Luciano é algo que não tem importância” — afirmava um documento assinado e carimbado no gabinete presidencial. Dessa maneira, atendiam formalmente às reclamações recebidas através da embaixada norte-americana.

As exigências de Anslinger encontraram forte resistência, até que o governo norte-americano anunciou que a Ilha seria submetida a um bloqueio de produtos farmacêuticos e que nenhuma farmácia cubana poderia importar remédios nem qualquer outra compra, nem envio de drogas legais, para ser usadas em produtos medicinais. Cuba estaria sujeita a um embargo enquanto não tornasse realidade a partida de Luciano.

Foi um grande escândalo, com notas, chamadas à meia-noite, discursos privados, encontros secretos e idas e vindas de emissários e correios que fizeram para aquele assunto os alardes de uma guerra. Dos fatos ocorridos em Havana em fevereiro de 1947, Gosh e Hammer asseguram que:

O presidente Ramón Grau San Martín indignou-se diante da injustiçada ameaça norte-americana. O doutor José Andreu, o diretor nacional de saúde pública, e um signatário da Convenção Internacional que cobria o uso de drogas em todas as nações não só duvidaram que Luciano estivesse por detrás de um suposto aumento no tráfico de drogas, como também afirmaram que não havia nenhuma força legal capaz de cortar o fornecimento a Cuba de drogas legais enquanto esta cumprisse com as obrigações do contrato. ‘A atitude norte-americana, diziam, era arbitrária e injusta.’ Mas estas eram apenas simples palavras. Os cubanos, na realidade, não tinham outra opção senão ceder às ameaças e exigências: o país não tinha capacidade para fabricar os remédios necessários e era totalmente dependente dos Estados Unidos para o seu fornecimento”(23).

Frederic Sonders Jr., por seu lado, nos diz:

As autoridades cubanas colocaram empecilhos. Finalmente, foi necessária a pressão conjunta do Departamento de Estado e do Tesouro para convencê-las de que a presença de Charles Lucky seria uma constante fonte de perturbações entre os dois governos. Mas, até que Washington ameaçou cortar todo o embarque legal de narcóticos, o governo cubano não tomou nenhuma medida. . . e depois o fez com relutância(24).

Além da oposição apresentada por Grau San Martín, formou-se analogamente um bloco de políticos, de costas para a opinião pública, que começou a atuar de maneira secreta. Em seguida, como quase sempre, o presidente Grau San Martín terminou o assunto nas mãos de seus ajudantes.

Naquela frente de políticos viciados movimentaram-se várias figuras: o doutor Carlos Prío realizou as ações mais delicadas, para que não se corroesse a posição monolítica do Estado cubano naquela questão de soberania.

Para as ações mais controversas, escolheu-se Indalecio Pertierra, o representante liberal. Em sua mansão efetuaram-se algumas reuniões com todas as bandeiras políticas. Encontraram-se em uma sala, como velhos amigos, distantes tendências: Paco Prío, Eduardo Suárez Rivas, Miguelito Suárez Fernández, Germán Alvarez Fuentes, Acosta Rubio, Alonso Pujol e Santiaguito Rey. Houve muitas outras adesões entre os representantes e senadores; temia-se que o assunto assumisse maiores proporções e chegasse ao ouvido dos mais reticentes, até mesmo lançando o tema nas sessões do Congresso.

Não foi. Lansky pensara em algumas manobras e decidiu-se por fazer uma segunda viagem a Daytona Beach, impelido por Luciano, à procura de uma ideia nova que pudesse ser colocada em prática.

Regressou com duas ideias magistrais. O general Batista era homem de grande imaginação e havia elaborado algumas possibilidades, das quais não sabia realmente qual era a melhor.

A primeira tinha relação com seu antigo secretário particular, o discreto Mariné, que andava então em Caracas, dirigindo um dos maiores cassinos. Os acertos poderiam ser feitos com o governo venezuelano, conseguindo um visto que legalizasse a entrada de Luciano naquela capital, via República Dominicana.

Como se tratava do próprio Caribe, era uma viagem que poderia avançar rapidamente. Luciano seria bem recebido, contaria com muitos bons amigos, e eles estariam sendo flexíveis, diante das pressões de Washington.

A segunda opção era ainda mais audaz e contou imediatamente com a apaixonada defesa de Neno Pertierra. Pediram ao doutor Grau que, diante da ameaça do governo norte-americano e através das faculdades a ele conferidas pela nação, Cuba respondesse ao bloqueio dos remédios deixando de enviar o menor grão de açúcar aos Estados Unidos.

A Luciano aquela ideia pareceu bastante estranha; consultou-se com advogados amigos. Ouviu também os conselhos de Amadeo Barletta Barletta e, sobretudo, a opinião de Amleto Battisti. Todos acharam que aquilo era impossível: como Cuba resistiria?

Não havia outra saída: pediu a Lansky que deixasse de lado esse assunto. Um dia antes de ser detido, Batista enviou-lhe um correio, e da conversa que manteve com aquele emissário Luciano deduziu que tudo estava perdido. O general, sem preâmbulos, mandava-lhe dizer que o mais sábio era dar o fora até que viessem tempos melhores. Mas Luciano, dominado pelo ceticismo, estava persuadido de que, se fosse para a Itália, nunca mais poderia voltar ao continente americano.

No dia seguinte, 23 de fevereiro de 1947, foi detido em um restaurante do Vedado. Benito Herrera, chefe da polícia em Havana, delegou a operação a um lugar-tenente. O oficial designado comportou-se com extrema cortesia. Pediu a Luciano, por favor, que o acompanhasse. Era sábado e podiam passar pela residência da rua 30, para que levasse o que achasse conveniente.

Luciano não perdeu sua compostura. Mostrou-se também muito cortês. Despediu-se afetuosamente de seus guarda-costas e saiu tranquilamente em direção aos carros, ladeado pelos agentes cubanos.

Lansky o veria mais duas ou três vezes, mostrando-lhe toda a hipocrisia de que era capaz: temia pelas redes, preocupava-lhe de maneira especial a segurança dos homens-chave. Mas, na realidade, nenhum outro mafioso seria perseguido nem molestado. Apesar de haver sido detido, Luciano não foi acusado nem julgado, nem a estrutura operativa que a Máfia norte-americana possuía em Havana foi alterada. A única coisa importante era que Luciano saísse de Cuba. A farsa havia sido montada de maneira magistral e, em poucos dias, as farmácias cubanas já começaram a receber outra vez os carregamentos de remédios legais, ou seja, a matéria-prima que supostamente utilizariam nos medicamentos. Tinham em seu poder uma licença que os autorizava a fazer entrar no país uma partida de drogas e giravam contra aquela autorização uma e outra vez, durante todo oano.

Observados os acontecimentos que Charlie Luciano protagonizou em Havana, em março de 1947, nota-se que eles não significaram uma repressão para as atividades da Máfia norte-americana em Cuba. Ao contrário, o auge foi maior e a impunidade aumentou e, com os anos, os negócios continuaram estendendo-se; ficou demonstrado que o único estorvo era Luciano.

Até hoje não são poucos os que asseguram que a saída de Luciano de Cuba deveu-se às pressões e exigências do governo de Washington. Nada mais falso. O governo dos Estados Unidos atuou no nível das aparências. Houve exigências nesse sentido, mas exigências manipuladas, que respondiam não às boas intenções do governo americano, mas às contradições existentes entre as famílias da Máfia, por causa de ambições e jogos de poder. Todos desejavam que Luciano se afastasse de Havana: de um lado os interesses poderosos da Máfia de Nova York e do outro a perfídia com que manejaria esse assunto o chefe do Império de Havana.

A atitude de Harry J. Anslinger foi estritamente profissional. Os temores de dom Vito Genovese eram de outro teor: se Luciano regressasse aos Estados Unidos, seria um adeus para as suas pretensões. Os interesses de Lansky eram ainda mais simples. Para ele era muito embaraçoso que Luciano se mantivesse em Havana por muito tempo; enquanto Lucky permanecesse em Cuba, o Império que ele havia criado não seria inteiramente seu. Teria de compartilhá-lo com alguém hierarquicamente superior. Luciano era seu chefe e, além disso, siciliano.

Não tinha por que protegê-lo, e tudo ocorreu com muita rapidez. Cumpria-se uma lei inexorável: quando os interesses dos inimigos eram coincidentes com os desejos dos amigos, não havia nada afazer. Foram duas grandes forças contra Luciano; duas forças que, no final da década seguinte, acabariam se enfrentando, em uma guerra brutal pelo reparte de Cuba.

Em 29 de março de 1947, Charlie Lucky Luciano abandonou a Ilha a bordo de um cargueiro turco. Viajou em primeira classe, e sua partida foi um sucesso: suas andanças seriam lembradas por Eduardo R. Chibás, em suas intervenções radiofônicas dominicais. Dois senadores brigaram no Congresso, e um ministro terminaria deposto.

Muita gente importante iria despedir-se dele, e Luciano respondeu com sua habitual cortesia: foi agradável, até mesmo simpático, generoso, esplêndido. Mas, de todos os abraços que recebeu, nenhum foi tão cálido nem tão forte quanto o de Paco Prío, irmão mais velho do futuro presidente.


Notas de rodapé:

(1) Lernoux, Penny. Esos bancos en que los confiamos. Editorial Plaza & Janes, S. A. Barcelona, 1985, p. 95. (nota não localizada no original usado para a transcrição)

(2) Revista Bohemia, “Los negocios de don Amleto”, de Enrique Cirules. Havana, 18 de outubro de 1991, pp. 13-17. (nota não localizada no original usado para a transcrição)

(3) Revista Bohemia, “El tráfico de drogas en Cuba”, de Antonio Gil Carballo, Havana, 8 de outubro de 1944, pp. 70-71. (retornar ao texto)

(4) Gosh Martín A. / Hammer, Richard. El último testamento de Lucky Luciano. Editorial Grijalbo, S. A. Barcelona, 1976, p. 351. (retornar ao texto)

(5) Revista Bohemia, Seção “En Cuba". Havana, 8 de dezembro de 1946, p. 45. (retornar ao texto)

(6) Gosh, Martín A. / Hammer. Richard. Ob. cit. pp. 358-359. (retornar ao texto)

(7) Summers, Anthony. Las vidas secretas de Marilyn Monroe, Editorial Planeta. Barcelona, 1986. pp. 100-101. (retornar ao texto)

(8) Gosch, Martín A. / Hammer, Richard. Ob. cit. pp. 369-370. (retornar ao texto)

(9) Ibid., p. 370. (retornar ao texto)

(10) Sondem, Frederic, Jr. La Mafia. Editorial Bruguera, S. A. Barcelona, 1960. p. 132. (retornar ao texto)

(11) Ibid., p. 133. (retornar ao texto)

(12) Ibid. (retornar ao texto)

(13) Ibid. (retornar ao texto)

(14) Ibid. (retornar ao texto)

(15) Ibid. (retornar ao texto)

(16) Ibid. (retornar ao texto)

(17) Prólogo do senhor Harry J. Anslinger (comissário do Escritório de Narcóticos do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos) para o livro La Mafia, de Sondern Jr. Edição Editorial Brugueras, S. A. Barcelona, 1960, pp. 7-8. (retornar ao texto)

(18) Nota do autor. (retornar ao texto)

(19) Sondern, Frederic Jr. Ob. cit., pp. 133-134. (nota não localizada no original usado para a transcrição)

(20) Nota do autor. (retornar ao texto)

(21) Sondern, FrIV (retornar ao texto)

(22) Ibid., p. 134. (retornar ao texto)

(23) Gosch/Hammer. Ob. cit, p. 372. (retornar ao texto)

(24) Sondern, Frederic, Jr. Ob. cit., p. 134. (retornar ao texto)

Inclusão: 10/02/2017