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Primeira Edição: Conferência proferida em maio de 1997 na UNA — Faculdade de Ciências Gerenciais — Belo Horizonte, Minas Gerais. Artigo publicado pelo Jornal O Estado de Minas em 07/10/2000.
Fonte: http://files.gocufg.webnode.com/200000007-f139bf2322/formas%20sociais%20do%20capital%20-%20globalização%20e%20crise.pdf
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Devo enfatizar, inicialmente, que não venho para dar lições, mas, em verdade, me faço presente pelo ensejo de aprender, neste primeiro e rápido encontro que me é proporcionado pelos Colegas e Alunos desta Instituição. Friso que estas palavras iniciais não são ditadas em especial pela vontade e, menos ainda, pela obrigação de ser educado ou gentil, mas pela percepção de que, em nossos tempos, o espaço por excelência das reflexões mais necessárias é constituído, ao menos em potencial, pelas áreas acadêmicas voltadas ao estudo das dimensões teóricas e práticas da vida econômica. Venho, pois, muito interessadamente, me beneficiar do trabalho e da experiência de todos os senhores. Em retribuição tenho pouco a oferecer, mas está à vossa disposição minha estrita vivência intelectual no campo da filosofia, que ofereço em cumprimento a uma frase inspiradora de um tomista sui generis, pois teve de sustentar suas teses já envolto pelo turbilhão do iluminismo, que foi para o bem e para o mal o amanhecer do nosso próprio tempo. Falo de Christian Wolff, pensador do século XVIII — que ensinava que
"Não só o artesão, o mercador e o funcionário são servidores da humanidade: o filósofo também o é."
Atividade, pois, a serviço da humanidade, nessa visão otimista e generosa de uma época extremamente afirmativa, a filosofia é muitas vezes depreciada, não sem razão, pelos homens práticos, e outras tantas demasiadamente louvada pelos homens em geral como meio resolutivo dos dilemas humanos. Na atualidade, a tônica predominante é a do segundo tipo, espera-se tudo e acredita-se demais nos poderes da filosofia, tanto em sentido otimista quanto pessimista, ou seja, espera-se que ela produza respostas clarificadoras, ou então que nos assegure, categoricamente, que não há luz nem resoluções possíveis no caminho dos homens.
Tudo isso, crença ou descrença exageradas na filosofia é, a qualquer tempo, antes de tudo, um sintoma de crise. Não é diferente em nossos dias. Quem tem certa familiaridade com o curso geral da história do pensamento, nota com certa facilidade a sucessão e o entrecruzamento, ao longo de seus dois milênios e meio, de doutrinas otimistas e pessimistas. De fato, dos primórdios à atualidade, a filosofia tem garantido o céu e o inferno. O que já é alguma coisa, pois a pior das filosofias é aquela que não assegura coisa nenhuma, que é incapaz de afirmar ou de negar, que, desinteressada da vida, sucumbe em melancolia.
De qualquer modo, a grande dificuldade do tema proposto, ou melhor, sua efetiva intransponibilidade ou irresolubilidade, é que seu título sugere que estamos faceando a globalidade do desafio contemporâneo. Todavia, minha pretensão e arrogância não chegam a tanto. É claro que apenas arranharei esse complexo problemático, se é que chegarei a tanto.
Explico-me um pouco, usando mais uma vez palavras de um grande pensador, mais antigo ainda que o primeiro, pois é uma grande figura do renascimento, nossa aurora mais remota. Estou rememorando Francis Bacon, quando da conta da dificuldade em apreender e transmitir algo que seja novo. Diz ele no Novum Organum:
"Não é, com efeito, empresa fácil transmitir e explicar o que pretendemos, porque as coisas novas são sempre compreendidas por analogia com as antigas."
Eis em suma o nosso desafio: a serviço da humanidade, ou em linguagem menos pretensiosa, não por isso menos verdadeira, a serviço de nós mesmos, temos de pensar o momento novo que nos toca viver, em si extremamente complexo, e ainda por cima assoberbados pelo parasitismo do passado, seja no plano da realidade, seja no plano do pensamento.
Ressalto de passagem, para retomar mais adiante, que se trata antes de tudo de uma complexa contraditoriedade do novo emergente, que tendemos a associar mais com os dilemas do passado do que com as perspectivas de futuro, atitude que nos turva a visão até mesmo no plano mais próximo de nossas escolhas mais imediatas. Sem dúvida, estamos aturdidos diante da torrente de novidades que nos assalta a cada dia, desestabilizando nossos rumos e nossas convicções, deixando também em frangalhos nosso plano emocional e projetivo. Tudo ou quase tudo nos parece duvidoso, e a maior de todas as dúvidas é que parece que não há futuro.
Mas este arremate aflitivo do século, evidente em todos os planos, há de conduzir a inteligência, de algum modo e sob pressões cada vez mais amplas e agudas, ao enfrentamento de um complexo montante de desafios, que em teor e grau não conhece precedentes. É do que pode consistir, hoje, uma posição de manifesto otimismo ponderado, que antes expressa o peso do mal-estar contemporâneo do que confiança em algum mágico despertar das consciências.
O resumo das falências é simples de tracejar; árdua e complicada é a consecução efetiva de sua inteligibilidade, sendo a dificuldade maior o discernimento de rumos que possam sinalizar uma legítima reversão de expectativas.
Bastam duas pinceladas para esboçar o colosso dos impasses atuais: o ocidente universalizado e rebrilhante em sua pujança agora sem contraste reitera de forma ampliada sua grandeza, mas arrasta consigo a contra-face de sua miséria estrutural, física e de espírito, enquanto o extinto oriente finda em convulsões sangrentas por consumar suas inviabilidades originárias.
Diante desse perfil, é inevitável que venha à mente a condenação fichteana da "época da pecaminosidade consumada", e também a denúncia mais recente do "futuro bloqueado", no diapasão sartreano da subjetividade compulsiva, que tinha por escopo nos sacudir contra nossa época e nunca, como foi assimilado por muitos, nos deixar apodrecer debaixo da própria pele. Em verdade, tais remissões, próprias e necessárias, já não bastam, mesmo porque nunca foram resolutivas. Dolorosas e sintomáticas enquanto diagnoses atiladas, e até certo ponto balizando a emergência e duração do problema, são insuficientes para configurar, no ocaso do novecentos, a radicalidade alcançada pelo drama imanente aos tempos da modernidade ou, mais precisamente, do capital. Hoje, a denúncia da culpa universal feita pelo idealista alemão só pode ressoar como demasiado abstrata, eco genérico que se esvai pela inespecificidade, de maneira semelhante à falta de perspectiva, ao "futuro truncado" de Sartre, que se mostra restrito demais como síntese de uma compreensão que pretende sustentar a crítica e o grito necessário. A agudização sofrida pelo complexo problemático obriga que se admita e fale em futuro ausente, como a enervação que perpassa e parece esmagar a existência contemporânea.
Mas não é o fim dos tempos, é apenas um tempo de crises, no que estas tem de doloroso e de promissor; tanto quanto expressões de falências, as crises são enunciados e geratrizes de novas formas de existência. Elas vem recebendo denominação variada e abundante. Desde algum tempo, é até mesmo lugar comum referir crises de toda espécie: social, política, econômica, moral ou dos costumes, cultural ou das mentalidades, da arte e da ciência, do direito e do meio ambiente, e assim por diante, envolvendo o conjunto dos aspectos que compõem a vida atual. Conjunto minado, que também é aludido, sinteticamente, como a crise do nosso tempo. Ou numa expressão mais antiga e rica de experiência e conteúdo, que afirma sem pudores 'o nosso fundo mal-estar-no-mundo', que também já foi referido por Husserl como a crise da humanidade européia, hoje generalizada pela sua própria universalização.
Sem me afiliar aos termos desses pronunciamentos, mas exercendo o direito de refletir sobre o mesmo e grave problema, chamo atenção que — essa crise, que pode ter muitos nomes, não tem sido identificada e submetida a exame, ao menos com o devido peso, extensão e profundidade, em seu centro vital — agente e paciente — os homens, as individualidades humanas em seu infinito processo de auto-constituição.
Digo isso exatamente porque estarmos sitiados no extremo oposto ao humanare renascentista, que foi o luminoso projeto originário da produção do homem moderno, do qual somos hoje, ao mesmo tempo — um momento fascinante de seu processo de efetivação e, dolorosamente, a mera figura degenerada da mesma potência ou prática. Quadro dramaticamente conflitante porque desenvolvido em estreitos e contraditórios suportes materiais, dessa já longa trajetória que, em nosso tempo, deságua numa enxurrada de luzes e sombras.
Mas, em verdade, o que estamos vivendo, o que se passa diante de nosso olhos, que tanto nos assusta quanto nos entusiasma?
Se não queremos ficar em tertúlias, se não nos satisfazemos simplesmente com abstrações, nem apenas com ditos técnicos, olhemos para o mundo real que habitamos, para facear a nós mesmos, mas em nossa configuração concreta de individualidades postas e expostas, moventes e movidas de uma história que está desembocando na universalização de um modo de ser e existir. É evidente que estou apontando para o processo irreversível da globalização. Somos, queiramos ou não, saibamos ou não, gostemos ou não, os homens desse processo, agentes e pacientes, beneficiários ou vítimas, somos e não podemos deixar de ser a humanidade presente no momento em que a lógica do capital cumpre sua lei mais essencial e imanente, cobrindo planeta com sua face e com suas formas de vida, de um lado rebrilhante, doutro, para dizer o mínimo, inquietante.
Estando numa Faculdade de Economia, não vou me expor ao ridículo de tentar expor aos senhores o que seja a mundialização e a integração dos mercados. Nesse ponto, só posso aprender com os senhores. Por isso, e apenas com o propósito de explicitar minhas âncoras analíticas, preciso demarcar minha compreensão desse vasto complexo problemático.
A globalização como efeito da acumulação de capital principiou com a formação dos estados nacionais a partir das cidades-estados. Desde então, do renascimento aos dias atuais, desdobraram-se diversos estágios, a formação dos mercados nacionais, o alargamento do espaço de dominação por meio do colonialismo, na seqüência tivemos o imperialismo econômico, e agora a expansão alcança a circunscrição de todo espaço planetário. Em todo esse itinerário atua a lógica intrínseca à acumulação ampliada, natureza e essência da ordem do capital, que tem a força de um fenômeno natural.
Desse modo a globalização não é uma política, nem a prática política tem força e capacidade para engendrar a globalização e, o que é ainda mais decisivo, as forças produtivas que, mais do que tudo subjazem a esse processo; assim, a política não é capaz de engendrar ou de se contrapor à globalização. Por isso a política, na transição para a globalização, ou se torna seu agente, esperto e inteligente ou brutal, ou então, por incompreensão ou interesse subalterno, econômico ou político, se manifesta como agente perturbador de curto fôlego.
Nesse sentido, e com a intenção de provocar, digo que o neo-liberalismo e a globalização como ideologias estão mortos, vencidos em seus próprios berços originários, mas a globalização é imperecível como lógica do capital. Quem procurar se excluir ou vier a ficar de fora por debilidades incontornáveis, fará o papel de aprendiz de feiticeiro, pois deixará de existir como expressão de humanidade civilizada, tenderá a regredir e degenerar, multiplicando no isolamento seus próprio problemas, ou seja, sofrerá a miséria do atraso, o que em nada é melhor do que sofrer as lepras da civilização.
Com o desenvolvimento sem paralelo das forças produtivas e sua irradiação planetária, não se realiza mais tão somente uma nova etapa da acumulação capitalista, mas, na vigência prolongada da ordem do capital e de suas contradições inerentes, insuprimíveis e radicalizadas, se manifesta uma nova forma de existência humana em todos os seus níveis e compartimentos.
A humanidade está às vésperas do domínio biológico do gênero e do planeta, ou seja, no limiar do domínio da vida. Isso confirma a potência infinita do trabalho, cada vez mais humano por sua potência — abrangência e produtividade, diversidade de seus objetos e graus de eficiência, e também pela qualificação de sua subjetividade cognitiva e proponente. Dolly, o clone, confirma a potência infinita do trabalho do homem social. A partir dessa revolução dá para estimar os limites estreitos, materiais e espirituais, do trabalho quando adstrito à condição de trabalho abstrato ou não qualificado: restrito em sua força produtiva e particularizado no estrangulamento da luta pela sobrevivência.
Diante da revolução tecnológica, ou seja, do desenvolvimento da potência do trabalho humano, a atual configuração social dos meios de produção, o estado e a política aparecem como anacronismos. Figuras, por assim dizer, historicamente esgotadas.
Em suma, o mundo e as formas de existência que se desenham à nossa frente parecem estar para além dos paradigmas do burguês e do proletário. Hoje é evidente, irreversivelmente, que o conhecimento impulsiona mais a criação de riqueza do que o lucro, que o saber tomou o lugar da propriedade como fator decisivo e dinâmico da produção e reprodução da base material da vida; vale dizer, a força motriz do espírito empreendedor, gestada pelo interesse ou egoísmo pessoal, que foi o ardil responsável pela mais fantástica produção de riqueza (e pobreza) dos últimos seiscentos anos da história humana, mostra, por fim, que engendrou a forma de superação da finitude de seu alcance, diante da amplitude sem fronteiras das possibilidades de realização do saber, um empreendimento por natureza supra-individual e cooperativo, ou seja, intrinsecamente social, cujo lucro inerente é a irradiação universal de benefícios. Está posto em evidência, não importa que em contexto dolorosamente contraditório, que a cooperação é superior à competição, não apenas como valor moral, porém, material e produtivamente. Assim, a humanidade principia ou pode começar a apreender de forma irreversível — embora derramando ainda muito sangue, e outro não tem sido nunca, infelizmente, a via de seu aprendizado no curso da história (ou, a vigor, até aqui de sua pré-história) que a força produtiva da cooperação, em todos os níveis da vida, é mais digno e fundamental, mais produtivo e rentável do que a competição.
Essa lição ainda um tanto velada, — que o novo liberalismo não tem como apreender, porque está para além dos limites de sua racionalidade, e que a social-democracia também só é capaz de incorporar muito limitadamente, apenas na forma abstrata de princípio e proclamação éticas, porque está submersa no mesmo padrão estreito e superado de razão, — é intrinsecamente uma lição da lógica universal do trabalho, e só por esta pode ser intimamente compreendida e posta como o norte de uma proposta para a humanidade de um novo mundo. Donde a humanidade futura, se futuro houver, será posto pela possibilidade emergente das perspectivas da síntese do saber — a fusão entre o melhor e mais avançado do saber científico-tecnológico e o mais agudo e universal do saber humanista, ou seja, da aglutinação natural entre o saber do mundo e o saber de si. Hoje, o homem já está se tornando o demiurgo da natureza, falta se converter no demiurgo de si mesmo.
Numa palavra, capacidade ilimitada de produção material, domínio da vida de seu próprio gênero e do planeta, e humanismo, no sentido de capacidade da produção do humano. Em síntese, capacidade de produção da vida, inclusive da genuína vida consciente.
Em suma, globalização é apenas o nome corrente de uma fase específica de um processo histórico fundamental. Donde, exorcizar o termo é uma perfeita inutilidade ou, o que ainda pior, cega para a compreensão do que é mais importante, que ela é impulsionada pelo progresso científico-tecnológico, que elevou as forças produtivas a níveis sem paralelo — configurando a terceira revolução tecnológica, liderada pela informática, a bio-engenharia e demais saberes de ponta. E que o desenvolvimento de força produtiva é o próprio desenvolvimento da essência humana, enquanto o único ser que se auto-produz.
Todavia, o processo de instauração da economia globalizada, tal como ocorreu nas etapas precedentes da história do capital, mas de maneira especialmente aguda e profunda, é também um tempo gerador de enormes problemas e graves tensões. Esse é um dos aspectos mais evidentes e dolorosos do período de transição entre o momento da economia pré-globalizada e a face efetivada de sua globalização. Dores e comprometimentos que ferem de modo brutal a muitos, em especial a grande maioria dos segmentos sociais do trabalho assalariado, enquanto se dá a irradiação mundial, em escala diversa e combinada, das novas tecnologias e a plena configuração mundial dos mercados integrados.
De outra parte, o capital, sob suas frações menos desenvolvidas e dinâmicas, privado ou estatal, também é afetado e padece, mas isso, por certo, como Ricardo já sabia muito bem, não pode nem deve sensibilizar a muitos. Para o nosso tema esta é uma questão pouco relevante. Importa apenas anotar que o desaparecimento dessas frações do capital não diminui a força, nem perturba o rumo e a velocidade da globalização. Caducam mesmo por força desta, que é impiedosa também com as expressões mais frágeis e menos autênticas de sua própria substância. Assim foi nas anteriores reconfigurações decisivas do sistema do capital, assim vem acorrendo agora, e nada pode evitar esses efeitos, perenes alguns, outros talvez temporários, sob o império da lógica que os produz.
Todavia, tensões e comprometimentos dilacerantes, ainda que impotentes, geram reações, e estas poderiam ser elevadas a força política, na medida que compreendam a lógica fundamental dos acontecimentos e não a pretendam simplesmente contrariar, mas tirar proveito das contradições políticas da marcha de sua complexa transição. Força política que seria posta a navegar no mar encrespado de correlações de força desfavoráveis, nas quais não poderia ser jamais hegemônica, mas bastante expressiva para deslocar um pouco o epicentro das decisões, de modo que as maiorias desfavorecidas fossem menos sacrificadas. É tudo que podem almejar, e não é pouco, uma vez reconhecida a dinâmica e a tendência irrefreável do momento.
Não é nada difícil alinhar os graves problemas gerados pelo inaudito desenvolvimento tecnológico atual, que só tende à aceleração, e que é a base propulsora da mundialização da economia. Não ignoro esses problemas nem minha reflexão é insensível aos mesmos, mas a minha obrigação, aqui, é destacar, dado o alvo da palestra, o fundo excepcionalmente positivo desse processo largamente contraditório.
Força produtiva é em substância capacidade humana de configuração de mundo e, retroativamente, por efeito dessa efetivação, plataforma do próprio desenvolvimento humano: "O homem é o que faz e como faz", já dizia com toda razão um antigo filósofo alemão (Id. Al.), aí incluídas suas formas anímicas, ou seja, o complexo de suas manifestações sensoriais, afetivas e racionais. Que essa força, em condições sociais adversas ou incompatíveis, possa se converter em poder destrutivo também não escapou à sua acuidade. Todavia, o aspecto predominante da questão é que, irrecusavelmente, desenvolvimento de força produtiva é enriquecimento humano, base material da construção de sua autonomia e liberdade.
Pode parecer estranho falar em autonomia e liberdade humanas, exatamente quando a própria sobrevivência elementar do homem parece ameaçada. Todavia, por isso mesmo, é preciso grifar que a própria capacidade de intervenção social do homem que produz com máquinas a vapor é distinta e inferior à capacidade de intervenção do homem que produz por meio de artefatos elétricos. De sorte que é necessário compreender que a intervenção social da humanidade que tem por instrumentos a eletrônica e a biotecnologia implica e exige elevação e multivalência, antes de tudo espirituais, da individualidade humana, que nunca dantes foram consideradas. A expectativa emancipadora até aqui tem sido matrizada, basicamente, pelos estágios primários do desenvolvimento da capacitação humana de efetivação material e de realização de si mesmo, enquanto tal é lógica do passado, que não leva à inteligibilidade do presente nem muito menos ao horizonte possível de futuro. Por isso, paradoxalmente, se torna conservadora, inclusive reacionária, bloqueando as perspectivas transformadoras, que às suas vistas se tornaram impossíveis.
Considere-se também que o desenvolvimento das forças produtivas, no grau alcançado, repercutem sobre a sociedade política de duas maneiras desiguais e contraditórias:
1 — Põe em evidência mais do que nunca a fundamentabilidade e a natureza determinante da sociedade civil sobre a sociedade política. E tanto mais é assim quanto mais desenvolvida e civilizada for a sociedade civil, entendida esta sem mistificações como o patamar da vida vivida, da vida da produção material e da produção e desprodução do homem.
a) A emergência das organizações não governamentais, apesar dos defeitos, distorções e corrupções, próprias à sua infância ou irremediavelmente congênitas às mesmas, constituem uma manifestação, mesmo que pálida, disso que estou apontando, que não é uma novidade, mas que vem se tornando evidente como nunca. Desimportância relativa da política que vem deixando perplexos todos aqueles que identificam na política o demiurgo da humanidade.
b) Outra manifestação desse fenômeno é a redução progressiva das soberanias nacionais por efeito da legalidade planetária das novas formas da cadeia produtiva. A política se encolhe e ajusta, sem alternativa, à mesma.
2 — De outro lado, mas à superfície, a política parece crescer em âmbito e potência, por sua manifesta presença nos arranjos necessários dadas as múltiplas contradições do período da transição globalizante. A política internacional se torna a arena da política econômica, onde "tudo" pode ser acertado, sempre que no sentido, é claro, da lógica da globalização. No ajuste ao novo padrão de acumulação o estado funciona como agente da globalização, é o instrumento de adaptação das sociedades e das economias ao novo ordenamento mundial, que requer sustentação e continuidade do processo, uniformização das condutas sociais — universalização dos modos de vida — formas do trabalho e do consumo).
Diante dessa força planetária, chega a ser um engano patético invocar a "força constitutiva" da política, sempre um duplo engano:
Razão pela qual hoje são reiterados os lamentos que deploram a dissolução da "ética da solidariedade e da moralidade cidadã" — referidos como valores da modernidade, eco retardatário de certas ilusões heróicas do iluminismo. Anacronismo que chega a suspirar por "uma política ética pautada na solidariedade", apelo ou aspiração que até mesmo abandona o terreno político e transmigra para a esfera religiosa, caminho inverso inclusive dos neo-hegelianos de meados do século passado, que pretenderam superar a religião entronando a política. O lastimável dessa ode é que converte a política e a ética num cântico da impotência.
Em suma, enquanto os homens fizerem do estado e da política sua idolatria suprema não haverá a menor chance para a emergência e o desenvolvimento de uma visão projetiva que tenha arrimo na potência humano-societária revelada pelo trabalho qualificado.
Deixando de lado perspectivas e voltando, simplesmente, ao presente, o diagnóstico provável é que o nível atual de desenvolvimento das forças produtivas, isto é, humanas, não se acomoda e, provavelmente, nunca poderá, a rigor, se acomodar com a estrutura da sociedade civil oriunda do passado e com o estatuto e as funções supostas da sociedade política, também derivada de um nível anterior e inferior de desenvolvimento histórico. Ou seja, a capacidade humana alcançada para a produção de seu mundo próprio se mostra superior e mais potente do que a orgânica social em que os homens permanecem vivendo e agindo. Cabe dizer, dimensões diversas da obra dos homens estão desajustadas e estão colidindo. Em outros termos, estão em choque a capacidade humana de realização e a forma de sua organização ou convivência. Parte do humano se realiza e parte é negada ou destruída, seja na forma de supressão direta de parcela da própria humanidade, seja por aniquilação da potência auto-produtora da individualidade humano-societária, acentuando alienações antigas e criando novos redutores.
Numa palavra, os homens aguçaram ao máximo a capacidade de apropriação produtiva da natureza e estão no limiar do domínio da vida de seu gênero e de todo o planeta, o que dá feição própria a seu mundo, o que significa a explicitação suas forças vitais de efetuação de mundo, mas ainda não alcançaram o desenvolvimento das forças vitais necessárias à produção de si mesmos, que é sua forma mais elevada de produção. Sabem lidar e moldar os predicados do ser natural, mas não as categorias do ser social.
Sem rodeios, eis a grandeza e a miséria do homem contemporâneo. Foi capaz, até aqui, de criar as bases materiais da liberdade humana, mas se encontra destituído da condição de produtor de si mesmo. Nada obriga que isso venha a ser resgatado um dia, mas não resta dúvida que seria um grande e triste desperdício, que, no entanto, só seria notado talvez por alguma grande alma, que por ventura tivesse restado, uma vez que para o conjunto inteiro do cosmos, em sua mudez e cegueira naturais, esse fracasso seria inteiramente imperceptível.
Não trilho qualquer tipo de filosofia melancólica ou doutrina pessimista, por isso mesmo recuso otimismos pedestres e nutro a certeza de que, se chegamos até aqui, é bem provável que não desmentiremos o elã que demonstramos no passado, lamento apenas, estritamente do ponto de vista de indivíduo interessado, que esse autêntico futuro da humanidade seja uma coisa distante. Por certo não o verei, mas espero estar contribuindo para o seu advento ao tentar por em evidência, por meio do reconhecimento da grandeza do presente e da crítica à miséria contemporânea, de que ele é possível e desejável.
E aviso, para concluir, que as inscrições para o clube do otimismo ponderado estão permanentemente abertas.