MIA > Biblioteca > José Chasin > Novidades
Primeira Edição: Publicado originalmente na Revista Temas de Ciências Humanas, n° 2, São Paulo, Grijalbo, 1977.
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Pondo-se e repondo-se, desde 1964, como politicizadora da totalidade, a oposição no Brasil tem colhido sua subsunção, voluntária ou involuntária, ao diapasão das perspectivas governistas. Não no sentido de encontrar, o que seria legítimo ou, pelo menos, compreensível, uma tática operacionalizadora de sobrevivências e convivências possíveis, necessárias ainda que compulsórias, mas na direção essencial de notas básicas das concepções que sintetizam a existência e os movimentos do social, e direcionam a atividade prática. Com a diferença maior, substancial em termos de resultantes, de que a atuação situacionista distingue, taticamente, entre o discurso econômico e o discurso político, recusando-se com “superioridades” ao debate do primeiro, como se se tratasse de questão, pela natureza “imutável” de seu objeto, intrinsecamente pacífica para os iniciados, enquanto concede controladamente, numa gradação que vai do zero a alguns magros pontos de uma estreita escala que ela própria estabelece, a discussão “política”; em contrapartida, a oposição prima por só discutir neste plano, excluindo quaisquer outros, ou reduzindo-os àquele. Assim, esquivando-se à controvérsia sobre a questão econômica, a situação torna vitoriosa a sua política, ao passo que a oposição, brandindo dominantemente o “político”, colhe a derrota em todas as “instâncias”. É uma das maiores e mais sutis vitórias da situação, num curso que já se estende por mais de uma década, fazer precisamente a oposição propor e polemizar, viver exclusivamente o “político”, enquanto ela própria — a situação — retendo todos os comandos, realiza seu projeto global. Com isto, desde logo é subtraída à oposição qualquer dimensão de eficácia, restando ainda, na liminar das “necessidades”, quando a sutileza cede lugar ao poder ostensivamente explicitado, a possibilidade do acionamento do instrumental da excepcionalidade; para, depois, tudo recomeçar como no fluxo de uma rotina consagrada, a sugerir o falecimento da história.
Mas, para além do “político”, a história essencial prossegue na regência do espetáculo, o evolver do real não deixa de se efetuar; e nesta esfera é decisivamente inoperante qualquer instrumento excepcional, tanto ou mais que qualquer inflamado discurso brossardiano. Um ato pode, com certa facilidade, abolir ou transfigurar toda uma configuração jurídica, anular um mandato ou algo equivalente, mas é irremediavelmente ineficiente para subtrair o peso específico das “contestações” objetivas do tecido econômico. O governo, nos seus limites intrínsecos, é obrigado, mesmo a contragosto, a entender isto; a oposição, ao contrário, é que dá a impressão de não saber ou de não querer compreender tais coisas.
Longe de qualquer dúvida, sob mais diversas formas, a marca que tem selado a identidade da oposição é a da politização do discurso. Entenda-se por isto a redução do todo problemático nacional ao meramente político. Trata-se, em suma, de algo que em muito se distingue da consideração de que todo grande problema é um problema político, no sentido de que as grandes questões sociais têm sempre a magnitude dos negócios públicos. Radicalmente distinto também é do ato de politizar, que implica em partir de uma equação da totalidade, conceitualmente elaborada. Ao inverso, o discurso politicizado da oposição é a diluição, o desossamento do todo, a sua liquefação em propostas abstratamente situadas apenas no universo das regras institucionais. São a autonomização e a prevalência politicológica do “político” em detrimento da anatomia do social, isto é, do alicerce econômico. Este elisão do metabolismo social fundante é uma inobservância mais do que visível da consideração de que as “relações jurídicas, tais como formas de Estado, não podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas, pelo contrário, elas se enraízam nas relações materiais de vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de ‘sociedade civil’, seguindo os ingleses e franceses do século XVIII; mas que a anatomia da sociedade burguesa deve ser procurada na Economia Política”(1). Inobservância que, justamente por destacar, isolar e hiper-acentuar o “político”, despolitiza, na exata medida que desliga o político da raiz que o engendra e reproduz; numa palavra, na exata medida que o desqualifica enquanto político real, enquanto dimensão de um todo, que só pelo todo possui especificidade, e do qual não faz sentido dizer que guarda autonomia, como se fora um cartão destacável de um fichário de folhas soltas, passível de infinitos “embaralhamentos”. Sem sentido que não é minorado pela propositura de uma relativização da autonomia afirmada, a não ser como nos clássicos, quando então já não se trata de autonomia, mas da indicação da não-mecanicidade da relação, o que dizer da sua determinação enquanto vínculo essencial, irremovível sob pena de desfiguração, que se objetiva num andamento constituinte profusamente mediado. Mediações, ressalte-se, que se põem como ligamentos que unem organicamente à raiz, e não como desligamentos que dela afastam. O futuro, que pende da extremidade de um ramo, une-se à raiz pelo esgalhamento que embrica no tronco, o qual, por sua vez, desce ao solo. Seria tópico demais dizer que o fruto dista da raiz pelo espaço compreendido por ramos e caule, conferindo, assim, à relação mais superficial e aparente o porte de determinação fundamental.
A autonomização do político e sua consequente hiper-acentuação é, de fato, seu esvaziamento numa entidade abstrata, a perda de sua concretude, e decorrentemente de sua potência e eficácia. De todo modo, a politicização da totalidade pelo discurso é, pelo menos, um grosseiro gesto simplificador que, no mínimo, desconhece, desrespeita e/ou elimina a qualidade própria das demais componentes que integram a totalidade. Converter e diluir tais qualidades ao meramente “político”, além da bárbara arbitrariedade que subentende, é ao mesmo tempo uma condenação à impotência no plano objetivamente político, na medida que este se põe como ação, prefigurada mentalmente, que por interesse teleológico se submete à intrincada causalidade do todo. O que é o mesmo que dizer que o agente para efetivar seu fim a este se submete, subordinando-se, assim, necessariamente às propriedades e virtualidades de seu objeto. À evasão do concreto, induzida pela politicização, a verdadeira política contrapõe, pois, a si mesma como prática que toma o trabalho como proto forma(2).
Notoriamente complexo, o fenômeno da politicização da totalidade, no caso por parte da oposição, transcende ao período posterior aos eventos de 64; contudo, configurações precisamente opostas a ele também já ocuparam o panorama nacional: basta indicar que a década e meia que antecedeu o movimento de 64, foi acima de tudo, um período de programas econômicos, — é suficiente recordar as questões relativas à implantação do monopólio estatal do petróleo, e a propositura, ainda que muito debilmente elaborada, das chamadas reformas de base. O contraste que aí se configura, independentemente de outras considerações, é por si só sintomático, indicativo de significações que há que, no devido lugar, determinar pela via única das análises concretas, repelidas as simplificações generalizadoras, oferecidas como preciosismos, tão a gosto de certos padrões hoje dominantes no campo historiográfico. De nossa parte, o acima aludido tem por propósito simplesmente encaminhar para o objeto efetivo deste comentário: o reaparecimento de uma plataforma econômica no seio da oposição.
Com efeito, a abordagem econômica da oposição reduzia-se até recentemente à simples retórica da “A economia vai bem, mas o povo vai mal”. Não que semelhante afirmação, de origem situacionista, seja completamente destituída de verdade. Todavia, enquanto ela é efetivamente verdadeira no que diz respeito à sua parte final, implica, ao mesmo tempo, numa dupla incorreção: a de que a economia, de fato, evolvia numa equação correta, e de que o problema reside simplesmente na esfera da distribuição da riqueza produzida. Com semelhante retórica a oposição convalidava a política econômica oficial e participava, algumas vezes mais do que veladamente, das euforias do “milagre”. Isto é, a oposição não só se furtava à crítica das pedras angulares do projeto global do situacionismo, surpreendida e iludida pela sua “eficácia”, deixando, portanto, de fora o principal, a base de todo o panorama, como, refugiando-se na trincheira das questões institucionais, limitou-se a reivindicar, e ainda assim abstratamente, as franquias democráticas. Estas, da perspectiva governista, coroariam as resoluções e as conquistas “alcançadas” no terreno da riqueza material. Da ótica oposicionista abririam caminho para um partilhamento mais equitativo dos bens produzidos, ignorado, sem mais, que “A articulação da distribuição é inteiramente determinada pela articulação da produção. A própria distribuição é um produto da produção, não só no que diz respeito ao objeto, podendo apenas ser distribuído o resultado da produção, mas também no que diz respeito à forma, pois o modo preciso de participação na produção determina as formas particulares da distribuição, isto é, determina de que forma o produtor participará na distribuição. /…/Na sua concepção mais banal, a distribuição aparece como distribuição dos produtos e assim como que afastada da produção, e, por assim dizer, independente dela. Contudo, antes de ser distribuição de produtos, ela é: primeiro, distribuição dos instrumentos de produção, e, segundo, distribuição dos membros da sociedade pelos diferentes tipos de produção, o que é uma determinação ampliada da relação anterior. (Subordinação dos indivíduos a relações de produção determinadas.) A distribuição dos produtos é manifestamente o resultado desta distribuição que é incluída no próprio processo de produção, cuja articulação determina. Considerar a produção sem ter em conta esta distribuição, nela incluída, é manifestamente uma abstração vazia, visto que a distribuição dos produtos é implicada por esta distribuição que constitui, na origem, um fator de produção. Ricardo, a quem interessava conceber a produção moderna na sua articulação social determinada, e que é o economista da produção por excelência, afirma mesmo assim que não é a produção, mas sim a distribuição que constitui o tema propriamente dito da Economia moderna. Aqui ressurge novamente o absurdo dos economistas que consideram a produção como uma verdade eterna, enquanto proscrevem a História ao domínio da distribuição”(3). Natural é que tal seja o pressuposto situacionista, o que alarma é seu partilhamento; sem exceção notável, pelas vozes federadas na oposição. Neste ponto de convergência entre as “palavras”, perfiladas pela situação de um lado, e a oposição de outro, fica-se sem saber, então, o que impede a democratização, as aberturas, a distensão, em que a oposição, por falta de melhor inspiração, predominantemente teima, com certo júbilo, em reiteradamente apostar. E levando a aposta a certos extremos (sempre mal apreendidos como radicais) certas cabeças rolaram, e, num aparente paradoxo, outras não. É que em termos de radicalidade enquanto raiz a questão sempre esteve, como não poderia deixar de ser, em outra esfera.
Afinal, politicizando a totalidade, a oposição não tinha como escapar às malhas dos propósitos situacionistas, na exata medida em que 64 foi posto e determinado por objetivos diretamente vinculados à anatomia da sociedade civil. A intervenção de 64 só se explica, no essencial, por este ângulo, tanto que seu revestimento político sempre andou atravessado por certa ambiguidade; basta aludir, desde a herança liberal, portada pelo castelismo, sempre assinalada como ponto maior de referência dos puros e verdadeiros ideias do movimento, até as fórmulas menos vazias das “democracias especiais”. Tudo isto consubstanciando muito menos casuísmo do que a maioria dos desorientados observadores imaginam. Assim, desde o princípio, o “político” estava “aberto” para o aprimoramento, sendo prerrogativa situacionista a determinação da hora de seu advento. Jamais o econômico gozou de privilégio semelhante. Muito se falou em institucionalizar, em abrir e fechar os respiradouros políticos, e na sua modelagem. Nada igual ocorreu com a problemática básica da questão nacional. Discutiu-se, mais ou menos, dependendo do momento, o “político”, e com isto a questão econômica ficou resguardada, inatingível e preservada no perfil que o poder lhe conferiu. Foi a vitória maior, compreensivelmente a mais acarinhada, do situacionismo. Foi a derrota maior da oposição, sintomaticamente a que menos a sensibilizou.
Todo este quadro pode ser surpreendente, inquietante pela inamabilidade que possa sugerir, mas não incompreensível. Ele se elucida, tanto pela formação histórica brasileira, como pelas circunstâncias internacionais que marcam os últimos 15 anos.
Longe, muito longe de pretender estampar aqui um máximo de aproximação da realidade, e sempre considerado que faz parte da essência da indagação científica que tal coisa não se possa alcançar senão através de erros e peripécias múltiplas(4), tracejamos a seguir, em brevíssimas linhas, um contorno interpretativo geral, como pano de fundo para as considerações que, de fato, ocupam o centro das preocupações deste artigo, e que estão especificamente voltadas para o registro do reaparecimento de uma proposta econômica oposicionista.
Em outro lugar, ainda de modo fortemente abstrato, se bem que menos resumidamente do que aqui se fará, buscamos esquematizar para o caso brasileiro o contorno interpretativo geral acima referido(5). Lá, como aqui, o esquema pretende-se razoavelmente ancorado, aberto consequentemente a correções e concreções posteriores; mas não uma hipótese provisória, que evoluciona descompromissadamente no manuseio arbitrário de dados, num jogo de regras precárias ou completamente destituído delas, no qual a cada pretensa adivinhação sucede, logo a seguir, uma nova descoberta de pequeno curso e moda passageira. Precisamente, pois, um esquema, uma formulação, portanto, abstrata que se põe como aberta para enriquecimentos dentro de seu próprio diapasão. Isto é, assumidamente é fixado um compromisso teórico-metodológico, ele próprio implicador de sucessivas aproximações cada vez mais concretizantes. Fique isto, então, enfatizado, e também que, de início, estamos muito mais empenhados em abrir uma brecha à compreensão pelo alinhamento preliminar de um contorno analítico, do que dar por estabelecido um sistema de interpretação.
A busca de uma apreensão dialética do capitalismo — na especificidade com que se objetivou e se tem reproduzido no Brasil — quase já tem a antiguidade de meio século. E neste tempo, relativamente longo, algumas aproximações de real importância vieram à luz, e outros tantos descaminhos foram perpetrados. Não é aqui, evidentemente, o lugar, nem fôlego haveria para tanto, para tentar satisfazer a premente necessidade de efetuar concretamente o acerto de contas com as diversas contribuições. Assinalar-se-á exclusivamente que, abstraídos os ponderáveis aspectos positivos de tais esforços, duas ordens principais de incorreções têm se verificado. De uma parte, o insatisfatório entendimento do que venha a ser o caráter universal do fenômeno capitalista, conduziu a refletir simplesmente com atributos e leis genéricas, e a “constatar” a ocorrência necessária destes a qualquer custo, no interior das fronteiras nacionais. Assim, preservaram-se universais, mas não propriamente na condição de universais concretos, e, muitas vezes, singularidades reais foram perdidas. De outra parte, uma forma de incorreção mais recente tem hiper-acentuado as singularidades, mas, tomando-as simplesmente como dados empíricos, isto é, despojadas por inteiro de qualquer espessura ontológica (espessura que, sob feição avariada e debilitada, não importa, restava, ainda assim, no caso anterior), faz com que a universalidade concreta seja diluída. E a relação entre universal e singular, aí, se mostra como uma relação entre categorias exteriores uma a outra, como a subsunção de um amontoado de notas empíricas a um princípio geral(6). Sem ressaltar as convergências (não casuais — não fora a segunda, em boa medida, simples reação à primeira) observáveis entre as duas maneiras defeituosas de operar o instrumental dialético, notáveis no que diz respeito ao malbaratamento do universal concreto, à despreocupação com o ontológico e à confusão entre singularidade concreta e dado empírico, grife-se, isto sim, que, enquanto a primeira forma de incorreção acentuada o universal e tende a perder o singular, a segunda acentua o que toma pela singularidade e perde completamente o universal. Observe-se, pois, que a lógica destes dois casos manobra na polaridade entre universal e singular, entre os quais habita puramente o vácuo. Numa linguagem Lukácsiana, dir-se-ia estar em face de teorias fetichizadas, na medida que lidam exclusivamente com as categorias de universalidade e singularidade, eliminando ou não reconhecendo exatamente a categoria da particularidade, visto que “O movimento do singular ao universal ou vice-versa está sempre mediado pelo particular; é um membro real de mediação tanto na realidade objetiva, quanto no pensamento que reflete de modo aproximadamente adequado esta realidade(7).
Diga-se, então, sem mais que o problema fundamentalmente de colher, à maneira dialética, a entificação do capitalismo no Brasil diz respeito à questão dos particulares, ou, realçando a dimensão ondontológica, à verificação de que há modos e estágios de ser, no ser e no ir sendo capitalismo, que não desmentem a universalidade de sua anatomia, mas que realizam através de objetivações específicas(8).
O reconhecimento das formas particulares de objetivação do capitalismo é uma constante em Marx, desde seus escritos de juventude(9). Múltiplas são suas indicações, especialmente ao tratar da “miséria alemã”, grifando o caráter tardio e retardado do processo de constituição do capitalismo na Alemanha, no qual a emersão do novo paga alto tributo ao historicamente velho, numa conciliação, portanto, entre progresso e atraso sociais que levou, certa vez, Engels a dizer, comparando a evolução francesa e alemã, que “em cada época para cada problema histórico os franceses encontraram uma solução progressista e os alemães uma solução reacionária”. Um fragmento do Prefácio à primeira edição de O Capital ilustra com vigor a questão: “É muito pior que a da Inglaterra a situação nos lugares da Alemanha onde se implantou a produção capitalista, por exemplo, nas fábricas propriamente ditas, e isto por faltar o contrapeso das leis fabris. Nos demais setores, a Alemanha, como o resto da parte ocidental do Continente Europeu, é atormentada não apenas pelo desenvolvimento da produção capitalista, mas também pela carência desse desenvolvimento. Além dos males modernos, oprime a nós alemães um série de males herdados, originários de modos de produção arcaicos, caducos, com seu séquito de relações políticas e sociais contrárias ao espírito do tempo. Somos atormentados pelos vivos e, também, pelos mortos. Le mort saisit le vif”(10).
Poderíamos multiplicar abundantemente as referências. Tanto Marx, como Engels e Lenin oferecem-nos inesgotável exemplificação do que estamos rapidamente indicando. Suficiente, no entanto, para os efeitos aqui perseguidos, é aditar certas determinações sintetizadas por V. I. Lenin em O Programa Agrário da Social-Democracia, dado que realçam, de modo muito nítido, dimensões da particularidade que, agora, nos importa de forma especial. Ao tratar do problema da transformação da propriedade agrária, no processo de transição do feudalismo russo para o capitalismo, o referido autor aponta duas formas possíveis para este desenvolvimento: “Os restos do feudalismo podem desaparecer tanto mediante a transformação das terras dos latifundiários, como mediante a destruição dos latifúndios dos grandes proprietários, quer dizer, por meio da reforma e por meio da revolução. O desenvolvimento burguês pode verificar-se tendo à frente as grandes fazendas latifundiárias, que paulatinamente se tornam cada vez mais burguesas, que paulatinamente substituem os métodos feudais de exploração por métodos burgueses, e pode verificar-se também tendo à frente as pequenas fazendas camponesas, que por via revolucionária extirpam do organismo social a ‘excrescência’ dos latifúndios feudais e se desenvolvem depois livremente pelo caminho das granjas capitalistas. Estes dois caminhos de desenvolvimento burguês, objetivamente possíveis, nós os denominaríamos caminho do tipo prussiano e caminho do tipo norte-americano. No primeiro caso, a fazenda feudal do latifundiário se transforma lentamente em uma fazenda burguesa, junker, condenando os camponeses a decênios inteiros da mais dolorosa expropriação e do mais doloroso jugo e destacando a uma pequena minoria de Grossbauer (grandes camponeses). No segundo caso, não existem fazendas de latifundiários ou são destruídas pela revolução, que confisca e fragmenta as propriedades feudais. Neste caso predomina o camponês, que passa a ser agente exclusivo da agricultura e vai evoluindo até converter-se no granjeiro capitalista. No primeiro caso, o conteúdo fundamental da evolução é a transformação do feudalismo em sistema usurário e em exploração capitalista sobre as terras dos latifundiários-feudais-junkers. No segundo caso, o fundo básico é a transformação do camponês patriarcal em granjeiro burguês”. Mais adiante, Lenin explicita outras decorrências destas formas de objetivação social, evidenciando-se as mesmas características que os textos anteriores nos revelaram: “A primeira implica na manutenção máxima da sujeição e da servidão (transformada ao modo burguês), o desenvolvimento menos das forcas produtivas e um desenvolvimento retardado do capitalismo; implica calamidades e sofrimentos, exploração e opressão incomparavelmente maiores das grandes massas de camponeses, e, por conseguinte, do proletário. A segunda, entranha o mais rápido desenvolvimento das forcas produtivas e as melhores condições de existência das massas camponeses (as melhores possíveis sob a produção mercantil)”(11).
É precisamente para a particularidade do caminho prussiano que desejamos preliminarmente remeter, no afã de tracejar um contorno interpretativo geral do caso brasileiro. De fato, entendemos que este, sob certos aspectos importantes, é conceitualmente determinável de forma próxima ou assemelhável àquela pela qual o fora o caso alemão, mas de maneira alguma de forma idêntica. Dito de outro modo: estamos convencidos da real efetividade de tomar o caminho prussiano como fonte apropriada de sugestões, como referencial exemplar, e, mais do que tudo, como um caminho histórico concreto que produziu certas especificidades que, em contraste, por exemplo, com os casos francês e norte-americano, muito se aproxima de algumas das que foram geradas no caso brasileiro. Mas, grife-se com a máxima ênfase, o caminho prussiano não é tomado como modelo, como contorno formal aplicável a ocorrências empíricas. Ao contrário, é precisamente enquanto modo particular de se constituir e ser capitalismo que o caminho prussiano tem para nós importância teórica básica. Enquanto tal, aos diversos níveis de concreção em que é apreensível, permite, como qualquer objeto, destilar certos caracteres, mais ou menos gerais, que importa considerar para orientar a apreensão do caso brasileiro.
Assim, de início, importa-nos como particular contrastante aos casos clássicos; clássicos, acima de tudo, porque mais coerentes, mais congruentes ou consentâneos, mo plano da sua própria totalidade, enquanto totalidade capitalista, na qual as diversas partes fundamentais imbricam entre si e em relação ao todo de forma mais amplamente orgânica, de maneira que o real se mostra como racional, no nível da máxima racionalidade historicamente possível. Particular contrastante do qual se avizinha o caso brasileiro, também diverso dos casos clássicos.
Nessa linha de raciocínio, a conexão que se está indicando situa-se no plano de certas determinações gerais, de algumas abstrações operadas em relação ao concreto da particularidade do caminho prussiano. Assim, irrecusavelmente, tanto no Brasil, quanto na Alemanha, a grande propriedade rural é presença decisiva; de igual modo, o “reformismo pelo alto” caracterizou os processos de modernização de ambos, impondo-se, desde logo, uma solução conciliadora no plano político imediato, que exclui as rupturas superadoras, nas quais as classes subordinadas influiriam, fazendo valer seu peso específico, o que abriria a possibilidade de alterações mais harmônicas entre as distintas partes do social. Também nos dois casos o desenvolvimento das forcas produtivas é mais lento, e a implantação e progressão da indústria, isto é, do “verdadeiro capitalismo”, como distinguia Marx, do modo de produção especificamente capitalista, é retardatária, tardia, sofrendo obstaculizações e refreamentos decorrentes da resistência de forças contrárias e adversas. Em síntese, num e noutro caso, verifica-se, para usar novamente uma fórmula muito feliz, nesta sumaríssima indicação do problema, que o novo paga alto tributo ao velho.
Todavia, se tais características, abstratamente tomadas, são comuns a ambos os casos, e delas se pode dizer, na linha da lógica de Marx, que enquanto generalidades são generalidades razoáveis, na medida que efetivamente sublinham e precisam traços comuns, há, no entanto, que atentar, prosseguindo pela mesma diretriz, que “Esse caráter geral, contudo, ou este elemento comum, que se destaca através de comparação, é ele próprio um conjunto complexo, um conjunto de determinações diferentes e divergentes”(12). O que significa, portanto, em termos rápidos, para o caso específico de que tratamos, que o caminho prussiano, na totalidade concreta do processo real alemão, se põe de modo distinto daquele em que ele se põe na totalidade concreta do processo real brasileiro. Mesmo porque “se o concreto é tomado como síntese de várias determinações, esta síntese (Zusammenhang), que sumariza, põe junto, se faz por uma lógica que não se reduz à mera justaposição dos predicados” reconhecendo, pois, que o decisivo não é tanto o que um nome possa designar, “mas como o objeto nomeado se objetiva, se individualiza, enquanto entidade social”(13).
De sorte que estamos diante de singularidades distintas, acolhíveis, do ponto de vista de certos aspectos abstratamente tomados, sob um mesmo particular, que antes os separa dos casos clássicos, do que os identifica entre si. Todavia, se isto é pouco, não é nada desprezível, quando mais não fosse porque obriga a pensar como se objetivam os predicados de e em cada uma das singularidades.
Desse modo, se aos dois casos convém o predicado abstrato de que neles a grande propriedade rural é presença decisiva, somente principiamos verdadeiramente a concreção ao atentar como ela se objetiva em cada uma das entidades sociais consideradas, isto é, no momento em que se determina que, no caso alemão se está indicando uma grande propriedade rural proveniente da característica propriedade feudal posta no quadro europeu, enquanto no Brasil se aponta para um latifúndio procedente de outra gênese histórica, posto, desde suas formas originárias, no universo da economia mercantil pela empresa colonial.
Do mesmo modo quanto à expansão das forças produtivas. Em ambos os casos o desenvolvimento é lento e retardatário em relação aos casos clássicos. Mas, enquanto a industrialização alemã é das últimas décadas do século XIX, e atinge, no processo, a partir de certo momento, grande velocidade e expressão, a ponto da Alemanha alcançar a configuração imperialista, no Brasil a industrialização principia a se realizar efetivamente muito mais tarde, já num momento avançado da época das guerras imperialistas, e sem nunca, com isto, romper sua condição de país subordinado aos polos hegemônicos da economia internacional. De sorte que o “verdadeiro capitalismo” alemão é tardio, se bem que autônomo, ao passo que o brasileiro, além de híper-tardio, é caudatário das economias centrais.
A exemplificação da diferenciação poderia, evidentemente, prosseguir, contudo é, aqui, desnecessária. Fácil é a percepção das distinções, nas expressões concretas que assumem em cada caso, cada uma das características abstratas que arrolamos como comuns aos dois. Observação que nos conduz, portanto, à constatação não mais apenas de uma única forma particular de constituição não clássica do capitalismo, mas a mais de uma. No caso concreto, cremos que se está perfeitamente autorizado a identificar duas, de tal sorte que temos, acolhíveis sob o universal das formas não clássicas de objetivação do capitalismo, a forma particular do caminho prussiano, e um outro particular, próprio aos países, ou, pelo menos, a alguns países (questão a ser concretamente verificada) de extração colonial. De maneira que ficam distinguidos, neste universal das formas não clássicas, das formas que, no seu caminho lento e irregular para o progresso histórico-social, pagam alto tributo ao atraso, dois particulares que, conciliando ambos com o historicamente velho, conciliam, no entanto, com um velho que não é, nem se põe como o mesmo.
Conclusivamente: de um lado, pois, firmemente estabelecido, temos o caminho prussiano; a seu lado, sem que confiramos demasiada importância aos nomes, fique, sem pretensões, a sugestão designativa de via ou caminho colonial. Expressão conveniente que tem, nos parece, a propriedade de combinar a dimensão histórico-genética com a legalidade dialética. Esclareça-se, por fim, que não submetemos qualquer relação de afinidade entre via ou caminho colonial e expressões semelhantes. Ao contrário, pensamo-la exclusivamente enquanto particularidade, portanto, como mediação necessária e objetiva entre a universalidade do capitalismo e determinadas singularidades; longe, consequentemente, da “criação” de novos universais, tal como se dá quando, a colonial, se antepõe modo de produção.
É, portanto, no quadro do capitalismo que se põe pela via colonial, que foi pensada, na primeira parte deste artigo, a ocorrência da politicização da totalidade, efetuada pela oposição, e é, evidentemente, considerando o mesmo particular que se passa, agora, a considerar o reaparecimento de uma plataforma econômica oposicionista.
Este ressurgimento principia na legislatura em curso, precisamente a partir de 1975, pela voz isolada do senador R. Saturnino Braga e culmina com sua recente proposta de uma equação alternativa para o quadro econômico-social brasileiro.
Nos idos de 75, no recinto fechado da Câmara Alta, por entre educados e respeitosos aplausos, e muitos bens, que desde logo lhe são parlamentarmente tributados por adversários e correligionários, colhe Saturnino Braga muito poucos acréscimos dos últimos e curiosos volteios dos primeiros. Estes, visivelmente empenhados em aparar arestas, contornar divergências, mais do que isto, em dissolver diferenças, procuram retoricamente configurar uma identidade básica entre os pontos de vista do parlamentar emedebista e os do governo. Virgílio Távora é a estrela desse esforço. Para além dos muros do Congresso, poucas e parcas notas jornalísticas dão conta do debate. E a federação emedebista, muito ocupada em fazer “política”, não dá sinais efetivos de compreender a importância do trabalho de seu “economista”.
Pela coletânea dos debates parlamentares do senador fluminense, publicada em fins do ano passado(14), e que reúne pronunciamentos realizados ao longo de seu primeiro ano e meio de mandato, observa-se que S. Braga principia como quem dá início a um serviço novo. Sente-se induzido a pelo menos aludir à necessidade de preencher uma lacuna. Registra, às primeiras linhas do discurso que abre a coletânea, talvez o primeiro a ter sido pronunciado, que “cabe a nós, da oposição, dizer que o MDB, também no campo econômico, tem críticas sérias a fazer e sugestões a apresentar, para remediar um estado de coisas com o qual não concordamos em absoluto”(15). Afirma, portanto, desde logo, absoluta discordância com o estado de coisas tal como evolve, ao mesmo tempo que lembra que a oposição também no campo econômico tem algo a dizer. Se tal afirmação se fez necessária é porque o que tinha de ser dito não o fora até então. Se, quanto a isto, restar ainda alguma dúvida, basta referir que o vácuo econômico da oposição foi até mesmo explorado pela malícia parlamentar da liderança situacionista, cobrando Petrônio Portella, em determinado momento, as teses emedebistas sobre a questão, que fossem anteriores às dos pronunciamentos de S. Barga(16).
Para muito além, no entanto, da figura e do pioneirismo do senador emedebista, o que importa, aqui, é exclusivamente a leitura que faz da situação nacional e a resolução programática que oferece, na recuperação que efetua, para a oposição, do discurso econômico.
O conjunto dos discursos publicados e a proposta de uma nova equação econômica e política para o Brasil, que S. Braga encaminhou à comissão do MDB que estuda o projeto — governo da oposição — são produtos de uma mesma visão de mundo; idênticos nas raízes e nas resultantes, de modo que a Proposta é simplesmente a consolidação em texto corrido daquilo de que os discursos são compostos. Observa-se, ora num caso, ora noutro, uma que outra argumentação mais estendida ou sistematicamente ampliada, um que outro acréscimo que não adita, nem suprime mérito maior às teses fundamentais. Todavia, há que ler as duas coisas para superar diferenças tônicas que, de outro modo podem induzir a erro. Vale, porém, registrar uma exceção, que diz respeito à questão institucional, quando aparece a ideia de um poder moderador que seria exercido por um conselho, presidido pelo chefe de estado de uma República parlamentarista. Todo este esquema, no entanto, decorre visivelmente do empenho em encontrar uma via de transição para o estado de direito, e é condicionado ao caminho legitimador de uma Assembleia Nacional Constituinte. Ousaríamos dizer, de passagem, que, apesar da amplitude desta sugestão, da ótica braguista ela não ultrapassa o universo tático.
Mas o universo tático não ocupa a parcela maior, nem a mais importante, do discurso do senador fluminense. Presente particularmente pelo denso molho da cautela, e envolvido em aura técnica de primeira linha, que acena para elevações estatísticas, o utensílio tático procura fazer passar um discurso que remete à totalidade.
Com efeito, move-se S. Braga no bojo de uma concepção que pensa e propõe uma sorte de capitalismo “corrigido”. Proposta assumidamente “reformista e conciliadora por excelência”(17), que se julga distinta e superior a uma “simples cópia das diretrizes neocapitalistas” (P, 44/3) e convergente do universo social-democrata. Com isto, entende Saturnino, escapa-se ao “falso” dilema entre socialismo e capitalismo: “O que importa ficar claro nesse discurso é a necessidade de superar essa dicotomia capitalismo versus socialismo que, para nós pelo menos, é inteiramente falsa. Aliás, acho que socialismo ou capitalismo não são fins, objetivos absolutos pelos quais se deva lutar. O que é importante é a liberdade, a justiça social, a fraternidade, o desenvolvimento. Esses são fins em si mesmos; socialismo, capitalismo ou outro regime são meios de se obter fins” (P, 41/3). Mas, se estas são as fronteiras explícitas da razão braguista, aliás muito pouco singulares, mais relevante que explorar os contornos do “falso” dilema é apreender os motivos de restrição aduzidos para cada uma de suas pontas. Assim, o polo socialista é descartado pelas esperadas e convencionais conotações do “totalitarismo”(18), mas a crítica e a “correção” do capitalismo são bem mais elaboradas. São estas, em contraste com a primeira, que transpassam os textos e informam o projeto Saturnino. São elas que, de fato, é necessário detalhar, mesmo porque são as únicas que os documentos desdobram.
A crítica, e subsequente “correção” do capitalismo, operada por S. Braga, tem por centro “o sistema de mercado — característica básica do capitalismo, tanto que com ele normalmente se confunde -” (P, 41/3). Crítica ao sistema de mercado enquanto “campo de força orientador da racionalidade”, isto é, como suposto de que “seria o caminho mais rápido e seguro para o desenvolvimento” (P, 41/2). Para a ótica braguista, ao contrário, o sistema de mercado possui o “defeito básico e intrínseco” de ser “por si mesmo absorvente, expansionista, e tende a concentrar as energias e atenções do homem para a produção e transação de mercadorias. A percepção desse fato alcançou a humanidade nos dias presentes, e em todas as nações do mundo da livre empresa a reação se manifesta com nitidez inocultável”. Mas não apenas em função de seu caráter absorvente e expansionista; “outras falhas importantes do sistema de mercado vão pouco a pouco sendo reconhecidas e admitidas para efeito de correção”. E Saturnino as enumera: “O mercado tem falhado completamente em reduzir as desigualdades entre grupos dentro de uma mesma sociedade. Nos países em desenvolvimento isso é particularmente flagrante, com a tendência perniciosa ao aprofundamento das disparidades. A supervalorização do fator capital e do fator tecnologia moderna; a supervalorização do aspecto ‘moderno’ das coisas em geral /…/ atuando simultaneamente nas próprias engrenagens do mecanismo do mercado produzem efeitos altamente concentracionistas, em termos de distribuição dos frutos do desenvolvimento, assim como efeitos igualmente maléficos no aumento da dependência da economia nacional para com o exterior, criando impasses sucessivos na área do balanço de pagamentos” (P, 41/2). Ademais, “O mercado falhou também escandalosamente em reduzir as desigualdades entre as nações”. E “essas disparidades só tendem a aumentar”. Neste ponto, Saturnino incursiona por uma visão catastrófica da história para extrair, no entanto, por esta via, uma conhecida verdade crítica a um antigo preceito do liberalismo econômico: “Neste campo, todavia, há algo de muito grave no horizonte. É que em razão de obstáculos e custos crescentes, ligados ao esgotamento de recursos naturais e à poluição, a era do ‘crescimento zero’ se aproxima com uma clareza inconfundível. É o fim das ilusões acalentadas pelo dinamismo, em que cada pobre tem a esperança de melhorar adiante a sua situação, senão relativa pelo menos absoluta” (P, 41/3). Mas o inventário das afecções só chega ao fim com o registro de “Outra anomalia ou doença do sistema de mercado (que) é a clara e progressiva redução da liberdade de iniciativa em muitos setores da economia, chegando mesmo a uma completa eliminação da livre empresa em alguns ramos, onde os oligopólios estabelecidos têm um domínio não apenas virtual mas concreto e total” (P, 41/3).
Por todas estas razões, afirma Saturnino, “Erigir o mercado como critério único ou supremo de orientação para alocar recursos tem sido outro grande erro”. E completa: “Mesmo num sistema de livre empresa, o mercado deve ser considerado na sua dimensão própria, que além de ser exclusivamente econômica, não pode abranger nem mesmo a totalidade dessa esfera no estágio atual da nossa civilização” (P, 41/2). Esta forte restrição ao “sistema de mercado”, todavia, não implica na propositura (nem isto seria compatível com a ótica braguista) de sua abolição, mesmo porque “O mercado deve ser reconhecido como o melhor sistema até agora encontrado para, democraticamente e eficientemente, alocar os recursos disponíveis para o atendimento das necessidades materiais do homem” (P, 41/2). Não se trata de perpetração, por parte do senador emedebista, de qualquer contradição nos termos, haja vista que “O reconhecimento de que é o melhor (o ‘sistema de mercado’) não significa entretanto que seja o único, e que a melhor combinação seja aquela onde não entre nenhum outro sistema paralelo, onde o mercado tenha uma dominância absoluta na organização da sociedade”. Em outros termos, há que bem entender que Saturnino Braga não se põe contra o “sistema de mercado”, mas contra “A hipertrofia do sistema de mercado, ou que se poderia chamar de totalitarismo do mercado”, mesmo porque este “parece ter ficado para trás na história da nossa civilização, tendo atingido seu ponto culminante na primeira metade do século vinte”. E isto, entende o parlamentar, “É o resultado da compreensão de que a submissão às regras do mercado em todas as facetas, em todas as transações da vida humana leva fatalmente a uma depreciação, ou a uma consideração secundária de aspectos da maior importância para o sentido da vida do homem; aspectos que jamais seriam suscetíveis de receber o tratamento que o mercado dá às coisas, fazendo-as mercadorias” (P, 41/2). Compreensão da qual “A social-democracia no ocidente europeu é uma realidade que cresceu sem nenhum sinal de reversão, empurrando o livre jogo do mercado para planos cada vez menos importantes, se bem que dominantes”.
Ver-se-á, no que segue, que os parâmetros social-democráticos não são para Saturnino mais do que pontos de referência em geral, e não propriamente uma doutrina orgânica à qual há que se filiar. Isto se evidencia quando a questão é o desenvolvimento brasileiro. Desenvolvimento este que o senador tematiza, isto sim, apoiado na sua visão do que sejam, hoje, os caracteres do “sistema de mercado”. Caracteres, entre defeitos e “correções”, que o afastam explicitamente das fórmulas liberais clássicas. É assumindo tais concepções, que não se confundem com o protecionismo, indo muito além deste, que S. Braga desenvolve a sua leitura crítica da situação brasileira e fórmula uma proposta alternativa.
Mas, antes de enfrentar o caso brasileiro, tal como é lido da perspectiva braguista, há que ressaltar um dos pontos fundamentais de sua análise da organização econômica contemporânea, e que exerce papel decisivo em toda sua concepção. Trata-se da natureza monopolista da atual acumulação capitalista, e que nas palavras de Saturnino, já anteriormente estampadas, transparece sob a anotação da “clara e progressiva redução da liberdade de iniciativa em muitos setores da economia, chegando mesmo a uma completa eliminação da livre empresa em alguns ramos, onde os oligopólios estabelecidos têm um domínio não apenas virtual mas concreto e total”. De fato, diz Saturnino, “a ‘grande empresa’ é entidade inelutável da economia mundial contemporânea”(19). “Entidade inelutável”, de cujas vantagens, pensa Saturnino, é “absolutamente ocioso discorrer”, mas da qual afirma, tanto na Proposta, quanto em Política Econômica e Estatização, que é “sinônimo de crescimento, de produtividade, de pesquisa e inovação tecnológica, de relativo respeito às reivindicações trabalhistas; sinônimo de progresso na sua significação atual. E tão forte é essa identificação que seria absurdamente ingênuo, inconcebível mesmo, um projeto de desenvolvimento que não contemplasse um lugar de destaque, como condição necessária, para a ‘grande empresa’” (PEE, p.189). Em outra passagem acrescenta: “a verdade é que a grande empresa tem sido a verdadeira forca propulsora desse desenvolvimento. Sem a grande empresa, sem a suas contribuições decisivas em termos de acumulação de produtividade, de avanços nos campos da tecnologia e de administração, jamais as nações ricas do ocidente teriam chegado ao estágio de desenvolvimento em que se encontram” (PEE, p.192). Mas, paralelamente a seus aspectos positivos fundamentais, Saturnino faz o reparo de suas “desvantagens, nada desprezíveis, nada pequenas, que chegam a quase equilibrar a ponderação com os benefícios, fazendo com que muitos prefiram a condenação da grande empresa, a sua eliminação, mesmo ao preço de uma queda acentuada do ritmo de desenvolvimento” (P, 44/2). Defeitos e desvantagens que são resumíveis em ser a “grande empresa”: a) “foco potencial de recessão ou instabilidade do sistema econômico onde tem uma posição de dominância”; b) “maximização de poder pois que nesse poder reside a segurança de continuidade do seu crescimento, Poder sobre o mercado, poder sobre eventuais concorrentes, poder sobre fornecedores, poder sobre consumidores, diversificação de poder por vários setores (conglomerados), poder sobre governos: — esse é o objetivo permanente da grande empresa de hoje”; c) “além de ser um foco de instabilidade, de irracionalidade e de desigualdade, a grande empresa é um foco permanente de propagação inflacionária” (P, 44/2). É, pois, com semelhantes restrições, explicitamente de inspiração keynesiana a primeira, e Galbraithiana a segunda, e considerados os elementos positivos da grande empresa moderna, que Saturnino conclui que “se buscamos nós o desenvolvimento, não podemos rejeitar a grande empresa. É um mal necessário” (PEE, p.193); “é o preço que o mundo ocidental está pagando pelo modelo de desenvolvimento com liberdade que escolheu” (PEE, p. 192). E, anote-se, para efeito do que aqui mais de perto nos interessa, que, em sendo “um mal necessário”, é um “Mal muito pior quando se trata de empresa estrangeira, com seus centros de decisão fora da área de influência do governo nacional, com política de investimentos de vendas, de crescimento, orientadas por fatores completamente desvinculados das circunstâncias e dos interesses nacionais” (P, 44/2).
De sorte que, da ótica braguista, a empresa monopolista, identifica-se como o suporte do progresso, tal como este se efetiva na atualidade, mas o monopólio traz em seu bojo altos “custos sociais”, “defeitos” de grande teor negativos, constituindo-se num “mal necessário”, tanto mais intenso quando se trata de empresa estrangeira. Em face de semelhante “mal necessário”, é que Saturnino sublinha a validade do remédio social-democrata, aplicado nos centros altamente desenvolvidos. Mas para os países subdesenvolvidos, para os “países em desenvolvimento”, como diz o senador fluminense, não haveria nada além da mesma terapêutica? “Não haveria meios de obviar esses problemas, de reduzir esses custos sociais gerados pela grande empresa? Estariam os países em desenvolvimento /…/ condenados a passar pelas mesmas dificuldades, a contrair as mesmas doenças do mundo ocidental, cuja intensidade só promete aumentar com a entrada dos novos sócios no clube dos desenvolvidos?” (PEE, p. 193). Para o senador emedebista, antigo Diretor de Planejamento do BNDE, para os países “em desenvolvimento” há uma solução alternativa, e ela se constitui na chave de seu pensamento. De sua ótica os países “em desenvolvimento” têm a possibilidade de não contrair as “doenças do mundo ocidental” através de uma forte presença do estado na área produtiva: “se o campo das grandes empresas for dominado por uma forte presença do Estado, todos aqueles problemas estarão pelo menos grandemente amortecidos” (P, 44/2). É o preconizado por Saturnino Braga, dado que “A empresa estatal é a fórmula capaz de obviar os graves problemas gerados pela grande empresa, e oferecer à Nação um saldo muito maior de benefício em favor do desenvolvimento” (PEE, p. 194). De sorte que, deste prisma, a “anomalia” monopolista é, pois, “corrigida” pela monopolização estatal. Em face, portanto, da factualidade histórica da acumulação monopolista não se observa em S. Braga a emersão de inclinação conceitual que conflua para alguma forma da crítica romântica ao capitalismo. A grande empresa do “capitalismo verdadeiro” é sustentada como o suporte dinâmico efetivo da acumulação. Com a diferença de que seja estatal; no que S. Braga entende estar apoiado pelas indicações keynesianas: “Keynes, como todo pensador que lega à humanidade uma contribuição importante, é muito mais citado do que lido e estudado. Não fosse assim, a meditação séria sobre o último capítulo da sua grande obra — ‘Notas finais sobre a filosofia social a que poderia conduzir a teoria geral’ — evidenciaria que o sentido verdadeiro das suas observações e proposições era uma reforma muito mais profunda do sistema do que a revisão neocapitalista que se seguiu ao liberalismo e que constitui o dogma dos dias de hoje /…/ reporto-me ao último período do Capítulo 12 da Teoria Geral, quando Keynes trata das previsões a longo prazo, concluindo: ‘Espero ver o Estado, que está em situação de poder calcular a eficácia marginal dos bens de capital a longo prazo com base na conveniência social geral, assumir uma responsabilidade cada vez maior na organização direta das inversões’” (PEE, p. 190). Sem que haja dúvida sobre a sensível diferença entre organização das inversões e a propriedade delas, o relevante não é esta interpretação ser ou não pertinente, mas que o senador fluminense, compreendendo-se nela fundado, assegure o caráter “corretivo” do estado e a legitimidade de sua profunda e decisiva intervenção no setor produtivo. Do que resulta, talvez para surpresa dos incorrigíveis amantes dos universais abstratos, na propositura de um capitalismo “corrigido”, no qual parcela ponderável da propriedade deixa de ser pensada, pelo proponente, como necessariamente privada, o que obviamente não altera, concretamente, seu caráter burguês. A questão, no entanto, não reside sobre a natureza da propriedade, que se mantém pacificamente a mesma, mas na determinação entre estas variantes da propriedade capitalista qual a mais favorável para os países subdesenvolvidos, particularmente para as classes subalternas. É o que eleva certa, digressões braguistas do nível meramente piedoso, quando, por exemplo, ao afirmar que sua “linha ofereceria possibilidades bem maiores de eliminar ou reduzir bastante algumas das graves doenças do mundo ocidental desenvolvido de nossos dias do que a simples cópia das diretrizes neocapitalistas”, prossegue especificando: “Essa cópia fatalmente nos levaria aos efeitos destrutivos da sociedade de consumo, a um quadro onde a instabilidade econômica, as injustiças sociais, as tensões e manifestações de violência, o desperdício e a irracionalidade, o consumismo neurótico e neurotizante, a desilusão da juventude, o uso crescente de tóxicos, e o relaxamento progressivo dos valores morais teriam uma intensidade pelo menos igual à que tem hoje nos países líderes do ocidente, e que tanto nos preocupa, a nós ocidentais, pelo insucesso dos esforços que têm sido feitos para a sua diminuição” (PEE, p. 194).
É com este eixo básico de reflexão que S. Braga faz o diagnóstico da situação nacional a apresenta sua sugestão.
Ao nível mais abrangente, por tudo que foi dito, compreende-se que o parlamentar, cujas ideias estamos examinando, apreende o Brasil como um país “em desenvolvimento”, numa quadra histórica em que a livre iniciativa, em seus moldes clássicos, está inteiramente encerrada. E em se tratando de um país que se desenvolve, registra obviamente êxitos econômicos. Sucessos que a seu ver não são devidos à “estabilidade política imposta pela força” (P, 44/1), nem ao crescimento das exportações, também não às “reformas do sistema financeiro realizadas a partir de 1964” (P, 44/1), e muito menos ao “desumano processo de concentração de renda” (P, 44/1). Para Saturnino “o grande período desenvolvimentista brasileiro teve início na década dos 50”, verdadeiramente “o milagre começou nos anos 50”. Em síntese: “o êxito da economia brasileira nos últimos 25 anos deve-se precipuamente, como causa fundamental, ao crescimento da ação direta do Estado, à chamada estatização crescente, que hoje é alvo de ataques tão intensos e cerrados, promovidos pelos interesses estrangeiros, transnacionais, que encontram agora uma forca capaz de se confrontar com eles” (P, 44/1).
É diretamente vinculado a este quadro geral; que devem ser consideradas as duas críticas fundamentais que o senador fluminense tece à situação atual, resultante que é do “modelo econômico-social segundo o qual se vem processando o desenvolvimento brasileiro” desde 1964. E a própria “ideia da mudança do modelo /…/ originou-se e fortificou-se com base na identificação de duas falhas ou defeitos fundamentais do sistema vigente que, uma vez constatadas e denunciadas, não puderam até agora ser corrigidas ou sequer remediadas” (P, 41/1). São elas, a injustiça social e a dependência externa: “o modelo atual é socialmente injusto e além de injusto gera um grau de dependência tão grande em relação ao exterior, que tende cronicamente para a inviabilidade” (P, 41/1).
Relativamente ao primeiro ponto Saturnino é taxativo, determinando, agora, de forma nova a questão. A política econômica vigente é dada como produtora da injustiça social apontada, não mais se tratando desta como se fora simples consequência de uma pura carência distributiva, que pudesse ser sanada pela adição de uma política dessa ordem àquela. Os termos agora estão na sua ordem casual. “Não se pode pôr dúvida sobre a acusação de que o modelo vigente produz a injustiça social” (P, 41/1). “A situação de desigualdade do quadro brasileiro hoje é considerada das mais profundas e gritantes do mundo”. E isto é tanto mais grave quando se compreende, segundo o entendimento braguista, que “Um país como o Brasil, com cerca de US$1.200 de renda ‘per capita’, já pode eliminar a pobreza absoluta — aquela que chega à morte pela subnutrição ou à criminalidade pela total desesperança — sem sacrificar recursos para investimento, apenas transferindo renda dos 5% mais ricos para os 30% mais pobres” (P, 44/3).
Dispensável é insistir neste ponto, detalhando a argumentação do parlamentar do MDB na sequência dos índices e dados numéricos que convincentemente faz desfilar, mesmo porque o essencial era frisar o novo modo de pôr questão, e também dado que a ela tornaremos, mais adiante, quando tratarmos de expor os traços básicos do “modelo voltado para dentro”.
Sirva a última expressão como elo para a exposição do ponto subsequente. Com efeito, Saturnino propõe um “modelo voltado para dentro” como contraposição ao modelo vigente, determinado como voltado para fora. Estando esta volta para o exterior rigorosamente em conexão com o problema concentracionista: “As críticas da oposição à política econômica dos governos da revolução concentram-se em dois aspectos estritamente articulados: a exteriorização ou extroversão excessiva a que foi levada a nossa economia, e a concentração de riqueza nas mãos de uma minoria privilegiada de brasileiros. São dois aspectos muito interligados, duas faces do modelo econômico da Revolução que muito dificilmente poderiam existir de forma independente uma da outra — e que, por isso mesmo, devem ser examinadas e discutidas conjuntamente” (PEE, p. 3). A denúncia da exteriorização evidentemente diz respeito à ênfase exportadora da política econômica vigente, mas não exclusivamente a ela, remetendo globalmente às “relações de troca que prevalecem entre países que tem e não tem tecnologia de produção avançada” (P, 41/1).
Em termos bem sintéticos: “Na falta de uma base de sustentação no mercado interno o lema oficial passou a ser ‘a solução é exportar’. /…/ Mas as engrenagens do modelo em vigor são diabólicas, e o esforço de exportação e o inegável êxito no crescimento do valor exportado acabam resultando numa tremenda pressão para importar” (P, 44/4). Ainda mais, e mais decisivamente, mesmo em termos sumários: “Não há dúvida de que a indústria automobilística, no seu conceito mais abrangente, incluindo a fabricação de autopeças, é o ramo mais importante, aquele que pesa mais individualmente na composição e no dinamismo do nosso produto interno. Apesar de ser o ramo mais importante, é uma indústria voltada para a particular satisfação de uma parcela ínfima da nossa população — quatro por cento apenas dos brasileiros possuem automóvel — já que a sua ênfase inicial na produção de caminhões e ônibus foi invertida ao longo do tempo para se concentrar no carro de passeio. Apesar de ser uma indústria voltada para a satisfação de tão poucos é de longe a que causa maior impacto negativo no nosso balanço de pagamentos com o exterior, responsável maior que é pelas nossas importações não apenas de petróleo mas de aço, cobre, alumínio, níquel, magnésio, borracha e outros” (P, 41/1).
Tomado articuladamente o conjunto dessas indicações, temos o esquema básico da leitura braguista dos processos e efeitos da política econômica em vigor, do modelo voltado para fora. Se bem que insista sempre na conexão indissolúvel entre o concentracionismo da renda e a exteriorização da economia brasileira, e de outra parte também estabeleça a relação íntima entre o desenvolvimento de bens de consumo duráveis, dependência externa e concentracionismo, e ainda entre exteriorização e dependência externa, não se pode dizer a rigor, nem mesmo num plano virtual, que S. Braga efetiva a síntese de todas estas correlações, apanhando de modo cabal o processo em sua inteira espessura. Impedimentos de perspectiva, moldagem teórica e o que mais seja restringem a análise, de tal forma que o sentido genético do quadro se esfumaça, e com ele o próprio caráter determinante da dependência, tantas vezes assinalada. Todavia, isto não impede que, na imediaticidade dos eventos, Saturnino monte uma equação bastante razoável, que apreende certa porção do significado principal das ocorrências e seu impasse intrínseco, apreensão que faculta, na sequência, sua concludência programática.
O esquema fundamental do senador fluminense detecta as articulações centrais da política econômica em vigor e assinala sua tendência crônica para a inviabilidade. “Talvez não se possa dizer taxativamente que o atual modelo seja inviável sob o ponto de vista estritamente econômico. Uma nação que tem uma parcela de trinta milhões de pessoas, com uma renda per capita de quase US$ 2.500, com poder aquisitivo médio bem superior ao que caracteriza os países pobres ou subdesenvolvidos, tem, dentro de suas fronteiras, um mercado capaz de viabilizar um processo de desenvolvimento. Mas é claro que ele terá de ter um coeficiente de abertura para o exterior relativamente alto /…/ e que essa abertura, dadas as relações de troca que prevalecem entre países que têm e não têm tecnologia de produção avançada, tende a produzir deficits permanentes na balança de pagamentos. Tudo passa a depender, então, da disposição dos centros detentores de capital e tecnologia de realizar os investimentos na medida capaz de contrabalançar esse deficit crônico (…). O indicador que sugere com mais evidência esse impasse é o volume da nossa dívida externa, que, ultrapassando em 1977 o nível dos US$ 30 bilhões, exige que cerca de 50% do valor total das nossas exportações, ampliadas artificialmente à custa de muito subsídio, seja gasto em juros e amortizações deste ano. Assim, não se chamado de inviável, o mínimo que se pode dizer do atual modelo brasileiro é que é inseguro, alienante, demasiadamente dependente de decisões tomadas fora do País, fora da nossa área de influência. E um dos fatores que mais acentuam esse grau de insegurança é o fato de que essa solução cada vez mais divide a nação entre poucos ricos e muitos pobres, gerando tensões sociais que dificultam sobremaneira a obtenção de estabilidade política exigida pelos centros de capital e tecnologia” (P, 41/1). Dito de maneira mais anatômica: num país periférico, a uma organização da produção centrada em torno de bens de consumo duráveis corresponde um mercado consumidor privilegiado bem como uma desvalorização da força de trabalho, e uma componente importadora que, considera a desigualdade dos parceiros comerciais, sobrepuja a capacidade exportadora, e implica em progressivo endividamento, ao limite de um impasse que tende a ameaçar o processo de acumulação.
Tudo isto considera que “É evidente que um aumento substancial das nossas exportações é um resultado positivo. Altamente positivo se for obtido pela exploração das nossas vocações naturais, pela intensificação do emprego da nossa mão de obra abundante, subempregada, na produção de manufaturados, pela utilização de uma política comercial agressiva e inteligente” (P, 44/4). Não porém uma exportação de manufaturados que para chegar ao ponto a que foi levada “teve o governo que dar uma soma tão grande de incentivos — isenção de IPI, isenção do ICM, crédito do IPI, financiamento a juros subsidiados e outros — imposto de renda, também, que muitos economistas nossos sustentam que estamos vendendo a preços inferiores aos custos internos de produção, subsidiando, portanto, o consumo de outras nações (enquanto o nosso pobre consumo interno básico não pode ser subsidiado, por razões que até hoje ignoramos, não pode, nem mesmo, ser aliviado do ICM). E a política de forçar exportações não se limitou aos manufaturados” (PEE, p. 9). Em face, portanto, da exportação, tal como se deu, enquanto instrumento do “modelo voltado para fora”, uma pergunta é posta, como uma clara afirmação: terá semelhante esforço exportador se imposto “Para satisfazer as necessidades de uma pauta de importações que, direta ou indiretamente, é ditada pelo consumo artificial e conspícuo de uma minoria cada vez mais privilegiada?” (P, 44/4). É, nos limites da armação conceitual braguista, a forma de ver e indicar a contradição entre um processo de realização industrial que, objetivando o mercado interno, é, no entanto, propriedade ou financiamento do capital estrangeiro, e a incapacidade do país periférico em gerar as divisas suficientes para “remunerar” este capital. E assim se põem as ameaças ao prosseguimento da acumulação, como diz S. Braga, a inviabilidade do desenvolvimento: “A persistir o quadro atual, o Brasil deverá ao exterior US$ 40 bilhões antes do fim de 1980, com amortizações e juros na ordem de US$ 8 bilhões anuais. Por mais favorável que seja a evolução da nossa receita cambial, essa despesa com a dívida acabará por se tornar insuportável, e as concessões que o país terá que fazer aos credores inviabilizará qualquer projeto de desenvolvimento nacional” (P, 45/5). Inviabilização, aliás, que da perspectiva braguista já está em curso: “desaquecimento de uma economia cujo dinamismo já caiu de 9%, ao ano, para 4%, se não quer dizer recessão, eu já não entendo mais a semântica dos economistas. Mas, se ainda sou capaz de perceber alguma coisa, vejo, então, o verdadeiro plano do Governo: apelar para a recessão e, dessa maneira, resolver com um só remédio os dois problemas cruciais: a inflação e o balanço de pagamentos. Um remédio terrível para o país, mas que tem algumas vantagens: esconde a incompetência, na medida em que se pode pôr a culpa na crise internacional, e joga o peso maior do sacrifício sobre aqueles que têm menos poder e capacidade de reclamar” (PEE, p. 112).
O modelo voltado para fora é, pois, inseguro e inviável. Mais não é preciso dizer: “Tudo isso é errado /…/; são erros sobre erros que a oposição não pode deixar de denunciar. E, para não ficar exclusivamente na denúncia, na crítica /…/ oferecemos a nossa opinião, as nossas ideias que consideramos devam fazer parte de uma política alternativa, viável e correta” (PEE, p. 112).
O modelo voltado para dentro. “A eliminação das causas geradoras da dependência excessiva — falta de mercado interno, grau de concentração de renda gerando demanda sofisticada e pressão sobre importações, atraso tecnológico — tem que ser uma das linhas prioritárias do novo modelo” (P, 44/4).
Em que pensem as claras flexões de causalidade que o fragmento acima espelha, mais uma evidência das fronteiras perspectivadas pelo senador fluminense, a Proposta braguista se põe como um recurso para evitar o aprofundamento e alcançar a redução da “dependência”, no preciso momento em que esta, pela crise do “milagre”, pode se tornar ainda maior, se bem que estejam dadas as condições de sua superação.
O desequilíbrio da balança comercial, e o correlato desequilíbrio da balança de pagamentos são o nó górdio revelador do esquema vigente. A organização industrial voltada para a produção de bens de consumo duráveis, esta indústria de ponta, como é chamada, propriedade, na sua parcela mais dinâmica e significativa, de capitais estrangeiros, além de suscitadora de um mercado consumidor privilegiado, implica numa pressão importadora, bens de produção e insumos básicos, responsável, no andamento, pela inviabilização do esquema em seu conjunto, na medida que esgota os recursos do esforço exportador e conduz a um endividamento crescente. “Se as importações de petróleo, momentaneamente, cresceram de forma aguda, a tendência de prazo mais largo mostra uma taxa média de crescimento das importações de equipamentos bem mais elevada. E como os países produtores de bens de capital podem reajustar os seus preços reagindo à alta do petróleo, é certo, é inevitável que ao fim de poucos anos, o gasto com importação de equipamentos ultrapasse de muito o das compras de petróleo. É o fato de fabricarmos ainda muito pouco das nossas fábricas que faz com que o processo de substituição de importações e o próprio processo de crescimento econômico em geral resultem em pressão crescente sobre o balanço de pagamentos. De tal forma que a superação da situação de subdesenvolvimento pareça ou inviável ou dependente de entradas cada vez maiores de capital estrangeiro” (P, 44/6).
De sorte, e nisto não há margem para qualquer dúvida, a superação do subdesenvolvimento remete à implantação e crescimento da indústria de base, dos bens de capital, dos insumos básicos, numa expressão precisa — dos bens de produção (equipamentos e os chamados bens intermediários). É precisamente sobre este ponto que está centrada a Proposta de S. Braga.
O modelo voltado para dentro principia por estabelecer o fundamento, as condições de possibilidades deste giro para dentro pela propositura da interiorização da produção dos bens de produção. Substituir as importações de bens de capital e insumos básicos é um imperativo; imperativo é também que o seja tendo por base o capital nacional. Escapar, portanto, à inviabilidade de superação do subdesenvolvimento, e concomitantemente da entrada cada vez maior de capital estrangeiro, como Saturnino configura a questão. Todavia, “O rompimento desse ciclo não é fácil. A fabricação de equipamentos exige o domínio de tecnologias modernas e complexas que só as grandes empresas multinacionais detêm. O investimento em desenvolvimento tecnológico é um investimento caro e de resultados não muito certos, senão num prazo bem longo. Trata-se de uma esforço que quase sempre está fora do alcance das empresas privadas nacionais, no grau de capitalização que elas atingiram” (P, 44/7). “Não obstante tudo isso”, prossegue Saturnino, “o Brasil conseguiu ensaiar os primeiros passos no campo da indústria de bens de capital. Algumas poucas empresas brasileiras conseguiram se afirmar e ganhar uma parte apreciável do mercado, antes inteiramente preenchido por bens importados” (P, 44/7). Todavia, avaliando o conjunto da situação do “setor dos chamados insumos básicos, onde a disputa de poder, de comando dos mercados, aparece, clara e transparente, entre o Estado e a grande empresa estrangeira” (P, 41/5), como considerando que “O setor de produção de bens de capital é no momento o que apresenta melhores oportunidades de investimento, não só o investimento comum em instalações fixas, mas também, e principalmente, aquele investimento, de maturação mais longa, em tecnologia (tecnologia de processo e tecnologia de produção)” (P, 41/5), Saturnino conclui, declarando: “Para colocar logo a questão nos seus devidos termos, acho útil repetir a definição geral do ponto de vista que tenho defendido: de que, na área da grande empresa, nos setores pesados de nossa indústria e dos serviços básicos, nos setores fortemente exigentes em capital e tecnologia, o estado não deve esperar pela iniciativa privada em nome de velhos preconceitos liberais, mas deve garantir, com seus empreendimentos, sempre que necessário, o cumprimento no tempo próprio das metas essenciais estabelecidas. A espera só poderia resultar numa das duas decorrências alternativas: o atraso do setor, com consequências graves para o desenvolvimento, ou a ocupação do setor pela grande empresa de capital estrangeiro” (P, 41/3). Mesmo porque o “centro da questão colocada à nossa frente é este: quem vai liderar o desenvolvimento brasileiro? A grande empresa estrangeira, a chamada multinacional ou transnacional, ou a grande empresa brasileira, a empresa estatal, a nossa multinacional? Esse é o dilema” (P, 44/1).
É um dilema posto num momento especial, pois “só agora ele está maduro para uma verdadeira opção. Até agora, o interesse das multinacionais pelo Brasil era marginal: os grandes mercados da América do Norte e da Europa monopolizavam suas atenções. Não tenho a menor dúvida de que agora as multinacionais estão realmente interessadas no Brasil. E a produção de equipamentos será fatalmente o veio mais cobiçado a explorar. Mas também não tenho nenhuma dúvida de que agora a empresa estatal brasileira, a nossa multinacional, está madura, forte, aparelhada e confiante para enfrentar a batalha. E a produção de equipamentos, de bens de capital, de tecnologia, de ‘engineering’ será a principal frente de combate nos próximos anos” (P, 44/1).
De maneira que a superação do subdesenvolvimento, a ruptura com a pobreza e o atraso, bem como a resolução do confronto com o capital estrangeiro, e, em última instância, o rompimento da condição econômica subalterna, de velha estrutura colonial, confluem para um mesmo momento de resolução, no preciso instante, instante especial, e isto não é de pouca importância, em que se trata de edificar a base do “capitalismo verdadeiro”. E o instrumento afirmado para a empreitada decisiva, mantido o modo de produção vigente, é a grande empresa estatal. Mesmo porque “a produção de matérias-primas e de equipamentos básicos, dadas as exigências de capital e de tecnologia, dadas as dimensões relativas do nosso mercado, são setores onde não existe a liberdade de iniciativa, onde tem que existir um monopólio de fato e onde a presença do estado, dadas as características do capitalismo nacional, faz-se necessária como alternativa única para enfrentar a possibilidade de entrega das decisões à empresa multinacional” (PEE, p. 216). E o senador fluminense detalha, sempre enfatizando a transcendência do setor de produção de bens de produção: “É o setor-chave da retomada do processo de substituição de importações; é a peça essencial da nova feição do modelo brasileiro que reabilita a prioridade dos setores básicos e volta-se para o mercado interno. É, ainda, um ramo cujo desenvolvimento torna-se primordial para a solução dos nossos problemas de balanço de pagamento a longo prazo. Por todas essas razões, esse é um setor que não pode falhar” (P, 41/5).
Passo decisivo e vital, face ao qual deve ser repelido qualquer “preconceito anti-estatizante, invocando a defesa da iniciativa privada, a liberdade de iniciativa”. “A começar pelo fato de que esse é tipicamente um setor onde há muito já não existe liberdade de iniciativa. É um setor completamente dominado pelo entendimento entre as grandes empresas monopolistas” (P, 41/5). Ademais, “a empresa estatal é uma fórmula bem brasileira. Foi a solução encontrada por sucessivos governos de diferentes colorações políticas nos últimos 25 anos; foi a solução adotada pragmaticamente, quase instintivamente, pela sociedade brasileira, pela economia brasileira para buscar o caminho mais viável, o caminho próprio para o seu desenvolvimento. Uma solução exitosa, uma fórmula feliz” (P, 44/3).
Fórmula feliz para a qual S. Braga reserva quatro esferas de atuação: “1) a da produção de serviços básicos de infraestrutura; 2) a da produção de matérias-primas fundamentais; 3) a da produção de equipamentos básicos; 4) a da comercialização no mercado internacional” (PEE, p.177). Saturnino enfatiza cada um destes itens, mas um em especial, precisamente o que já várias vezes ressaltamos, o da produção de equipamentos básicos. A ponto de, em um de seus discursos, chegar a propor a criação da Equipobrás, “uma empresa holding que organizasse a produção do setor, em associação com as companhias privadas, que distribuísse e aprofundasse as vocações já existentes, as vocações produtivas já existentes dentro desse importante setor da nossa indústria, participando com capital, criando subsidiárias para produzir o que ainda não é fabricado, produzindo e fornecendo tecnologia, porque esta empresa se constituiria num núcleo de produção de tecnologia, coisa que nenhuma empresa privada é capaz de fazer…” (PEE, p.79).
A empresa estatal, esta fórmula feliz e brasileira que, ao contrário do que supõe o preconceito privativista, seria a condição de existência e desenvolvimento, na perspectiva braguista, da pequena e média empresas privadas, pois, “o que a empresa privada nacional está precisando é de segurança no fornecimento, a tempo hábil, de equipamentos de boa qualidade para as suas fábricas, associado a esquema de financiamento adequado à sua rentabilidade previsível. Até agora, isso tem sido obtido, na parte mais substancial dos equipamentos pesados, pela via das importações, do fornecimento externo. Essa solução, entretanto, não constituirá mais uma via segura nos próximos anos. Basta observar a correlação entre o nosso crescimento econômico e a elevação das importações de bens de capital para concluir que o estrangulamento do nosso setor externo seria uma fatalidade em poucos anos, em decorrência do crescimento dessas importações de máquinas e equipamentos, independentemente do petróleo. O que a empresa privada nacional está, então, realmente precisando, para garantia de seu desenvolvimento, é que se instale urgentemente no País uma indústria em grande escala de bens de capital, cobrindo a extensa gama de ramos e sub-ramos do equipamento pesado, principalmente daquele fabricado sob encomenda, com uma enorme dose de engenharia embutida em cada caso” (P, 41/5).
Neste registro do ressurgimento de um discurso econômico no seio da oposição, não se faz necessário acompanhar e anotar todos os aspectos e detalhes da propositura. Todavia, antes de dar por findado o rastreamento dos textos braguistas, é preciso ainda, rapidamente, anotar certos pontos.
O primeiro diz respeito à questão agrária.
Praticamente o problema não é tematizado nos discursos publicados na coletânea, aflorando simplesmente numa única frase: “o aumento do emprego agrícola, a reforma agrária, a criação de melhores condições para o pequeno agricultor; aí está outra perspectiva definida pela oposição e desprezada pelo governo, preocupado, sobretudo, com o desenvolvimento agrícola baseado na grande empresa” (PEE, P.125). Pouco, sem dúvida, mas reflete uma tomada de posição. Tomada de posição particularmente significativa pela crítica, se bem que implícita, ao desenvolvimento agrícola exclusivamente pela grande empresa, e pela consignação da necessidade de uma reforma agrária. Na Proposta a questão aparece mais trabalhada, todavia, ainda sem se converter num capítulo amplamente desdobrado. Contudo, um passo é dado na justificação dos reparos a uma política de desenvolvimento agrícola baseada apenas na “grande empresa rural capitalista”, tal como o faz a política vigente: “A modernização da agricultura brasileira tem significado maciça liberação de mão de obra por parte das grandes propriedades. A contribuição negativa da moderna agricultura para a absorção de mão de obra nada teria de grave se a liberação de trabalhadores fosse compensada, por um lado, pelo barateamento dos alimentos e, por outro, pela inserção de mão de obra em atividade mais produtivas, na indústria ou nos serviços. Mas nada disso vem ocorrendo”. Passo subsequente, o senador emedebista extrai a conclusão de que “A reforma agrária é portanto o meio eficaz de criar mais oportunidades de trabalho no campo”, porém, “A reforma agrária é essencial mas também não basta como elemento principal de uma política de emprego” (P, 45/2). Deste ponto, S. Braga salta para a questão do imposto territorial rural, criticando a reformulação que este sofreu em 1965, para constatar que “A estrutura de distribuição de terras não se alterou significativamente nesses dez anos de vigência do novo imposto, o latifúndio improdutivo continua existindo em larga escala, e a especulação, com a subida vertiginosa do preço da terra, nunca tinha atingido níveis tão altos” (P. 45/6). O parlamentar conclui pelo parecer “que o imposto territorial rural realmente pesado, insuportável para o latifúndio, é a melhor solução, a mais realista”, não sem antes, por mais uma vez, aludir à reforma agrária, “que todo mundo sabe o que é, a distribuição entre pequenos agricultores, de terras pertencentes a latifúndios improdutivo, associada a uma efetiva assistência a esses pequenos proprietários” (P, 45/6). Posta nestes termos, a reforma agrária parece não dispor nem mesmo da convicção de seu próprio expositor.
Para finalizar tome-se a questão do mercado interno.
O modelo voltado para dentro pensa naturalmente uma forte estruturação de um amplo mercado de bens de consumo não duráveis, o que implica, é evidente, num largo desenvolvimento deste departamento de produção.
Através de medidas tributárias, distributivistas, de intensificação do emprego de mão de obra, seja pela utilização de técnicas ávidas de força de trabalho, ou através de estímulos fiscais, e principalmente pela ampliação do mercado de trabalho, julga o parlamentar fluminense ser possível constituir um imenso contingente de consumidores de bens operários.
Isto naturalmente tem por suposto uma reorganização da produção: “A produção de um País pode se compor e se distribuir das mais diversas maneiras, tendo, em cada uma dessas composições, o mesmo valor global e a mesma taxa de crescimento”. Propondo, então, um deslocamento que abandona os bens de consumo duráveis (Saturnino argumenta explicitamente com a indústria automobilística) enquanto centro dinâmico do sistema produtivo, especifica: “os mesmos empregos, certamente em maior quantidade, os mesmos salários e impostos poderiam resultar do desenvolvimento maior de outras indústrias — alimentação, tecidos, confecção, calçados, mobiliário etc. que atenderiam às necessidades não de cinco milhões mas de 110 milhões de brasileiros. É claro que esta nova composição da oferta teria que corresponder a uma nova composição da demanda, isto é, medidas eficazes de redistribuição de renda teriam que ser adotadas. Mas é óbvio, também, que isso não é impossível; ao contrário, fica claro que isso é economicamente viável, pois que, como foi dito, um mesmo valor do produto global pode ser obtido de várias maneiras, com várias composições, dependendo da composição do poder político, de quais os grupos sociais que exercem maior influência, maior soma de poder. É essa transformação que nós chamamos de mudança de modelo” (P, 41/1).
Convém observar que esta nova composição da oferta não se converte na nova base dinâmica do sistema produtivo, esta é detida pelos setores de base, nos quais o monopólio estatal é a pedra angular.
E sejam quais forem os defeitos, maiores ou menores; os limites, mais ou menos estreitos; e as incorreções, mais ou menos comprometedoras, a análise econômica é politicamente concludente. O universo daquela supõe a esta; esta é a finalização daquela. Uma totalidade é reposta. E as formas, defeituosas que sejam, pelas quais isto se efetiva, estão, de qualquer modo, muito além do reducionismo politicista.
Tentador seria, nesta última parte, articular os três seguimentos que o antecederam. Concretar analiticamente, portanto, na particularidade da via colonial, ou caminho “prussiano”-colonial, como for preferido, a ocorrência da politicização da totalidade operada pela oposição, e a “recuperação” posterior daquela para esta última pelo ressurgimento do discurso econômico em seu seio. Todavia, por óbvias razões, limitar-nos-emos a pespontar, tão-somente, alguns poucos passos iniciais.
Assinale-se, então, de início, que o ressurgimento de um programa econômico da oposição só se verificou como “esgotamento” do “milagre”. Apenas emergiu quando a política econômica em vigor evidenciou da forma mais explícita possível a suas inviabilidades intrínsecas enquanto aparato resolutor das questões nacionais em seu conjunto. O que ressalta agudamente a abstratividade que pautou a atuação oposicionista, incapaz de ver e proclamar, desde logo, nos próprios momentos de implantação e de sucesso tópico daquela, a falsidade básica da mesma. O próprio senador S. Braga evidenciou, indiretamente, que tempo foi consumido para formar a convicção de que o sistema era transpassado por “defeitos fundamentais”. Isto se aprende, logo às primeiras linhas de sua Proposta, quando se lê que a “ideia da mudança do modelo econômico-social” proveio da verificação de tais “falhas”, e que estas “uma vez constatadas” levaram à formulação de um novo modelo. Este “uma vez” nos dá a medida de um antes de constatar, feito de perplexidade e ilusão, que é altamente significativo e sintomático.
Perplexidade e ilusão que traduzem acima de tudo a debilidade social dos segmentos da sociedade brasileira que, de algum modo, são espelhados pelo contingente oposicionista. Mais do que isto, abrangentemente espelham a debilidade do modo de produção capitalista no Brasil, em especial do modo especificamente capitalista de produção, que precisamente se singulariza pelo capital industrial. Fraqueza por gênese histórica que é particularmente aguda no que tange à classe que em seu bojo supostamente deveria ocupar o espaço hegemônico.
Tudo isto já encerra na particularidade da objetivação da via colonial para o capitalismo.
Numa formulação mais do que esquemática, fácil é observar o caráter hiper-tardio da entificação histórica do capital industrial no Brasil. Bastaria referir que até a atualidade este processo não se completou, haja vista que a grande questão que, hoje, torna a se pôr (e que data de suas origens), é a da produção de bens de produção. Bastaria também lembrar que a industrialização, nas fronteiras nacionais, atravessou toda a primeira metade deste século em tentativas e contramarchas que não lograram ultrapassar o nível da incipiência. Considerados, pois, os casos clássicos de objetivação do modo de produção especificamente capitalista (Inglaterra, França), face aos quais a industrialização alemã e a italiana já são tardias (datando das últimas décadas do século passado), a industrialização brasileira é hiper-tardia.
A questão aí indicada, é óbvio, não é simplesmente cronológica. Enquanto a industrialização tardia se efetiva num quadro histórico em que o proletariado já travou suas primeiras batalhas teóricas e práticas, e a estruturação dos impérios coloniais já se configurou, a industrialização hiper-tardia se realiza já no quadro da acumulação monopolista avançada, no tempo em que guerras imperialistas já foram travadas, e numa configuração mundial em que a perspectiva do trabalho já se materializou na ocupação do poder de estado em parcela das unidades nacionais que compõem o conjunto internacional. Ainda mais, a industrialização tardia, apesar de retardatária é autônoma, enquanto a hiper-tardia, além de seu atraso no tempo, dando-se em países de extração colonial, é realizada sem que estes tenham deixado de ser subordinados das economias centrais.
É numa configuração desta ordem que se põe o capital industrial no Brasil, tendo por suporte, então, uma burguesia especialmente despojada de “ilusões humanitárias”, e especialmente tolhida por fronteiras objetivas e subjetivas que demarcam seu estreito espaço histórico. Para ainda ressaltar a debilidade essencial desta burguesia é suficiente ponderar que a organização produtiva nacional que a precedeu, a economia agroexportadora “era uma economia que exportava seu excedente”, não tendo, pois, conduzido previamente a “uma acumulação que se cristalizasse na máquina”(20).
Frente a isto, e saltando mediações que este pequeno ensaio pode, provisoriamente, dispensar, de imediato as questões da acumulação e da hegemonia, na objetivação do “capitalismo verdadeiro” no Brasil, se mostram tanto específicas quanto altamente problemáticas.
Disse certa vez Engels, referindo-se à burguesia alemã, que “Por mais lamentável que sejam as manifestações da nossa burguesia no domínio político, é inegável que sob a relação industrial e comercial nada fez senão cumprir seu dever”(21). Poder-se-á repetir o mesmo quanto à burguesia brasileira? Certamente que sim, quanto à primeira parte, de nenhum modo, todavia, quanto à segunda. E isto faz toda a densa diferença. Sequente à economia agroexportadora que não teve a gentileza de lhe legar o enxoval das bases capitalistas para a industrialização, mas a fez herdeira do contrapeso latifundiário que mesmo sob as “melhores” condições, sempre lhe reduziu o fôlego, a burguesia industrial brasileira teve que se contentar com fatias de reinado no colegiado dos pactos, e acumular sob a proteção do estado e o olho guloso do capital estrangeiro. Existência estranha, se se raciocina com a imagem da redentora clássica do “ancien régime”. Mas outra não é a nossa heroína nacional, em foto 3x4, com data no peito para colar em documento de identidade.
De sorte que a presença do estado na economia, bem como a detenção do poder em forçosa companhia é da essência mesmo do capitalismo no Brasil desde as ocorrências da década dos 30. Se a isto se agrega a presença do capital estrangeiro os contornos principais estão traçados. De fato, parece que à medida que pela via colonial se avança na objetivação do “verdadeiro capitalismo”, tanto menos a classe, classicamente por ele responsável em cada fronteira nacional, é capaz de reproduzir seus atributos universais, a ponto de não realizar, ao contrário das burguesias simplesmente tardias, nem mesmo seus precípuos deveres econômicos(22). O estado e o capital estrangeiro podem assim, de vários modos, proferir seus discursos, de nenhum modo necessariamente idênticos ou confluentes.
Mas que não se conclua com participação. Se os pactos sociais são as formas pelas quais o poder tem sido detido, eles não são idênticos entre si, e o critério que os separa em dois grandes ramos básicos é a presença ou não, em seu bojo, de alguma forma de representação das classes subalternas. É assim que tem caminhado, na particularidade da via colonial, o evolver do processo brasileiro, pagando cada avanço pesado tributo ao historicamente velho.
Consequentemente, tudo considerado, não é casual, mas empuxo de realidade que o ressurgimento de um discurso econômico no seio da oposição se faça precisamente repondo questões e personagens que muitos, sob várias maneiras, pretenderam conceitualmente sepultar. Não é também casual que o discurso braguista aponte para a necessidade da substituição do pacto no poder por outro com a presença das forças populares; que indique claramente na direção de um capitalismo de estado como forma de conter e enfrentar o capital estrangeiro, pois, se a assim chamada “teoria” da dependência desarmou teoricamente para a compreensão do imperialismo, e, a também mal chamada “teoria” do populismo desarmou para as concretas equações políticas, isto não altera a realidade de que o imperialismo e o latifúndio (para usar uma expressão sintética) são o historicamente velho, e a presença popular a virtualidade do novo. Mesmo porque, para além da questão sobre as viabilidades, no dia em que a oposição colher votos sobre um programa econômico, alternativo para o que aí está plantado, a história efetivamente política terá recomeçado, dado que da perspectiva do trabalho, como recordou, não há muito, um autor português, o empenho pela democracia jamais pode ser postulado à parte das questões fundamentais que dizem respeito aos modos pelos quais o produtor direto está concretamente envolvido, em cada momento dos processos, na produção e reprodução da existência material da sociedade.
Notas de rodapé:
(1) K. MARX, Prefácio — Para a Crítica da Economia Política, Abril Cultural, São Paulo, 1974, p. 135. (retornar ao texto)
(2) “Pressupomos o trabalho em uma forma que pertence exclusivamente ao homem. /…/ Ao cabo do processo de trabalho advém um resultado que, de início, estava presente idealmente na representação do trabalhador. Não se trata de que apenas efetue uma alteração de forma nos materiais naturais; ao mesmo tempo efetiva nos materiais naturais seu fim (Zweck), conhecido por ele e que determina como lei seu modo e maneira de fazer, e ao qual deve subordinar sua vontade. E esta subordinação não é um ato momentâneo. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é mister a vontade adequada que se manifesta através da atenção durante todo o curso do trabalho. E isto é tanto mais necessário quanto menos se sinta o trabalhador atraído pelo conteúdo e pelo modo de execução de sua tarefa, que lhe oferece por isso menos possibilidade de fruir da aplicação das suas próprias forças físicas e espirituais”. K MARX, O Capital, Livro I, Parte Terceira. (retornar ao texto)
(3) K. MARX, Introdução à Crítica da Economia Política, Abril Cultural, São Paulo, 1974, pp. 118-119. (retornar ao texto)
(4) G. LUKÁCS, “Carta sobre o Stalinismo”, in Revista Temas 1, Grijalbo, São Paulo, 1977, p.16. (retornar ao texto)
(5) Referimo-nos ao capítulo final de nosso trabalho — O Integralismo de Plínio Salgado, São Paulo, Ad Hominem, 1999. (retornar ao texto)
(6) “Hegel jamais chamou de dialética a subsunção de uma massa de “cases” under a general principle”. K. MARX. “Carta a Engels de 9 de dezembro de 1861”. (retornar ao texto)
(7) G. LUKÁCS, “Sobre la Categoria de la Particularidad”, in Prolegómenos a una Estética Marxista, Grijalbo, México, 1965, p. 121. (retornar ao texto)
(8) Tome-se apenas como ilustração do que acaba de ser considerado, uma breve passagem da Crítica ao Programa de Gotha: “A sociedade atual é a sociedade capitalista, que existe em todos os países civilizados, mais ou menos livre de complementos medievais, mais ou menos modificada pelas particularidades do desenvolvimento histórico de cada país, mais ou menos desenvolvida”. K. MARX, in Textos 1, Ed. Sociais, São Paulo, 1975, p. 239, (os grifos são nossos). (retornar ao texto)
(9) “A relação entre a indústria, o mundo da riqueza em geral, e o mundo político é um problema da época moderna. Sob que forma principia este problema a ocupar os alemães? Sob a forma das tarifas protecionistas, do sistema proibitivo da economia nacional. O germanismo passou dos homens à matéria, e um belo dia nossos cavalheiros do algodão e nossos heróis do ferro viram-se convertidos em patriotas. Assim, pois, na Alemanha se começa por reconhecer a soberania do monopólio no interior, conferindo-lhe soberania em relação ao exterior. Quer dizer, na Alemanha se começa por onde se principia a terminar na França e na Inglaterra. /…/ Porém a Alemanha não escalou simultaneamente com os povos modernos as fases intermediárias da emancipação política. Não chegou sequer, praticamente, às fases que teoricamente superou /…/ Fixemo-nos, primeiramente nos governos alemães, e os veremos impulsionados pelas condições da época, pela situação da Alemanha, pela perspectiva da cultura além, e, finalmente, por seu próprio instinto certeiro, a combinar os defeitos civilizados do mundo dos Estados modernos, cujas vantagens não possuímos, com os defeitos bárbaros do antigo regime, dos quais nos podemos jactar à saciedade, de tal modo que a Alemanha, se não por bom senso, pelo menos por falta de senso, tem que participar cada vez mais daquelas formações estatais que ficam para além de seu status quo. /…/ Assim como no panteão romano se reuniam os deuses de todas as nações, no sacro império romano germânico se reúnem os pecados de todas as formas de estado”. “En Torno de la Crítica de la Filosofia del Derecho de Hegel”, in La Sagrada Família, Grijalbo, México, 1960, pp. 7, 11 e 12. (retornar ao texto)
(10) O Capital, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968, p. 5. (retornar ao texto)
(11) El Programa Agrário de la Socialdemocracia. Obras Completas, Cartago, Buenos Aires, 1960, Tomo XIII, pp. 241-242 e 246 (os grifos são nossos).(retornar ao texto)
(12) Introdução à Crítica da Economia Política, op. cit., p. 110. (retornar ao texto)
(13) J. A. GIANNOTTI, “Notas Sobre a Categoria ‘Modo de Produção”’, in Estudos Cebrap, nº 17, São Paulo, 1976, p. 163. (retornar ao texto)
(14) R. Saturnino BRAGA, Política Econômica e Estatização, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1976. (retornar ao texto)
(15) Ib., p. 3. (retornar ao texto)
(16) “ — Não posso deixar, todavia, de fazer um reparo à assertiva de V. Exa., segundo a qual, se o governo tivesse ouvido, há cinco anos passados, o MDB, não teria incidido em erros, alguns dos quais apenas apontados de forma incidente por V. Exa. Gostaria que V. Exa., em tempo oportuno, apresentasse à nação, desta tribuna que V. Exa. tanto honra e ilustra tanto, exatamente os pronunciamentos do MDB, demonstrativos do acerto de suas teses, das teses que V. Exa. preconiza, mas que não são exatamente as teses do seu partido e, muito menos, foram pelo seu partido defendidas há cinco anos passados. De maneira que, sabendo da seriedade que V. Exa. empresta a tudo que diz e a tudo que faz, espero que, brevemente, V. Exa., coligidos os dados nos Arquivos, nos Anais do Senado, ou fora dele, V. Exa. possa demonstrar que suas teses já eram defendidas há cinco anos passados pelo partido que V. Exa. tanto ilustra. /…/ Vossa Excelência citou casos isolados, e não atentou para o sentido do meu aparte. V. Exa. faz uma análise global, defende determinadas teorias econômicas que não são as do seu Partido. A circunstância de episodicamente, e em termos isolados, o MDB ou figuras do MDB haverem defendido algumas dessas teses não responde à pergunta por mim feita a V. Exa.” Ib., pp. 107 a 109. (retornar ao texto)
(17) R. Saturnino BRAGA, Proposta de Modelo Econômico e Político para o Brasil, versão condensada e publicada pela Folha de S. Paulo, em 26 de junho de 1977, 4° Caderno, pp. 41, 44 e 45. Daqui para diante será citada simplesmente, no próprio corpo do texto, como P, seguindo-se à letra o número da página do jornal em que se encontra o fragmento e o número da coluna. No caso: (P, 44/2). (retornar ao texto)
(18) “/…/ o socialismo, na sua definição clássica, o socialismo ortodoxo ou totalitário demonstrou ser inseparável — por motivos evidentes — da ditadura política de um grupo dirigente. E basta o potencial de monstruosidades que essas situações ditatoriais carregam para justificar sem a necessidade de discussão de outros aspectos (ligados à eficiência, por exemplo), para sustentar a sua rejeição” (P, 41/3 — os parênteses são do original). (retornar ao texto)
(19) Política Econômica e Estatização, op.cit., p. 189. Citada daqui para diante apenas como PEE. (retornar ao texto)
(20) Francisco de OLIVEIRA. A Economia da Dependência Imperfeita, Ed. Graal, Rio de Janeiro, 1977, p. 116. (retornar ao texto)
(21) F. ENGELS, As Guerras Camponesas na Alemanha, Grijalbo, São Paulo, 1977, p. 18. (retornar ao texto)
(22) “/…/a chamada burguesia nacional hoje tem um peso econômico insignificante na estrutura da dominação, ou na repartição do comando da estrutura de produção material. A ironia reside em que a grande parcela das classes dominantes de caráter estritamente nacional está no campo. E este, pelo seu caráter subordinado do processo produtivo, confere à burguesia nacional agrária e aos latifundiários um peso político descendente. No nível do setor industrial, a burguesia nacional também tem um peso específico que é declinante desde há muito tempo”. F. de OLIVEIRA, op. cit., p. 122. (retornar ao texto)
Inclusão | 08/05/2018 |