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Fonte: Revista Brasiliense, Rio de Janeiro, n. 39, p. 139-152, jan/fev 1962
Trascrição: Frederico Barreto
HTML: Fernando Araújo.
Apontamos, em artigo anterior,(1) como problema mais grave do movimento estudantil brasileiro, o divórcio existente entre o reduzidíssimo grupo de ativistas que o dirigem e o quase que total alheamento político da imensa maioria de nossos estudantes; dissemos também que a política estudantil nacional continua sendo resultante de ações contingentes, limitadas quase que exclusivamente a meros pronunciamentos públicos que não têm, nem poderiam ter causado efeitos residuais, dado que, até agora, não se definiu o papel político, nem se formulou clara e precisamente os objetivos e os métodos de luta do estudante brasileiro.
A fixação exata de tais objetivos e métodos requer, no entanto, um trabalho preliminar: a análise crítica das condições que presidiram à formação do movimento estudantil nacional, tanto do ponto de vista das condições político-sociais da Nação, como das características peculiares do meio estudantil então existente; e ainda o condicionamento gerado por tais origens e que, apesar das transformações ocorridas na vida brasileira, marca profundamente, até hoje, toda a atividade política da juventude estudantil do País.
Trata-se, portanto, de descobrir e entender o significado que vem obedecendo o movimento estudantil brasileiro para que seu atual estágio seja corretamente compreendido, possibilitando, assim, que sua força política seja libertada e aproveitada, através da definição objetiva daqueles pontos que forem identificados como sendo seus verdadeiros e reais objetivos políticos.
Só uma análise desse tipo poderá fundamentar um programa político realista para os estudantes brasileiros, afastando-os, ao mesmo tempo, de um vazio e mistificador extremismo, que não passa de vocabular, oriundo de uma visão teórica conturbada por uma subjetiva, enraivecida e tergiversada interpretação da realidade nacional, ao mesmo tempo que os faça sair de sua atual imperdoável indolência, fruto fundamentalmente da incapacidade de seus mais responsáveis dirigentes, de perceber o verdadeiro sentido e papel da política estudantil e do temor que sentem de adotar novos métodos, não envenenados por erros de mais de quinze anos e temerários por não estarem conformes com hábitos cômodos e farisaicos.
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Com a derrocada do Estado Novo e a consequente democratização do País, garantida, pelo menos em tese, por uma Constituição que, em que pesem, do ponto de vista das massas, aspectos negativos, configura dispositivos que permitem aos agrupamentos sociais, fórmulas de atuação em defesa de seus interesses, surgiram, como não poderia deixar de ser, aproveitando as possibilidades recém-instauradas da prática democrática, associações de classe, organizações profissionais; em poucas palavras, entidades de massa de todos os tipos. Entre elas os órgãos estudantis máximos de âmbitos estadual e nacional, ao mesmo tempo que os Centros Acadêmicos, os grêmios, das escolas superiores do País sofriam uma profunda alteração de conteúdo, deixando, ou procurando deixar de ser, onde existiam, meras sociedades recreativas.
A formação de tais organizações de massa dá-se, no entanto, numa sociedade onde, por razões que não cabe aqui ventilar, as frações maiores de cada um dos diversos grupos sociais interessados na democracia não entendem e não sabem utilizar em profundidade, explorando em todas as suas dimensões, as prerrogativas democráticas de ação política. As atividades, desta ordem, são inevitavelmente, então, desenvolvidas só pelas minorias restritas, pelas vanguardas esclarecidas que procuram a sedimentação da nova ordem social, sem contar, para isto, com o único elemento efetivo que são as amplas camadas da população.
O mesmo ocorre, no meio universitário, e com força redobrada, dadas as características sociais da classe de origem da maior parte do corpo discente da escola brasileira. Numa camada da população, privilegiada como esta, onde o condicionamento aos valores vigentes é relativamente forte, e a quem toda uma classe dominante busca orientar, através de suas formas veladas de coerção, no sentido do conservadorismo e da submissão, em troca de enganadoras promessas de obtenção de prestígio pessoal e de falsas possibilidades de alcance de um elevado nível de vida, é de se esperar que apenas alguns consigam fugir à “tutela” de classe e, através de atitudes lucidas e que denotam sensibilidade, utilizar as formas de liberdade política, na amplitude de seus limites e no preciso momento de suas aparições.
Entre os estudantes, na altura de 1945, somente um agrupamento, numericamente muito reduzido, de jovens, de tendências marcadamente progressistas, encontrava-se em condições de manusear as liberdades recém-inscritas na vida política da Nação.
Além disso é necessário notar que as convicções ideológicas pelas quais, este grupo, pautava sua conduta, levavam-no a valorar positivamente o tipo de democracia, então criado, não simplesmente pelas suas qualidades intrínsecas, mas, como pensava, pelo seu caráter de pre- nuncio da libertação popular total, dado que, em função das transformações internas e das consequências causadas, em plano internacional, pela segunda guerra mundial acreditava que mudanças sociais, econômicas e políticas ainda maiores e mais radicais estavam na iminência de ocorrer, na sociedade brasileira, conduzindo-a, em termos revolucionários, a uma posição de vanguarda.
Dessa forma a política estudantil da época, conduzida por poucos ativistas e inserindo-se num contexto social que é julgado maduro para um enorme salto qualitativo, atribui-se como tarefa fundamental, ao lado das demais vanguardas, “garantir posições”, assegurar o lançamento das “palavras-de-ordem” tidas como próprias para a concepção do momento, entre os mais avançados politicamente, da dinâmica do processo brasileiro. Em outras palavras, o movimento estudantil é visto como encarregado de, através das jovens entidades de classe, comparecer diante da opinião pública ostentando posições políticas avançadas, procurando, assim, dar a impressão que o estudantado, ou pelo menos a sua parte fundamental e mais vivida, bem compreende a situação nacional e encontra-se na primeira fila dos que conscientemente podem e lutam pela iminente emancipação do povo brasileiro.
Inexiste, portanto, em tal orientação, o intento de esclarecer a massa estudantil, na sua maior parte bastante atrasada, e trazê-la para a luta. Os primeiros dirigentes estudantis consideram que não há tempo suficiente para um trabalho em profundidade junto a essa massa, uma vez que o País avança muito aceleradamente, e porque independe mesmo da massa estudantil a efetivação das esperadas transformações, bastando apenas que as declarações oficiais das entidades estudantis estejam afinadas com o pensamento político mais evoluído.
Compreende-se perfeitamente que, nos idos de 45, uma posição como esta, ainda que em tese eivada de defeitos e incorreções teóricas e de inconsequências inevitáveis, tenha sido concebida e posta em prática em vista das condições objetivas da realidade social brasileira, principalmente no que diz respeito ao nível consideravelmente baixo da consciência política do cidadão médio do período de que falamos.
No entanto, decorridos apenas alguns poucos anos fica comprovada a falsidade da tese que previa a rápida e radical alteração da estrutura sociopolítica da Nação; sem que, todavia, a maior parte dos líderes estudantis consciencialize tal fato e procure redefinir os propósitos e os métodos de sua luta. Insistem em preservar moldes que se evidenciam, cada vez mais, desajustados, levando, dessa forma, seu movimento de classe a se perpetuar num processo que o tem progressivamente feito perder conteúdo, tornando-o duplamente marginal: por permanecer desligado das amplas massas estudantis e por não se inscrever concretamente na vida nacional, ressalvadas algumas de suas excelentes batalhas, onde a positividade de sua ação bem indicou o que poderia ser a importância do movimento estudantil, no Brasil, caso houvesse uma efetiva e inteligente utilização da potencialidade política do jovem que está se formando intelectualmente.
Paralelamente à comprovação de que as transformações de estrutura do País não se desenvolveriam a curto prazo, ocorre um fenômeno muito natural e realmente positivo, ainda que por vezes originado em interesses inconfessos e propósitos destrutivos: camadas da opinião pública estudantil que até então não participavam das lides políticas acordam para a batalha democrática. Trata-se, na sua maior parte de representantes das porções menos evoluídas do conjunto estudantino que se apercebem, ou são levados a se aperceberem por elementos estranhos à classe, do significado das entidades de massa e da importância de deter seus postos de mando.
Isto significa que, apesar dos erros de concepção e da impropriedade dos métodos de trabalho empregados, os progressistas que deram origem às agremiações estudantis prestaram um serviço irreversível, reconhecido mesmo por aqueles que odeiam as iniciativas populares por terem nelas firmes obstáculos às suas pretensões.
Esses novos ativistas, como os anteriores, encaminham-se para a luta em grupos numericamente reduzidos, mas com o firme propósito de obterem os cargos de direção, objetivando alterar em sentido contrário as posições e as palavras-de-ordem vigentes nas entidades, motivados por uma primária compreensão dos valores políticos, em essência constituídos por um confuso pró-conservadorismo, ou instigados (isto felizmente em ínfima escala) por forças políticas retrógradas, transformam-se concretamente em inimigos da classe, em meros e desprezíveis provocadores.
Como resultado dessa nova participação a política estudantil sofre evidentemente uma alteração, não propriamente de conteúdo, mas no seu sistema vetorial de forças. De um lado o grupo progressista já não é o único atuante, não lhe sendo mais tão fácil, como anteriormente, enunciar e defender suas ideias; e de outro lado os elementos recém-chegados encontram uma estrutura firmemente estabelecida que não é tão simples de modificar como supunham e pretendiam.
Dado que nenhum dos dois grupos tinha maiores ligações e penetração na grande massa do estudantado ocorre que, na luta diária pela fixação de posições e na disputa periódica dos cargos de direção, a batalha se trava enclausurada num círculo de influências e de poder afastado da imensa maioria dos estudantes e de dificílimo acesso. A desconfiança e o temor pelas eventuais reações da massa se evidenciam no comportamento de ambas as partes e, assim, se origina, no seio da política estudantil, a, hoje, institucional arma dos essedários das cúpulas estudantis: o conchavo.
Um outro defeito de orientação ocorre nesta altura do desenvolvimento da política estudantil brasileira. Os grupos interessados na luta se consideram antagônicos e somente não se eliminam por carecerem de suficiente força. Tal disposição de ânimo se é compreensível quando presente em elementos politicamente atrasados não se justifica quando manifestada por progressistas, que devem entender que uma das diretrizes fundamentais do movimento estudantil é unificar a classe, dado que nela não se apresentam contradições irreconciliáveis e que os que defendem posições políticas ruins o fazem quase sempre por falta de esclarecimento e não por oposição de classe. O que deve ser combatido pelos mais esclarecidos são as ideias errôneas e não os seus portadores, quase sempre sinceros, porém enganados por uma maciça propaganda dirigida pelas classes dominantes.
Uma vez estabelecida a refrega entre as duas fundamentais facções com ela também se instalou, como já apontamos, um impasse: nenhum dos dois agrupamentos podia isolar inteiramente o contrário e se afirmar como dono da situação, dado que não contavam com o apoio decidido das bases estudantis para qualquer ação, e muito menos para uma de tal envergadura.
No entanto esta situação de instabilidade era tida como sumamente perigosa e ambas as partes buscavam superá-la, sem atinar, porém, que a única forma coerente de dar consecução ao projeto seria motivar as massas através de uma gigantesca e prolongada campanha de esclarecimento e politização.
De início optaram, cada grupo de per si, contra todo e qualquer preceito do bom-senso, pela estruturação, em torno de si mesmos, de um certo número de porta-vozes, de cabos eleitorais, de pontas-de-lança para vinculá-los, ainda que superficialmente, à massa: em outras palavras forjaram-se verdadeiras clientelas políticas.
Como disto nada de concreto resultou, prosseguiu-se na busca de soluções para o impasse.
Ambas as forças do quadro político estudantil perceberam quase que concomitantemente, mais ou menos a partir de 1956/7, que a solução estava fora de seu inexpressivo xadrez político e se encontrava na atitude que se viesse a obter de milhares e milhares de jovens que permaneciam alheios às encarniçadas lutas e estafantes negociações pelo poder que se realizavam nos cenáculos em que se viram transformadas as entidades de massa estudantis.
As forças não progressistas tiveram a suficiente sensibilidade para, uma vez equacionado o problema, notar de imediato que lhes bastaria unicamente espicaçar um pouco o atraso e os preconceitos políticos da maior parte dos estudantes que poderiam contar com boa parcela deles. Tal orientação atingiu o seu ápice durante os anos de 1958 a 1960, culminando com a tese obscurantista — Menos Política, Mais Administração — que lhes serviu de bandeira eleitoral.
Os resultados que essas forças obtiveram são bastante discutíveis, mas de qualquer forma indicam que, pelo menos parcialmente, tiveram sucesso, dado que conseguiram ponderável quantidade de votos, nas eleições dos Centros Acadêmicos, ao mesmo tempo que conservavam seus eleitores na quase que total imobilidade primitiva.
Acreditamos que melhores não foram os resultados simplesmente porque uma política desse tipo não cria novos valores e não resolve nenhuma das inquietações que os estudantes brasileiros vêm demonstrando, cada vez mais intensamente, e que têm levado alguns deles ao trabalho político, apesar dos esforços de muitos em provocar o contrário.
Por seu lado as forças progressistas decidiram continuar pugnando pelos postos de mando, através de negociações de cúpula, não somente, agora, para que o movimento estudantil pudesse ostentar oficialmente as melhores posições, mas também para que tivessem o ensejo de politizar o estudantado, passando a acreditar, ninguém sabe bem porque, que os únicos instrumentos de politização são os cargos de mando das entidades de massa, confundindo o trabalho de massa e o labor que se pode desenvolver junto às suas organizações com o trabalho precisamente definido e delimitado que um cargo de diretoria de associação permite.
Contudo, estas últimas forças, tendo consciencializado que um dos escopos principais é unificar o movimento, procuram, pelo menos nas cúpulas, esclarecer os companheiros de diretorias e indicar-lhes o melhor caminho. Esta pedagogia política é, entretanto, de pequeno alcance e enquanto não for fundamentada por uma união de massas não produzirá nenhum efeito residual, diluindo-se, quase que completamente, a cada tentativa anual, nos verdadeiros festivais de conchavos a que praticamente se reduzem os congressos estudantis.
Presentemente a configuração do movimento estudantil, como se vê, é formada por um conglomerado de representantes das forças políticas, que nele atuam, e que, em última análise, decidem, isoladamente, de seu destino: é o que chamamos as supercúpulas; em seguida aparece um grupo bem maior que vive em torno daquele e forma o conjunto de porta-vozes, de cabos eleitorais, uma espécie de grupo de manobra que compõe a parcela mais consciente dos plenários dos congressos e que denominamos de cúpulas ou clientelas políticas; em último lugar aparece a imensa maioria dos estudantes brasileiros, quase que inteiramente alheia e desinteressada e a quem ninguém, ainda, tentou, em termos objetivos e consequentes, trazer para a arena política.
Dessa forma o movimento estudantil do País aparece, hoje, duplamente alienado: de um lado porque praticamente nada significa para a grande massa que frequenta as escolas, e de outro porque, devido à sua fragilidade numérica, não tem conseguido ir muito além de meras declarações públicas, não alcançando desempenhar, na maioria das vezes, como cabe fundamentalmente numa sociedade subdesenvolvida, um papel efetivo no processo transformatório da vida nacional.
O que de forma nenhuma se explica é que estando, a maior parte das melhores forças da política estudantil, convencida de que o caminhamento das transformações da estrutura social brasileira obedece a um processo que é, pelo menos, de médio prazo, e que só pode ser acelerado por grandes movimentos de massa, continue a utilizar métodos de trabalho semelhantes aos dos pioneiros de 1945 que defendiam justamente a tese contrária. Se estes tinham uma justificativa, o mesmo não ocorre com os responsáveis de hoje, principalmente quando consideramos que, como já tivemos oportunidade de indicar, a política baseada unicamente em métodos de cúpula vem favorecendo e favorecerá cada vez mais, numa perspectiva a longo prazo, aos grupos não progressistas que têm conseguido manter inalterado o nível de desenvolvimento de ponderáveis frações da massa. Se, por outro lado, a atuação destas forças não tem modificado substancialmente o conteúdo das posições assumidas e as palavras-de-ordem ditadas pelas entidades estudantis nacionais e estaduais, não têm, todavia, aparecido também as condições necessárias para as pôr em prática, devendo-se isto, em parte ao trabalho mesmo dos setores mais atrasados destas forças e fundamentalmente à lamentável e imperdoável omissão que tem caracterizado os progressistas neste campo.
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Portanto, a solução dos problemas do movimento estudantil nacional reside nas medidas que venham a ser tomadas, objetivando incluir as amplas massas estudantinas nas lutas de sua classe e nas tarefas políticas da sociedade brasileira.
As razões, como já vimos, que a tem mantido afastada desse importantíssimo aspecto da vida individual e coletiva, que é a ação política, são de duas ordens: em primeiro lugar as suas origens de classe e o gigantesco esforço das classes dominantes em mantê-la dócil e submissa aos valores tradicionais; em segundo lugar a estrutura da própria política estudantil vigente. Esta última razão fica inteiramente comprovada quando consideramos certas ações, praticamente espontâneas, que a massa estudantil tem levado a efeito, superando mesmo as direções constituídas nas cúpulas, como por ocasião da crise de agosto. Fatos como este demonstram que boa parte dos estudantes vem despertando definitivamente para a ação política e só não fazem mais porque não são solicitados e porque não são chamados a cumprir objetivos bem definidos e próprios de sua dinâmica.
Três são, a nosso ver, as formas de politizar e organizar as camadas estudantis do País: a primeira delas, a mais elementar, é a que resulta dos movimentos reivindicatórios, que chamaremos de restritos, isto é, daquelas pequeninas contendas que visam obter um melhor restaurante na escola, um professor mais hábil e capaz e outras coisas do mesmo jaez; a segunda, infinitamente mais evoluída que a anterior, caracteriza-se por movimentos reivindicatórios globais, consubstanciados nas lutas travadas, principalmente nos últimos anos, em prol da melhoria geral do ensino, e particularmente pela Reforma Universitária; a última e mais consequente fórmula é a luta ideológica, que de certa maneira se articula com a anterior, sendo a mais completa e apropriada para a politização dos estudantes porque, além de esclarecê-los e organizá-los, estrutura-os, num firme movimento universitário, consciente de seus compromissos com a classe e de seu papel na sociedade global, através do aproveitamento da verdadeira potencialidade política do jovem intelectual em formação.
Por luta ideológica não entendemos uma pregação idealista de teorias, uma farisaica defesa e propaganda de ideias pelo mero brilho das ideias, nem a estouvada atitude de alguns poucos que se entregam à difusão de teses desligadas inteiramente, no momento, da realidade brasileira. Esta última conduta, característica da pequena burguesia, que não tendo processo histórico próprio, necessita e constrói periódica e sistematicamente entidades carismáticas e totêmicas, chega, quando adota mecanicamente teses socialistas, a conturbar estas mesmas teses, transformando-as em seres quase míticos, tentando, assim, minorar a sua marginalidade e satisfazer as suas desesperadas elucubrações sobre os dados objetivos do complexo social.
Por luta ideológica entendemos, sim, o trabalho que se realiza ao desvendar diante dos olhos do estudantado os verdadeiros propósitos que as classes dominantes fixam para a intelectualidade, e o que esperam que seja o comportamento dos estudantes diante desta perspectiva, demonstrando-lhe que dentro do atual quadro da sociedade brasileira está-lhe reservado apenas o papel de servidor de alguma categoria ou simplesmente de luxo, impossibilitado de se realizar integralmente como indivíduo e como intelectual.
A luta ideológica, no entanto, não é unicamente uma fórmula de desmascaramento, mas também um instrumento construtivo, um indicador de soluções.
Toda luta reivindicatória, seja ela restrita ou global, deve ser entrosada com a luta ideológica para que, diante dos subterfúgios dos poderosos, fique demonstrado que sempre há uma solução que favorece as massas e que ela pode ser alcançada, e a fim de que se vá desenvolvendo e fortalecendo, nestes entrechoques, a consciência e a força revolucionárias.
No movimento estudantil é importantíssimo observar tal coisa, dado que a mera luta reivindicatória, enquanto do tipo restrito, não tem maiores consequências politizantes e organizativas, uma vez que o indivíduo atravessa apenas alguns anos, na qualidade de estudante, e o processo de lutas, dessa ordem, de que eventualmente possa participar é curto demais para que se depositem, em sua consciência, valores políticos. No que diz respeito às lutas reivindicatórias globais o aspecto ideológico aparece naturalmente interligado, desde o início, sendo mesmo um dos elementos causadores da reivindicação.
Todavia, a luta ideológica não se restringe apenas a estas funções, estando mesmo as suas finalidades superiores na busca de uma concepção integral do homem e do mundo.
Exatamente sob este aspecto é que a luta ideológica ganha, no meio estudantil, a sua maior profundidade. Ao estudante, tanto como indivíduo ou como elemento integrante de um grupo social, apresenta-se o dilema de pôr o seu conhecimento, a sua capacidade de trabalho ao dispor do progresso, sempre encarnado na vontade popular, ou da conservação de um determinado status quo favorável a grupos minoritários e dominantes.
Seria uma atitude quixotesca e verdadeiramente muito pouco política esperar que os estudantes optassem sempre pela primeira solução meramente devido aos “belos ideais românticos da juventude”. Eles evidentemente necessitam de razões bem mais fortes e concretas para fazer semelhante coisa. Precisam compreender que, enquanto técnicos, profissionais, em uma palavra, enquanto intelectuais não possuem processo histórico independente, adquirindo suas obras um significado mais amplo somente na medida em que elas se inserem na dinâmica social desta ou daquela classe. E devem entender, ainda, que a grandeza de uma obra do espírito é tanto maior quanto esteja comprometida com o progresso, e que este é desejado principalmente pelo povo e particularmente, no atual período da história universal, pelo proletariado, notando, portanto, que devem participar da libertação deste último não simplesmente por solidariedade, mas porque compreendem que a sua própria libertação depende da libertação daquele.
Isto não quer dizer, evidentemente, que o movimento estudantil deva passar a agir paternalisticamente em relação aos trabalhadores, transformando-se em tropa de choque de porta de fábrica que pretenderia ensinar ao proletariado, o que seria uma ousadia sumamente ridícula, a fazer greve.
O movimento estudantil deve, isto sim, constituir-se no elemento mais ágil e ativo da vanguarda ideológica, entrando em contacto, sistematicamente, com o povo e com os trabalhadores do campo e da cidade, ajudando-os a entender o estágio de desenvolvimento e o significado de cada momento do processo histórico da sociedade global, fazendo-os sempre ver que as suas lutas particulares são os fautores essenciais das transformações e do aperfeiçoamento de toda a estrutura social.
Para que esta possibilidade concreta seja transformada em luminosa realidade é preciso, no entanto, preliminarmente, que a estrutura atual da política estudantil seja corrigida com decisão, fazendo-se com que as atuais, em tese, organizações de massa sejam efetivamente de massa, reconhecidas como o local de trabalho de todos os estudantes brasileiros.(2)
Notas de rodapé:
(1) Revista Brasiliense, n.° 38, págs. 154-157. (retornar ao texto)
(2) Redigíamos este trabalho quando meia dúzia de meninos muito malcomportados deram início, em nosso País, a uma inequívoca demonstração da fragilidade e da agonia de um dos mais inexpressivos movimentos que por estas terras já surgiram.
Escondendo, no negror das altas horas, os baixos fundilhos remendados com penas de corvo e peles nada encantadas de botos, e silvando por um Sílvio MACróbio, brincaram perigosamente de “mocinho”, tendo por alvo a sede da mais alta entidade estudantil brasileira, dando, com toda certeza, ao velho Pena, dono da mais venerável gagueira mental da história republicana, um dos poucos prazeres de sua tão malbaratada vida.
O que de imediato nos ocorreu, quando soubemos do acontecimento, foi que a lamentável figura de homem e político que é o governador guanabarino nunca teria insuflado a sua ninhada, nem ousado fazer as declarações que fez, logo após o atentado, caso o movimento estudantil nacional fosse, hoje, tão potente como pode e deve. Se a força relativa que ostenta, no momento, o movimento dos estudantes brasileiros já é suficiente para assombrar e desvairar o testa-de-ferro da potente nação imperialista do norte, é justo que se sintam envaidecidos os estudantes, mas cumpre impedir definitivamente que as unhas encardidas da malta fascista volte a arranhar um dos muros vanguardeiros da democracia nacional. (retornar ao texto)