O Imperialismo e a Economia Mundial

N. Bukharin

Terceira Parte: O Imperialismo, Reprodução Ampliada da Concorrência Capitalista


Capítulo IX — O Imperialismo, Categoria Histórica


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1 — Concepção vulgar do imperialismo; 2 — Papel da política na vida social; 3 — Metodologia das classificações da ciência social; 4 — A época do capital financeiro, categoria histórica; 5 — O imperialismo, categoria histórica.

Nos capítulos anteriores, esforçamo-nos por mostrar que a política imperialista aparece somente em um certo nível do desenvolvimento histórico. Uma série de contradições do capitalismo ligam-se, nesse momento, em um só feixe, que é rompido pela guerra, por algum tempo, para reconstituir-se, na fase seguinte, ainda mais solidamente. A política e a ideologia das classes dirigentes, surgindo nesta fase do desenvolvimento, devem ser, então, caracterizadas como fenômeno específico(1).

Na literatura corrente, duas pretensas “teorias” do imperialismo são atualmente preponderantes. Uma, vê na política moderna de conquista uma luta de “raças”: “raça eslava”, “raça saxã”, e, desde que se pertença a um desses grupos, possuem-se todas as taras ou todas as virtudes. Por mais vulgar e antiga que seja essa teoria, ela se mantém até agora com a persistência de um preconceito, encontrando terreno propício no desenvolvimento do “sentimento nacional” das classes diretamente interessadas em explorar a sobrevivência de velhas fórmulas psicológicas no interesse da organização de Estado do capital financeiro.

Para destruir essa teoria, e não deixar pedra sobre pedra nesse edifício, é-nos suficiente indicar alguns fatos. Os anglo-saxões, que têm a mesma origem que os alemães, são seus mais ferozes inimigos; os búlgaros e os sérvios, que falam quase a mesma língua, e são fundamentalmente eslavos, encontram-se em trincheiras opostas. E ainda mais: os poloneses recrutam em seu seio partidários entusiastas tanto da orientação austríaca quanto da orientação russa. O mesmo acontecendo com os ucranianos, dos quais uma parte é russófila, outra austrófila. Por outro lado, cada coligação beligerante agrupa raças, nacionalidades, tribos, as mais heterogêneas.

Que há de comum, do ponto de vista de raça, entre os ingleses, os italianos, os russos, os espanhóis e os selvagens negros das colônias francesas, que a “gloriosa República” leva à carnificina, como os antigos romanos levavam seus escravos coloniais? Que há de comum entre os alemães e os tchecos, os ucranianos e os húngaros, os búlgaros e os turcos, que marcham juntos contra a coligação dos países aliados? É evidente que não é a raça, mas as organizações estatais de certos grupos da burguesia que dirigem a luta. E isso é de tal forma evidente que qualquer coligação das “forças das potências” é determinada não pela participação conjunta em alguns problemas de raça, mas por uma comunidade de fins capitalistas num determinado momento. Não é sem razão que os sérvios e os búlgaros, que, há alguns anos, uniam-se contra os turcos, estão hoje divididos em dois campos inimigos. Não é sem razão que a Inglaterra, antes inimiga dos russos, arvora-se, hoje, em sua protetora. Não é sem razão ainda que o Japão acerta o passo com a burguesia russa, quando dez anos antes o Capital japonês combatia, de armas nas mãos, o Capital russo(2).

Se, longe de toda deformação, colocamo-nos em um ponto de vista estritamente científico, a inconsistência dessa teoria salta aos olhos. Todavia, sua evidente falsidade não impede que ela seja amplamente desenvolvida, tanto na imprensa como nas cátedras universitárias, pela “boa razão” de que permite um bom bocado de lucro a sua majestade, o Capital(3).

Justo é, porém, constatar que, nos meios “científicos” imperialistas, à medida que se opera a consolidação nacional das diferentes “raças”, cimentadas pela mão de ferro do Estado militarista, surgem veleidades menos vulgares, embora também inconsistentes, como a criação de uma teoria imbuída de certo caráter psicológico territorial. Nela, a “raça” é substituída por um sucedâneo denominado “humanidade”, “europeia”, “americana”, etc.(4).

Essa teoria está também longe da verdade, porque ignora o caráter essencial da sociedade moderna, sua estrutura de classe, e porque tenta confundir os interesses de classe das camadas sociais superiores com os interesses, ditos “gerais”, do “todo”.

Uma última “teoria” grandemente difundida do imperialismo define-o como uma política de conquista em geral. Desse ponto de vista, pode-se considerar como tal o imperialismo de Alexandre da Macedônia e dos conquistadores espanhóis, de Cartago e de João III, da antiga Roma e da América moderna, de Napoleão e de Hinderburg. Esta teoria é tão simples quanto falsa, e é falsa justamente porque “explica” tudo, isto é, nada.

Toda política das classes dominantes (política “pura”, política militar, política econômica) possui função bem definida. Desenvolvendo-se no âmbito de um dado modo de produção, serve de intermediário para a reprodução simples e ampliada de determinadas relações de produção. A política dos senhores feudais fixavam e desenvolviam as relações de produção feudais. A política do capital comercial ampliava a esfera de dominação do capitalismo comercial. A política do capitalismo financeiro reproduz, em escala crescente, a base de produção do capital financeiro.

Pode-se, evidentemente, dizer o mesmo da guerra. A guerra é um meio de reprodução de certas relações de produção. Na medida que a guerra de conquista é um meio de reprodução ampliada dessas relações, chamá-la, simplesmente, “guerra de conquista” é omitir o essencial, isto é, as relações de produção que ela procura manter ou estender, que constituem a base sobre a qual uma “política de rapina” determinada pode tomar vulto(5).

A ciência burguesa não vê, ou não quer ver, essa realidade, incapaz de compreender que a economia social tem que servir de classificação essencial para as diversas políticas, uma vez que é sobre sua base que estas atuam. O que é mais grave, tende a ignorar as enormes discrepâncias existentes entre os diferentes períodos do desenvolvimento econômico. É no momento em que o caráter específico do processo histórico e econômico de nossa época salta aos olhos que a escola austríaca e anglo-americana — a menos histórica de todas as escolas — vem abrigar-se na economia política burguesa(6). Publicistas e sábios esforçam-se por apresentar o imperialismo atual com as cores da política dos heróis da antiguidade e seus “impérios”.

Tal é o método dos historiadores e economistas burgueses: dissimular a diferença fundamental entre o regime escravista do “mundo antigo”, com seu capital comercial em fase embrionária e seu artesanato, e o “capitalismo moderno”. Seu objetivo é, aqui, evidente: trata-se de mostrar e “provar” a esterilidade das aspirações da democracia operária, pondo-a sob o mesmo signo do lumpenproletariat, dos operários e artesãos da antiguidade.

Cientificamente, todas essas teorias são fundamentalmente falsas. Se queremos compreender teoricamente uma fase qualquer da evolução, devemos fazê-lo em suas particularidades, em seus traços distintivos, em suas condições específicas e somente a ela inerentes. Aquêle que, a exemplo do “coronel Torrens”, vê no bastão do selvagem a gênese do capital, ou que, à maneira da “escola austríaca” da economia política, define o capital como um modo de produção (o que, no fundo, vem a dar no mesmo), não será jamais capaz de penetrar o sentido das tendências do desenvolvimento capitalista e de englobá-las em uma concepção teórica única. De igual maneira, o historiador ou o economista que situasse sobre o mesmo plano a estrutura do capitalismo moderno, isto é, as relações de produção modernas, e os múltiplos tipos de relações de produção que engendraram guerras de conquista, não conseguirá jamais entender o desenvolvimento da economia mundial contemporânea. Deve-se pôr de lado o que há de específico, de distinto em nossa época e analisá-lo. Tal foi o método de Marx e tal deve ser a maneira de um marxista abordar a análise do imperialismo(7).

Vemos, agora, que não é possível limitarmo-nos à análise das meras formas pelas quais se manifesta tal ou qual política; não se pode, por exemplo, contentar-se com uma definição como “política de conquista”, “política de violência”, etc. Há que fazer a análise da base sobre a qual essa política se desenvolve e a cuja expansão se destina. Definimos, anteriormente, o imperialismo, como a política do capital financeiro. Com isso, explicitamos sua função; essa política é o agente da estrutura financeira capitalista, que subordina o mundo ao domínio do capital financeiro; substitui as velhas relações de produção pré-capitalistas, ou capitalistas, por relações de produção do capitalismo financeiro. Do mesmo modo que o capitalismo financeiro (não confundir com o capital-dinheiro: a característica do capital financeiro é ser simultaneamente capital bancário e capital industrial) constitui uma época historicamente limitada, característica das últimas décadas somente, o imperialismo político do capitalismo financeiro é uma categoria especificamente histórica.

O imperialismo é uma política de conquista. Mas a recíproca nem sempre é verdadeira. O capital financeiro não pode fazer outra política. Eis porque, quando falamos de imperialismo como política do capital financeiro, seu caráter conquistador vem subentendido; além disso, as relações de produção que tal política de conquista reproduz estão aí igualmente indicadas. A definição encerra ainda uma série de outros traços históricos e de características. Na verdade, quando falamos de capital financeiro, entendemos por isso organismos econômicos altamente desenvolvidos e, em consequência, uma certa extensão e uma certa intensidade de relações mundiais, a existência de uma economia mundial desenvolvida: supomos, ainda, um certo nível de força produtiva, de formas organizadas de vida econômica, certas relações de classe e, consequentemente, uma certa perspectiva para os elementos econômicos, etc.; mesmo a forma e o meio de luta, a organização do poder, a técnica militar, etc., pressupõem mais ou menos um valor determinado, ao passo que a definição “política de conquista” aplica-se indiferentemente aos corsários marítimos, às caravanas de comércio e ao imperialismo. Em outras palavras, essa definição não define absolutamente nada, enquanto que a “política de rapina do capital financeiro” caracteriza o imperialismo como um valor historicamente definido.

Pelo fato de ser a época do capitalismo financeiro um fenômeno historicamente limitado, nada autoriza, no entanto, que se a considere como um deus ex machina. Na realidade, ela é a sequência histórica da época do capital industrial, do mesmo modo que esta última é a continuação da face comercial capitalista. É por isso que as contradições fundamentais do capitalismo, que, graças, ao seu desenvolvimento, reproduzem-se cada vez mais intensamente, encontram em nossa época uma expressão particularmente violenta, o mesmo acontecendo com a estrutura anárquica do capitalismo que se manifesta na concorrência. O caráter anárquico da sociedade capitalista baseia-se no fato de que a economia social não é uma comunidade organizada, movida por uma vontade única, mas um sistema de economias ligadas pela troca, no qual cada uma produz por sua conta e risco, sem jamais poder adaptar-se mais ou menos à capacidade de procura e oferta das demais economias individuais. Daí a luta entre economias e sua concorrência capitalista. As formas dessa concorrência podem ser muito variadas. Sendo a política imperialista uma forma de luta pela concorrência, iremos examiná-la, no próximo capítulo, como um caso particular da concorrência capitalista, isto, é, a concorrência na fase do capital financeiro.


Notas de rodapé:

(1) Quando falamos de imperialismo, entendê-mo-lo, sobretudo, como a política do capital financeiro, embora possa ser considerado, também, como uma ideologia. O mesmo ocorre com o liberalismo, que é, por um lado, a política do capital industrial (livre comércio, etc.), e, por outro, toda uma ideologia (“liberdade individual”, etc.). (retornar ao texto)

(2) Kaustky ridiculariza com habilidade a “teoria das raças”, em seu livro Rase und Judentum, publicado durante a guerra. (retornar ao texto)

(3) A literatura “científica” da época da guerra abunda em exemplos espetaculares de selvagens violências contra as verdades mais elementares, procurando demonstrar, a todo custo, a completa ausência de cultura e a natureza abominável da “raça” inimiga. Uma revista francesa publicou uma espécie de ‘‘análise”, para provar a seus leitores que a urina alemã contém um têrço a mais de toxinas que a urina aliada, em geral, e a francesa, em particular. (retornar ao texto)

(4) V. F. NAUMANN: Mitteleuropa. (retornar ao texto)

(5) É conhecida a tese de Clausewitz, segundo a qual a guerra é a continuação da política por outros meios. Ora, a própria política é a “continuação” ativa no espaço de um determinado modo de produção. (retornar ao texto)

(6) É curioso que mesmo sábios como o historiador russo R. Vipper gostam de “modernizar” de modo descabido os acontecimentos, fazendo desaparecer todos os marcos históricos. Vipper, aliás, revelou-se, ultimamente , um furioso caluniador chauvinista e encontrou asilo junto ao cidadão Riabuchinsky. (retornar ao texto)

(7) O método da economia marxista é brilhantemente desenvolvido por Marx em sua Introdução a lima crítica da economia política (Einleitiuig zur einer Kritik der politischen Oekenomie). (Não confundir com o prefácio da Conrtibuição à Crítica da Economia Política, que contém os princípios essencias da teoria do materialismo histórico.)(8) (retornar ao texto)

(8) A Introdução a que se refere Bukharin, escrita por Marx em 1857, só foi publicada depois de sua morte, aparecendo pela primeira vez na segunda edição preparada por Kautsky da Contribuição (Dietz, Stutgart, 1907). (Nota da edição brasileira). (retornar ao texto)

Inclusão 05/12/2015